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a Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa Programa de Pós – Graduação Stricto Sensu em Psicologia Dissertação de Mestrado FAMÍLIA, TRANSTORNOS ALIMENTARES E OBESIDADE NA ADOLESCÊNCIA: ESTUDO POR MEIO DO RORSCHACH E DA ABORDAGEM SISTÊMICA Brasília - DF 2012 Autora: Ilckmans Bergma Tonhá M. Mugarte Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Alexina Ribeiro Coorientadora: Prof.ª Dr.ª Marta Helena de Freitas Ilckmans Bergma Tonhá Moreira Mugarte FAMÍLIA, TRANSTORNOS ALIMENTARES E OBESIDADE NA ADOLESCÊNCIA: ESTUDO POR MEIO DO RORSCHACH E DA ABORDAGEM SISTÊMICA Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em Psicologia da Universidade Católica de Brasília, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia. Orientadora: Profª. Drª. Maria Alexina Ribeiro Coorientadora: Profª. Drª. Marta Helena de Freitas Brasília - DF 2012 7,5cm Ficha elaborada pela Biblioteca Pós-Graduação da UCB 12/11/2013 B499f Bergma, Ilckmans Tonhá Moreira Mugarte Família, transtornos alimentares e obesidade na adolescência: estudo por meio do Rorschach e da Abordagem Sistêmica. /Ilckmans Bergma Tonhá Moreira Mugarte – 2012. 178 f.: il.; 30 cm Dissertação (Mestrado) – Universidade Católica de Brasília, 2012. Orientação: Profa. Dra. Maria Alexina Ribeiro Coorientação: Profa. Dra. Marta Helena de Freitas 1. Comportamento compulsivo. 2. Adolescência. 3. Distúrbios alimentares. 4. Obsessão (Psicologia). I. Ribeiro, Maria Alexina, orient,. II. Freitas, Marta Helena, coorient. III. Título. CDU 159.9:616.89 -ll( Universidade ~ Católica de Brasília Dissertação de autoria de Ilckmans Bergma Tonhá Moreira Mugarte intitulada "FAMíLIA, TRANSTORNOS ALIMENTARES E OBESIDADE NA ADOLESCÊNCIA: ESTUDO POR MEIO DO RORSCHACH E DA ABORDAGEM SISTÊMICA", apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Psicologia pela Universidade Católica de Brasília, defendida e aprovada em 25 de junho de 2012, pela Banca Examinadora abaixo assinada: Profa Dra Cláudia Cristina Fukuda Membro- UCB Mestrado em Psicologia profa -'~, Brasília 2012 Aos meus filhos Caio e Camilla que representam o que tenho de melhor. Espero que tenhamos qualidade de tempo juntos para reafirmar nossos vínculos, como um relacionamento específico, único e duradouro entre nós. Ao Fábio Mugarte. À nossa história construída nesses 12 anos. A ele que jurou ter amor por mim. Dedico o peso das minhas melhores escolhas, onde conseguimos compartilhar, incentivar e vibrar um pelo outro. Por tudo isso e por todos eles afirmo que sou feliz. Aos modelos parentais. Que eles possam exercitar suas funções, assumindo o desejo de transmitir referenciais positivos aos filhos, já que isso faz a base segura para o outro funcionar. AGRADECIMENTOS Às famílias participantes dessa pesquisa que generosamente se dispuseram a dividir suas histórias e que me reforçam a tentar ser uma profissional por excelência. À minha orientadora Drª. Maria Alexina Ribeiro. Minha profunda admiração e respeito pelo trabalho que desenvolve e que me guiou nesta jornada, com sua generosidade e dedicação. Ela que soube me instruir, usando sensibilidade e paciência, me direcionando com maestria e fez representar momentos que vão além das palavras. Agradeço ao que conseguimos realizar e espero, com a mesma competência e entusiasmo, dar continuidade a este belo trabalho. À minha coorientadora Marta Helena de Freitas. Agradeço pelo incentivo a importantes contribuições nesse trabalho, onde conseguimos realizar uma comunicação fluida dentro de nossas afinidades e, que provavelmente virão nos render alguns outros projetos futuros. Agradeço também pela credibilidade depositada ao meu potencial em um projeto como este. À minha mãe Neta Tonhá por ter me passado a sabedoria de “mãe-leoa”. Obrigada minha mãe por ter sempre tentado nos proporcionar o melhor para nossas vidas e por estimular e apostar em tudo o que eu faço. Aos meus filhos e marido que me ajudaram a trilhar este caminho, respeitando e compreendendo as minhas ausências, cansaços, mas que não esgotaram a vontade de acreditar em mim. Obrigada por trazerem o colorido e a alegria que eu preciso em todos os dias da minha vida. Aos meus modelos parentais que desenvolveram os princípios de “família”, realizando o máximo alcançado por eles aos filhos e netos. À Capes pelo suporte financeiro, agradeço por ter tornado possível este sonho, pelo critério de seleção à bolsa, onde fiz jus ao investimento. Em nome de ser dona das “Amizades inoxidáveis”, agradeço aos meus amigos, companheiros de mestrado que souberam dividir suas vidas, suas dores e alegrias nesta nossa trajetória. Em especial à Merineide Conque que tem um olhar de “mãe-bruxa” sobre mim e tenta cuidar de mim como se fosse sua filha. À amiguinha Ana Paula Rocha, pela empatia que estabelecemos desde o início e que provavelmente nos renderá muitos momentos compartilhados e outros projetos. Ao Gabriel Marra, meu amigo parceiro que além do carinho, soubemos dividir trabalhos e congressos, espero dividir outros tantos. Ao Heron Nogueira, amigo que tenho grande simpatia e afinidade. À Rita de Cássia Araújo, pelas afinidades, pelo incentivo e pela torcida sempre presente em todas as etapas. À Lígia Bias pela cumplicidade e alegria nos nossos momentos. À Nair Tuboiti e Karine Hepp pelo carinho e atenção, à Eliane Passos pelo carinho e aos outros colegas um forte abraço. Ao Dr. Alexandre Rozenwald com quem divido boa parte do meu trabalho. Obrigada pela confiança e sintonia mútua, nos âmbitos profissional e pessoal. Aos meus pacientes que me fazem ter o olhar sensível ao Outro e a vibrar por cada passo e mudanças conquistadas por eles. Ao meu sobrinho Lucas Tonhá, meu filho-afilhado que me faz ter a certeza de como é importante “bons referenciais” decidindo seguir os passos da tia no caminho da psicologia, agregando mais valor a esta “Family de psicólogos”, junto a mim, à minha irmã e meu cunhado também psicólogos. Ao meu irmão Herckmans Tonhá, que nos presenteia com o mais novo membro: Joaquim. Que ele venha trazer mais emoção aos nossos laços familiares. À minha irmã Herilckmans Tonhá que apesar de seguirmos caminhos diferentes na psicologia, sempre sabemos nos unir ao “abraço tradicional” de nossas vidas, com quem aprendi a dividir e, agora através de nossos filhos e sobrinhos aprendemos mais do que dividir, nos desdobrar. Agradeço a Veruska, Isadora e Bernardo meus sobrinhos lindos que nos inspiram a nos tornar pessoas melhores. Às minhas companheiras de almas: Raquel Fagundes e Adriana Santiago. Amigas-irmãs são as presenças vibrantes em tudo o que me acontece. Não precisamos de tempo, distância, defeitos ou qualidades. Somos um trio de verdade. Aos professores Prof. Dr. Vicente Faleiros (expresso um carinho especial), Srª Drª Cláudia Fukuda, Sr. Dr. Francisco Martins, SrªDrª Ondina Pereira e todos os outros que de alguma forma tiveram participações importantes nesta jornada. Agradeço pelo aprendizado e por termos estabelecido além de laços afetivos, outras afinidades. Aos participantes da pesquisa, alunos da iniciação científica que nos inspira a pesquisar mais. Às amizades adquiridas neste caminho, em especial à Aldenira Cavalcante. Aos funcionários da UCB com quem acabei criando além do contato administrativo, muitas trocas de afetos, em especial à Joana (sempre prestativa e alegre), Erivânia, Zilmara (pela disposição em querer ajudar), à Fátima da biblioteca que sempre foi atenciosa e carinhosa. À amiga de especialização que contribuiu com a pesquisa Rosemary Vechi. E elas Rosane Lavall e Fabíola Aquino, com quem compartilho amizade e um carinho especial, por estarem sempre na minha torcida. Aos outros tantos amigos e familiares obrigada por compreenderem minhas ausências neste período. “Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. ( ) A não ser a mim mesma. ( ) Apenas faço paisagens com o que sinto”. (F. Pessoa) “É preciso leveza para se pertencer porque a intensidade pode roubar você de si mesmo. ( ) Então... é preciso aprender que É preciso leveza para se pertencer". (Cristina Guerra) RESUMO Referência: BERGMAN, Ilckmans Tonhá Moreira Mugarte. Família, Transtornos Alimentares e Obesidade na adolescência: estudo por meio do Rorschach e da Abordagem Sistêmica, 2012. 