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Os grandes desafios do controle da Administração Pública* Floriano de Azevedo Marques Neto Palavrachave: Controle (Administração Pública). Sumário: I Introdução I.1 Experiências recentes no direito estrangeiro II Premissas do controle II.1 O Estado Moderno e a ideia de controle da Administração II.2 Controle do poder e controle da atividade II.3 Tripla dimensão do controle II.4 Controle e consequencialismo (a necessidade de uma prática responsiva) II.5 A relação entre controle e eficiência da Administração II.6 Diferentes acepções de controle III Controle: vertente funcional III.1 Objetivos do controle da Administração III.2 Classificações do controle III.2.1 Quanto ao método de controle III.2.2 Quanto ao momento do controle III.2.3 Quanto ao vetor de controle III.3 Diagnósticos sobre a vertente funcional do controle administrativo IV Controle: vertente estrutural IV.1 A atividade de controle exercida pelos três Poderes IV.2 Modalidades de controle IV.2.1 Controle hierárquico ou tutelar IV.2.2 Controle articulação e controle fiscalização IV.2.3 A regra do artigo 13 do DecretoLei nº 200/67 IV.2.4 Autocontrole IV.2.4.1 O controle interno IV.2.4.2 O controle correicional IV.2.5 O controle das empresas estatais IV.2.6 O controle social IV.2.6.1 O controle social participativo IV.2.6.2 Os comitês de fiscalização de atividades IV.2.6.3 O controle social reativo IV.3.7 Diagnósticos sobre a vertente estrutural do controle administrativo: a "autonomização" do controle V Desafios, críticas e autocríticas Referências I Introdução 1 Ninguém pode desconsiderar a importância do tema do controle da Administração Pública. Uma adequada e eficiente estrutura de controle (em todas as suas dimensões) é pressuposto para a boa administração, o que em última instância constitui direito de todo administrado.1 O tema do controle da Administração Pública desperta por si mesmo um crescente interesse, suscitando nos últimos tempos um debate não apenas nos meios jurídicos, mas especialmente no âmbito político e institucional. Mais do que uma questão de limites de competências ou de busca da eficiência, a reflexão sobre o controle remete ao debate em torno do poder público. Os limites do poder da Administração se imiscuir na esfera de direitos dos indivíduos (o controle da legalidade ou do abuso de poder); o controle entre entes estatais para invalidar atos e decisões de outros entes (o controle judicial ou parlamentar dos atos administrativos, por exemplo); ou ainda os limites de invasão da seara da discricionariedade administrativa por parte dos entes incumbidos do controle (interno, externo, inclusive judicial, como demonstra o intrincado tema da sindicabilidade das políticas públicas pelo Judiciário). Diante da perspectiva de uma revisão e atualização das normas disciplinadoras da estrutura da Administração Pública,2 colocouse necessário repensar novas formas de organização de sua estrutura, em razão da introdução de novas modalidades de entidades estatais, que estão surgindo em profusão ao longo dos últimos anos. Além disso, fazse necessário também refletir sobre as alternativas para o aprimoramento do funcionamento da máquina estatal, com a utilização de instrumentos destinados a avaliar desempenho institucional, a incentivar a boa gestão e resultados satisfatórios, a prevenir e combater a corrupção. E aqui o tema do controle, além da relação direta, Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital tem importância significativa. As transformações por que vem passando o Estado nos dão a possibilidade de refletir e colocar em prática mecanismos que o tornem mais democrático, que proporcionem mais transparência ao exercício do poder decisório. Há contudo um desafio: como enfrentar o tema do controle num ambiente em que desmandos e despautérios administrativos se multiplicam, em que escândalos se sucedem num fluxo inacreditavelmente intenso. Mais do que isso, estes últimos tempos demonstram que qualquer proposta de revisão ou mudança (mesmo que visando ao seu aperfeiçoamento) do controle sempre pode ser recebida como uma tentativa ardilosa de enfraquecer os controles e, portanto, favorecer a bandalheira. Porém, a desconfiança quanto aos propósitos das mudanças cede lugar quando sem paixões verificamos que o sistema de controle hoje existente, a despeito de seus méritos e de suas falhas, também não tem sido eficiente para coibir desvios ou para impedir os desregramentos que ora e vez surgem à vista dos cidadãos. Assim, pois, nos convencemos de que aperfeiçoamentos são necessários e que mudanças não devem ser vistas com preconceito, como tentativas de aniquilar conquistas obtidas desde a Constituição de 1988. I.1 Experiências recentes no direito estrangeiro Sem desconsiderar a crescente e necessária busca de ética na Administração Pública, a multiplicação de escândalos nos lega um diagnóstico de que grande parte dos mecanismos de controle atualmente existentes são marcadamente formais e custosos. Devese buscar como meta a estruturação de um sistema de controle eficiente, no sentido de ser efetivo, aproximando o poder político dos seus destinatários, sem, no entanto, engessar a máquina administrativa. Os mecanismos de controle devem ser concebidos para que sejam eficientes e que permitam aferir, não apenas mas de forma determinante, o quanto a atividade administrativa está revertendo em benefício do administrado (seja com resultados concretos das políticas públicas, seja mesmo com probidade, economicidade e eficiência). Para isso devese evitar que o excesso de regras e procedimentos e a sobreposição de controles acabe por se constituir em entrave ao bom funcionamento da Administração. 2 O tema mereceu recentemente reflexão no âmbito dos trabalhos da Comissão encarregada da elaboração de Anteprojeto de Lei Orgânica da Administração Pública Federal e Entes de Colaboração, dentro da perspectiva de reformulação do DecretoLei nº 200, de 1967,3 que ainda hoje dá as bases para a organização da Administração Pública em âmbito federal. No Direito comparado e aqui nos referimos especialmente à União Europeia o tema tem merecido constante debate. A busca do avanço para a modernização da União Europeia tem levado a Comissão Europeia a realizar, desde 2000, uma reforma não apenas na gestão financeira, como também nas formas de controle lá existentes. Aqui, como cá, também a discussão em torno do tema assume características de polêmica para além dos limites do Direito. Nos últimos anos, passouse a questionar o chamado déficit democrático da União Europeia, relacionado à noção de accountability, entendida como prestação de contas, responsabilização. Buscando alterar esse panorama, passouse a implementar reformas na Administração Pública Europeia e, nessa perspectiva, alguns autores4 passaram a considerar que a União Europeia está em vias de criar um novo modelo de democracia, fundado em mecanismos de controle das autoridades públicas. Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital A reforma tem impactado diretamente no controle interno e, em alguma medida, pode ser percebida no controle externo, embora em sua organização não tenha sido feita nenhuma modificação substancial. O processo de reforma do sistema de controle interno da Comissão foi iniciado em abril de 2000 com a publicação pela Comissão de um Livro Branco estabelecendo um calendário do processo e as medidas a serem implantadas. Os anos 2000 e 2001 marcaram um período de transição na reforma. Durante esse período5 foi adotado o novo Regulamento Financeiro, houve o reforço da Auditoria Interna, foi efetuada a descentralização do controleinterno e implantada a declaração anual dos Diretores Gerais.6 Há um debate rico não apenas relacionado à implementação de estruturas de controle interno, como também à forma como os mecanismos de controle estão trabalhando efetivamente na prática. 3 A ideia deste texto não é fazer uma compilação do debate no Brasil ou na União Europeia. O intuito é meramente percorrer alguns pontos de reflexão sobre o controle e assim agregar algo sobre como o controle vem sendo exercido na prática, assinalando pontos que a nosso ver constituem seus desafios contemporâneos. Partiremos das premissas do controle (item II), para então tratálo sob a perspectiva de dois ângulos de análise, a partir de sua vertente funcional (item III), e a partir de sua vertente estrutural (item IV), assinalando quais são os diagnósticos de cada uma delas. Em seguida, procuraremos pontuar o que a nosso ver constitui seus desafios contemporâneos (item V). No último tópico cumprirá enfrentar algumas críticas que a proposta apresentada pela Comissão vem enfrentando (item VI). II Premissas do controle II.1 O Estado Moderno e a ideia de controle da Administração 4 O controle da Administração Pública transcende em muito o debate em torno do controle interno ou externo da atividade administrativa, a delimitação das competências das Cortes de Contas ou mesmo os procedimentos voltados a coibir desvios e desmandos na ação dos agentes públicos (servidores ou agentes políticos). A dimensão do controle envolve mesmo a própria configuração do Estado Moderno. Dois foram os eixos centrais da noção de Estado Moderno, que acabaram por conduzir à efetivação e legitimação do poder político: a concentração do poder (com a afirmação da soberania), e sua delimitação (a separação e demarcação das esferas pública e privada).7 Os dois vetores propiciaram a centralidade do poder decisório (primeiro nas mãos do Rei e posteriormente do Estado enquanto espaço público autônomo e desvencilhado das prerrogativas pessoais do soberano), a concentração do poder de coordenar e conduzir a sociedade num espaço decisório apto ao estabelecimento de uma relação de governo (daí por que a necessidade de demarcação da esfera de ação estatal). Ao mesmo tempo que se construiu a unidade do poder político, limitouse este poder, dentro de uma perspectiva de que o Estado seria o espaço onde seriam adotadas as decisões voltadas a controlar, coordenar, dirigir ou incentivar a sociedade, um espaço onde se desenvolveria o poder decisório e seriam efetivados os fins coletivos de uma dada sociedade. Nesse contexto o Direito Administrativo surgiu atrelado à centralidade do poder decisório e dependente de uma concepção de interesse público voltada a justificar a existência do poder político soberano e restrito à esfera pública. Ao mesmo tempo que a outorga de um poder ao Estado precisava de uma legitimação, era necessário implementar um arcabouço de regras e Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital princípios que o limitassem, um campo do Direito que assegurasse um intervencionismo estatal aceitável, como proteção contra o risco de exercício arbitrário do poder político. 5 A relação é direta com a própria noção de Estado de Direito.8 Este Estado, em contraposição ao EstadoPolícia característico do absolutismo, não apenas impõe normas jurídicas aos indivíduos. A lei subordina também a própria atuação do Estado, pois seus agentes a ela devem obediência. Quando a vontade individual dos governantes é substituída pela autoridade da norma geral, e o Estado passa a se submeter à ordem jurídica, o poder estatal passa a ser limitado e pode então ser controlado pelos seus destinatários. Vistas antes apenas como forma de se exigir obediência das pessoas às determinações do poder político, já agora na Idade Contemporânea especialmente a partir dos marcos históricos das Revoluções Americana e Francesa as normas jurídicas possibilitam disciplinar a organização e o funcionamento da máquina estatal. A ideia de controle da Administração Pública é então intrínseca a essa necessidade de proteger os delegatários do poder estatal contra o risco do seu exercício arbitrário. 6 O problema comum de se controlar o poder estatal foi solucionado ao menos por duas maneiras nos vários ordenamentos jurídicos. Fazemos referência aqui à solução francesa e à solução americana, que criaram sistemas de controle jurisdicional da Administração,9 posteriormente adotados em outros países. Na França adotouse um sistema de jurisdição que se caracteriza por uma dualidade: em paralelo à jurisdição ordinária ou comum funciona uma jurisdição administrativa, destinada a julgar litígios que envolvem a Administração Pública. Veja que aqui ao lado e de forma independente da jurisdição ordinária comum cabe a uma jurisdição especial, formada por um conjunto de juízes ou tribunais administrativos, o controle dos atos do Poder Executivo (atos administrativos em essência). Estas Cortes Administrativas são encabeçadas por um órgão superior em regra denominado Conselho de Estado. Esse sistema de jurisdição dupla foi também adotado em países como a Alemanha, a Suécia e Portugal. Em países anglosaxônicos e em muitos países latinoamericanos, como a Argentina e o Brasil, por sua vez, a solução encontrada foi outra. Neles há um sistema de jurisdição una, na qual também os julgamentos dos litígios em que a Administração é parte competem aos juízes e tribunais comuns, admitindose varas especializadas, inseridas entre os órgãos de uma única ordem de jurisdição. 7 Bem é verdade que esses sistemas, ao se relacionarem com o controle jurisdicional da Administração, não são as únicas formas de controle hoje existentes. Do ponto de vista estrutural, veremos que o controle não é adstrito ao exercido pelo Judiciário. Cumprem um papel importante no exercício do controle também os Poderes Legislativo e mesmo pelas instâncias internas ao Executivo, mediante mecanismos de autocontrole. Também a própria sociedade, através dos mecanismos que lhe são atribuídos, exerce formas de controle sobre a Administração. Mas toda a estrutura de controle é formada com a intenção de preservar o equilíbrio entre a tensão da autoridade (poder extroverso) atribuída aos agentes estatais e a liberdade que se quer garantir aos indivíduos, sua proteção contra o arbítrio, o desvio ou o abuso no manejo deste poder. 8 Os fenômenos econômicos, sociais e políticos a que se assistiu nas últimas décadas conduzem a um processo de redefinição do Estado,10 marcado pela superação dos eixos centrais da noção de Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital Estado Moderno. De um lado, vêse a impossibilidade de permanência do caráter autoritário, monopolista e unilateral que o Estado tinha para estabelecer o que vinha a ser, no caso concreto, o interesse público. De outro, a superação da dicotomia direito público/direito privado acarreta a aproximação entre Estado e sociedade e o afastamento da ideia de que o público corresponderia exclusivamente à estatal. A superação dos dois vetores estruturantes do Estado Moderno, nos quais o Direito Administrativo assentou suas bases, e o processo em curso conduzem a que se pense na reconfiguração de um núcleo de poder político mais transparente e eficiente na tutela e consagração de interesses públicos. Nesse sentido, a reflexão sobre os mecanismos de controle e seu aprimoramento é tarefa imprescindível para avançarmos na estruturação em sentido largo do Estado. II.2 Controle do poder e controle da atividade 9 Na medida em que se faz necessário atribuir poder a um aparelho decisório estatal para se garantir o próprio convívio social e assegurar o atendimento de necessidadescoletivas, atribuise ao Estado uma ampla gama de ingerências na vida social. Baseandose no uso da força, o qual detém com exclusividade, o Estado não reconhece poder interno ou externo superior ao seu,11 e atua por meio de diversas dimensões. Podemos enfocar o Estado como detentor do monopólio da violência legítima, como formulador de políticas públicas ou mesmo seu executor. Podemos ainda entendêlo como aparelho decisório detentor de um poder vinculante dos indivíduos, um espaço onde se desenvolveria o poder decisório no processo de controle político e de efetivação de fins coletivos de uma dada sociedade.12 Qualquer uma dessas dimensões do Estado remete ao poder político que lhe é atribuído. A necessidade de frear esse poder, de modo a contêlo e preservar os direitos fundamentais, nos remete ao tema do controle. 10 Para que possa colocar em prática essas atribuições, atuando concretamente, os agentes públicos são encarregados de concretizar, dentro dos marcos legais, as funções de manejo do poder conferido pelo Estado. Chegamos então à ideia de atividade administrativa, um conjunto organizado de atos que visam à realização de um determinado objetivo que interessa a toda a coletividade. Dito de outro modo: o controle da Administração não se presta apenas para evitar o desvio de bens ou recursos públicos. O controle deve envolver também a verificação de que o poder atribuído ao Estado está sendo manejado eficientemente para cumprir as finalidades que justificam e legitimam a sua atribuição ao agente público ou se o sacrifício de direitos individuais inerente à ação estatal está correspondente ao proveito efetivo auferível pela coletividade. O controle dos bens e recursos públicos é importante, mas ele se cinge à aferição da regularidade do exercício das atividadesmeio da Administração. Antes ou independente dele há que se controlar o adequado uso do poder extroverso e o resultado do manejo deste poder. Aqui podemos falar em controle do poder e controle da atividade. II.3 Tripla dimensão do controle 11 Adentramos com isso uma tripla dimensão do controle, voltada ao poder, aos meios e aos objetivos. 11.1 O controle do poder visa a garantir a liberdade, a proteger os indivíduos contra o arbítrio. Relacionase à ideia de Estado de Direito e ao próprio surgimento do Direito Administrativo, Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital enquanto campo do Direito voltado a implementar um arcabouço de regras e princípios que limite o poder estatal e proteja os indivíduos contra o risco de exercício arbitrário do poder político. 11.2 O controle dos meios voltase à busca da racionalização da atividade administrativa, de maneira a que ela seja orientada pela economicidade e probidade. Esse controle deve orientarse pela otimização da gestão do patrimônio público. A ele deve ser dada a melhor utilização possível, que possibilite inclusive uma aplicação econômica condizente com suas finalidades públicas. Ao mesmo tempo, o controle dos meios deve propiciar o controle do desvio de finalidade na gestão da coisa pública. 