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O século XXI começou em Pequim Rosiska Darcy de Oliveira1 Chovia forte na madrugada de dezesseis de setembro em Pequim.(...) Acabava de encerrar-se a Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher. (...) Muito tenho pensado sobre o que ali vivemos, nós, as trinta e seis mil mulheres que cruzaram o mundo no caminho de Pequim. Mas nunca como naquela madrugada pensei, com tanta intensidade, se sim ou não havíamos estado à altura de nossa geração. (...) A Conferência de Pequim foi, antes de mais nada, um sobressalto da história humana, protagonizado por minha geração. Minha geração encontrou o tempo em que às mulheres coube o susto de se perder. De, subitamente, no espaço de uma vida, ver dissolverem-se certezas milenares, sentir fugir o chão debaixo dos pés. E, por isso mesmo, ter que assumir de agora em diante a inédita autoria do feminino. A autoria do feminino é o movimento que farão as mulheres no próximo milênio. Um feminino que não é mais o que era antes e que não pode ser definido senão como um processo de desorganização ou, banalmente falando, de transformação.(...) Mudou o lugar social das mulheres, mudou sua experiência do mundo. As mulheres ficaram assim divididas entre passado e futuro, entre memória e projeto. O movimento mundial de mulheres tem sido desafio e exigência de transgressão de uma ordem que, confundida com o senso comum, vigorou ao longo dos tempos, atribuindo ao masculino o direito de definir o feminino como seu avesso. Vivemos hoje o desmentido desta ordem, o mergulho numa desordem que, paradoxalmente, é organizadora. Sair da invisibilidade e falar com voz própria foi para as mulheres a grande vitória histórica com que marcaram o século XX. (...) O século XXI começava naquela madrugada em Pequim. FRAGMENTOS SOBRE AS CONFERÊNCIAS DA ONU (Extraído do texto: “O século XXI começa em Pequim”) A Conferência de Pequim se inscreve numa dupla continuidade. A das conferências mundiais sobre mulheres, inauguradas em 1975 no México, e a das conferências mundiais-sobre temas globais realizadas nestes últimos anos: a ECO 92, sobre meio ambiente, Viena 93, sobre direitos humanos, Cairo 94, sobre população, bem como a Cúpula de Copenhague, em 95, sobre desenvolvimento social.(...) Para as mulheres, a ECO 92 foi um momento de ruptura. (...) Na Cúpula da Terra, conferência de aflições planetárias, pela primeira vez as mulheres intervieram para opinar não sobre os seus problemas ou defender as suas causas, mas para forçar o debate mundial a referir-se à existência das mulheres. (...) O Planeta Fêmea, evento das mulheres no Fórum Global, já prenunciava Huairu. Desde então tem ficado claro para o mundo que as mulheres estão permanentemente acordadas e querem opinar na gestão planetária. Assim foi em Viena, quando o impressionante Tribunal Internacional sobre a Violência contra as Mulheres tornou incontornável a questão da universalidade dos direitos humanos e a afirmação dos direitos das mulheres como direitos humanos. Pela primeira vez a comunidade internacional reconhecia que a humanidade é constituída por dois sexos, diferentes com direitos iguais.(...) 1 Rosiska Darcy de Oliveira, Presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. IV Conferência Mundial Sobre a Mulher. Beijing, China – 1995. No Cairo, uma vez mais, população e desenvolvimento, questões globais, foram analisadas também pela ótica das mulheres. O conceito de direitos reprodutivos emergiu como exigência de modernidade diante de políticas populacionais inspiradas no darwinismo social, diante do obscurantismo religioso que se atribui direitos sobre o corpo das mulheres. "Nosso corpo nos pertence", velha divisa fundadora do movimento de mulheres, revisitada na defesa dos direitos reprodutivos, marcou a conferência do Cairo como um momento a mais de eloquência no discurso público das mulheres, afirmação de sua autonomia e liberdade. (...) Prolongou-se em Copenhague a ativa participação das mulheres. (...) Encontraram aí as mulheres um novo rosto da pobreza, rosto de mulher, numa economia mundial da miséria que, com absoluta nitidez, se feminiza. Chegávamos assim aos primórdios de Pequim munidas de muitas certezas e de alguns direitos já consagrados. (...) Sabíamos que havíamos, definitivamente, entrado na humanidade visível, que os direitos das mulheres são direitos humanos e que tratava-se de defendê-los sem concessão aos relativismos culturais que, na prática, se transformam em violência institucionalizada, negação da autonomia, interdição e crime lá onde deveria vigorar a liberdade de escolha. Sabíamos que em Pequim estaria em jogo a manutenção de vitórias das conferências anteriores que haviam colocado as mulheres em novo patamar de respeitabilidade pública e privada. Sabíamos, também, que estas conquistas seriam duramente atacadas — como foram — por uma aliança de forças retrógradas. A mim, pessoalmente, um fato perturbador já chamara a atenção em todas essas conferências que precederam Pequim. Desde que as mulheres se apresentaram na cena internacional com demandas claras e se organizaram para a negociação, essas demandas se transformaram em pontos nevrálgicos, 'colchetes' de difícil solução. Aos poucos foi-se desenhando no meu espírito uma pergunta inquietante: estariam as mulheres, agora reconhecidas como parte integrante da humanidade visível, se constituindo em ponto de crise nos consensos internacionais? Como se a comunidade internacional, até então mundo dos homens, estivesse sendo forçada pela primeira vez a enfrentar temáticas, problemáticas e soluções para as quais não se preparara. Como se a irrupção das mulheres na cena internacional como tema e protagonismo representasse uma exigência de repensamento, um obstáculo epistemológico. A esta interrogação respondo hoje, com certeza, que sim. A incorporação das aspirações das mulheres: de igualdade, desenvolvimento e paz à agenda internacional força uma revisão desta agenda, que passa a ser lida através dos olhos das mulheres. O mundo visto pelo olhar feminino foi a divisa do Fórum de ONGs de Huairu, não por acaso.(...) Pequim foi o momento mais intenso de uma dupla inovação no marasmo do cenário internacional. Primeira inovação: a introdução do olhar feminino significa admitir que existem dois sexos no mundo e não apenas um. (...) A Plataforma de Pequim, (...) documento, que o Brasil assinou sem reservas, acolhe e sistematiza o que de melhor as mulheres lograram nas negociações internacionais nos últimos anos. (...) E mesmo se os direitos sexuais, que garantiam a liberdade dos caminhos vários da sexualidade, não encontraram guarida formal no texto da Plataforma, mesmo se o Brasil, favorável à afirmação clara destes direitos, foi voto vencido, o tema entrou na agenda de debates da comunidade internacional e não creio que dela venha a sair sem que, no futuro, uma solução privilegie a liberdade. (...) A Plataforma de Pequim, reafirmando os princípios consagrados na Carta das Nações Unidas e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, consolidou os consensos e conquistas já obtidos pelas mulheres nas conferências anteriores.(...) Na democracia, a igualdade entre os sexos faz toda a diferença.
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