170 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia), Universidade Católica de Brasília, 2013. Os transtornos alimentares (TA) - anorexia nervosa e bulimia nervosa, considerados como graves perturbações no comportamento alimentar, são causas importantes de morbidade e mortalidade em adolescentes. Pacientes com esses transtornos têm um índice de mortalidade doze vezes maior que o da população normal da mesma faixa etária. A obesidade pode ser considerada um dos mais graves problemas de saúde pública, em todo o mundo, devido às complicações a ela associadas e às altas taxas de morbidade e mortalidade. Os TA e a obesidade têm sido estudados nos últimos anos, porém a maioria das pesquisas enfoca os aspectos individuais dos pacientes. Foi no sentido de ampliar a compreensão sobre esses diagnósticos, envolvendo também o contexto familiar dos indivíduos, que o presente estudo teve como objetivo estabelecer possíveis relações entre as respostas dadas por adolescentes com TA e obesidade, referentes às figuras parentais no método de Rorschach e as características da dinâmica familiar, identificadas por meio de técnicas sistêmicas. O projeto faz parte de um projeto maior que tem o objetivo de construir uma metodologia de atendimento psicossocial a crianças e adolescentes com transtornos alimentares e suas famílias, em andamento na Universidade Católica de Brasília, sob a coordenação da orientadora dessa dissertação e do qual a autora da mesma faz parte. Os participantes foram três famílias residentes em Regiões Administrativas do Distrito Federal: uma adolescente com diagnóstico de anorexia nervosa, formada pela genitora, 46 anos, e uma irmã de 17, reside em casa alugada e tem uma renda mensal aproximada de R$2.700,00; a segunda com uma adolescente com diagnóstico de bulimia nervosa, formada pela genitora, 42 anos, o genitor, 43, e dois irmãos de 22 e 07, reside em casa própria e renda mensal de dois salários mínimos; a terceira que possui diagnóstico de obesidade é formada pela genitora, 67 anos, duas irmãs de 26 e 21, e um irmão de 23, reside em casa própria e renda de dois salários mínimos. Utilizou-se o método da pesquisa qualitativa por meio do estudo de caso. Realizou-se entrevista familiar semi- estruturada – Entrevista do Ciclo de Vida Familiar, com elaboração do genograma e, em seguida, os adolescentes foram submetidos ao teste de Rorschach. Os dados das entrevistas foram analisados com base no método construtivo-interpretativo de Gonzáles Rey e os dados do teste foram analisados segundo os protocolos de Rorschach, com base na Escola Francesa. Os dados levantados sobre a história e Ciclo de Vida Familiar mostraram algumas características da dinâmica familiar como: dificuldades nas famílias de origem materna; dificuldades no relacionamento social dos adolescentes; estrutura familiar do tipo desligada (na família com anorexia nervosa), família com fronteiras externas difusas (bulimia nervosa) e família com estrutura do tipo emaranhada (família com obesidade); padrão alimentar atual irregular (famílias com anorexia e obesidade) e fartura e variedade na alimentação atual (família com bulimia); a comida como fator agregador (famílias com bulimia e obesidade). Os dados do teste de Rorschach apontaram para a presença de baixa autoestima, insegurança, distorções acerca do autoconceito e autoimagem e problemas de identificação sexual nos adolescentes. Palavras-chave: Anorexia nervosa; Bulimia nervosa; Obesidade; Dinâmica familiar; Teste de Rorschach. ABSTRACT Eating disorders such as anorexia and bulimia nervosa, considered as serious disturbances in eating habits, are relevant causes of morbidity and mortality in adolescents. Patients with these disorders have a mortality rate twelve times higher than the normal population in the same age range. Obesity may be considered one of the world’s most serious public health problems, because of the complications associated with it and the high rates of morbidity and mortality. Eating disorders and obesity have been studied in past years, however most researches focuses on the individual aspects of the patients. It was with the intent to broaden the comprehension of these diagnosis, also involving the family context of individuals, that this present study aims at establishing possible links between the answers given by the adolescents with eating disorders (bulimia nervosa and anorexia nervosa) and obesity, in regards to the parental figures in the Rorschach method and the characteristics of the family dynamic, identified by means of systemic techniques. The project is part of a larger project which aims at building a psychosocial care methodology for children and adolescents with eating disorders and their families, which is in progress at Universidade Catolica de Brasilia, under the coordination of this dissertation’s advisor and of which the author is also part of. The participants were three families which resides in Administrative Regions of the Federal District: the first has an adolescent with a diagnosis of anorexia nervosa, composed by the mother, 46 years of age, and a sister who is 17, they live in a rental home and have a monthly income of $2.700,00; the second has an adolescent with a bulimia nervosa diagnosis, composed by the mother who is 42 years old, father, 43, and two brothers of 22 and 07, they live in a home which they own and have a monthly income of two minimum wages; the third which has a diagnosis of obesity is composed by the mother, 67 years old, two sisters of 26 and 21, and a brother of 23, they live in a home which they own and have an approximate monthly income of two minimum wages. Qualitative research method was used by means of case study. A semi-structured family interview – Family Life Cycle Interview was conducted, with the elaboration of a genogram and, afterwards, the adolescents were submitted to the Rorschach test. The data from the interviews were analysed based on the constructive- interpretativemethod of Gonzáles Rey and the data from the tests were analysed according to the Rorschach protocols, based on the French School. The data found regarding the Family Life Cycle and history showed a few characteristics of the family dynamic such as: difficulties on the maternal side of the families; difficulties in the adolescents’ social relationships; a disengaged family structure (in the family with anorexia nervosa), family with diffused external borders (bulimia nervosa) and an enmeshed family structure (family with obesity); current irregular eating habits (families with anorexia and obesity) and abundance and variety in the current eating habits (family with bulimia); food as a gathering factor (families with bulimia and obesity). The data from the Rorschach test showed the presence of low self-esteem, insecurity, distortions of self-concept and self-image and sexual identification problems among the adolescents. Key words: Anorexia nervosa; Bulimia nervosa; Obesity; Family dynamics; Rorschach test. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Quadro 1 Análises simbólicas das Pranchas do Rorschach ........................ 45 Quadro 2 Resumo dos dados sobre a dinâmica familiar e características de personalidade dos adolescentes com Transtornos Alimentares e obesidade .... ..................................................................................................................... 156 LISTA DE FIGURAS Figura 1 Anorexia Nervosa ............................................................................ 63 Figura 2 Genograma da família de Gislene ................................................... 65 Legenda do Genograma ................................................................................ 66 Figura 3 Bulimia Nervosa .............................................................................. 96 Figura 4 Genograma da família de Stefany ................................................... 98 Figura 5 Obesidade ..................................................................................... 126 Figura 6 Genograma da família de Thiago .................................................. 128 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................... 14 2 REFERENCIAL TEÓRICO ........................................................................ 16 2.1 ANOREXIA NERVOSA ........................................................................... 16 2.1.1 Histórico ........................................................................................... 16 2.1.2 Diagnóstico ...................................................................................... 17 2.1.3 Anorexia e distorção da imagem ...................................................... 18 2.2 BULIMIA NERVOSA ............................................................................... 19 2.2.1 Histórico ........................................................................................... 19 2.2.2 Diagnóstico ...................................................................................... 21 2.2.3 Bulimia e distorção da imagem ........................................................ 24 2.3 OBESIDADE ........................................................................................... 25 2.3.1 Histórico ........................................................................................... 25 2.3.2 Diagnóstico ...................................................................................... 25 2.3.3 Obesidade e distorção da imagem................................................... 28 2.4 AUTOIMAGEM, TRANSTORNOS ALIMENTARES E OBESIDADE ..... 28 2.5 ADOLESCÊNCIA – CORPO E IDENTIDADE ........................................ 30 2.6 ADOLESCÊNCIA, CORPO, TRANSTORNOS ALIMENTARES E OBESIDADE .................................................................................................. 32 2.7 FAMÍLIA, TRANSTORNOS ALIMENTARES E OBESIDADE ................ 33 2.7.1 Família e Anorexia Nervosa ............................................................. 35 2.7.2 Família e Bulimia Nervosa ............................................................... 37 2.7.3 Família e Obesidade ........................................................................ 