11.3 O controle dos objetivos voltase a consagrar a estabilidade e a permanência na consecução das políticas públicas que, como programas de ação, instrumentos de consecução de finalidades, devem ser concebidas num prazo longo, visando não a objetivos imediatos, influenciados pelo jogo políticoeleitoreiro, mas por um viés de planejamento e ordenação da Economia e da sociedade.13 Esse controle voltase também a assegurar o agir administrativo orientado a prontamente suprir as demandas dos administrados, de modo a obrigar que a organização administrativa homenageie sempre o bom exercício da função pública que toda prestação estatal deve perseguir no interesse geral do cidadão. II.4 Controle e consequencialismo (a necessidade de uma prática responsiva) 12 Uma das vertentes que deve ser sempre considerada quando tratamos do tema do controle é a que diz com suas consequências. O controle não é um fim em si mesmo. Ele é um instrumento para o aperfeiçoamento da Administração e para a busca de eficiência e efetividade. A presunção de que o controle valha por si só, como se a mera existência de estruturas de controle seja suficiente para a Boa Administração trai uma visão formalista do controle. A Administração Pública somente é eficiente se além de não desperdiçar recursos públicos (evitando o desvio ou o desperdício) ela logra atender às necessidades coletivas que correspondem à finalidade do agir administrativo. Qualquer controle que, sob o pálio de coibir o desvio ou o desperdício impede a consecução de uma ação administrativa acaba por produzir um efeito contrário àquele que justifica a existência do controle. Para impedir que a Administração gaste mais do que o devido numa obra ou numa compra, não se deve predicar que ela seja impedida de executar a obra ou adquirir o insumo. O entrave da Administração pelo controle acaba por causar malefício comparável àquele gerado pelas condutas ímprobas. Uma Administração pia, proba e impródiga não é necessariamente uma Boa Administração. Será se conciliar lisura e economicidade com eficiência e efetividade. Do mesmo modo, um sistema de controle que só pune, invalida e impede não será um controle conforme aos cânones do Estado Democrático de Direito. Será se conseguir combinar rigor no combate aos despautérios com a verificação ponderada das consequências das medidas de coibição a seu alcance. Ademais, será um bom sistema de controle se aferir também os resultados das políticas públicas e das ações administrativas, verificando o quanto elas estão a reverter para a sociedade. Neste sentido é que se diz que o controle deve ser responsivo14 ou que deve ter um viés pragmático ou consequencialista. Em uma palavra, qualquer órgão ou agente incumbido do controle (Tribunal, órgão administrativo ou Corte de Contas) deve sempre perquirir e avaliar as consequências da medida de controle antes de adotála. Não para tornar o controle mais lasso, mas para modular as medidas corretivas ou acautelatórias no sentido de que elas tenham o menor Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital impacto para o interesse público mais denso envolvido no caso. Vendo um exemplo de controle não responsivo fica mais fácil de identificar os contornos desta necessária vertente do controle. É comum órgãos de controle interno ou externo inquinarem por irregulares contratações diretas por dispensa de licitação com base no art. 24, IV, da Lei nº 8.666/93 (contratação por emergência) nas hipóteses da assim chamada emergência ficta ou seja aquela que advém da incúria, omissão ou mesmo imprevisão inescusável do administrador. Nestas situações é forte a tendência de considerar descabida a dispensa de licitação pois a situação de urgência não veio do incontornável, mas da ação ou omissão do agente público. Contudo, o fato de a situação emergencial ter sido fruto de incúria ou ardil não elide o fato de existir situação apta a comprometer a segurança de pessoas ou bens. Ora, simplesmente manejar competência de controle para impedir o afastamento da licitação e interditar a contratação direta terá como consequência concorrer para o risco à incolumidade da saúde ou do patrimônio dos administrados. O doente da rede pública que precisa da medicação em falta no almoxarifado não pode sofrer as consequências do agir negligente do responsável pelos suprimentos do hospital. Simplesmente obstar a compra do medicamento alegando que a emergência é fabricada significa desconsiderar os impactos da decisão de controle. Uma prática responsiva apontaria por autorizar a dispensa, determinar a punição dos responsáveis e, previamente, forcejara introdução de mecanismos mais aptos e eficientes para gestão de suprimentos, inclusive introduzindo o monitoramento de estoques se o caso. A postura de simplesmente invalidar a dispensa ou mesmo atuar ex ante impedindo a aquisição do medicamento neste caso constitui exemplo de prática não responsiva, que não considera os impactos da medida de controle, sendo típico exemplo de controle autorreferenciado e incompatível com as finalidades públicas da atividade. II.5 A relação entre controle e eficiência da Administração 13 Desde 1998, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 19 ao caput do art. 37 da Constituição Federal, a eficiência está entre o rol de princípios a orientarem as atividades da Administração Pública. Tratase de uma sinalização clara do dever (agora constitucionalizado) de que a atuação e organização administrativas se voltem a eficazmente satisfazer as finalidades públicas. Mas o dever de eficiência ainda cumpre um segundo objetivo: deve ser entendido como parâmetro de controle, de aferição permanente do atendimento das finalidades na atuação do poder público, refletindo um direito subjetivo ao recebimento da boa prestação administrativa.15 14 A busca de eficiência da Administração Pública, no entanto, e ao contrário do que consta do senso comum, não implica necessariamente aumentar o controle. Ao menos por três motivos nem sempre é verdadeira a correlação de quanto mais controle, mais eficiente será a Administração: (i) a multiplicidade de controles pode levar à ineficiência do próprio controle; (ii) os procedimentos de controle têm custos; e (iii) o controle pelo controle pode levar ao déficit de responsividade acima enunciado. Quando uma mesma ação administrativa se submete a uma miríade de múltiplas instâncias de controle, para além da inócua multiplicação de procedimentos, correse o risco de controlar várias vezes um aspecto e de se deixar de ter em conta outro, criando a falsa impressão de rigor quando na verdade há ociosidade e omissão em controlar o efetivamente relevante. A atividade de controle é em si uma atividade administrativa. Ela também deve se submeter ao cânone da economicidade e eficiência. Estruturas duplicadas ou superdimensionadas ou o Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital desperdício de recursos com procedimentos de controle inócuos é em si um desvio a ser também ele coibido e controlado. Por fim o já visto acima. A lógica autorreferenciada do controle leva à tendência de se justificar o controle por si só. Sua legitimidade passa a se basear na contundência das medidas de controle e não na sua consequência ou consistência. Invalidar todo um programa de melhorias com proveitos à coletividade por um defeito menor ou por uma falha formal, em exemplo extremo, não é sinal da efetividade do controle, mas prova da sua falta de responsividade. É a negação da lógica da eficiência. 15 Nesse sentido, mais do que buscar regras e controles em excesso, o desafio é perseguir um sistema de controle que seja eficiente, sem constituir, no entanto, entrave ao bom gerenciamento da máquina administrativa. Nessa linha, o próprio DecretoLei nº 200/67, ao dar tratamento ao tema do controle, prevê em seu art. 14 a racionalização do trabalho administrativo mediante a simplificação de processos, a supressão de controles meramente formais e o afastamento de mecanismos de controle cujo custo seja evidentemente superior ao risco. II.6 Diferentes acepções de controle 16 Antes de tratarmos das vertentes funcional e estrutural do controle, é importante notar que controle, além de ter diferentes dimensões (podendo se relacionar ao poder, aos meios e aos objetivos, cf. item II.3 acima), tem diferentes acepções, cada qual com suas notas características. O tema será aprofundado em tópico próprio (item IV.3.2, a seguir). Podemos tomar o controle a partir da ideia de que toda atividade administrativa se submete, pelo seu próprio funcionamento, a algum tipo de controle na medida em que a atuação do agente público é submetida a normas e procedimentos dentro dos quais o plexo de competências (superior hierárquico, sistemática de recursos, participação dos interessados, dever de publicidade etc.) significa por si só um método de ação que denota mecanismos de controle procedimental. É o que ocorre com a estrutura e os requisitos do ato administrativo, com a processualidade, com a tutela jurisdicional, com a publicidade etc. São também manifestação do controle os mecanismos de articulação administrativa, a qual é efetuada de maneira permanente dentro dos diversos órgãos e entidades que compõem a Administração e objetiva uniformização, alinhamento, direção. Por fim, uma terceira dimensão é a do controle enquanto fiscalização ou correção; nesta vertente, o controle realizase de forma permanente e objetiva o monitoramento, verificação, e adoção de providências em face de condutas indevidas, com vistas a invalidálas ou escoimálas de falhas ou vícios. III Controle: vertente funcional III.1 Objetivos do controle da Administração 17 Analisamos o controle sob diversos ângulos. Mas, afinal, qual é sua função? Quais objetivos são perseguidos ao se controlar a Administração? 17.1 Um primeiro objetivo que parece advir claro da própria ideia de controle é a defesa do Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital patrimônio público. Como proprietário que é de todos os bens que integram seu patrimônio (tudo o quanto economicamente valorável bens, direitos e receitas integrantes dos entes públicos), o Estado tem não o poder, mas sim o dever de defender seu patrimônio. Dizemos aqui dever em razão da própria relação entre a propriedade estatal e a necessidade de cumprimento permanente da função social (que incide com ainda maior rigor por ser pública a propriedade). É ela condição de legitimação permanente de um patrimônio público. 17.2 Relacionado a esse objetivo, temos um segundo: a adequada aplicação dos recursos públicos. Como proprietário que deve cumprir uma função social, o Estado deve se preocupar com gestão orçamentária, com a organização e gestão de seus orçamentos, alocando os recursos disponíveis nas atividades que sejam prioritárias e necessárias ao bom exercício de suas atividades. Mais: na medida em que os recursos de que dispomos se tornam cada vez mais escassos, mais se faz necessário refletir sobre as regras e os limites postos para o poder público gerir os bens que lhe são atribuídos. Cada vez mais é necessário verificar se o emprego dado a um bem do patrimônio público corresponde à melhor utilidade que dele se pode extrair. Assim é que a adequada aplicação dos recursos públicos se relaciona não apenas com gestão orçamentária, como também com responsabilidade civil, economicidade (eficiência alocativa)16 e probidade. 17.3 Um terceiro objetivo a ser perseguido pelo controle é o cumprimento das finalidades da atuação administrativa. Para isso, é importante que o controle seja exercido sobre políticas públicas (o que tem se chamado de "sindicabilidade" ou mesmo de juízo de constitucionalidade de políticas públicas),17 que se efetive de forma a coibir o abuso e o desvio de poder e em prol da implementação de direitos fundamentais. É também importante que se efetue um controle de eficiência administrativa (cf. item II.5 acima). 17.4 Por fim, o controle tem por objetivo a adstrição à legalidade. Sendo a lei a base da atuação administrativa, a sujeição da Administração à legalidade tem caráter preventivo e reativo. Sob o viés preventivo, o controle objetiva impedir que a atuação administrativa seja praticada de forma ilegal. Sob a perspectiva reativa, é forma de verificar se, ao desempenharsuas atividades, a Administração Pública respeitou a ordem jurídica. Sob ambas as perspectivas (preventiva e reativa), o controle da legalidade pode ser visto como instrumento para aplicação de políticas gerais uniformes, de decisões coerentes no âmbito da Administração Pública.18 Nos últimos anos, o controle sobre a legalidade da atividade administrativa tem despertado muita atenção. Não apenas pela dificuldade em si de a conduta administrativa concreta e para situações específicas ser estritamente determinada pela lei preceito geral e abstrato mas também porque a lei já não consegue mais prever de maneira precisa e a priori os limites da atuação da Administração, o que faz com que cresça a margem de controle da atuação administrativa, inclusive da discricionariedade.19 Relacionado a esse processo, hoje chama a atenção o fato de que a adstrição do controle à mera verificação formal do cumprimento de prescrições legais pode gerar um déficit de responsividade, ou seja, um distanciamento em relação aos objetivos e efeitos alvitrados pela sociedade e perseguidos pela atuação administrativa. A isto retornaremos (itens IV.3.9 e V). III.2 Classificações do controle III.2.1 Quanto ao método de controle Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital 18 Fizemos referência linhas atrás à tripla dimensão do controle (II.3), praticado que pode ser em relação ao poder ou aos meios e aos objetivos. Os meios e os objetivos nos levam a pensar no método de controle. Em relação aos meios e processos, efetivamse controles formais. Em relação às metas e resultados, realizamse controles materiais. Os controles formais se pautam na verificação da atenção aos procedimentos e requisitos previstos em lei como condição para a prática de um ato. A presunção, que deve ser respeitada, é a de que se a lei exige uma condição formal para a prática de um ato, isso tem uma razão, um fundamento. Tanto é assim que a Lei da Ação Popular (Lei nº 4.717/65, art. 2º, "b") prevê que o vício de forma é causa da anulação de um ato administração em sede do controle judicial provocado por qualquer cidadão. É certo que os requisitos formais são de observância obrigatória e que o controle da forma não é irrelevante, pois coíbe desvios e reforça a segurança jurídica. Contudo o controle exclusivamente formal é insuficiente. A ele devem ser associados mecanismos de controle material, assim entendidos aqueles que se voltam a aferir o resultado de um ato ou ação administrativa. São várias as formas de exercer um controle matéria da ação administrativa. A verificação da efetividade de uma política pública é uma maneira. Outra, cada vez mais comum, é aquela adotada pelas Cortes de Contas no sentido de analisar a economicidade das contratações administrativas. Desconsiderando aspectos atinentes à proteção constitucional da incolumidade da proposta econômicofinanceira advinda de uma licitação (art. 37, XXI, CF), quando um fiscal de contas analisa a adequabilidade de preços globais ou unitários resultantes de processo licitatório formalmente regular está exercendo controle material para além do controle meramente formal. O controle material nem elide o controle formal, na verdade com ele deve ser combinado, nem se traduz necessariamente na legitimação pelo resultado (é comum uma crítica bizarra a essa modalidade de controle alegandose que por ela a maior falcatrua teria de ser admitida se dela resultasse proveito à coletividade; assim não é pois se falcatrua houve, o proveito não foi o maior possível de ser auferido pela sociedade). O que se destaca no contraponto com o controle formal é que este tende a manter os órgãos de controle numa certa zona de conforto e favorecer a falha de responsividade. Em suma o controle meramente formal é pouco dado à verificação de consequências. Daí a necessidade de ser privilegiada a dimensão do controle material, inclusive como mecanismos de complementação e aperfeiçoamento do controle formal. III.2.2 Quanto ao momento do controle 19 O controle pode se realizar antes da atuação administrativa (controle ex ante, que objetiva impedir que um ato ilegal ou contrário ao interesse público seja praticado), simultaneamente à sua realização (controle concomitante) ou mesmo posteriormente (controle ex post, que tem por finalidade rever os atos já praticados, com vistas a corrigilos, desfazêlos ou apenas confirmálos, abrangendo atos como de aprovação, homologação, anulação, revogação e convalidação).20 A discussão em torno do controle prévio ou a posteriori demanda sempre que se delimite o marco temporal demarcador do que seja o antes e o depois. Em princípio o controle é prévio quando é exercido antes da prática do ato; é feito a posteriori quando analisa um ato ou procedimento que já esteja a produzir efeitos. Traçando um paralelo com o controle de constitucionalidade das leis, há o controle prévio que se exerce nas instâncias de tramitação legislativa ou no momento de sanção ou Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital veto. Há o controle ex post que nesta senda será exercido em caráter difuso ou concentrado pelas instâncias judiciais competentes (pressupondo incabível a negativa de cumprimento administrativa de lei por declaração não judicial de inconstitucionalidade). Muitos afirmam que o controle ex post se aproxima da atuação do médico legista, que só é chamado para examinar a vítima, o morto, quando já defunta. Afora o mau gosto da figura retórica, a metáfora pressupõe que o marco temporal do antes e do depois seja a consumação dos efeitos deletérios do ato irregular. Não é disso que se trata. A concomitância ou tempestividade do controle não pode implicar a antecipação da ingerência controladora ao momento prévio à pratica do ato ou do procedimento de tal sorte que a atuação do controlador se confunda com a atuação do gestor. Se o controlador antecipase à prática do ato de tal modo que ele passa a interagir e cooperar com o administrador na prática de um ato, na definição de uma política pública ou na condução de um procedimento, o agente do controle perde a condição de controlador e passa à condição de partícipe da atividade a ser controlada. Deslegitima a atividade de controle. De outro lado, o controle a posteriori não pressupõe que os efeitos sejam irreversíveis. Porém, presume que para um efetivo controle deve haver separação entre a atividade controlada (realizada antes) e a atividade de controle (que deve se basear num ato ou procedimento já efetivados, sem o que o controle se imiscuirá na atividade administrativa, perdendose a fronteira entre gestão e controle). III.2.3 Quanto ao vetor de controle 20 O controle pode advir de uma relação de hierarquia, de uma relação institucional ou decorrer de um vínculo contratual. 