38 2.8 MÉTODO DE RORSCHACH .................................................................. 40 2.8.1 Campo simbólico das pranchas do Rorschach ................................ 43 3 OBJETIVOS ............................................................................................... 49 3.1 Objetivo geral ...................................................................................... 49 3.2 Objetivos específicos .......................................................................... 49 4 MÉTODO ................................................................................................... 50 4.1 Participantes ........................................................................................... 51 4.2 Instrumentos ........................................................................................... 53 4.2.1 Roteiro de entrevista semi-estuturado do ciclo de vida familiar ....... 53 4.2.2 Genograma ...................................................................................... 54 4.2.3 Teste de Rorschach ......................................................................... 54 4.3 Procedimentos de Levantamento de Dados ........................................... 55 4.3.1 Identificação dos participantes ......................................................... 55 4.3.2 Realização da entrevista do Ciclo de Vida ....................................... 56 4.3.3 Aplicação do Teste de Rorschach.................................................... 57 4.4 Procedimentos de Análise de Dados ...................................................... 58 4.4.1 Análise dos dados da entrevista do ciclo de vida familiar ................ 58 4.4.2 Análise do Teste de Rorschach ....................................................... 59 5 RESULTADOS E DISCUSSÃO ................................................................. 61 5.1 Caso 1 – Gislene: Anorexia Nervosa ................................................... 64 5.1.1 A Família de Gislene ...................................................................... 64 5.1.2 Dados do Rorschach ..................................................................... 79 a) Modo de Funcionamento ....................................................................... 79 b) Representação de si .............................................................................. 81 b.1 Integração da identidade ................................................................. 81 b.2 Identificação sexual ......................................................................... 83 b.3 Autoimagem .................................................................................... 84 c) Representação de objeto ....................................................................... 85 c.1 Identificação com as figuras parentais ............................................ 85 5.1.3 A adolescente com anorexia nervosa e sua família ................... 90 5.2 Caso 2 – Stefany: Bulimia Nervosa ..................................................... 97 5.2.1 A Família de Stefany .................................................................... 97 5.2.2 Dados do Rorschach ................................................................. 114 a) Modo de Funcionamento ...................................................................114 b) Representação de si .......................................................................... 115 b.1 Integração da identidade............................................................. 115 b.2 Identificação sexual .................................................................... 117 b.3 Autoimagem ................................................................................ 118 c) Representação de objeto ................................................................... 119 c.1 Identificação com as figuras parentais ........................................ 119 5.2.3 A adolescente com bulimia nervosa e sua família .................. 122 5.3 Caso 3 – Thiago: Obesidade .............................................................. 127 5.3.1 A Família de Thiago ................................................................... 127 5.3.2 Dados do Rorschach ................................................................. 139 a) Modo de Funcionamento ................................................................... 139 b) Representação de si .......................................................................... 140 b.1 Integração da identidade............................................................. 140 b.2 Identificação sexual .................................................................... 142 b.3 Autoimagem ................................................................................ 143 c) Representação de objeto ................................................................... 145 c.1 Identificação com as figuras parentais ........................................ 145 5.3.3 A adolescente com obesidade e sua família ........................... 148 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................... 154 REFERÊNCIAS ........................................................................................... 161 APÊNDICES ................................................................................................ 169 Apêndice A TCLE .................................................................................. 169 Apêndice B Roteiro de Entrevista semi-estruturado do Ciclo de Vida familiar ................................................................................................... 171 Apêndice C Psicograma Rorschach – Caso Anorexia Nervosa – Gislene.... ............................................................................................... 175 Apêndice D Psicograma Rorschach – Caso Bulimia Nervosa – Stefany....... ............................................................................................ 176 Apêndice E Psicograma Rorschach – Caso Obesidade - Thiago ......... 177 ANEXOS ...................................................................................................... 178 Anexo A Certificado do CEP ................................................................ 178 14 1 INTRODUÇÃO Os Transtornos Alimentares (TA), como Anorexia Nervosa (AN), Bulimia Nervosa (BN) - e a obesidade, são causas importantes de morbidade e mortalidade em adolescentes e estão associados a consequências clínicas e psicológicas devastadoras. Segundo Diagnositic and Statistical Manual, IV edition - DSM IV - American Psychological Association (APA, 2003), pacientes com transtornos alimentares têm um índice de mortalidade 12 vezes maior que o da população normal da mesma faixa etária e duas vezes maior que pacientes portadores de outros transtornos psiquiátricos e sua maior incidência ocorrem na adolescência. Os TA têm sido estudados como doenças que não possuem uma raiz etiopatogênica específica. São caracterizados por graves perturbações no comportamento alimentar, cujos critérios são definidos e classificados como transtornos mentais pelo DSM-IV (APA, 2003) e Classificação Internacional de Doenças - CID-10 , 10ª edição (OMS, 1999) que resultam nas duas entidades nosológicas principais: AN e BN. A obesidade é uma doença endócrina que não está associada aos transtornos psiquiátricos. É resultado do consumo excessivo de comida em relação ao gasto energético, caracterizada também pelo comer em excesso. Segundo o DSM IV (APA, 2003), a obesidade não tem uma associação consistente como uma síndrome psicológica ou comportamental, porém existem fatores psicológicos que afetam a condição clínica. Bruch (1973) descreveu a AN como busca implacável em direção à magreza, onde o sujeito apresenta falhas no senso de identidade e autonomia. Segundo a autora, há sérias perturbações no funcionamento característico da AN como uma recusa do indivíduo em manter o peso corporal na faixa normal mínima, intenso temor em ganhar peso e uma perturbação significativa na percepção da forma ou tamanho do corpo. A BN é caracterizada por Russell (1979) como a ingestão compulsiva e rápida de grandes quantidades de alimento, em curto espaço de tempo, alternada com um comportamento de evitar o ganho de peso e um medo 15 mórbido de engordar, seguidos pelos vômitos autoinduzidos. Há também uma sensação de perda de controle e distorções com relação à percepção do corpo. A obesidade, segundo Barbanti (1990), é causada pelo consumo excessivo de calorias e consequente excesso de gordura na composição corporal, o que leva a uma relação desequilibrada entre a estatura e o peso. Na obesidade também ocorrem percepções distorcidas em relação ao esquema corporal. Estudos têm mostrado uma relação entre a dinâmica familiar e os transtornos alimentares/ obesidade. Minuchin (MINUCHIN; NICHOLS; LEE, 2010) estudou o que ele chamou e “famílias psicossomáticas”, na década de 70, identificando algumas características da estrutura das famílias com AN e BN. Não se pode dizer que existe uma estrutura familiar particular tanto para os TA quanto para a obesidade, mas existem características significativas que levam à identificação de aspectos no funcionamento familiar que podem ampliar a compreensão sobre as relações familiares e esses transtornos. Consideramos importante pesquisar os TA e a obesidade entre adolescentes, pois eles foram considerados pela Organização Mundial de Saúde – OMS (2009) como graves problemas de saúde pública. Apesar da grande quantidade de estudos já realizados sobre os temas, estes geralmente enfocam aspectos individuais dos pacientes, não levando em consideração o contexto em que vivem. Assim, visando contribuir para uma melhor compreensão dessas questões, o presente estudo teve como objetivo relacionar as características da dinâmica familiar de adolescentes com TA e obesidade, identificadas por meio de técnicas sistêmicas, com as respostas dadas por esses adolescentes referentes às figuras parentais no método de Rorschach. A pesquisa foi realizada com três adolescentes – um com diagnóstico de AN, um com diagnóstico de BN e um com diagnóstico de obesidade – e suas famílias. Os adolescentes responderam ao teste de Rorschach e participaram de uma entrevista familiar. 