20.1 Numa estrutura hierarquizada, com escalonamento de poderes, o controle é exercido pelos superiores. Como consequência lógica da hierarquia, decorre, para o superior, o poder de dar ordens, de expedir instruções, circulares, ordens de serviço, de avocar, organizar serviços, comandar a execução de atividades, fiscalizar atos e atividades dos subordinados (inclusive revogando ou anulando decisões que por esses tenham sido tomadas).21 É o controle que se exerce internamente a um órgão público, mediante a ascendência do superior hierárquico sobre seus subordinados. 20.2 O vetor institucional do controle é aquele que se exerce mediante a tutela de um ente por outro. Nele não há propriamente hierarquia, mas verificação do cumprimento dos objetivos institucionais que justificam a criação do ente. Normalmente o controle institucional se exerce nos termos da lei e por meio dos órgãos de governança do entecontrolado. É pelo vetor institucional que se exerce a maior parcela das modalidades de controle. Nela se situa a tutela exercida pelos órgãos da Administração central sobre os entes da Administração indireta. É também institucional, balizada pela Constituição ou pela Lei, o controle externo exercido pelo Legislativo ou pelas Cortes de Contas. Também é institucional o controle exercido pelos órgãos correicionais, como é o caso da CGU no âmbito da Administração federal. 20.3 O controle, por sua vez, pode decorrer de uma relação contratual. Fazemos referência aqui aos mecanismos de controle que são exercidos nos termos de uma relação "contratualizada", ou seja, não por relação hierárquica, nem por vínculo institucional. Nestes casos podemos situar a fiscalização exercida pela Administração sobre os particulares contratados no bojo das chamadas Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital cláusulas exorbitantes (art. 58, III, Lei nº 8.666/93); o controle exercido sobre as atividades das Organizações Sociais que travem Contrato de Gestão com órgãos públicos ou o controle sobre as atividades dos delegatários da prestação de serviços públicos no âmbito da atividade regulatória estatal. III.3 Diagnósticos sobre a vertente funcional do controle administrativo 21 Diante dos objetivos que devem ser buscados através dos mecanismos de controle, das classificações propostas, e do quadro atual da Administração Pública, parece claro que o aperfeiçoamento dos instrumentos e das estruturas de controle passe por três vertentes: (i) redução dos mecanismos de controle meramente formais; (ii) conferência de maior peso ao controle dos resultados; (iii) busca de maior eficiência da atuação dos órgãos de controle com a redução de sobreposições, otimização de procedimentos e supressão de controles cujo custo seja maior do que o efetivo benefício. IV Controle: vertente estrutural IV.1 A atividade de controle exercida pelos três Poderes 22 A Administração Pública se sujeita a controle por parte dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. 22.1 O controle pelo Executivo se efetiva por mecanismos de controle interno (em sentido amplo), pelo qual a Administração Pública exerce controle sobre sua própria atuação, em relação aos atos e atividades de seus órgãos e entidades descentralizadas que lhe são vinculadas.22 Esse controle poderá ser hierárquico ou tutelar. É o que vemos prescrito, por exemplo, no art. 84, II, da Constituição Federal, que prevê competir privativamente ao Presidente da República exercer, com o auxílio dos Ministros de Estado, a direção superior da Administração federal. Ao exercerem a direção superior, estarão eles exercendo controle sobre a Administração, dando um norte, as orientações da macropolítica governamental. Poderá ser interno (em sentido estrito), ou externo. O controle interno normalmente é realizado pelo sistema de auditoria.23 O caput art. 70 da Constituição Federal, por exemplo, confere ao sistema de controle interno de cada Poder estatal a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da Administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia das receitas. Em sentido assemelhado, o art. 74 da Constituição afirma que os Poderes estatais manterão, de forma integrada, sistema de controle interno. O controle interno poderá também ter caráter correicional, que é aquele que se exerce para corrigir e punir atuações que ferem os padrões de conduta desejáveis. 22.2 O controle externo exercido pelo Legislativo pode se efetivar diretamente pelo Parlamento, como se vê das previsões constitucionais que conferem ao Congresso Nacional a competência exclusiva para sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa (art. 49, V), para julgar anualmente as contas prestadas pelo Presidente da República e dos Ministros de Estado, observados preceitos constitucionais (art. 49, IX), fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas Casas, os atos do Poder Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital Executivo, incluídos os da Administração indireta (art. 49, X). O art. 70, caput, da Constituição também confere ao Congresso Nacional, mediante controle externo, a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da Administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia das receitas. De outro lado, o controle pelo Legislativo pode ser exercido pelos Tribunais de Contas. A Constituição atribui expressamente competências ao Tribunal de Contas da União para que auxilie no controle externo, a cargo do Congresso Nacional. O rol de competências constitucionais está previsto no art. 71. 22.3 O controle externo exercido pelo Judiciário efetivase independentemente de eventual apuração do ocorrido em sede de processo administrativo. 22.3.1 Em razão da inércia da jurisdição, sempre será exercido por provocação do interessado. Nesse sentido a Constituição prescreveu a impossibilidade de a lei excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV), e a possibilidade de utilização dos instrumentos do habeas corpus, do mandado de segurança, do mandado de segurança coletivo e do mandado de injunção (nos termos do previsto no art. 5º, LXVIII, LXIX, LXX e LXXI, respectivamente). Poderá o controle judicial ser exercido de maneira difusa, pelos entes legitimados para tanto. É o que a Constituição faz, por exemplo, ao legitimar os cidadãos a propor ação popular (nos termos do que prevê o art. 5º, LXXIII), e o Ministério Público a promover o inquérito civil e ação civil pública e a exercer o controle externo da atividade policial (art. 129, III e VII). O controle exercido pelo Judiciário poderá também incidir sobre a constitucionalidade de ato normativo, pelos mecanismos da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade, previstas no art. 103 da Constituição. 22.3.2 Bem é verdade que os doutrinadores costumam ver com bons olhos o exercício do controle da Administração pelo Judiciário,24 mas segue sendo bastante discutido o alcance que esse controle pode ter. Embora não se discuta caber ao Judiciário a análise da legalidade em sentido estrito,25 ainda é bastante polêmico o cabimento de um controle mais amplo pelo Judiciário, que adentre o campo da discricionariedade do administrador público.26 Nesse sentido, hoje em dia é fértil a discussão do tema do ativismo judicial, objeto de posições críticas da doutrina mais recente.27 Ao longo do tempo, algumas teorias vêm sendo elaboradas para fixar limites ao exercício do poder discricionário, de modo a ampliar a possibilidade de sua apreciação pelo Poder Judiciário. Assim é que, de modo a controlar o mau uso da discricionariedade, foram desenvolvidas as teorias do desvio de poder28 (quando a autoridade se utiliza do poder discricionário para atingir fim diverso daquele que a lei fixou cabe apreciação judicial) e a teoria dos motivos determinantes (pela qual é dada ao Poder Judiciário a possibilidade de apreciar a validade dos motivos que levaram a Administração a praticar determinado ato se ela os tiver indicado). É fato que hoje assistimos a uma ampliação ainda maior do controle judicial da Administração,29 o que, se, de um lado, pode ser muito positivo, não pode, no entanto, ensejar a substituição da discricionariedade do Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital administrador pela do juiz. 23 O exercício do controle, no entanto, não se restringe apenas ao controle por parte dos Poderes estatais. É conferido também aos participantes da sociedade civil, o que acarreta maior legitimação à governança, maior transparência à atuação da máquina administrativa e, fundamentalmente, maior controle sobre suas atividades. Voltaremos ao tema do controle social em tópico específico (item IV.3.8, a seguir). IV.2 Modalidades de controle IV.2.1 Controle hierárquico ou tutelar 24 Nos últimos anos, a estrutura "piramidal" da Administração Pública, fundamentalmente baseada no vetor da hierarquia e na ideia de existência de um centro único de controle político relacionado à autoridade sobre as diferentes estruturas administrativas (sobre os variados órgãos e entidades estatais), vem dando lugar a uma Administração que podemos chamar de "matricial" ou "policêntrica", caracterizada, sobretudo, pelo exercício do controle de forma diferente ao que costuma ser concebido para a atividade estatal.30 25 O processo de convergência para uma Administração matricial é bem sinalizado pela emergência e profusão das agências reguladoras. Ao se revestirem de independência em face do poder político, elas acabam por quebrar o vínculo de unidade no interior da Administração, rompendo com o modelo tradicional pelo qual todas as ações administrativas são diretamente reconduzidas ao governo.31 Dotar os órgãos reguladores de autonomia implica, por exemplo, garantir estabilidade aos seus dirigentes que, investidos de mandato, são, durante esse período, inamovíveis. Implica também dotálas de autonomia de gestão e financeira, através das quais se procura atribuir à agência capacidade de organizar e gerir seus orçamentos, interditando contingenciamentos ou cortes orçamentários, e garantir que os recursos financeiros necessários à sua atividade sejam independentes em relação ao poder central. Acarreta também sobre elas não incidirem os mecanismos típicos de controle hierárquico, pelo que os dirigentes do órgão da Administração central aos quais os órgãos reguladores são institucionalmente vinculados não podem anular, revisar ou revogar os atos praticados pelas agências. A alteração do desenho piramidal de Administração para um arranjo em que o controle não é exercido quase que exclusivamente por órgãos integrantes do aparelho do Estado não acarreta, no entanto, a sujeição a mecanismos de controle. Implica sim se repensar o controle da atividade estatal tal como ele vem sendo exercido. 26 Se o eixo estruturante da estrutura piramidal de Administração é a hierarquia, numa Administração matricial, o vetor hierárquico é relativizado. Daí por exemplo a impropriedade do controle hierárquico exercido pelo Executivo sobre as agências.32 27 Isso nos coloca diante da necessidade de apartar o controle hierárquico intrapessoa do extrapessoa jurídica. 27.1 O controle intrapessoa jurídica tem como vetor a hierarquia. Dentro da pessoa jurídica dotada de autonomia, é pressuposto do escalonamento de poderes, o controle exercido pelos superiores Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital sobre os seus subordinados. O Anteprojeto de Lei Orgânica dá tratamento ao tema ao cuidar da supervisão hierárquica (item 24.1, abaixo). 27.2 De maneira diversa, o controle extrapessoa jurídica tem como estruturante o vetor institucional, exercido mediante a tutela de um ente por outro. Estáse aqui diante do exercício da supervisão por vinculação, aquela que incide sobre entidade da Administração indireta (item 24.1, abaixo). 28 Outra forma de controle deve ser exercida em face dos entes administrativos autônomos. Aqui não se está diante propriamente de hierarquia ou tutela exercida dentro de uma pessoa jurídica ou em sua relação com outro ente estatal. Não faz sentido submeter estes entes, aos quais a lei confere autonomia, outros mecanismos de controle aplicáveis aos entes administrativos em geral, mecanismos de ingerência sobre a nomeação de seus dirigentes ou de fiscalização de limites e critérios para despesas com pessoal. IV.2.2 Controle articulação e controle fiscalização 29 Em linha com as diferentes acepções de controle anteriormente apresentadas (item II.6), repartimos o controle articulação do controle fiscalização. Esta é a diretriz adotada no Anteprojeto de Lei Orgânica, que em seções próprias cuida do tema da articulação administrativa (Seção II, arts. 38 a 49) e do controle stricto sensu (Seção III, arts. 50 a 68). 29.1 Como articulação, já o dissemos, o controle é exercido de forma permanente, objetivando uniformização, alinhamento, direção. Entendido como articulação, o controle busca assegurar a uniformidade, a racionalidade e a coesão política no exercício das competências dos diferentes órgãos e entidades estatais, bem como no relacionamento com os entes de cooperação e de colaboração. A articulação é exercida através dos mecanismos de coordenação e supervisão. 29.1.1 A coordenação, a ser exercida em todos os níveis da Administração, destinase a simplificar, integrar e unificar a ação administrativa. Sua promoção busca promover o compartilhamento de informações em rede, a racionalização no uso de recursos e a unificação de procedimentos, de modo a evitarse a sobreposição de competências e a duplicação de níveis decisórios. Respeitadas a autonomia e as competências do órgão ou entidade estatal, deve ser exercida mediante a atuação dos superiores hierárquicos, com participação das chefias subordinadas e a instituição e funcionamento de comissões de coordenação. Caberá a estas a promoção da racionalização de meios e o intercâmbio de informações relativas aos programas e iniciativas de cada órgão ou entidade envolvida. Com vistas a, de fato, promover a unificação da ação administrativa, o Anteprojeto confere ao Chefe do Executivo, no exame de matéria que envolva diferentes interesses setoriais, a possibilidade de convocar conferência de serviço, que reúna os órgãos e entidades competentes para decisão célere e concertada. Ainda objetivando a integração, o Anteprojeto prevê o dever de as entidades estatais buscarem a composição de conflitos com outras entidades estatais. 29.1.2 Já a supervisão, à qual se submetem os órgãos e entidades estatais, pode ser exercida a partir da hierarquia ou da vinculação. 29.1.2.1 A supervisão hierárquica, exercida no âmbito da Administração direta (v.g., sobre Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital órgãos), compreende a nomeação de dirigentes, a emissão de atos normativos, ordens, o estabelecimento e avaliação de objetivos e metas, o monitoramento das ações, o exercício do poder disciplinar, bem como a cobrança permanente de informações e resultados. É exercida pelo Chefe do Executivo em relação aos órgãos que lhe são diretamente subordinados, pelos Ministros de Estado (e equivalentes, nos demais entes políticos) e pelos dirigentes das pessoas jurídicas administrativas. 29.1.2.2 A supervisão por vinculação, exercida não a partir da hierarquia, mas do vínculo jurídico existente entre entidade supervisionada e supervisor, por sua vez, efetuase sobre a entidade da Administração indireta (pelo órgão a que ela se vincula) e se relaciona à verificação periódica do atendimento de diretrizes governamentais e dos objetos fixados nos atos constitutivos e nos instrumentos ampliadores de autonomia; à prestação de informações administrativas, operacionais e financeiras; à submissão às normas de elaboração, encaminhamento e execução orçamentária e responsabilidade fiscal; à fiscalização de limites e critérios para despesascom pessoal; e à fixação de limites e critérios de despesas com publicidade. A ideia aqui foi estabelecer uma supervisão mais intensa, constante e intrusiva no âmbito da Administração direta (v.g., cobrança de metas e resultados fixados a priori), e uma supervisão menos invasiva e muito mais centrada na ideia de resultados no âmbito da Administração indireta. 