16 2 REFERENCIAL TEÓRICO Neste item serão descritos os aspectos históricos, os conceitos, os critérios, a classificação diagnóstica, a distorção de imagem corporal, tanto dos TA quanto da obesidade. Estes temas têm sido o foco de atenção dos sociólogos, assistentes sociais, assim como os profissionais da saúde, que incluem os psiquiatras, clínicos gerais, enfermeiros, nutricionistas, psicólogos e psicoterapeutas. 2.1 ANOREXIA NERVOSA 2.1.1 Histórico O Termo Anorexia tem sido abordado na perspectiva históricapor alguns autores. Segundo Fendrick (1997), as primeiras descrições, feitas por Cícero (106-46 a. C) são direcionadas pela aversão à comida, com o termo fastidium, relacionado à inapetência e enjôo do estômago. Segundo o autor, existe o registro e uma possível ligação a Hipócrates (460 a.C.-370 a.C) que costumava receitar jejuns e vômitos no tratamento de quase todas as doenças. Segundo Cordás e Claudino (2002), a AN esteve aproximada à religião, na descrição de casos de jejuns com objetivos de servir a Deus. Segundo Abuchaim (2002), todas estas descrições têm em comum não a falta de apetite, mas a necessidade de vencer a fome e não comer. Na Idade Média (1200-1500), existem relatos sobre a doença, denominada de Anorexia Sagrada que, segundo Abuchaim (2002), estava relacionada a uma dieta restritiva e autoimposta com grande perda de peso. O fato das mulheres que não comiam permanecerem vivas era considerado como verdadeiros milagres, na época. Desta maneira, as privações de comida se transformaram em objetivos para alcançar a pureza e a espiritualidade e a gula era vista como um dos sete pecados capitais. 17 O termo AN, visto na contemporaneidade, não está mais associado aos mesmos termos do passado, pois não possuem a mesma motivação. As motivações anteriores eram fundamentalmente ligadas à religiosidade e hoje podem estar associadas a múltiplos fatores como os culturais e emocionais. O medo de engordar é intensificado ou aliado à distorção da imagem corporal. Segundo Del Priore (2000), o corpo esbelto está associado ao sucesso e influi na autodeterminação do sujeito perante si e em relação à sociedade. A magreza, além de sinalizar beleza, seria um caminho para a felicidade. O comer passa a ser visto como um sinal de fraqueza, uma dificuldade de não resistir e consequentemente de se controlar. 2.1.2 Diagnóstico Na AN há uma busca desenfreada pela magreza com distorções da imagem corporal, distúrbio endócrino (Ex: alteração do ciclo menstrual) provocado por dietas rígidas com o objetivo da perda de peso. De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM IV (APA, 2003), a AN caracteriza-se pela recusa em manter o peso dentro da faixa mínima esperada para a idade e altura. Ocorre um medo intenso de engordar que provoca perturbações na forma de vivenciar o peso, tamanho e formas corporais. Como definição geral do DSM IV (APA, 2003) a AN caracteriza-se como uma severa perturbação do comportamento alimentar, onde o sujeito tem um grau de resistência ou recusa em manter o peso mínimo. O Código Internacional de Doenças – CID -10 (OMS, 1999) descreve a AN como uma forma psicopatológica específica, onde há a distorção da imagem corporal. A perda de peso é autoinduzida pela recusa de alimentos “que engordam”. O medo de engordar assume uma conotação de distorção da imagem corporal. Segundo Freitas, Gorenstein e Appolinario (2002), além dos aspectos psicopatológicos como eixo central da AN, existem manifestações afetivas e comportamentais distorcidas, baseadas em autoavaliação excessivamente focada no peso e na forma. 18 No DSM IV (APA, 2003) são descritos dois tipos de AN: a) tipo restritivo: não se manifesta pelo comportamento de comer compulsivo ou prática purgativa, ou seja, sem vômitos autoinduzidos, uso de laxantes ou diuréticos (há um controle na ingestão de alimentos por dietas hipocalóricas, jejuns, diminuição do número de refeições) e b) tipo purgativo: manifestado pelas compulsões e purgações durante e após a ingestão de comida (uso de laxantes, inibidores de apetite, prática excessiva de exercícios físicos). 2.1.3 Anorexia e distorção da imagem De acordo com o CID-10 (OMS, 1999), a distorção da imagem é considerada sintomatologia específica da AN. O pavor de engordar leva o sujeito a desenvolver ideias intrusivas sobre a imposição de um baixo limiar de peso a si mesmo. Segundo Bruch (1962), há sinais de alterações na personalidade associadas às distorções da imagem corporal. Na AN não está caracterizado a perda do apetite e sim uma luta contra o mesmo. Isso faz com que o sujeito passe a ter falsas percepções acerca do corpo, como intensificar o volume de determinadas partes. Desta forma, o autor, como psiquiatra que se especializou no estudo e tratamento dos transtornos alimentares, define a AN como um distúrbio da percepção corporal, caracterizado pelo medo intenso ou mórbido de engordar. De acordo com Jackson (1999), a gordura pode ser uma metáfora das marcas afetivas, emocionais e sócio-culturais permanentemente inscritas no corpo. A autoimagem distorcida revela a tensão gerada pelas discrepâncias entre a imagem real e a imagem idealizada. Segundo o autor, é a imagem do corpo que forma um tipo de identidade do eu. De acordo com Cabrera (2006), o critério para a distorção da imagem corporal caracteriza uma mudança na percepção de si mesmo, pela percepção distorcida do próprio corpo. Segundo Kaplan (1997), é difícil identificar, como critério diagnóstico, o mecanismo de perda de peso, com pensamentos ruminativos, associados à 19 distorção da imagem corporal. Segundo Herscovicy e Bay (1997), existem traços da personalidade ou variações na personalidade anoréxica que manifestam grande necessidade de aprovação externa, tendência ao conformismo e falta de respostas às necessidades internas. Estas características demonstram uma vontade de corresponder às expectativas do outro que leva o sujeito a uma autocobrança rígida sob si mesmo e sobre seu corpo. A distorção da imagem tem sido alvo de discussões, pois demonstra uma complexidade associada às dinâmicas afetivas, às atitudes e comportamentos em relação ao corpo. De acordo com o DSM IV (APA, 2003), nesta categoria, a distorção da imagem corporal, é manifestada por uma autoavaliação excessivamente centrada no peso e na forma, caracterizando um critério diagnóstico da AN. 2.2 BULIMIA NERVOSA 2.2.1 Histórico Segundo Parry-Jones (1991), o comportamento de forçar o vômito é muito antigo e pode ser encontrado precocemente na história de diferentes povos da Antiguidade. O termo bulimia deriva do grego “bous” (boi) e “limos” (fome), designando como um grande apetite, “capaz de comer um boi”. No antigo Egito, em 1500 A.C, parte do papiro de Eber é dedicado ao estímulo e às virtudes do ato de vomitar. Segundo Heródoto, os egípcios usavam o vômito como um ato purgativo todo mês (em três dias consecutivos), pois julgava que “todas as doenças dos homens eram oriundas da comida”. Hipócrates também recomendava a indução de vômitos por dois dias consecutivos, todo mês como um método de prevenir diferentes doenças. Os romanos criaram o vomitorium, onde podiam se alimentar em excesso nos banquetes e vomitar depois em local reservado para esta finalidade, utilizando os eméticos (medicamentos que induziam o vômito). Estes eram os artifícios terapêuticos que os médicos da 20 época poderiam prescrever. Segundo Nunes et al. (2006), os primeiros relatos sobre o comportamento bulímico foram descritos em 1874 por Gull, que caracterizava o comportamento de um apetite voraz. Na década de 40 alguns trabalhos abrem caminho para a nova síndrome alimentar. Nos anos 50 a BN foi descrita no meio de pacientes com AN e posteriormente entre obesos. Somente em meados da década de 70, os pesquisadores identificaram sintomas bulímicos entre mulheres jovens de peso normal. Para Crisp, Palmer e kalucy (1976), há diferença nas motivações psicológicas entre a BN e a AN, pois os sujeitos apresentam sentimentos depressivose pensamentos autodepreciativos após episódios de ingestão compulsiva de alimentos. Russell (1979) apresenta a descrição histórica de 30 casos e traz à tona o surgimento de um quadro que poderia ser considerado uma estranha evolução da AN e, particularmente, um subgrupo dos anoréxicos bulímicos, mas estes pacientes demonstravam mais resistências ao tratamento e complicações físicas mais graves. Nestas descrições, os sujeitos possuíam um “impulso irresistível de comer excessivamente”, seguido de vômitos autoinduzidos como forma de purgação e um medo mórbido de engordar. De acordo com o autor, estas características, associadas à perda de peso mínima ou ausente, caracterizaria um quadro sem denominação própria. Em artigo clássico, Russell (1979) foi o primeiro a definir e distinguir a BN como categoria independente da AN, propondo diferenças entre os quadros. Como critérios básicos nessa distinção na BN há o impulso de comer excessivamente, evitando os efeitos "de engordar" através da indução de vômitos e/ou abuso de purgativos e o medo mórbido de engordar. Segundo Casper (1993), a BN era considerada uma síndrome, caracterizada como um sintoma adjacente à AN. Russell (1995) passou a denominar a BN como uma dificuldade no controle dos impulsos, sentimentos de culpa, intolerância à frustração e à ansiedade, ligadas às manifestações físicas distintas e que não comprometiam o estado nutricional como na AN. 21 Segundo Bonilla e Luna (2001), a BN é um transtorno alimentar caracterizado por repetidos ataques de hiperfagia (ingestão de grandes quantidades de alimentos em curto período de tempo), seguidos de métodos compensatórios inadequados para evitar o ganho de peso. Além disso, a BN também é tipicamente um distúrbio gastrointestinal, podendo ser fatal, dependendo da gravidade, como nos casos da dilatação gástrica aguda, hipertrofia das parótidas, esofagite e síndrome do cólon irritável. De acordo com o CID-10 (OMS 1999), indivíduos bulímicos mostram uma preocupação excessiva com a imagem corporal e com o peso. Tentam evitar o ganho de peso através de compulsões periódicas, mas raramente estão abaixo do peso considerado ideal, em alguns casos estão com sobrepeso ou podem estar dentro da faixa normal de peso. Os bulímicos se envergonham de seus hábitos e procuram ocultar os sintomas a todo custo. O sigilo absoluto dos sintomas dificulta o diagnóstico da doença. De acordo com o DSM IV (APA, 2003), em muitos casos a família só desconfia do problema em estágio avançado, momento em que os sinais e sintomas se tornam evidentes. Para Brasil e Moraes (2007), a BN não visa apenas saciar uma fome exagerada, mas atende a uma série de estados emocionais ou situações estressantes. Os episódios só finalizam quando o sujeito sente-se mal, quando é interrompido por alguém ou quando o alimento acaba. Na BN, os afetos e as emoções são experimentados com intensidade e ganham expressões indiscriminadas. 2.2.2 Diagnóstico De acordo com o DSM IV (APA, 2003), os critérios diagnósticos para a BN são os episódios de compulsão alimentar, mas estes também são alvo de diversos questionamentos. O consenso na literatura está relacionado à presença da "compulsão alimentar" para o diagnóstico de BN, mas não quanto à sua definição e frequência. O DSM-IV (APA, 2003), descreve a compulsão com base em dois aspectos: 22 1) Ingestão em excesso de alimento em um período limitado de tempo (no período de duas horas) em quantidade maior do que a maioria das pessoas em período similar e sob circunstâncias similares. 2) Sentimento de falta de controle sobre o comportamento alimentar durante o episódio (incapacidade de parar de comer ou de controlar o quanto está comendo). Segundo Beglin e Fairburn (1992), o comer exageradamente caracteriza-se pela ingestão de enormes quantidades de alimentos (geralmente entre 1.200 e 4.500 calorias). Segundo os autores, o componente "perda de controle" identifica a compulsão alimentar mais do que o "excesso alimentar" por si só. A compulsão alimentar é um sentimento que o indivíduo não pode evitar. Uma vez iniciada a compulsão (média de duas horas), já está associada à perda de controle. De acordo com o CID-10 (OMS, 1999), os critérios diagnósticos da BN são diferenciados da AN no ponto em que os pacientes precisam comer compulsivamente e eliminar o ingerido. Na BN há uma preocupação persistente em comer e um desejo irresistível pela comida. Normalmente o sujeito tenta neutralizar os efeitos “de engordar” dos alimentos por meio de comportamentos compensatórios, através de vômitos autoinduzidos. Além dos vômitos (método mais frequente e de maior identificação da compulsão) existem outras maneiras de compensar, através dos métodos não purgativos, caracterizados por jejuns e exercícios excessivos, abuso de laxantes, diuréticos, (ocorrência de 2 vezes por semana e no prazo de 3 meses). Segundo este critério, os indivíduos também devem manter a preocupação excessiva com o peso e forma corporal, mesmo conseguindo manter o peso normal ou acima deste. Essa é a diferença fundamental entre a AN do tipo purgativo e a BN. No CID-10 (OMS, 1999), a BN está associada a significados de descontrole frente à compulsão alimentar, manifestada por uma força externa que domina o sujeito ou pela característica do traço de personalidade. Segundo Fairbun (1997), este transtorno é permeado por múltiplos sentimentos e ideias negativas em relação à compulsão alimentar, muitas vezes associado à culpa 23 (por comer em excesso, pelos vômitos, medo mórbido de engordar), à raiva (pela dificuldade de controlar os impulsos) e pela tristeza (afeta o estado de ânimo). De acordo com Behar (1994), as compulsões apresentam-se associadas a estados de humor disfóricos como: depressão e situações negativas provocadas por stress. Também são observados sentimentos relacionados à perda ou à rejeição, baixa autoestima, e insegurança. Para Fairbun, Cooper e Shafram (2003), o vômito é a maneira de trazer alívio à ingestão compulsiva. Vem sempre acompanhada de sentimentos de culpa, angústia, perda de controle em relação aos efeitos do ganho de peso na ingestão exagerada de comida. O vômito, de certa maneira interrompe temporariamente o desconforto e a ansiedade. Estes autores acreditam que estes episódios de ingestão compulsiva não ocorrem aleatoriamente, estão associados às alterações de estado de humor. A BN é caracterizada pela grande ingestão de alimentos de forma rápida e com sensação de perda de controle, chamados de episódios bulímicos, os quais estão associados a maneiras compensatórias e inadequadas no controle do peso. Na BN utiliza-se os vômitos induzidos, uso de medicamentos (diuréticos, laxantes, etc), dietas e exercícios físicos na tentativa de driblar o aumento de peso. Os sintomas então assumem variadas funções, como controle de peso, o manejo de emoções negativas e positivas (gatilhos para comer mais), ansiedade, baixa autoestima, culpa e dificuldade de controle dos impulsos (FAIRBUN,1995). O conceito de doença e sintomas na BN carregam elementos sócio- culturais ou são constitutivos e produtos dos mesmos. Para Ferreira (1998), o sujeito pode apresentar problemas físicos precisos, detectáveis pela biomedicina, mas existem fatores e aspectos embutidos na concepção de doença e na forma de manifestar seus sintomas. Segundo a autora, o corpo é sígnico, nele são aplicados sentimentos e discursos vivenciados através de sintomas que são na verdade mais do que sinais de patologia, mas uma tentativa de comunicar o que o sujeito deseja revelar. Os estudosde Waller, Dickson e Ohanian (2002) demonstram que crenças estruturais diante do comportamento alimentar e da autoimagem em 24 bulímicos levam a um padrão comportamental relativamente específico. O comportamento bulímico está associado aos modelos alimentares caracterizados pela hiperfagia (comer muito) e reproduzidos por crenças e hábitos compensatórios inadequados como maneira de evitar o ganho de peso. De acordo com Lefevre (2004), a promoção da saúde deve ser buscada além das manifestações do corpo, percorrendo todos os espaços sociais, as relações dos corpos - mentes/ doentes e seus ciclos relacionais para que os sintomas sejam decifrados e para que haja intervenções transformadoras. 2.2.3 Bulimia e distorção da imagem De acordo com Garfinkel, Goldbloom e Olmsted (1992), na BN há uma dimensão afetiva negativa ligada à imagem corporal sob o conceito de "insatisfação com o corpo". Este aspecto estaria dimensionando uma percepção negativa da autoimagem e autoestima baseadas no julgamento como regulador da consciência do próprio corpo. De acordo com estes autores, a insatisfação com o corpo é incluída como um critério diagnóstico. Este critério envolve a dimensão afetiva e promove deficiências na regulação da autoestima, por aspectos que interferem ou estão subjacentes ao julgamento na percepção de “estar gordo”, descritos por medidas depreciativas e distorções visuais do corpo. Para Saikali et al. (2004), a distorção da imagem corporal está diretamente associada a distúrbios alimentares como a BN. A distorção é um dos fatores determinantes no desenvolvimento do transtorno. Segundo estes autores o que leva uma pessoa a apresentar episódios bulímicos é a preocupação excessiva com o peso e a imagem corporal. 