29.2 De maneira diversa, como fiscalização, o controle, exercido sobre as atividades dos órgãos e entidades estatais, realizase de forma permanente e objetiva monitoramento, verificação. Essa vertente relacionase ao exercício do controle stricto sensu, de natureza predominantemente corretiva. Como fiscalização, o controle se revela tanto pelo monitoramento das atividades reguladas (de modo a manterse permanentemente informado sobre as condições econômicas e técnicas do setor controlado), quanto na aferição das condutas dos controlados, de modo a impedir o descumprimento de regras e objetivos voltados à implementação de pautas de políticas públicas. O controle fiscalização abarca os aspectos repressivo e reparador. Como correição, é praticado a posteriori e objetiva punição ou saneamento. Como reparação, é desempenhado a posteriori e objetiva ressarcir danos (recompor direitos). IV.2.3 A regra do artigo 13 do DecretoLei nº 200/67 30 O DecretoLei nº 200/67 contém regra própria (art. 13) por meio da qual sinaliza que o controle, a ser exercido em todos os níveis e órgãos da Administração, compreenderá: (i) o controle, pela chefia competente, da execução dos programas e da observância das normas que governam a atividade específica do órgão controlado; (ii) o controle, pelos órgãos próprios de cada sistema, da observância das normas gerais que regulam o exercício das atividades auxiliares; e (iii) o controle da aplicação dos dinheiros públicos e da guarda dos bens da União pelos órgãos próprios do sistema de contabilidade e auditoria. Para além do fato de a regra prever objetos diversos sobre os quais pode incidir (programas, normas que governam atividades específicas e auxiliares, aplicação dos dinheiros públicos, guarda de bens), ela demarca o exercício do controle stricto sensu. Busca monitorar a execução dos programas, a observância das normas, a aplicação dos dinheiros públicos e a guarda de bens. Objetivase averiguar seu exercício e atribuir providências em face de condutas indevidas. A regra do DecretoLei nº 200/67 nos remete ainda a diferentes esferas de controle: a chefia competente, Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital os órgãos próprios de cada sistema e do sistema de contabilidade e auditoria. IV.2.4 Autocontrole 31 O que convencionamos chamar de autocontrole é aquele exercido endogenamente no âmbito da Administração Pública. Ele pode ser dividido em controle interno e controle correicional. Embora ambos sejam exercidos dentro da estrutura da Administração, sem envolvimento de outro Poder, eles são distintos. O controle interno deve ser exercido no âmbito interno ao órgão ou entidade, pela atuação de agentes ou segmentos orgânicos dedicados a exercer atividade de controle. É aquele controle a que se refere o art. 74 da Constituição Federal, e que deve se articular com os órgãos de controle externo. Os diversos órgãos setoriais de controle interno (existentes em cada órgão ou entidade componente da Administração Pública) devem se articular entre si e com o órgão central de controle interno, formando assim o sistema de controle interno. Já o controle correicional é aquele exercido pelos órgãos especializados de auditoria e corregedoria, órgãos estes que têm como atividadefim exclusivamente controlar a ação administrativa de outros órgãos públicos e de seus agentes. Porém, não é correto que o controle correicional se sobreponha ou some, sem clareza de atribuições, com os órgãos do sistema de controle interno. Neste sentido é fundamental que se demarquem nitidamente as competências dos órgãos correicionais, as quais devem se ater às situações em que seja necessária uma apuração específica quanto a alguma conduta. Daí a proposta de sua ação ser fundamentalmente reativa, não ex officio, dependente de provocação interna ou externa aos quadros da Administração. Além disso, de modo a permitir uma maior racionalidade e eficiência na atividade correicional de controle, é também importante instituir oportunidades institucionais de verificação e auditagem dos atos e processos, para fins de identificação de indícios de irregularidades. Para tanto, por exemplo, uma alternativa é se permitirem investigações de ofício quando da divulgação dos relatórios de contas anuais de um órgão. Estas são formas de controle que vêm previstas no Anteprojeto de Lei Orgânica para o exercício do autocontrole dos órgãos e entidades estatais (art. 58). Seu objetivo é avaliar a ação governamental e a gestão dos administradores públicos, e apoiar o controle externo (art. 59). O autocontrole, por seu turno, vem tratado nos artigos 58 a 61. IV.2.4.1 O controle interno 32 No passado o controle interno era fundamentalmente exercido por um sistema de Secretarias de Controle Interno, as CISETs, que o exerciam de maneira centralizada. 33 As CISETs antigas foram absorvidas na estrutura da ControladoriaGeral da União (CGU), órgão do Poder Executivo Federal criado em 2001. Com isso, o controle atualmente está centralizado na CGU. A CGU, no entanto, não centraliza todo o controle, apenas o exercido sobre atividadesmeio, relacionadas à gestão. Sobre elas, a CGU exerce atividades de fiscalização, aprovação, análise etc. No entanto, sobre estas atividades, o controle é exercido de maneira ampla, a priori e a posteriori, o que acaba por conferir ao sistema centralizado um amplo rol de ingerência, seja em relação ao uso do orçamento, à verificação da boa utilização dos recursos, à contratação de pessoal de maneira adequada etc. Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital Nesse bloco de controle de gestão há ainda um outro conjunto de instâncias de controle, centralizadas em relação a áreas específicas. Assim é que, por exemplo, o Ministério do Planejamento centraliza o controle de gestão de pessoal (através da Secretaria de Gestão SEGES), do orçamento (por intermédio da Secretaria de Orçamento Federal SOF) e do tesouro (por meio da Secretaria do Patrimônio da União SPU). 34 De maneira diversa, o controle sobre atividadesfim, que recai sobre políticas públicas específicas, é exercido de maneira descentralizada, por cada Ministério supervisor. 35 Buscando uniformizar os procedimentos de controle, e atento aos problemas práticos que foram verificados na utilização do sistema atual, o Anteprojeto de Lei Orgânica prevê mecanismos de descentralização não apenas das atividadesfim, como também de parte das atividadesmeio, aquelas exercidas de forma preventiva. O exercício do controle preventivo sobre estas passa a não mais ser centralizado na CGU, sendo desconcentrado para os Ministérios. Nesse sentido é que o Anteprojeto estabelece o exercício do controle interno por um órgão central, ao qual compete a normatização e a coordenação das atividades de controle interno, e por órgãos setoriais, aos quais cabem as atividades de fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, e o apoio ao controle externo (art. 60). De outro lado, mantém uma instância centralizada de controle repressivo. A CGU permanece com a competência correicional, cabendo a ela apurar denúncias e irregularidades. IV.2.4.2 O controle correicional 36 O controle correicional centralizado pela CGU em âmbito federal engloba as atividades de correição propriamente dita, a apuração de possíveisirregularidades cometidas por servidores públicos e à aplicação das devidas penalidades, e as de auditorias, que busca assegurar a gestão adequada dos recursos públicos federais. As atividades relacionadas à correição stricto sensu são exercidas pela CorregedoriaGeral da União (CRG) e as relacionadas à auditoria são da atribuição da Secretaria Federal de Controle Interno. 37 No cenário atual de controle, em que a CGU exerce não apenas o controle reativo, como também o controle concomitante e proativo, acaba por haver sobreposição com as demais instituições de controle. Por conta disso, o Anteprojeto de Lei Orgânica a ela confere apenas o controle reativo. Se o interessado faz uma denúncia, ela atua, pelos órgãos de auditoria ou corregedoria, agindo por representação em reação. Deverá ele ser acionado por provocação interna ou externa aos quadros da Administração, não podendo os órgãos de controle correicional instaurar processo de auditoria ou investigação de ofício (art. 61). Para além de com isso evitarse a sobreposição, afastase a possibilidade de bloqueio de ações governamentais, em razão de o exercício do controle muitas vezes pautarse numa perspectiva autonomista e confrontacionista em relação aos instrumentos de ação do Estado. Isso denota uma preocupação com o risco das atividades correicionais intrusivas, que acabam gerando a captura das políticas públicas pelo controlador. Exceção ao exercício do controle de maneira reativa é feita apenas se da análise dos relatórios de atividades que devem ser publicados anualmente pelos órgãos e entidades estatais, indicando as metas e os resultados institucionais alcançados e circunstanciando os obstáculos encontrados (art. 53), surgirem indícios de irregularidades. Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital IV.2.5 O controle das empresas estatais 38 Nas últimas décadas, acompanhando o fenômeno de reestruturação dos Estados, temse assistido a um redimensionamento da atuação das empresas estatais, acompanhado basicamente de dois processos: ora o poder público tem optado por retirarse da exploração direta de atividade econômica ou da prestação de serviços públicos, com a privatização típica mediante a venda do controle de empresas estatais; ora o poder público tem optado por incrementar sua atuação e flexibilizar a gestão das empresas estatais, mediante a adoção de sofisticados mecanismos empresariais (v.g., fusão e incorporação empresarial, joint ventures, acordos de acionistas, contratos de gestão, propriedades cruzadas, grupos societários), caracterizando uma privatização atípica.33 39 O incremento da atuação das empresas estatais e a flexibilização de sua gestão são fundamentais para que elas possam seguir como importantes mecanismos de atuação do Estado na Economia. Mas é necessário que esse processo seja acompanhado do aprimoramento dos mecanismos de controle dessas empresas, em razão de sua importância em prol do atingimento de sua função social (ainda que possa ela ser de obtenção de recursos econômicos ao Estado), e do papel expressivo que elas desempenham na Economia (por exemplo, em razão das muitas compras que realizam por licitação). A necessidade de controle ainda atrelase à utilização pelas estatais de recursos públicos e pelo fato de muitas dessas empresas ora e vez serem atreladas à corrupção que muitas vezes acomete a sociedade brasileira. Bem assim é que, como entidades da Administração indireta, as empresas estatais deverão se submeter à supervisão por vinculação a que dá tratamento o Anteprojeto de Lei Orgânica. A supervisão por vinculação é aquela que se dá não pela ingerência hierárquica, mas fundamentalmente pelo e nos termos do vínculo existente entre a empresa estatal e seu controlador (direta ou indiretamente a Administração Pública). É nos termos deste vínculo (estatuto, contrato etc.) que deverá ser realizada a supervisão. Também sobre elas recairão os mecanismos de controle público (sob a forma de autocontrole e controle externo) e de controle social. 40 De outro lado, porém, um sistema de controle que parta da ideia de estatal competitiva, o que a nosso ver é fundamental, deve ser orientado pela modulação do controle, de modo a que ele não passe a ser entrave ao incremento de sua atuação e flexibilização de sua gestão, para que elas de fato consigam ser competitivas no mercado. A ideia foi a nosso ver muito bem equacionada no Anteprojeto de Lei Orgânica, que prescreve a necessidade de o controle ser compatível com a natureza do órgão ou entidade controlados e com a especificidade da atividade exercida (art. 51). E vai além ao prever regra de controle específica para as estatais (art. 52), que estabelece que o controle das estatais a que se refere o §1º do art. 173 da Constituição (portanto, as que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços) deve ser feito preferencialmente (e, por óbvio, não exclusivamente) por suas instâncias de governança corporativa, observadas as peculiaridades decorrentes da necessidade de concorrência com empresas privadas. IV.2.6 O controle social 41 Em paralelo ao controle exercido pelos Poderes estatais, a atividade da Administração Pública Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital se sujeita ao controle social, conferido aos participantes da sociedade civil (cf. item IV.2, acima). Atrelada à permeabilidade de instrumentos jurídicos voltados à transparência da atividade da Administração, nos últimos anos o controle social tem ganho importância significativa, como forma de os administrados exercerem seu direito subjetivo público à fiscalização adequada das atividades exercidas na Administração. Esse processo de conferência de maior transparência à atuação administrativa vem sendo acompanhado da abertura aos administrados de canais institucionais, espaços que possibilitam sua interlocução com as entidades e órgãos controladores, que atuam buscando representar os cidadãos. Com isso, temos assistido à profusão de mecanismos de participação popular nas atividades estatais (como as audiências públicas, consultas públicas, o direito de petição e a utilização de canais de comunicação, como as ouvidorias) e à institucionalização de organismos de representação da sociedade no cumprimento das funções do ente estatal (como os comitês de fiscalização de atividades). Afora esses mecanismos, o controle social também pode ser exercido de forma reativa, através do mecanismo da ação popular. 42 O texto do Anteprojeto de Lei Orgânica dá tratamento específico ao tema do controle social (arts. 66 a 68), quando então especifica (i) seus objetivos: de aperfeiçoamento da gestão pública, legalidade, efetividade das políticas públicas e eficiência administrativa; (ii) a forma como será exercido pela sociedade civil: por meio da participação nos processos de planejamento, acompanhamento, monitoramento e avaliação das ações da gestão pública e na execução das políticas e programas públicos; e (iii) os meios pelos quais se efetivará: participação em consulta pública ou audiência pública; exercício do direito de petição ou de representação; denúncia de irregularidades; atuação do interessado nos processos administrativos; e participação em órgãos colegiados, na forma da lei. Ainda com vistas ao incremento da participação popular, estabelece que as entidades estatais devem manter ouvidorias ativas (art. 68). IV.2.6.1 O controle social participativo 43 O incremento da participação popular na atividade da Administração Pública34 tem sido exercido em grande parte pelos mecanismos das audiências públicas, das consultas públicas, do direito de petição e das ouvidorias. 43.1 Na legislaçãobrasileira a utilização das audiências públicas vem se firmando ao longo do tempo como forte instrumento de participação popular. Não há propriamente um regime jurídico perfeitamente delimitado, mas alguns regramentos gerais foram dados pela Lei de Processo Administrativo (Lei nº 9.784/99) e por diplomas legais que preveem sua utilização, como a Lei nº 8.666/93 (na fase preparatória do procedimento licitatório para contratações de grande valor e para os contratos de concessão e permissão de serviço público, por força do art. 14 da Lei nº 8.987/95), a Lei nº 8.689/93 (na gestão do Serviço Único de Saúde), a Lei nº 9.478/97 (no processo decisório da Agência Nacional de Petróleo), a Lei nº 9.427/96 (nos processos decisórios da Agência Nacional de Energia Elétrica), a Lei nº 10.257/01 (na definição das políticas públicas) etc. Tem sido forte também o tratamento dado ao tema pelas Constituições estaduais e leis municipais. Tratase de instrumento de participação popular utilizado na fase instrutória do processo decisório, uma sessão pública de caráter não vinculante aberta a todos os interessados na qual se discutem os problemas envolvidos em uma determinada decisão administrativa. Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital 43.2 O procedimento de consulta pública, em termos gerais, diferenciase do da audiência pelo fato de nele inexistirem sessões públicas de debates orais. Tratase de procedimento mais simples, em que, após a divulgação prévia de minutas de atos normativos, abrese um prazo determinado pela Administração para que os eventuais interessados ofereçam críticas, sugestões de aperfeiçoamento ou peçam informações e resolvam dúvidas. Antes de tomar sua decisão e de modo a fundamentar o processo decisório, a Administração documenta as consultas e as responde publicamente. Na legislação, a regra geral foi dada pela Lei nº 9.784/99, que faculta à Administração a convocação de consulta pública em casos de motivado interesse geral. Há ainda regramentos específicos dados, por exemplo, pela Lei nº 9.472/97 (que estabelece a obrigação da Agência Nacional de Telecomunicações em submeter à consulta pública os atos normativos que vier a produzir) e pela Lei nº 10.257/01 (Estatuto da Cidade). 43.3 Dentro do que denominamos de direito de petição englobamos as representações, os recursos (tais como a reclamação administrativa, o pedido de reconsideração, o recurso hierárquico e a revisão) e as denúncias de irregularidades. 43.4 Tem crescido também a utilização do instrumento das ouvidorias como canais de comunicação que possibilitam a mediação entre os cidadãos e os entes da Administração, um espaço para recebimento de reclamações, sugestões e elogios. Nesse sentido é que o Anteprojeto de Lei Orgânica estabelece que as entidades estatais devem buscar mantêlas (art. 68). O ouvidor terá acesso a todos os assuntos e contará com o apoio administrativo de que necessitar, e produzirá anualmente ou, quando oportuno, relatório contendo apreciações críticas sobre a atuação estatal, publicandoo por meio eletrônico e encaminhandoo à autoridade superior. IV.2.6.2 Os comitês de fiscalização de atividades 44 Recentemente, com o objetivo de difundir e incentivar a criação na sociedade de agrupamentos voltados à participação da comunidade na atividade administrativa, com o intuito de fiscalizála, vêm sendo criados (por leis específicas, resoluções etc.) comitês de fiscalização, com atribuições e papéis diferenciados, dependendo do serviço. No setor de telecomunicações, por exemplo, o Regulamento do Serviço Telefônico Fixo Comutado 35 prescreve o dever de a prestadora com poder de mercado significativo organizar e manter em permanente funcionamento conselho de usuários (art. 15), formado por representantes de organizações das diversas classes de usuários e órgãos oficiais de defesa do consumidor. Com caráter consultivo, devem eles se voltar para orientação, análise e avaliação dos serviços e da qualidade do atendimento pela prestadora, e para formulação de sugestões e propostas de melhoria dos serviços. No setor de saúde, a Lei nº 8.080/90 estabelece que as ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde devem obedecer ao princípio da "participação da comunidade" (art. 7º, VIII),36 e nessa linha hoje existem nas três esferas governamentais órgãos permanentes e deliberativos, que reúnem representantes do Governo e dos prestadores de serviços de saúde, profissionais de saúde e usuários do SUS.37 Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital IV.2.6.3 O controle social reativo 45 O grande instrumento para o exercício do controle social de maneira reativa é a ação popular, prevista no art. 5º, LXXIII, da Constituição Federal. Na medida em que por meio dela qualquer cidadão pode pleitear a anulação de ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade e ao patrimônio histórico e cultural, ela acaba por conferir ao cidadão o poder de controlar a Administração, de maneira reativa. Dizemos de maneira reativa em razão da reação do cidadão (pedindo a prestação jurisdicional), em defesa de seu direito subjetivo a ter um governo honesto. Isso não se confunde com o momento em que poderá ser ajuizada a ação, que poderá ser antes da consumação dos efeitos lesivos (pleiteiase a tutela preventiva), ou após ter ocorrido a lesão, de maneira repressiva (visando à anulação do ato e à responsabilização patrimonial do causador do dano). IV.3.7 Diagnósticos sobre a vertente estrutural do controle administrativo: a "autonomização" do controle 46 Ainda que considerada a importância da atuação dos órgãos de controle, a experiência recente permite que sejam feitos alguns diagnósticos em relação ao seu funcionamento. Assistimos hoje a um processo de crescente autonomia do controle, que se manifesta ao menos por dois fatores: (i) o controle tende a ser visto como um fim em si mesmo; e (ii) temse verificado, em linha com uma tendência expansionista dos mecanismos de controle, a articulação das esferas de controle (CGU, TCU, MP, SCI e AGU). 