25 2.3 OBESIDADE 2.3.1 Histórico Os padrões de beleza e o conceito de obesidade sofreram ao longo do tempo, já que a gordura não é mais associada à beleza, passando a uma representação de imagem negativa. De acordo com Stearns (1974), na classe média Americana e Francesa surge grande necessidade de “ficar magro”, por caracterizar um status de aceitação e prestígio. No início do século XX, após vinte anos, o mesmo autor revela que a representação da beleza passa à excessiva preocupação com a forma do corpo, o peso e a maneira de se alimentar. Hoje, a obesidade não se caracteriza somente em função dos aspectos de representação física, correspondente ou não aos padrões sociais de beleza, mas se constitui como uma das maiores preocupações em termos de saúde pública, devido às consequências biopsicossociais. Segundo Straub (2005), seria simplificar demais dizer que a obesidade é simplesmente o resultado de comer demais, pelo contrário, a obesidade é um fenômeno complexo que envolve múltiplos fatores, causas e consequências. Na última década o problema da obesidade cresceu em países em desenvolvimento como o Brasil, onde a obesidade pode atingir indivíduos em todas as faixas etárias. Existem complicações clínicas na obesidade, como a tendência dos obesos para a morte súbita, que leva a obesidade para além das preocupações estéticas. 2.3.2 Diagnóstico Pelo DSM IV (APA, 2003), a obesidade simples é incluída como uma condição médica geral, por não estar estabelecida e associada à síndrome psicológica ou comportamental. Existem evidências da participação de fatores psicológicos na etiologia ou curso da obesidade, e estes fatores afetam a condição médica. 26 De acordo com Ferreira e Meyer (2004), a obesidade, está associada ao comer em excesso. O alimento é transformado no substituto daquilo que falta, numa tentativa de preencher o vazio. Match (1999), através do Modelo Psicossomático da obesidade, relata que o indivíduo obeso come excessivamente como mecanismo compensatório em situações de ansiedade, depressão, tristeza e raiva. Mesmo em sofrimento não abandona facilmente a necessidade de comer muito e passa a ter fortes impulsos de comer em excesso, passando a desenvolver uma imagem corporal negativa. De acordo com Ballone (2005), não existe um parâmetro preciso que separa indivíduos obesos dos não obesos. O mesmo autor estabelece a distinção entre as duas dimensões da obesidade: uma antropométrica/fisiopatológica e outra emocional/psicodinâmica. 1) Na dimensão antropométrica/fisiopatológica, o obeso é definido como aquele que tem uma percentagem de gordura corporal acima de determinado critério (nas mulheres a percentagem seria superior a 30% e nos homens a 25%). 2) Na dimensão psicodinâmica define o obeso como aquele indivíduo que sente grande insatisfação com o seu corpo, por ter um peso superior ao ideal antropométrico. Nunes (1998) define a obesidade como acúmulo excessivo de tecido adiposo no organismo, medido pelo índice de massa corporal (IMC). Além da definição clássica, a obesidade é classificada como uma doença multifatorial, considerando os fatores etiológicos, idade e circunstâncias desencadeadoras. Para o DSM IV (APA 2003), não há critérios para identificação da obesidade como transtorno psiquiátrico. Desta forma, a obesidade não encaixa nos critérios dos transtornos alimentares, mesmo nos casos em que os obesos apresentam perturbações comportamentais e conflitos psíquicos relacionados. Já Flaherty e Janicak (1995), incluem a obesidade, didaticamente, como uma categoria dos transtornos alimentares pela semelhança de seu funcionamento e por caracterizar perturbações do comportamento alimentar. De acordo com Wadden e Stunkard (1993), a obesidade foi compreendida por muito tempo, como uma consequência somática e com um conflito psicológico subjacente. De acordo com CID-10 (OMS, 1999), a 27 obesidade simples é incluída como uma condição médica geral. O termo obesidade deve então ser utilizado no contexto em que o excesso de gordura está associado a riscos elevados de morbidade e mortalidade em comparação com a população geral. Esta visão é compartilhada pela população leiga e por uma boa parte dos profissionais de saúde. Na população obesa que procura tratamento, há prevalência de sintomas psicológicos, tais como sintomas depressivos e ansiosos. Segundo Vasques, Martins e Azevedo (2004), ao mesmo tempo em que a obesidade não encaixa nos critérios do DSM IV (APA, 2003) como um Transtorno Psiquiátrico ou um Transtorno Alimentar, mesmo quando apresentam perturbações comportamentais e conflitos psíquicos relacionados à alimentação, as manifestações de sofrimento psicológico merecem intervenção médica e/ou psiquiátrica. Carr e Friedman (2005) verificaram que os indivíduos obesos são alvo de múltiplas formas de discriminação. Sobre os aspectos sócio-culturais a obesidade envolve estigmas, preconceitos e discriminação relacionados à gordura. Estes aspectos contribuem para o isolamento e sentimentos negativos à imagem do obeso. Estes fatores impulsionam ou agravam problemas emocionais, como o aumento da ansiedade que promovem a necessidade ainda maior de ingestão de comida. Além dos comportamentos de descontrole em relação à comida, a discriminação e o preconceito, existe também a preocupação com a forma e o peso corporal e a necessidade de fazer dieta. Laurent e Vannotti (1993), afirmam que a obesidade é o resultado de diversos obstáculos psicológicos - internos, relacionais, comportamentais e psicossociais. Todos os aspectos da obesidade têm várias ênfases, como os elementos afetivo-emocionais ligados à ela. De acordo com Katch e McAdler (1996) existem 3 períodos críticos para a incidência da obesidade na vida da pessoa (o último trimestre de gestação,o 1º ano de vida e na adolescência). Além destes dados que marcam a prevalência da obesidade na vida do sujeito, há uma combinação significativa de fatores como hábitos alimentares, estilo de vida familiar, aspectos psicológicos e sócio-culturais. 28 2.3.3 Obesidade e distorção da imagem Segundo Faith e Allison (1996) a imagem corporal é definida como a interação entre o componente perceptivo, descrita pela avaliação cognitiva do tamanho do corpo e pelo componente postural. A distorção da imagem corporal (DIC) é definida como “preocupação exacerbada com o excesso de peso”. De acordo com Williamson e O‟Neil (1998), na obesidade existem 3 vezes mais a chance de superestimar seu tamanho do corpo do que a população geral, especialmente se forem crianças obesas. Para Faith e Allison (1996), não existe relação direta entre IMC e insatisfação ou distorção da imagem corporal. Apesar de não ser inserida em todos os tratamentos da obesidade, a imagem para os obesos possui significados psicológicos como um veículo de expressão da personalidade. Nas diversas fontes de sofrimento psíquico presentes na obesidade, a visão distorcida da imagem corporal é uma das principais causas de perturbação emocional, expressa pela dificuldade em lidar com o corpo e pela vergonha de se olhar no espelho. Esta reflexão entre as relações da imagem negativa construída e alimentada é considerada importante na avaliação dos fatores internos e externos associados à obesidade, enquanto recurso na compreensão dos aspectos psicológicos e relacionais da doença. 2.4 AUTOIMAGEM, TRANSTORNOS ALIMENTARES E OBESIDADE Segundo Van Kolck (1984), o conceito de autoimagem é projetado ou definido como o grau de satisfação ou insatisfação com o corpo. A autoimagem é o veículo de expressão da personalidade numa relação entre corpo e sentimentos do eu, que estão proporcionalmente ligados ao autoconceito. Para Wadden e Foster (1998), a percepção subjetiva que uma pessoa tem sobre seu corpo pode ser mais importante do que a realidade objetiva de sua aparência. Cada pessoa tem seu próprio movimento de percepção que vem carregado de significantes particulares em relação à autoimagem. Nas 29 características variadas e nas peculiares de cada transtorno alimentar, bem como da obesidade, se tem claro as convergências entre os aspectos envolvidos na relação do sujeito ao corpo, à sua identidade e as formas de interações afetivas e familiares em relação à percepção de si mesmo. “Nossa imagem corporal representa uma experiência muito especial, uma vez que o objeto em foco corresponde ao nosso eu (...). Ela está vinculada à minha identidade e à minha experiência existencial. É tão espetacularmente dinâmica como são minhas relações com o mundo e como é a interação entre meus aspectos conscientes e inconscientes” (TAVARES 2003, p.36). Segundo Barros (2005), o sujeito torna-se atuante quando se faz presente nas imagens corpóreas. A imagem torna o sujeito um ser subjetivo na própria existência, ela é o que lhe representa, é através dela que o sujeito reage nas inter-relações. A autoimagem para Mosquera (2005) é, em certo sentido, uma organização da própria pessoa que consta de uma parte real e outra parte subjetivamente criada. A autoimagem surge como uma atualização do processo de interação, no sentido real, no qual promove ou projeta a pessoa ao cenário da empatia e autovalorização. É o conhecimento individual e o desenvolvimento das próprias potencialidades que desenvolvem a percepção dos sentimentos, atitudes e ideias referentes à dinâmica pessoal. A autoimagem se estrutura na ação social e familiar. A relação do sujeito com o corpo e com a autoimagem são elementos constitutivos da identidade. A ruptura desta percepção se realiza através das distorções da imagem do próprio corpo, como são característicos nos quadros de AN, BN e da obesidade, demonstrados por Leonhard e Barry (1998) que abordam os indicadores da insatisfação e da imagem corporal essencialmente nesses casos específicos. Nestes quadros a percepção do corpo adquire um significado especial, no sentido de que o corpo é iminentemente um espaço expressivo. Segundo Almeida, Santos e Passian (2005), a insatisfação com o corpo é uma discrepância entre a percepção e o desejo relativo ao tamanho, forma corporal numa construção multidimensional, amplamente descrita pelas representações internas. Uma cultura que reforça a identidade pelo corpo como fonte de imagem ideal, torna o peso e a aparência uma preocupação e/ou insatisfação 30 desencadeadora de sofrimento. Bruch (1962) desenvolveu a primeira teoria sistemática a respeito de problemas de imagem corporal nos transtornos alimentares. Sua teoria deu prioridade às distorções da imagem corporal na anorexia. Para Weininger, Rotenberg e Henry (1972), a imagem corporal é um termo que se refere a uma experiência psicológica que focaliza sentimentos e atitudes do indivíduo através do próprio corpo. Segundo Slade (1988), a imagem corporal refere-se a uma ilustração que cada um tem em mente sobre o tamanho, a imagem e a forma do corpo, como também de sentimentos que podem desencadear as distorções da imagem corporal. A formação da imagem corporal pode ser influenciada por sexo, idade, pelos meios de comunicação, bem como por uma relação entre processos cognitivos, como as crenças, valores e atitudes provenientes de uma cultura. A AN, a BN e a obesidade, segundo Cordás (2004), descrevem padrões caracterizados por comportamentos alimentares gravemente perturbados, numa supervalorização da forma corporal como um todo ou de suas partes - classicamente descritos como predispostos a desenvolver uma distorção da imagem corporal. As distorções em relação ao corpo são manifestadas pelo pensamento dicotômico, onde a pessoa pensa nos extremos de sua aparência ou passa a ser muito crítica em relação a ela. Estas distorções provocam comparações entre imagem e padrões externos ou a possibilidade de enfatizar determinados aspectos do corpo de forma obsessiva. 2.5 ADOLESCÊNCIA – CORPO E IDENTIDADE A adolescência é a fase mais significativa na estruturação da imagem corporal. Para Chipkevitch (1987), não se pode falar em adolescência sem falar do corpo. As intensas transformações físicas desta fase alteram todo o processo de formação da identidade do adolescente. A formação da identidade pessoal neste período inclui, necessariamente, a relação com o próprio corpo. Jeammet e Corcos (2005) demonstram existir uma estreita relação entre a constituição da identidade e o corpo na adolescência. Esta relação gera uma busca por modelos identificatórios no adolescente. Cash (1997), afirma que a 31 imagem corporal refere-se à experiência psicológica de alguém sobre a aparência e o funcionamento do seu corpo. Schoen-Ferreira, Aznar-Farias e Silvares (2003) afirmam que mudanças corporais são associadas à constituição da identidade na adolescência e isso está relacionado à adoção de novos papéis sociais e assimilação dos códigos morais relativos ao grupo social. Para Osório (1992), a adolescência é compreendida como uma fase peculiar do desenvolvimento. O aspecto físico é um marco e um fator prepoderante ao processo de maturação biopsicossocial do indivíduo. Este processo maturacional traz significativas consequências e mudanças ao sujeito. Segundo Hermans (2001), as mudanças geram novas configurações àidentidade, manifestadas de forma qualitativa e quantitativa em relação aos aspectos de identificações e diferenciações, autonomia, mudanças no campo da autopercepcão e autoimagem, adesão a novos grupos e adoção de novos papéis na família. Levisky (1998) propõe a existência de um antagonismo vivido pelo jovem diante das mudanças corporais e psíquicas que provocam transformações no corpo na passagem da imagem infantil em transição ao corpo adulto, onde a imagem percebida contrasta com a imagem real. A procura por uma imagem ideal proposta pelo grupo ou pela mídia esbarra no surgimento de crenças alimentares associadas aos altos índices de dietas feitas por adolescentes, já que o corpo se torna destinatário de descarga das tensões sociais e sexuais. A comida passa a funcionar como via de descarga emocional. Segundo Lindeman e Stark (1999) existe uma estreita ligação entre os pensamentos mágicos e razões ideológicas, para justificar as escolhas alimentares dos jovens. O alimento surge como um aliado do adolescente para aplacar as ansiedades e expectativas da fase. Desta forma, a imagem corporal e a identidade estão fortemente associadas, além das perturbações que circulam estes aspectos. 32 2.6 ADOLESCÊNCIA, CORPO, TRANSTORNOS ALIMENTARES E OBESIDADE De acordo com Andersen e Holman (1997), a literatura mostra que os transtornos alimentares e a obesidade estão vinculados ao modo como o indivíduo vivencia seu corpo, (re)organiza sua imagem corporal e identidade na adolescência. A compreensão desta etapa se dá através das experiências dos adolescentes, reveladas pela maneira com que se percebem e se vinculam na construção da autoimagem, manifestadas no modo como foram realizadas as internalizações da imagem que tem de si. A relação que o adolescente estabelece com o próprio corpo é um elemento constitutivo e essencial da individualidade. A ruptura desse elemento tem um significado especial quando se trata do transtorno alimentar ou da obesidade. Para Chipkevitch (1987), todo adolescente tem um corpo idealizado e quanto mais se distancia do real, maior será a possibilidade de conflito. Neste sentido, não é mais possível pensar que o corpo é dividido em mental e físico, ou seja, ele deve ser visto integralmente. Falar de corpo é falar do sentido e da forma como ele está representado e situa o sujeito no mundo. Gonzaga e Weinberg (2003) descrevem que de todas as transformações impostas ao adolescente, as mudanças corporais são a de maior impacto e expressão no mundo emocional e podem ser transformadas em quadros de transtornos alimentares e de obesidade pela incapacidade de metabolizar psicologicamente estas alterações. Na adolescência, as mudanças no corpo, podem atingir sensações insuportáveis de constrangimento, dificultando o processo de diferenciação e transformação. O adolescente sente um estranho no próprio corpo, este mal-estar vem acompanhado de sentimentos de invasão e isolamento. Segundo Cobelo (2004), uma das possibilidades de compreender o processo desencadeado na adolescência sobre o corpo é a evolução para os transtornos alimentares e a obesidade. Percebe-se nestes quadros de TA e obesidade as angústias despertadas pelo mal-estar do novo corpo e pela dinâmica de crescimento desordenado, onde o adolescente não consegue 33 acompanhar psicologicamente e emocionalmente o processo. Segundo Lask (2000), na AN o adolescente tem dificuldade em comunicar sentimentos de raiva e tristeza, uma vez que estas seriam formas de expressar algum tipo de fraqueza ou imperfeição. Na BN o adolescente, em contrapartida, apresenta um funcionamento mais caótico, baseado no “tudo ou nada”. Segundo Lawrence (2003), adolescentes bulímicos querem exercer o controle, assim como os anoréxicos, mas não conseguem e ficam frustrados, passando a descontar suas frustrações na comida. De modo geral, apresentam um comportamento mais impulsivo e desorganizado. Na obesidade o adolescente sente a depreciação do próprio corpo, desencadeando insegurança em relação a como são vistos, associado ao medo de serem desprezados ou tratados com hostilidade. Em todos os quadros listados, a preocupação com o corpo para o adolescente passa a ser constante, na tentativa de alcançar uma imagem ideal (GOMES, 1994). 2.7 FAMÍLIA, TRANSTORNOS ALIMENTARES E OBESIDADE Lock et al. (2001) afirmam que existem perspectivas positivas no prognóstico dos transtornos alimentares e da obesidade quando estes envolvem a família e a intervenção ocorre durante a adolescência. Se obtém dados esclarecedores através da família, pois esta permite um aprofundamento na relação do adolescente, grupo familiar e social, em relação aos transtornos alimentares e a obesidade. Buscar novas estratégias e sistemas de investigação, como funções integradoras ao tratamento, tem a finalidade de contribuir ou evitar a cronificação da doença. De acordo com Santos (2002), a literatura enfatiza a necessidade de inclusão da assistência à família no planejamento terapêutico como forma de estruturar atendimentos especializados a estes indivíduos. Segundo Minuchin (1978), existem relatos na literatura sobre famílias e portadores de TA desde a década de 70 e sobre a abordagem da psicoterapia familiar incorporada ao tratamento multidisciplinar dos TA, através de trabalhos 34 de Minuchin nos EUA e Pallazolli na Itália. Estes estudos consideram afinidades significativas, no modo como procuram entrelaçar o desenho da estrutura e do funcionamento familiar aos ciclos de vida específicos e os padrões dos sintomas, relacionando-os aos problemas interacionais dos sujeitos com TA e com obesidade. A partir desta perspectiva, a família passa a ganhar compreensão do seu papel no desenvolvimento dos TA, dentro de uma visão relacional, com a finalidade de explorar a história pregressa e sua influência nas inter-relações e