38 Assim é que, em paralelo a esse processo, advém o seguinte questionamento: seria o controle uma instância autônoma de governo? Se, de um lado, refletir sobre o processo de "autonomização do controle" denota uma maior preocupação com o reforço dos mecanismos de controle e com a responsabilização perante o órgão controlador, o que é fundamental para a eficácia de qualquer sistema que se procure adotar; de outro, leva à percepção de que, tal como vem sendo exercido, o controle pelo controle acaba por se afastar do compromisso com seus efeitos, com a responsabilidade política que as instituições de controle devem objetivar. O instrumento de gestão é desconectado da cobrança de resultados, de modo que quem determina como será feita a gestão não tem qualquer compromisso ou responsabilidade com o resultado. Atribuise ao agente de controle um enorme poder, mas ele não responde pela ineficácia da atividadefim. Assim é que o processo de "autonomização do controle" vem acompanhado de alguns problemas, bastante relacionados entre si. 46.1 Primeiro, o déficit de responsividade. O controle hoje se volta mais ao processo e à verificação formal do cumprimento de prescrições legais em detrimento da análise do impacto das medidas adotadas, da efetividade dos resultados. A receptividade ou a frustração das expectativas dos atores sociais em relação à ação administrativa assume importância menor. A defesa da moralidade e do patrimônio público (inegavelmente valores da maior relevância) passa a ser objetivo bastante e suficiente.Evitar o descalabro tornase a única meta a alcançar, ainda que isso leve à total inoperância da Administração. A percepção dessa falha no sistema fez com que o Anteprojeto de Lei Orgânica atentasse para a Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital necessidade de controle finalístico, refletido no art. 53, que prescreve o dever de os órgãos e entidades estatais anualmente fazerem publicar, em meio eletrônico, em linguagem acessível ao cidadão, seu relatório de atividades, indicando as metas e os resultados institucionais alcançados e circunstanciando os obstáculos encontrados. A fim de que os problemas encontrados sejam solucionados, o relatório será analisado pelo órgão central de planejamento, que verificará a observância dos planos e publicará a síntese de suas conclusões. 46.2 Segundo, a multiplicidade de instâncias. Nos últimos anos, assistiuse a uma fragmentação do quadro normativo e institucional das atividades de controle, o que muitas vezes faz com que as competências sejam exercidas de maneira sobreposta e excessiva. Nem sempre, no entanto, a multiplicidade de controles gera eficiência, podendo mesmo, se exercido de maneira randômica e sobreposta, constituir entrave ao bom funcionamento da máquina estatal. 46.3 Terceiro, a captura das políticas públicas pelo controlador. A partir do momento em que se passa a exercer o controle pelo controle, sem preocupação com propósitos e finalidades, bem como com resultados, o controlador acaba por se apropriar da pauta das políticas públicas que se intenciona implementar. Isso acaba por tornar tais políticas vulneráveis a serem capturadas por outros interesses que não aqueles sinalizados no âmbito governamental (envolvendo Executivo e Legislativo), espaço em que devem ser estabelecidas, conjugandose os objetivos e princípios das políticas de Estado previstas em lei ou na Constituição com as metas e orientações de políticas governamentais. 46.4 Quarto, o deslocamento da discricionariedade. Se o controle é exercido sobremaneira ex ante, com a intrusão dos órgãos de controle nas decisões dos gestores, o exercício da discricionariedade pelo administrador público passa a ser substituído pela opção discricionária do controlador, muita vez apresentada sob a roupagem da expertise técnica ou da legitimação apriorística, decorrente do processo de seleção e investidura em cargo público dentro do sistema de controle. Se bem é verdade que as burocracias integrantes do sistema de controle mostramse extremamente qualificadas e capacitadas, o que nem sempre ocorre inclusive pela estrutura das carreiras e contexto remuneratório com outras burocracias da Administração, imputar ao controlador a prerrogativa de fazer opções sobre qual seja a melhor ação administrativa ou a política pública mais adequada apresenta dois graves problemas: de um lado, o déficit democrático, pois tal decisão deve caber a quem é democraticamente legitimado para isso, e não a quem é funcionalmente responsável por verificar a conformidade de tal opção; o segundo problema é ainda pior, pois, assumindo o papel de dizer a melhor opção dentre aquelas facultadas pela margem de discricionariedade, o controlador se desqualifica para controlar tal decisão e sua implementação. 46.5 Quinto, a falta de uniformidade das orientações. A multiplicação de instâncias que exercem atividades de controle assist ida nos últ imos anos nem sempre é acompanhada pela complementariedade de sua atuação. O exercício da atividade de controle muitas vezes de maneira sobreposta e excessiva faz com que inexista uma uniformidade das orientações veiculadas pelos órgãos de controle, o que acaba por propiciar um desenho complexo do arcabouço de controle, mas sem a devida sistematização e definição das atividades desenvolvidas por cada instituição. 46.6 Sex to , a "judicialização" das políticas. Dissemos linhas atrás que para assegurar o cumprimento das finalidades da atuação administrativa é importante que o controle seja exercido sobre políticas públicas, de forma a coibir o abuso e o desvio de poder. Esse controle, no entanto, Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital não pode ser tal que impeça as margens decisórias da Administração Pública na definição das políticas a serem adotadas. 46.7 Sétimo, a apropriação corporativa da pauta de controle. Da forma como vem sendo feito o desenho institucional do controle, abrese uma porta para a apropriação corporativa da pauta de controle, com todas as implicações que disso decorrem, como o risco de sujeição institucional e de oportunismo. V Desafios, críticas e autocríticas 47 Diante dos diagnósticos levantados a respeito do modo como vem sendo exercido o controle no dia a dia da Administração, as diretrizes adotadas no Anteprojeto de Lei Orgânica (art. 50) bem pontuam as balizas que a nosso ver devem orientar um regime geral para o controle da Administração Pública: (i) a supressão de controles meramente formais ou cujo custo seja evidentemente superior ao risco (diretriz já constante do DecretoLei nº 200); (ii) o controle a posteriori, constituindo exceção o controle prévio ou concomitante, que predomina atualmente; (iii) o predomínio da verificação de resultados (ao invés da vertente de gestão hoje prevalecente); (iv) a simplificação dos procedimentos; (v) a eliminação de sobreposição de competências e de instrumentos de controle, a fim de que a multiplicidade de mecanismos de controle não acarrete a sobreposição e, com ela, a ineficiência; (vi) o dever, para os órgãos ou entes de controle, de verificação da existência de alternativas compatíveis com as finalidades de interesse público dos atos ou procedimentos que sejam por eles impugnados; e (vii) a responsabilização pessoal do agente que atuar com incúria, negligência ou improbidade, ou seja, a responsabilização do próprio gestor. 48 Após a divulgação do Anteprojeto em Consulta Pública, sobreveio um manancial de críticas e objeções, a grande maioria enfocando o capítulo do controle. Não era de se imaginar que o tema ensejasse tão apaixonadas manifestações, ainda que considerássemos o ambiente político em que tais críticas se inseriam. Algumas dessas reações cuidaram de virulenta desqualificação à proposta e aos seus proponentes. Outras, porém, cuidaram de oposições ponderadas e consistentes, merecedoras de nossa reflexão. Tomemos como exemplo destas últimas as críticas equilibradas constantes da Nota Conjunta elaborada pela Secretaria Federal de Controle Interno da CGU. Tomemos algumas destas objeções de modo a aclarar pontos da proposta. 48.1 Um primeiro ponto se refere a uma suposta inconstitucionalidade DAC proposta diante do fato de a organização do controle interno de Estados e Municípios ser matéria de competência legislativa destes entes e não objeto de lei nacional. Esta crítica poderia ser aplicável a vários outros pontos do Anteprojeto. Porém, na esteira do que hoje já ocorre com o próprio DecretoLei nº 200, a proposta não tem o condão de conter normas de aplicação mandatória a Estados e Municípios. Como norma de organização, buscase dar um norte para a estruturação da Administração Pública nas demais esferas, incluindo aí as normas gerais e axiológicas do controle (como já se vê nos artigos 13 e 14 do DecretoLei nº 200). Na não percepção desta natureza de norma de organização, aliás, residem diversos outros equívocos residentes em críticas ao Anteprojeto. Frisese que a inconstitucionalidade apontada inexiste exatamente pelo fato de que não pretende o Anteprojeto impor uma estrutura de órgãos ou instrumentos de controle a ser obrigatoriamente observada para as administrações estaduais ou municipais. 48.2 Da mesma espécieé a crítica ao conteúdo da Subseção I, ou seja das chamadas regras gerais. Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital Há que se perceber que estas normas em sua grande maioria contêm princípios a balizar a atividade de controle. Algumas destas normas (por exemplo, o contido no art. 50, I e V) já existem de uma forma ou de outra no ordenamento (leiase o art. 14 do DecretoLei nº 200) há mais de quarenta anos, sem suscitar ódios ou aversões. Pode ser que alguns dois princípios gerais listados no art. 50 mereçam uma modulação quando da sua aplicação para o controle interno ou o controle externo, como ocorre, por exemplo, com a determinação do marco temporal que definirá o controle prévio ou ex post, consoante acima exposto. Isso, porém, não invalida a nosso ver o cabimento deste rol principiológico. 48.3 Não se deve desconsiderar, outrossim, as diferenças entre controle interno e controle externo. Tampouco se deve olvidar que tais estruturas de controle devam ser regidas por legislação própria. Aliás, cremos haver espaço para discussão de uma nova lei orgânica definindo melhor competências, instrumentos e procedimentos para atuação dos órgãos de controle, ao menos no âmbito federal. Não é esse, contudo, o objeto de uma lei geral da Administração Pública. Repisese que, no tocante ao capítulo do controle, o Anteprojeto constitui verdadeira leiquadro, que não tem a pretensão de revogar normas constantes da legislação específica, nem muito menos de disciplinar matéria hoje constante de lei complementar. 48.4 O ponto nodal, presente em praticamente todas as críticas assacadas, diz com a prescrição constante do art. 50, II, do Anteprojeto. Nele vemos o já comentado preceito de dar preferência ao controle a posteriori em detrimento do controle prévio. Acima já expusemos que a demarcação do que seja controle ex ante ou ex post depende de se definir o momento de incidência. É dizer, as críticas pressupuseram que o antes ou depois seriam definidos pela consumação do ato (e, por conseguinte, da prática irreversível da ilegalidade ou do dano ao patrimônio). Daí a infeliz imagem do médico legista, cuja competência depende da ocorrência de morte da vítima. Nada mais preconceituoso. O que se quer com tal preceito é evitar o controle intrusivo na decisão discricionária do agente público, elidir que o controlador assuma para si o papel de fazer opções discricionárias, atuando quase como consultor para prática do ato. Isso não deve ser impeditivo a que se tomem, com o devido sopesamento e cautela, medidas aptas a obstar a consumação de uma ilegalidade ou de um dano ao patrimônio. Dada a leitura feita por diversos críticos, é de se reconhecer que a redação mereça ser aperfeiçoada, sem porém descaracterizar o acerto da proposta. 48.5 Outro ponto criticado à basta, na exata medida em que mal compreendido, diz com o controle de resultados. Aqui surpreende a verdadeira aversão que os agentes de controle têm com qualquer vinculação ao pragmatismo ou compromisso consequencialista. Porém é descabida a crítica de que este princípio serviria para legitimar qualquer desvio ou ilegalidade que resultasse em proveito para a coletividade. Muitos leem o dispositivo constante do art. 50, III, quase como uma reapresentação do nefasto corolário do "rouba mas faz". A crítica não procede. Verificar o resultado é a um só tempo (i) ampliar o escopo de atuação dos órgãos de controle que devem trabalhar também com a análise de custobenefício da ação administrativa (controle de eficiência e efetividade) e (ii) dotar a atividade de controle de alguma responsividade, obrigando a que cada medida adotada no controle seja precedida de um relatório de impacto, no qual sejam perquiridos os efeitos e consequência de sua adoção. Ter compromisso com os resultados (e não pressupor aceitável qualquer ato irregular porque efetivo) é na verdade tirar o controle do autismo institucional e, por conseguinte, fortalecêlo. De mais a mais, não se pode atribuir a este dispositivo uma cláusula de tolerância com a ilegalidade, quando mais não fosse porque nosso Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital ordenamento constitucional isso não admite e a densidade normativa do princípio jamais albergaria estes efeitos. Portanto, tal crítica pode ter apelo de mídia, mas juridicamente não tem consistência. 48.6 A eliminação de competências sobrepostas e de instrumentos de controle redundantes é diretriz bastante clara e objetiva. Tal regra, ademais, é decorrência direta dos princípios constitucionais da eficiência e da economicidade. Detalhar mais o preceito transformaria, aí sim, a normaquadro numa regra mandatória, algo incabível para os propósitos do Anteprojeto. Neste passo, parte das críticas se mostram contraditórias. Foi muito comum nos comentários o argumento de que o Anteprojeto desconsidera o fato de existir um sistema de controle. Ora. É exatamente por ter caráter sistêmico, que não deve haver sobreposições, duplicações e atuação desconexa dentre os entes e órgãos que o compõe. Se algo é conceitualmente equivocado é defender a existência de um sistema cujos entes integrantes sejam desarticulados, atuem de forma randômica e se marcada por um agir autista. Isso pode ser tudo: corporação, agregado, ajuntamento de órgãos. Nunca um sistema. 48.7 Dizse que a natureza do controle interno é preventiva. Há um certo sofisma nisso. A característica essencial do sistema de controle interno é ser permanente. Porém no seu âmbito existem competências de monitoramento e fiscalização (que pressupõe um agir concomitante como ocorre, por exemplo, no acompanhamento da execução orçamentária ou no acompanhamento da consecução de programas). Mas há também competências corretivas, como sói com as atividades de auditoria e correicionais. Portanto, se bem é verdade que o controle interno não é tão reativo quanto o controle externo, também não é correto dizer que o controle intestino deva ser sempre prévio, como que a substituir o administrador público. Aqui parece que a crítica padeceu de uma certa confusão entre preventivo (função de orientação) e prévio (função de antecipação). 48.8 Outra crítica que de início causou espanto é aquela que se voltou ao parágrafo único do art. 50. Espanto, pois o conteúdo desta proposta de norma nos parecia de uma obviedade acaciana. Dizer que o controlador não pode se substituir aos agentes ou órgãos controlados no exercício das competências que lhes são próprias parece uma verdade incontendível. Não obstante, causou celeuma e reação. Ora, se o controlador substitui o controlado naquilo que é seu dever, estará havendo avocação indevida de competências e confusão de funções, pois quem participa do processo de decisão sobre um ato ou medida administrativos não poderá, ao depois, controlar esta mesma ação. Notese que não é correto dizer que os órgãos do sistema de controle interno dão suporte à formulação de políticas públicas. A avaliação feita pelo Controle Interno acerca dos programas e de tais políticas (avaliação justamente e resultados, perquiridora de sua efetividade) deve ser considerada pelos gestores quando da revisão das políticas públicas. Porém isso nunca deve levar ao envolvimento destes órgãos nas decisões políticas de cada órgão controlado. 48.9 Ponto bastante interessante diz com o art. 52, no particular que procura dar caráter preferencial ao controle exercido pelos órgãos de governança corporativa das empresas estatais que concorrem no mercado. Aqui cabe uma autocrítica, no sentido de que tal prescrição é descabida no que toca ao controle externo, sendo melhor o deslocamento deste artigo para fora da subseção das regras gerais. Contudo, não é pertinente a críticaque diz ser irrazoável priorizar o papel das instâncias de governança interna às companhias. Ora, se a lei prevê todo um sistema de controle interno às estatais (conselho fiscal, auditorias, conselho de administração, minoritaristas), não faz sentido não prestigiar estes mecanismos, deixandoos em segundo plano em favor de outras instâncias de controle existentes na Administração direta. Isso é, para mais de fomentar a Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital duplicação de instâncias e mecanismos de controle, caminhar em sentido contrário da autonomia que tais entes estatais precisam ter. 48.10 O artigo 54 não tem a pretensão de atribuir a exclusividade do controle prévio somente aos órgãos de consultoria jurídica. Apenas se está a dizer que estes órgãos devem fazer exame prévio de legalidade e, ao fazêlo, não devem se limitar a inquinar de ilegal o ato, mas contribuir para que a ilegalidade seja escoimada e indicar alternativas dentro da lei para tornar efetiva a ação administrativa. Por outro lado, buscase precisar os limites da responsabilidade destes órgãos e agentes. E o faz em sentido absolutamente deferente à posição mais hodierna do Supremo Tribunal Federal. Dizer, assim, que a responsabilidade deve recair também nas hipóteses de pareceres não vinculantes e ir contra a posição da Suprema Corte. 48.11 A crítica à introdução do conceito de autocontrole é desproporcional e descabida. A denominação é nova justamente para permitir tratar na mesma Subseção dois aspectos distintos do controle intestino (esta palavra seria inapta para um texto legal): o controle interno e o controle correicional. Justamente por serem coisas distintas é que não caberia denominar tudo de controle interno, daí a inovação terminológica. Doutro lado, fortalecer as instâncias não só centrais, mas sim ensejar que existam núcleos de controle interno no âmbito de cada ente da Administração direta. Basta ler o texto proposto para restarem afastados os fantasmas de que o Anteprojeto proporia extinguir os órgãos centrais de controle. A noção sistêmica, tão reclamada, aliás, vem forte no teor do art. 60 proposto. Ficase assim sem entender a razão de propostas que pretendem ver suprimida toda a seção do autocontrole, pois que de inovação nela há muito pouco. 49 A adoção dessas diretrizes num regime geral de controle constitui por si só um desafio contemporâneo. Mas ainda outros são os desafios a serem enfrentados para o aperfeiçoamento do sistema de controle hoje existente, de forma a tornálo mais eficiente e eficaz. 49.1 Um primeiro desafio relacionase ao controle do controlador. Afinal, quem controla o controlador? Como saber se ele está atuando de maneira adequada ou se está tendo um comportamento oportunista? 49.2 Um segundo desafio é a por vezes existente contraposição entre legalidade e moralidade. Por certo um dos objetivos do controle é a adstrição à legalidade, de modo a impedir que a atuação administrativa seja praticada de forma ilegal e a verificar se ao desempenhar suas atividades a Administração respeitou a ordem jurídica. Por outro lado, no entanto, em razão da crescente dificuldade de a conduta administrativa (concreta e para situações específicas) ser determinada pela lei (preceito geral e abstrato), o controle da legalidade não deve ser efetuado de maneira estanque. Deverá ser verificado se o administrador, a partir do comando legal que lhe atribuiu o poder de agir no caso concreto, soube avaliar, pautado na moralidade, entre as várias opções que lhe foram conferidas, quanto ao se, como, quando e em que intensidade manejar os poderes inerentes à sua competência. 49.3 Um terceiro desafio relacionase à garantia da autonomia orgânica e à busca do controle finalístico. Se o controle for exercido de tal forma que retire a autonomia dos entes que integram a Administração, acaba por engessar a máquina administrativa, e o excesso de regras e controles passa a se constituir em entrave ao bom funcionamento da Administração. Por outro lado, assegurandose a autonomia orgânica do ente estatal, o controle deve se deslocar de um olhar prioritariamente voltado para o processo e focado na verificação formal do cumprimento de Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital prescrições legais para um olhar voltado para a análise dos resultados, comprometido com objetivos e efeitos e com a análise do impacto das medidas adotadas. 49.4 Um quarto desafio relacionase ao controle das empresas estatais, que deve ser modelado de forma que elas consigam ser competitivas no mercado, dentro de um contexto de aumento da atuação dessas empresas e flexibilização de sua gestão. 50 Analisar como o controle vem sendo exercido na prática, refletir sobre diretrizes e estratégias de combate aos problemas identificados e sobre os desafios para o aperfeiçoamento das práticas do sistema foram os objetivos que intencionamos alcançar ao longo do presente texto. Cremos que, se adotado, o regime jurídico geral de controle da Administração que intenciona instituir o Anteprojeto de Lei Orgânica que atualmente está em discussão pública constituirá um importante instrumento de aperfeiçoamento do sistema atual de controle. Tratase de uma contribuição para a "nova" reforma da Administração Pública. A bem da verdade, "nova" apenas do ponto de vista legal. Na prática, o DecretoLei nº 200/67, já há tempos superado, incapaz que é hoje de refletir a organização administrativa e mesmo as necessidades e demandas do Estado atual, imaginado que foi para dar as bases da estrutura administrativa do início da segunda metade do século passado, época em que teve importância significativa. Da contribuição, só o tempo dirá quais foram seus acertos e desacertos. Se, tal como as instituições, as prescrições legais também não são cristalizadas ou imutáveis, havendo problemas, sempre existe a possibilidade de implantarem mecanismos de correções e ajustes. 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Boletim de Direito Administrativo, São Paulo, ano VIII, n. 6, p. 363373, jun. 1992, p. 363364. MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. NONET, Philippe; SELZNICK, Philip. Law and society in transition: toward responsive law. 2nd ed. New Brunswiack, New Jersey: Transaction Publishers, 2001. Third printing 2007. PEREZ, Marcos Augusto. A administração pública democrática: institutos de participação popular na Administração Pública. Belo Horizonte: Fórum, 2004. SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. VALLÉS, Juan Manuel Fabra. Articulación organizativa de los diferentes niveles de control en la Unión Europea. Disponível em: <http://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=867486>. Acesso em: nov. 2008. * Agradeço a contribuição de Clarissa Ferreira de Melo Mesquita, advogada e mestranda do Programa de PósGraduação da Universidade de São Paulo, sob minha orientação. A primeira versão deste texto não teria sido possível sem seu auxílio na pesquisa e na sistematização, Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital organização e desenvolvimento de ideias já desenvolvidas por mim em outras oportunidades. Nesta segunda versão do texto, incorporei novas reflexões trazidas no intenso debate que se seguiu à publicação do trabalho da Comissão. A todos que, com críticas ou apoios, somaram neste processo público de discussão, vai também meu agradecimento. Este artigo fará parte da obra MODESTO, Paulo (Coord.). Nova organização administrativa brasileira. 2. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2010. No prelo. 1 O que leva autores como Juarez Freitas a defenderem a ideia de Direito Fundamental à Boa Administração. Por todos, ver: FREITAS, Juarez. Direito fundamental à boa administração pública e o direito administrativo brasileiro do século XXI. Belo Horizonte: Del Rey Jurídica, 2008. v. 19, p. 5 7. 2 O DecretoLei nº 200/67 procurou à sua época alterar o perfil até então existente da Administração Pública, sancionando novos instrumentos jurídicos para auxiliarem a atuação estatal. Sua importância em dar um quadro de organização da Administração Pública foi tão grande que costuma ser lembrado como base para uma Reforma Administrativa (uma segunda reforma da Administração Pública brasileira, nos termos do que nos fala BresserPereira, ou mesmo de uma quarta reforma, como nos dá conta Themistocles Cavalcanti) (Cf. BRESSERPEREIRA. Da administração pública democrática à gerencial. In: BRESSERPEREIRA; SPINK (Org.). Reforma do estado e administração pública gerencial, p. 237). Cf. também CAVALCANTI. A emprêsa pública no direito brasileiro. Revista de Direito Administrativo, p. 4. Era essa, aliás, sua intenção, como se vê da redação de seu objetivo: "Dispõe sobre a organização da Administração Federal, estabelece diretrizes para a Reforma Administrativa e dá outras providências". 3 A Comissão, instituída pela Portaria nº 426, de 6 de dezembro de 2007, do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, foi formada pelo seguinte grupo de trabalho: professores Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Almiro do Couto e Silva, Carlos Ari Sundfeld, Floriano de Azevedo Marques Neto, Maria Coeli Simões Pires, Paulo Eduardo Garrido Modesto e Sergio de Andréa Ferreira. 4 A esse respeito, ver GARCÍA. Rendición de cuentas y control externo. Disponível em: <http://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=981664>. Acesso em: nov. 2008. 5 VALLÉS. Articulación organizativa de los diferentes niveles de control en la Unión Europea. Disponível em: <http://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=867486>. Acesso em: nov. 2008. 6 Além do Livro Branco sobre a Reforma, têm sido importantes no processo de estruturação de um novo modelo de controle na União Europeia a filosofia de controle apresentada pelo Informe de 1992 de COSO (Committee of Sponsoring Organizations of the Treadway Commission), e o plano de ação adotado pela União Europeia em 2006, denominado Public Internal Financial Control. 7 Para um aprofundamento da análise, ver MARQUES NETO. Regulação estatal e interesses públicos. Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital 8 Para um aprofundamento do tema, ver SUNDFELD. Fundamentos de direito público. 9 MEDAUAR. Direito administrativo moderno. 10 A que denominamos em outro texto de republicização. Cf. MARQUES NETO. Regulação estatal e interesses públicos. 11 SUNDFELD. Fundamentos de direito público, p. 2122. 12 Cf. MARQUES NETO. Regulação estatal e interesses públicos, p. 2627. 13 Cf. MARQUES NETO. Agências reguladoras independentes: fundamentos e seu regime jurídico, p. 94. Para um aprofundamento do tema, ver também COMPARATO. Ordem econômica na Constituição Brasileira de 1988. Revista de Direito Público, p. 263276; e BUCCI. O conceito de política pública em direito. In: BUCCI (Org.). Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico, p. 149. 14 Sobre o tema do direito responsive, ver: NONET; SELZNICK. Law and society in transition: toward responsive law, p. 7378. 15 Sobre o duplo papel que cumpre o princípio da eficiência com sua explicitação no texto constitucional, cf. MARQUES NETO. O regime jurídico das utilidades públicas: função social e exploração econômica dos bens públicos. 16 A ideia de eficiência alocativa, cara à Economia, diferenciase de uma eficiência considerada estática na medida em que, partindo do pressuposto de que os recursos podem estar nas mãos de quem faz melhor ou pior uso, busca uma alocação dos recursos de maneira eficiente, de forma que seja dada a eles a melhor destinação possível (ficando eles nas mãos de quem fizer melhor uso). 17 A respeito da possibilidade de as políticas públicas se submeterem ao crivo Judiciário para aferição de sua constitucionalidade, ver COMPARATO. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. In: BANDEIRA DE MELLO (Org.). Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba: direito administrativo e constitucional, p. 343359. Ver também BUCCI. O conceito de política pública em direito. In: BUCCI (Org.). Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico, p. 149, p. 22 et seq. 18 Cf. MEDAUAR. Controles internos da administração pública. Boletim de Direito Administrativo, p. 363364. 19 Sobre a ampliação do controle judicial da Administração, ver MEDAUAR. Direito administrativo moderno, p. 396; DI PIETRO.Direito administrativo, p. 709; MARQUES NETO. Discricionariedade administrativa e controle judicial da administração. In: SALLES (Org.). Processo civil e interesse público, p. 191198. 20 Cf. DI PIETRO. Direito administrativo, p. 691. 21 Cf. MEDAUAR. Controles internos da administração pública. Boletim de Direito Administrativo, p. 366. Por meio das instruções, os superiores expedem normas gerais e abstratas de orientação Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital interna das repartições públicas, prescrevendo a forma pela qual os subordinados devem dar andamento aos seus serviços. As circulares veiculam regras concretas, a fim de que sejam transmitidas ordens uniformes a funcionários subordinados encarregados de determinadas atividades. As ordens de serviços, por sua vez, são utilizadas para se transmitirem aos subordinados determinações relacionadas à maneira como devem conduzir determinado serviço (Cf. BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, p. 408409). 22 Cf. MEDAUAR. Controles internos da administração pública. Boletim de Direito Administrativo, p. 364. 23 "[O sistema de auditoria] acompanha a execução do orçamento, verifica a legalidade na aplicação do dinheiro público e auxilia o Tribunal de Contas no exercício de sua missão institucional" (DI PIETRO. Direito administrativo, p. 692). 24 Vejamse a esse respeito as palavras de MEDAUAR, Odete: "O controle jurisdicional continua a ser o mais importante instrumento de controle da Administração (...)" (Direito administrativo moderno. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 393). Em sentido aproximado, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, ao considerar que juntamente com o princípio da legalidade o controle judicial constitui um dos fundamentos em que repousa o Estado de Direito, afirma: "De nada adiantaria sujeitarse a Administração Pública à lei se seus atos não pudessem ser controlados por um órgão dotado de garantias de imparcialidade que permitam apreciar e invalidar os atos ilícitos por ela praticados" (Op. cit., p. 708). 25 Ver a respeito ARAÚJO. Curso de direito administrativo, p. 1152. 26 Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, discricionariedade administrativa é "(...) a faculdade que a lei confere à Administração para apreciar o caso concreto segundo critérios de oportunidade e conveniência, e escolher uma dentre duas ou mais soluções, todas válidas perante o direito" (Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 66). 27 Cf . RAMOS, El ival da Si lva. Parâmetros dogmáticos do ativismo judicial em matéria constitucional. 289 f. Tese (Titularidade em Direito) Faculdade de Direito, Departamento de Direito do Estado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. 28 Importantes para a ampliação do controle jurisdicional foram as posições marcantes de Seabra Fagundes, Victor Nunes Leal e Caio Tácito (a esse respeito, ver MEDAUAR, op. cit., p. 396). Registrese aqui célebre voto de Seabra Fagundes (então desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte), em caso que se tornou um marco na atuação do Judiciário sobre atos discricionários e no controle contra o desvio de poder. Indo na contramão da praxe dos Tribunais, que costumeiramente declaravam os atos discricionários insuscetíveis de apreciação judicial, o julgado impediu que a Administração Pública, a pretexto de seu poder discricionário em fixar os horários de tráfego de veículos, utilizasse critério arbitrariamente discriminatório para proteger uma empresa de transporte em prejuízo da empresa concorrente e dos usuários do serviço autorizado (Apelação Cível nº 1.422, RDA, v. 14, out./dez. 1948, p. 5382). 29 MEDAUAR. Direito administrativo moderno, p. 396; DI PIETRO. Direito administrativo, p. 709. Sobre o tema, ver também MARQUES NETO. Discricionariedade administrativa e controle judicial Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital da administração. In: SALLES (Org.). Processo civil e interesse público. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 191198. 30 Cf. BINENBOJM. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização, p. 241. 31 O fenômeno é também bem captado por Alexandre Aragão, que, ao tratar da emergência de aparatos administrativos setoriais, chama a atenção para o fortalecimento de corpos intermediários entre o Estado central e os indivíduos, o que teria levado à transformação do Estado em pluralista, caracterizado pela substituição do aparelho estatal central fechado por maiores centros de decisão política (Cf. ARAGÃO. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico, p. 182 et seq.). 32 Cf. MARQUES NETO. Agências reguladoras independentes: fundamentos e seu regime jurídico, p. 125. 33 Cf. MARQUES NETO. Regulação estatal e interesses públicos, p. 137138. 34 A esse respeito, ver PEREZ. A administração pública democrática: institutos de participação popular na Administração Pública. Especificamente sobre os instrumentos de audiência e consulta públicas, ver p. 68178. 35 Anexo à Resolução nº 426/05. 36 A Lei nº 8.080/90 ainda contempla a participação da sociedade civil, por intermédio de entidade representativa, na articulação de políticas e programas de interesse para a saúde não compreendidos no âmbito do SUS (art. 12, caput e parágrafo único), e o direito de as populações indígenas participarem dos organismos colegiados de formulação, acompanhamento e avaliação das políticas de saúde (art. 19H). 37 Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/saude/cidadao/area.cfm?id_area=1036>. Acesso em: set. 2009. 