no desenvolvimento dos sintomas. Segundo Minuchin (1995), não se fala em uma estrutura familiar particular tanto para a AN como para a BN, mas existem características significativas que ajudam a identificar padrões de comportamentos nos sujeitos e na estrutura de relacionamentos com a família. De acordo com Minuchin (1982), existem características peculiares a estas famílias, que incluem problemas nas relações como o estabelecimento dos limites, as dificuldades no manejo das decisões parentais e a maneira como funcionam. As famílias aglutinadas ou emaranhadas, por exemplo, reprimem suas emoções e expressam um padrão rígido de expectativas. Segundo Roberto (1994), as comunicações nessas famílias podem ser paradoxais e indiretas, obscurecendo as diferenças individuais como maneira de evitar posicionamentos e conflitos. O “modelo da família psicossomática” de Minuchin, Rosman e Baker (1978), propõe uma interação circular entre doença e os padrões familiares. Foi o primeiro modelo a incluir, de forma sistematizada a família, ao considerar os fatores psicobiológicos das doenças na infância. As interações familiares desencadeavam reações fisiológicas que provocavam o surgimento dos sintomas. O próprio agravamento da doença reforçava tais padrões familiares, estabelecendo um processo reverberativo e progressivo. Segundo Wood et al. (1989), no modelo psicossomático, existem indicativos de que as famílias com alto nível de emoção, produzem uma estimulação fisiológica que pode influenciar o curso de doenças físicas e mentais e apontam para fatores como: 1) A família é um sistema que tem particular significação para as crianças, 2) O funcionamento individual e os 35padrões interpessoais de interação influenciam-se reciprocamente, 3) Esses padrões interpessoais interagem com processos biocomportamentais, alguns dos quais são relacionados com as doenças. Desta forma, não é apenas o estresse que aumenta a predisposição a certas doenças, mas o modo como a família se organiza para apoiar e proteger seus membros. O objetivo em relação às famílias psicossomáticas é resolver questões que causam estresse, de forma a encarar os conflitos e não de evitá- lo. Assim, nesta perspectiva o trabalho com famílias psicossomáticas visa transformar o sintoma psicossomático em um conflito interpessoal manifesto (MINUCHIN, 2006). Existem diversas pesquisas que ressaltam também a prática e os estilos parentais na compreensão da família. De acordo com Baumrind (1997), os estilos parentais permitem identificar as dimensões de interação entre pais e filhos, principalmente no desenvolvimento da criança e do adolescente. Segundo Darling e Steinberg (1993), as práticas parentais referem-se aos comportamentos dos pais na socialização dos filhos que possuem o objetivo de auxiliá-los na educação e nas questões emocionais através da função parental. Segundo Baumrind (1997), os estilos parentais possuem modelos de atuação, classificados como: autoritário, autoritativo e permissivo. Esta proposta da autora visa compreender os níveis de interação entre pais e filhos associados à dinâmica de interação nas expressões de afeto e em relação à comunicação. Verifica-se que a criança e o adolescente sofrem influência destes modelos de interação parental, tanto nos aspectos positivos de uma interação favorável como também no desenvolvimento das psicopatologias. 2.7.1 Família e anorexia nervosa Para Palazzoli et al. (1998), o sintoma na AN só surge pela influência de fatores agrupados na categoria cultural e nas interações familiares, onde há demonstrações do prolongamento da fase de dependência dos filhos em relação aos pais, fazendo com que o filho adie seu momento de assumir 36 responsabilidades (MINUCHIN, 1982). No estudo de caso, Borges (2009) aborda questões como as regras de relacionamentos, papéis familiares, padrões de comunicação e sobre o funcionamento do sistema familiar em uma adolescente com AN e obcecada pelo espelho. A família pesquisada residia em Luziânia, mas foi motivada a participar da pesquisa em Brasília/ DF, o que demonstra o forte interesse dos familiares em tentar obter ajuda. Na análise de seus dados descreve que os papéis nesta família com a portadora de AN é distorcido, com falhas de comunicação e manifestam tentativas de esquiva dos conflitos. Nestes casos os sujeitos apresentam dificuldades em desenvolver a autonomia, pela forte ligação com a figura materna. Há dificuldades na expressão de sentimentos, por caracterizarem uma estrutura familiar rígida com problemas de comunicação e na esfera conjugal. Há evidências de que os papéis parentais são distorcidos, adiando o processo dos filhos em desenvolver a autonomia e independência. Além disso, há uma intensificação destes aspectos que reforçam a forte dependência, principalmente da relação com a figura materna e um distanciamento da figura paterna. O estudo de Cavalcante (2009) sobre a AN com famílias residentes em Brasília/ DF teve como objetivo conhecer a dinâmica de pacientes adolescentes anoréxicos e seus aspectos de relacionamento intrafamiliares. A finalidade do estudo foi realizar uma compreensão sistêmica da AN quanto ao papel e função do sintoma, investigando aspectos como a aglutinação, superproteção, rigidez e falta de resolução de conflitos, como características nestas famílias. O estudo foi realizado com três famílias e suas dimensões de relacionamento, em relação à estrutura, à fase do ciclo de vida e a percepção dos sintomas, sentimentos, diagnósticos e adaptações em decorrência da doença. A partir das identificações dos padrões relacionais ao longo do ciclo familiar, os dados mais relevantes foram sobre as percepções sinalizadas pelas famílias da importância em discutir nos grupos, a necessidade de observar mais os filhos, buscar informações sobre os sintomas, entender o tratamento e estabelecer mudanças no ambiente familiar em direção ao fortalecimento dos vínculos familiares. Foi constatado que o sintoma passa a ter uma função no 37 contexto familiar, que influencia o surgimento e manutenção do transtorno. As famílias acabam evitando os conflitos e a comunicação em relação ao transtorno é pouco funcional. Desta forma, a abordagem sistêmica foi essencial na leitura ampliada das relações familiares e dos sintomas. Pode-se dizer com análise neste estudo, que determinadas características do sistema familiar constituem como facilitadores e mantenedores do sintoma. Com base nos estudos com famílias, alguns modelos de terapia familiar foram sendo desenvolvidos para trabalhar com as famílias de pacientes com AN. Segundo Martins e Diniz (2006), existem vários modelos de terapia familiar apropriados ao tratamento clínico da AN como instrumento importante na recuperação dos pacientes: Estrutural, Terapia Familiar Estratégica ou Terapia Familiar Sistêmica. Em todos estes modelos fica clara a importância da participação da família no tratamento da AN, como forma de encontrar alternativas de reconstruir e resignificar experiências, modificando os padrões comportamentais a partir das narrativas destas famílias a fim de entender suas dificuldades. Segundo Schomer (2003), se trabalha os vínculos afetivos e os papéis de cada membro em relação à doença. O espaço da escuta familiar também está direcionado a fornecer orientações a respeito dos transtornos, avaliando os aspectos da interação familiar que interferem ou mantêm o desenvolvimento dos sintomas. 2.7.2 Família e bulimia nervosa Segundo Nunes (1998), encontra-se com frequência conflitos familiares na BN, de natureza de abuso sexual na infância que podem provocar dificuldades no controle dos impulsos, sentimentos depressivos, culpa e baixa tolerância à frustração e ansiedade. Nas famílias com bulimia, de acordo com Herscovici (1997), foram observados níveis elevados de tensão em ambos os papéis parentais, com forte exigência em relação aos filhos e o aumento da rivalidade entre irmãos. Estas famílias apresentam uma rigidez em suas regras com excessiva 38 distância emocional. Os relacionamentos familiares na BN de acordo com Perkins et al. (2004), encontram-se altamente comprometidos pela rede de mentiras, numa tentativa de mascarar o sintoma disfuncional. Na BN, normalmente existe muita necessidade do sujeito em atender a expectativa dos pais e este constitui o maior elemento estressor que permeia o transtorno. Neste ponto, a família é de fundamental importância no tratamento, já o sujeito utiliza seus sintomas como forma de defesa das dificuldades emocionais. Segundo Castillo (1990), o alimento é utilizado de forma inadequada, numa tentativa de suprir diferentes estados emocionais. A característica dos bulímicos é de estabelecer relacionamentos superficiais, onde conseguem manter os sintomas em segredo por muito tempo. Os resultados da inclusão da família ao tratamento são elementos positivos na evolução do quadro clínico e um facilitador da convivência familiar. O sofrimento não está limitado à pessoa portadora da BN, mas envolve toda a família. Castro, Toro, e Cruz (2000) afirmam que a terapia familiar assume um papel de destaque no tratamento dos transtornos alimentares. A psicoterapia familiar é utilizada em dois aspectos: 1) onde são acompanhadas as questões relativas
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