38 Ao longo do presente texto demos tratamento ao exercício do controle por cada uma dessas entidades, faltando, no entanto, demarcar as atribuições que são conferidas no sistema de controle à AdvocaciaGeral da União (AGU). Dentre suas funções, está a de assistir o Presidente da República no controle interno da legalidade dos atos da Administração (Lei Complementar nº 73/93, art. 4º, VIII; Lei nº 10.683/03, art. 12). Um dos problemas a que se tem assistido atualmente relacionase à dificuldade, quase paralisante dentro da Administração, de terse, por exemplo, agentes da AGU como órgãos de assessoramento jurídico dos Ministérios desconectados das obrigações de cumprimento de suas políticas finalísticas, o que por vezes acaba por acarretar a elaboração de uma sucessão de pareceres de que "não pode", sem a possibilidade de os órgãos internos aos Ministérios contraargumentarem. O Anteprojeto de Lei Orgânica procurou solucionar essa situação prevendo um controle prévio de legalidade (hoje inexistente), feito pelos órgãos de assessoria jurídica da Administração, independentemente da análise dos órgãos jurídicos centrais da AGU (art. 54). Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital Como citar este conteúdo na versão digital: Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Os grandes desafios do controle da Administração Pública. Fórum de Contratação e Gestão Pública FCGP, Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010. Disponível em: <http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=66621>. Acesso em: 29 jun. 2015. Como citar este conteúdo na versão impressa: Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico impresso deve ser citado da seguinte forma: MARQUES NETO,Floriano de Azevedo. Os grandes desafios do controle da Administração Pública. Fórum de Contratação e Gestão Pública FCGP, Belo Horizonte, ano 9, n. 100, p. 730, abr. 2010. Fórum de Contratação e Gestão Pública ‐ FCGP Belo Horizonte, ano 9, n. 100, abr. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital Poder de coerção e poder de sanção dos tribunais de contas competência normativa e devido processo legal* Luciano Ferraz 1 Considerações inicias Para Otto Mayer, o direito administrativo é o direito da administração pública 1. A expressão administração pública administração para o público reflete a superação do spoil system típico dos regimes absolutistas, nos quais se verificava a confusão entre propriedade (e poder) estatal e pessoal do soberano. No Estado absoluto, com efeito, "não se conhece a administração pública como atividade distinta; a divisão de poderes é que a faz aparecer com tal feição perante o direito público, pelos limites que lhe põe o Poder Legislativo e pela proteção ou reação que lhe oferece o Poder Judiciário"2. O princípio da divisão dos poderes, ou melhor, da separação das funções estatais 3, é, portanto, o pressuposto político para a existência do direito administrativo, ao passo que o Estado de Direito é seu pressuposto jurídico4. O direito administrativo como ramo autônomo constitui disciplina típica do Estado Moderno, reflexo das revoluções dos Séculos XVII e XVIII sobretudo da Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789. Com efeito, em todos os Estados que assumiram essa configuração, admitese que a administração está vinculada pela regra de direito5. Impõemse limites ao poder estatal, de modo a assegurar o exercício das garantias e liberdades individuais. A busca de uma noçãochave para o direito administrativo ocupou, sistema ticamente, os doutrinadores, em especial os juristas franceses. Prestaramse ao desiderato integrantes das Escolas da puissance publique (Barthélemy), do "serviço público" (León Duguit e Gastón Jéze), do "interesse geral" (Marcel Waline). Entretanto, consoante observa Rivero6, a sistematização do direito administrativo não pôde se dar a partir de uma noção única; esta tendência reducionista somente se explicava pela necessidade de determinar um critério prático para a delimitação da competência do juiz administrativo em França. Deveras, para se conceber o direito administrativo como um sistema lógico e coerente é necessário gravitar em torno de duas noções basilares prerrogativas da Administração e direitos dos administrados (cidadãos) , as quais, não obstante aparentemente contrapostas, servem de edifício único à construção metodológica da disciplina, sustentando o que se convencionou denominar regime jurídicoadministrativo7. No regime jurídicoadministrativo, as prerrogativas da Administração lhe são outorgadas em nome da supremacia do interesse público sobre o interesse particular. As sujeições matizamse na indisponibilidade do interesse público pelo administrador, a quem não é dado escolher livremente os caminhos de sua atividade. A relação entre o administrador e o público configura típica relação de administração, estruturandose "ao influxo de uma finalidade cogente". De fato, administração e propriedade exprimem conceitos antagônicos. Na última, predomina a vontade; naqueloutra, Interesse Público ‐ IP Belo Horizonte, ano 4, n. 14, abr. / jun. 2002 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital predominam o dever e a finalidade. "O fim e não a vontade domina todas as formas de administração"8. Quando a atividade a ser desempenhada pelo administrador relacionase com a aplicação dos recursos públicos, os balizamentos do regime jurídicoadministrativo assumem importância elementar, afinal desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 regra matriz do Estado de Direito , está previsto que "a sociedade tem direito de pedir conta a todo agente público de sua administração" (art. 15). 2 Natureza jurídica do dever de prestar contas As incursões propedêuticas acerca do direito administrativo e do regime jurídicoadministrativo, é fácil perceber, hão de considerarse úteis à análise do tema central da exposição. "Acreditase que o progresso do Direito Administrativo e a própria análise global de suas futuras tendências dependem, em grande parte, da identificação das idéias centrais que o norteiam na atualidade, assim como da metódica dedução de todos os princípios subordinados e subprincípios que descansam, originariamente, nas noções categoriais que presidem sua organicidade"9. Ao Estado, entidade suprema responsável pela regulação e coordenação das atividades essenciais à vida em coletividade, a quem cumpre prover às condições de coexistência de direitos e interesses individuais, coletivos e difusos, nem sempre é dado obter volitivamente condutas positivas ou negativas das pessoas com quem se relaciona. Por esta razão, valendose do ordenamento jurídico, o Estado munese de meios e recebe prestações, estabelece ônus e prescreve restrições com que grava o patrimônio e a ação dos indivíduos. Tais ônus e restrições, mediante os quais o Estado obriga o administrado impondolhe dever de obediência, dão origem a obrigações públicas, em que ele o Estado é o sujeito ativo e este o administrado é o sujeito passivo10. Nas obrigações públicas em geral nas prestações negativas como regra , há caso s em que elas as obrigações nascem unicamente da lei. Noutros casos, que constituem a grande maioria, conquanto a fonte mediata seja a lei, a fonte direta é um ato administrativo que vem determinar ou definir as situações individuais, compreendidas nos termos genéricos dessa lei11. Metaforicamente, é como se a lei gerasse a obrigação e o ato administrativo a registrasse em cartório. O dever de prestar contas afigurase, pois, uma espécie de obrigação pública12 imposta a todo sujeito, pessoa física, jurídica, pública ou privada, que, na qualidade de agente público, tem a seu cargo a gestão de recursos do erário. É este o sentido que se extrai do parágrafo único do art. 70 da Constituição, o qual, como dispositivo legal de primeira grandeza, atende à exigência (também constitucional) de que as obrigações públicas tenham a lei como fonte primária (art. 5º, caput, da Constituição), bem assim dos arts. 71 a 75, que elevam os Tribunais de Contas à condição de principal controlador das finanças públicas. Interesse Público ‐ IP Belo Horizonte, ano 4, n. 14, abr. / jun. 2002 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital 3 Competência normativa dos Tribunais de Contas As competências dos Tribunais de Contas estão dispostas, basicamente, nos arts. 71 e 72 da Constituição. Estas competências, conquanto não possam ser mitigadas pela legislação infraconstitucional, podem ser ampliadas por esta via13. Com efeito, ao legislador desde que respeitados os limites da competência ratione materiae é possível alargar as atribuições das Cortes de Contas, em ordem a que possam melhor desempenhar suas funções. As leis orgânicas dos Tribunais de Contas em geral prescrevemlhes atribuições genéricas para o exercício da parcela que lhes cabe no controle externo da Administração14. Contudo, hipóteses há em que as leis orgânicas não estabelecem minuciosamente todos os detalhes para que a obrigação pública de prestar contas seja adimplida pelo responsável (v.g., prazo, forma, modo, rotinas). Quando isso acontece, tem cabimento a edição de um ato normativo subseqüente15. Assim, os regimentos internos e instruções normativas dos Tribunais de Contas são atos que cumprem o desiderato de estabelecer as situações concretas que dão lugar à obrigação pública de prestar contas. Nesse sentido, podese falar em competência normativados Tribunais de Contas. Aliás, as leis orgânicas destes órgãos são uníssonas em prescrever dispositivos semelhantes ao art. 3º da Lei Federal n° 8.443, de 16 de julho de 1992 (LOTCU), que outorga competência normativa ao TCU, quando dispõe: "Ao Tribunal de Contas da União, no âmbito de sua competência e jurisdição, assiste o poder regulamentar, podendo, em conseqüência, expedir atos e instruções normativas sobre matéria de suas atribuições e sobre a organização dos processos que lhe devam ser submetidos, obrigando ao seu cumprimento, sob pena de responsabilidade." 4 Limites ao exercício da competência normativa dos Tribunais de Contas Os limites para o exercício da competência normativa atribuída a qualquer órgão da administração entre os quais os Tribunais de Contas estão na própria lei a ser regulada. Os atos normativos no Direito brasileiro não possuem vida autônoma, dependem da lei, sendolhes vedado dela desbordar, sob pena de ilicitude. O que se quer significar é que lei e ato normativo diferenciamse não só pela origem (órgão produtor) e pela posição de supremacia da primeira (diferença de grau hierárquico), mas, sobretudo, porque a lei tem o condão de inovar no ordenamento, estabelecendo, alterando ou extinguindo relações jurídicas (desde que acorde com a Constituição). O ato normativo, ao contrário, como fonte secundária do Direito, depende da lei; se inova na ordem jurídica, há invasão de competência, abuso de poder. As hipóteses em que a regulamentação, por intermédio de atos normativos, têm lugar se apresentam quando o texto da lei se mostra insuficiente, incompleto, sendo necessário: a) Interesse Público ‐ IP Belo Horizonte, ano 4, n. 14, abr. / jun. 2002 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital desdobrar seu conteúdo sintético; b) limitar a discricionariedade administrativa, definindo regras procedimentais para a Administração ou caracterizando fatos, situações ou comportamentos enunciados na lei, mediante conceitos legais vagos, os quais, para a exata definição, envolvam critérios técnicos ("normas administrativas em branco")16. Serão estas as hipóteses em que o Tribunal de Contas poderá exercer competência normativa, destacandose como a mais importante a possibilidade de definir regras procedimentais. É onde se enquadram os atos que obrigam os administradores submetidos ao controle dos Tribunais de Contas a enviar periodicamente relatórios, comprovantes, documentos, segundo critérios e prazos determinados. O descumprimento dessas determinações poderá dar ensejo à aplicação de penalidades, conforme será desenvolvido no tópico seguinte, por se tratar de infringência a obrigação pública nascida da lei, mas "registrada em cartório" pelo ato normativo da Corte de Contas. 5 Descumprimento dos deveres e poder cominatório dos Tribunais de Contas Quando a conduta do sujeito passivo da obrigação pública se amolda ao inteiro teor da norma que a define, dáse a execução voluntária da vontade do Estado. Todavia, "quando se dá o choque entre a Administração e o indivíduo, na aferição prática dos pontos em que confinam o poder estatal de exigir e o dever individual de prestação, recusandose o administrado a cumprir suas obrigações públicas, tornase preciso coagilo à obediência. Não seria possível admitir que a ação realizadora do direito, confiada à Administração Pública, ficasse sumariamente entravada pela simples oposição do indivíduo. Tem assim lugar a execução coativa da vontade do Estado"17. O legislador, nesse passo, outorga à autoridade administrativa medidas coercitivas para forçar os destinatários ao cumprimento da obrigação. Tais medidas, imprescindíveis ao desiderato, classificamse em meios diretos de coerção que coíbem o sujeito à realização da prestação em espécie e meios indiretos de coerção que o oneram, sobrecarregando a prestação primeva ou criam para ele o dever de outras prestações pela instituição de novas obrigações (v.g., imposição de multa). "Revestemse, assim, um caráter apenas intimidativo"18. Para o inadimplente no dever de prestar contas ou na remessa de documentações segundo as determinações do órgão de controle, diversos diplomas legais (v.g., leis orgânicas dos Tribunais de Contas e Lei 10.028/00, art. 5º) prescrevem medidas de coação direta e indireta. Há coação direta, por exemplo, na instalação do procedimento de tomada de contas especial, de competência da autoridade administrativa e, excepcionalmente, do Tribunal de Contas (art. 8º da Lei 8.443/92). Há coação indireta na aplicação de multas pecuniárias, que ficam a cargo da própria Corte (v.g., art. 58, II, IV, V, VI, VII, da Lei 8.443/92). Notese que as leis orgânicas dos Tribunais de Contas (v.g., art. 57, § 3º, da Lei 8.443/92) remetem a gradação das penas pecuniária aos respectivos regimentos internos. A definição dos valores dessas penalidades é outra forma de exercício de competência normativa pelo órgão controlador. Interesse Público ‐ IP Belo Horizonte, ano 4, n. 14, abr. / jun. 2002 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital 6 Poder de coerção e poder de sanção dos Tribunais de Contas A possibilidade de aplicação de penalidades pecuniárias pelos Tribunais de Contas não se esgota na ação coercitiva que tenciona obrigar os sujeitos, administradores de recursos públicos, ao cumprimento de obrigações públicas impostas por lei (multacoerção). Há multas previstas nas leis orgânicas e nos regimentos internos destes órgãos que se dirigem mesmo à punição dos infratores (multasanção). É o que se verifica nas hipóteses de julgamento de contas irregulares, com ou sem determinação de ressarcimento, nos termos dos arts. 71, VIII, da Constituição e 57 e 58, I e III, da Lei 8.443/9219. Distinguir as hipóteses em que uma e outra, multacoerção e multasanção, têm lugar é imprescindível. Os fundamentos são diversos e as repercussões no âmbito dos Tribunais de Contas, sobretudo no que respeita ao princípio do devido processo legal, são distintas. As primeiras (multascoerção), repitase, são aplicadas no intuito de forçar o cumprimento do ordenado, aproximandose, na essência, das infrações impostas de Poder Público pelo descumprimento das medidas de polícia administrativa (v.g., multas de trânsito, posturas municipais, meio ambiente); as segundas (multassanção) possuem nítido caráter reparador do dano, com viés estritamente sancionatório20. 7 O Princípio do devido processo legal e a imposição de cominações pecuniárias pelos Tribunais de Contas A Constituição de 1988, ao garantir que ninguém será privado da liberdade ou dos bens sem o devido processo legal, sendo assegurado, ainda, aos litigantes em processo judicial ou administrativo e aos acusados em geral o contraditório e a ampla defesa, com os meio s e recursos a ela inerentes (art. 5º, LIV e LV), alçou ao nível de garantia fundamental o princípio do due process of law em sua face material21. A ampla defesa e o contraditório são corolários da garantia do devido processo legal. Completam se. A ampla defesa sugere a extensão em que deve ser concebido o direito: o adjetivo ampla não quer significar irrestrita, mas indica que ao interessado é dado manifestarse, desde que de maneira lícita, com plenitude no transcorrer do processo. O contraditório apresenta o meio, a forma com que se deve dar a manifestação da defesa, demonstrando a estrutura dialética das situações ativas e passivas em que se vê inserido o interessado ao longo do processo22. Dentro dessa perspectiva, deve ser analisada a possibilidade de imposição de cominações que afetam a ação e o patrimônio dos indivíduos pelos Tribunais de Contas. No particular, o órgão de controle, conquanto detentor de prerrogativas especiais, participa de sujeições impostas pelo regime jurídicoadministrativo. Com efeito, o processo que peranteeles Tribunais de Controle Externo se desenrola se nos afigura, para todos os efeitos, típico processo administrativo, tornando inevitável o respeito às garantias do contraditório e da ampla defesa, nos termos do art. 5º, LV, da Constituição23. Interesse Público ‐ IP Belo Horizonte, ano 4, n. 14, abr. / jun. 2002 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital Contudo, podese estabelecer, no que tange à garantia do contraditório, distinção entre multas coerção e multassanção. As primeiras, por tutelarem o cumprimento de obrigações públicas, assemelhandose às medidas de polícia, permitem o diferimento do contraditório, vale dizer, autorizam a sua instalação depois de consumada a coação. Já as segundas reclamam prévio contraditório para que a sanção a ser imposta seja legítima24. Aos Tribunais de Contas, portanto, é recomendável que, valendose da competência normativa que se lhes outorgam as leis orgânicas, normatizem, mediante atos administrativos próprios, a imposição das aludidas cominações (multascoerção e multassanção), garantindo o contraditório prévio ou posterior, quando se trate de um ou outro tipo. Procedendo dessa forma, exercerão, de um lado, as prerrogativas que lhes são inerentes, enquanto órgãos curadores dos recursos da sociedade, garantindo, de outro, os direitos fundamentais do indivíduo prestador. * Adaptação da conferência proferida no Tribunal de Contas do estado da Paraíba, em 01 de março de 2002. 1 Mayer, Otto. Derecho administrativo alemán, t.1, Buenos Aires : Depalma, 1949, p. 17. 2 Lima, Ruy Cirne. Princípio de direito administrativo, 3.ed., Porto Alegre : Sulina, 1954, p. 21. 3 Conforme destaca Karl Lowenstein: "Lo que corrientemente, aunque erróneamente, se suele designar como la separación de los poderes estatales, es en realidad la distribuición de determinadas funciones estatales a diferentes órganos del Estado. El concepto de 'poderes', pese a lo profundamente enraizado que está, debe ser entendido en el contexto de una manera figurativa. En la seguinte exposición se preferirá la expressión 'separación de funciones' a la de 'seraparación de poderes" (Lowenstein, Karl. Teoría de la Constituitión. Trad. Alfredo Gallego Anabitarte, Barcelona : Ariel, 1964, p. 55). 4 Cuesta, Rafael de Entrena. Curso de derecho administrativo, v.1, 11.ed., Madrid : Tecnos, 1995. 5 Rivero, Jean. Direito administrativo, Coimbra : Almedina, 1981, p. 19. 6 Idem, p. 3742. 7 Cf., por todos, Mello, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, 11.ed., São Paulo : Malheiros, 1999, p. 28. 8 Lima. Op. cit. p. 2023. 9 Mello, Op. cit., loc. cit. Interesse Público ‐ IP Belo Horizonte, ano 4, n. 14, abr. / jun. 2002 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital 10 Fagundes, Miguel Seabra. Controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, 6.ed., São Paulo : Saraiva, 1984, p. 174. 11 Cf. Fagundes. Op. cit., p. 177. 12 A toda obrigação pública corresponde um direito público subjetivo. No caso em tela, o direito público subjetivo de a sociedade obter a prestação de contas do responsável. 13 Ferraz, Luciano. Controle da administração pública, Belo Horizonte : Mandamentos, 1999, p. 142. 14 Sobre o assunto, cf. Ferraz. Op. cit., p. 108 e 142, onde se lê: "O constituinte de 1988 repartiu a competência para o controle contábil, financeiro, orçamentário, patrimonial e operacional da Administração Pública por dois órgãos estatais: o Poder Legislativo e o Tribunal de Contas. Quando o Poder Legislativo atua nesta seara, o faz com o auxílio do Tribunal de Contas, que, por sua vez, recebeu do constituinte competências que lhe são próprias e exclusivas" 15 Do ponto de vista lógico, é cogente falarse em poder normativo da Administração Pública, em vez de poder regulamentar. É que o poder regulamentar é a faculdade conferida aos Chefes do Executivo de expedirem normas gerais e abstratas baseadas em lei, que não esgota a possibilidade de haver outros órgãos na Administração com competência para a edição de normas com as mesmas características. Em suma: o poder regulamentar é espécie do gênero poder normativo da Administração. 16 Cf. Mello. Op. cit., p. 255260. 17 Fagundes. Op. cit., p. 180181. 18 Idem. 19 Nesse sentido, STF RE n° 190.9854/SC, Relator Ministro Néri da Silveira, DJ de 24.08.2001. 20 Cf. Rodrigues, Edgar Camargo. Tribunal de Contas e o poder sancionador, Revista do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, n.65, jan./jun., 1991. 21 Sobre o tema, cf. Dantas, San Tiago. Igualdade perante a lei e due process of law, Revista Forense, abr. 1948, p. 359; Figueiredo, Lúcia Valle. Estado de direito e devido processo legal, Revista Diálogo Jurídico, n.11., fev. 2002, no site www.direitopublico.com.br; ver, ainda, o nosso Due process of law e parecer prévio das Cortes de Contas, Revista Interesse Público, n.6, abr./jun., 2000; BDA, n.4, abr., 2001; Revista Diálogo Jurídico, n.9, 2001. 22 Cf. Ferraz, Luciano. Due process of law..., cit. 23 Sobre o processo administrativo no âmbito dos Tribunais de Contas, cf. Ferraz. Due process of law..., cit. 24 Nesse sentido, cf. Ferreira, Daniel. Sanções administrativas, São Paulo : Malheiros, 2001, p. 22 23. Interesse Público ‐ IP Belo Horizonte, ano 4, n. 14, abr. / jun. 2002 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital Interesse Público ‐ IP Belo Horizonte, ano 4, n. 14, abr. / jun. 2002 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital Novo referencial no Direito Administrativo: do controle da vontade ao do resultado. A juridicização dos resultados na Administração Pública Diogo de Figueiredo Moreira Neto Palavraschave: Políticas públicas. Juridicização. Administração pública. Administração de resultado. Eficiência administrativa. Sumário: 1 Introdução 2 Aperfeiçoando o controle da vontade 3 Introduzindo o controle de resultado 4 Da referência ao Estado de Direito à referência ao Estado Democrático de Direito 5 O aperfeiçoamento da legitimidade pela administração de resultado e pelo seu controle, a que se segue breve conclusão Breve conclusão Referências 1 Introdução A juridicização da política da Administralção Pública. A indagação que não cala nas sociedades contemporâneas é como o Direito deverá tratar a irresponsabilidade na direção políticoadministrativa da formulação e da execução das políticas públicas, ou seja, como o Direito, a velha ciência e arte da convivência pacífica e segura, poderá contribuir para que a política seja efetivamente a verdadeira arte do bemestar dos povos e não um jogo de poder de tiranos, oligarcas, burocratas ou, mesmo, de maiorias radicais. A resposta, embora tardiamente para algumas gerações que viveram as incertezas do século vinte, está chegando com a paulatina juridicização da política, um fenômeno xifópago do fenômeno da politização do direito, como resultado de um longo processo de duas mãos, que só se tornou evidente e ganhou universalidade recentemente, graças à disseminação da informação e ao reviver da democracia, esta, depois de duramente questionada pelas ideologias e pelos governos ditatoriais que dominaram a cena política durante esse "século curto" de Hobsbawn. O dado auspicioso é que, como se pretende apontar neste breve ensaio exploratório, os frutos dessa reversão de expectativas para a política e para a administração já estão começando a beneficiar as sociedades de vanguarda neste início de século, amadurecidos aos ventos outonais das mudanças, destacandose, particularmente, como consectários e respostas à indagação retórica acima lançada, esses três fenômenos entrelaçados: a constitucionalização dos resultados das atividades administrativas do Estado, a juridicização do desempenho dos agentes político administrativos,institucionalmente incumbidos da satisfação dos interesses públicos confiados pela ordem jurídica às entidades estatais, e a conseqüente judicialização do controle de resultados. A ética e a administração de resultados A ética gira em torno de um dilema: o que é bom e o que é mau. Mas o bom pode ser tão somente um préconceito pessoal, como, também, um fato concreto o resultado de uma ação. Na política, coube a Max Weber1 equacionar adequadamente esse dilema, sobre qual seria a justa postura moral do agente público que devesse tomar decisões e administrar interesses de terceiros, ou seja: se lhe bastariam apenas suas boas intenções para justificarselhe a conduta e terseia uma ética da intenção ou se seria necessário que efetivamente ele atingisse os resultados dele esperados e terseia uma ética do resultado. Não obstante, como é de geral sabença, os agentes políticos e administrativos, aqui e alhures, Fórum Administrativo ‐ FA Belo Horizonte, ano 6, n. 67, set. 2006 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital insistem em proclamar com destaque os acertos de suas intenções para encobrir os desacertos e a miséria dos resultados de suas ações... não obstante, weberianamente, a ética que se lhes deva aplicar só possa ser a ética dos resultados pois a ninguém se obriga assumir responsabilidades de zelar e de promover o bem de todos de modo que, se alguém a tanto se abalança por sua livre vontade, decidindo e administrando interesses alheios, é justo que, perante todos os comitentes, este agente responda pela eficiência de seus atos, tal como na vida privada se exige de um procurador ou de um gestor de negócios, que, do mesmo modo, empregam em confiança recursos alheios para satisfazer interesses igualmente alheios. Assim se chega à conclusão de que, nessas condições, se no plano moral o bom resultado é exigível e, do mesmo modo o é no plano do direito privado, com muito mais razão deverá sêlo no plano do direito público, em que os recursos empregados e os interesses a serem satisfeitos não são os do agente e, nem mesmo, dos particulares, mas são os da sociedade, ao que se acresce que as investiduras públicas, que têm os ônus de sua satisfação a seu cargo, tampouco a ninguém são impostas, senão que, voluntariamente assumidas. Desponta a administração de resultado Há algum tempo se vem tratando desse tema, já não mais circunscrito apenas ao plano ético, mas, de um modo ampliado e especializado, em suas aplicações sociológicas, políticas, econômicas e, mais recentemente, jurídicas e jusadministrativas, como, nesta Discipl ina, destacada e proficientemente o tem feito Lucio Iannotta,2 Professor de Direito Administrativo da Escola Superior de Economia e Finanças da Universidade La Sapienza de Roma, apontando, especificamente, na origem das considerações sobre a administração de resultado no Direito Administrativo, as especulações iniciadas na new economy anglosaxônica, entendida como "um modelo... que põe as administrações como fatores potenciais do desenvolvimento econômico", sempre que os governos desempenhem eficientemente os seus cometimentos constitucionais. É trabalhando nesta linha de vanguarda, que expõe, em síntese, aquele autor, que os elementos básicos do Direito Administrativo se encontram em perfeita coerência com as exigências atuais do mundo econômico, pois que um dos pressupostos comuns, fundamentais à teor ia do desenvolvimento, às reformas administrativas empreendidas e ao Direito, é a certeza de bons resultados, notadamente em se sabendo que a implementação das decisões políticas demanda, cada vez mais, um altíssimo grau de competência e de especialização, daí a necessidade de se dispor sob nova forma essa missão pública de tutela jurídica dos interesses das pessoas, como destinatárias, que são, de seus esperados resultados, uma vez que o escopo da justiça no campo do Direito Administrativo não se pode apartar da realização dos direitos humanos fundamentais.3 A primeira visão que se oferece é, portanto, a de que, com a administração de resultado, se trata de ampliar o enfoque de controle de juridicidade, que ultrapasse os clássicos controles políticos de legalidade, instituídos nos processos da democracia representativa, assim como os tradicionais controles jurídicos de legalidade, consolidados nos processos do Direito administrativo, penal e civil, para compreender um amplo controle jurídico de legitimidade com definição constitucional e processamento administrativo. Especulase, portanto, como os novos referenciais do Direito Público, hoje aplicados ao campo do Direito Administrativo, estão abrindo a auspiciosa oportunidade de se encerrar mais um ciclo Fórum Administrativo ‐ FA Belo Horizonte, ano 6, n. 67, set. 2006 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital histórico de controle da Administração Pública e de se iniciar um novo, que superará a longa fase em que seu objeto era apenas a juridicidade da manifestação da vontade na ação administrativa para endereçarse também ao controle, mais extenso, da juridicidade do resultado da ação administrativa. Tal superação é, seguramente, o grande salto de qualidade da Política e do Direito contemporâneos no que concerne à concreta satisfação dos interesses da sociedade cometidos ao Estado, entendida, esta contingência do princípio da eficiência, como uma necessária e inafastável implicação da transformação em curso do Estado moderno o Estado de Direito para o Estado pósmoderno o Estado Democrático de Direito. Esse notável avanço, que se registra, desde logo, na hermenêutica constitucional contemporânea, como implícito na vocação de bem servir que é própria e indissociável da função administrativa cometida ao Estado4 vem aparelhando as sociedades para terem acesso a um tipo ultimado de controle, que não se cinge à mera tutela dos valores contidos no conceito da legalidade tradicional, senão que, indo mais além, se estende aos valores que se compreendem no conceito da legitimidade democrática póspositivista. Resulta, portanto, essa nova postura do controle, do amadurecimento da própria idéia do Direito, tal como brilhantemente empreendida por uma plêiade de grandes juristas do final do século vinte, que, superando o positivismo, que tinha na lei o único referencial éticojurídico e se esgotava no conceito de legalidade, caminhou em direção a um póspositivismo, ainda hoje em construção, que amplia este referencial por obra de uma nova hermenêutica, alcançando, com o conceito de legitimidade, uma visão estendida e integrada da juridicidade. A expansão constitucional no domínio administrativo Essa renovada concepção de legitimidade, operada pela benéfica expansão constitucional das décadas finais do século passado sobre os domínios até há pouco tempo reservados a uma destacada e quase estanque atuação da Administração Pública, então entendida como um "Poder do Estado", nada mais representa que uma conseqüente expansão infraconstitucional aplicativa dos direitos fundamentais, um fenômeno que se vem celeremente disseminando no campo do Direito Administrativo, para fazêlos valer como uma coerente extensão do tradicional poderdever do Estado para realizálos concreta e materialmente. Este renovado e especial aspecto do clássico conceito de poderdever, já havia sido observado e destacado por Peter Häberle5 ao identificar o que denominou de duplo caráter dos direitos fundamentais: de um lado, o aspecto de direito institucional (institutionelle Seite), de consideração mais antiga, como a "garantia constitucional de esferas de vida reguladas e organizadas segundo princípios de liberdade, que por causa de seu sentido objetivoinstitucional, não se deixam enclausurar no esquema `liberdade individual limite à liberdade individual', se revelam à relação unidimensional indivíduoEstado e não se deixamfundar apenas sobre o indivíduo." E, de outro, "um aspecto de direito individual: são `direitos da pessoa'." Esse aspecto de direito individual já havia sido prenunciado por Maurice Hauriou, em seus Princípios, ainda no começo do século passado, como nos dá conta a extensa pesquisa empreendida por Norbert Foulquier, 6 vazada em erudita tese sobre os direitos públicos subjetivos dos administrados, intitulando, provocativamente, o Capítulo em que trata do tema, de "O poder Fórum Administrativo ‐ FA Belo Horizonte, ano 6, n. 67, set. 2006 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital público: uma prerrogativa necessariamente no comércio jurídico". Mas esse renovado conceito, que se derivou do princípio da centralidade da pessoa no complexo juspolítico e como sua própria razão de existência, põe hoje em destacada evidência a função de serviço, que lhe é imanente, anunciada em doutrina sob a designação de Estado de Serviço e sintetizada por Umberto Allegretti em duas expressões: "dever do Estado é o serviço dos direitos" e, por isso, "dos direitos dos cidadãos derivam os deveres do Estado e a missão da administração".7 Alcançamse, destarte, novas e épicas culminâncias nessa histórica "luta contra as imunidades do poder", na feliz expressão de Eduardo García de Enterría,8 cunhada há mais de quatro décadas, como título de sua clássica conferência, pronunciada na Faculdade de Direito da Universidade de Barcelona, em 2 de março de 1962, na qual, com sua habitual mestria, narra esse longo e heróico processo que, em verdade, se desenrola há duzentos anos: praticamente desde o nascimento do Direito Administrativo. É nesse importante ensaio que Enterría aponta como os campos de embate nessa luta, três blocos de atos nos quais se encastelavam os amplos poderes insindicáveis da Administração, como anacrônicos e renitentes remanescentes do poder real os atos discricionários, os atos políticos e os atos normativos e em que afirma em conclusão, à época como voz peregrina, mas hoje já não suscitando maior espanto, que "O poder administrativo é, por si, um poder essencial e universalmente sindicável... mas não é um poder soberano".9 A proposta deste ensaio Portanto, sem pretensões de aprofundamento, embora com a sempre necessária preocupação sistemática, passase a examinar, sob outro ângulo o que se propõe a partir da eficácia constitucionalmente reconhecida aos direitos fundamentais o desdobrar das duas fases dessa "luta", sintetizadas em dois termos destacados no próprio título deste trabalho em que se procurou apresentar o tema, partindo do controle da vontade na ação da Administração Pública para chegar ao controle do resultado da ação da Administração Pública, ou seja, em última análise: tratase da derrubada da última barreira de injuridicidade na gestão dos interesses públicos e da conseqüente abertura à garimpagem do mais novo filão de controle de responsabilidade na ação político administrativa de seus agentes. Assim, em prosseguimento, discorrerseá, primeiramente, sobre o longo caminho em que se foi procurando aperfeiçoar, do ponto de vista do direito, a manifestação da vontade na ação da Administração Pública e atingido o seu amplo controle, para, em seqüência, estudar a promissora introdução do conceito de resultado da ação da Administração Pública e de como se lograr a partir dele o respectivo controle. 2 Aperfeiçoando o controle da vontade Esta primeira fase, portanto, para manter a feliz expressão de Enterría, corresponde à "luta" contra a imunidade do poder travada nos seus três círculos infensos ao controle externo no ato discricionário, no ato político e no ato normativo e superada com a universal consagração de sua ampla sindicabilidade judicial, especificamente dirigida contra a imunidade do poder no exercício da escolha políticoadministrativa, assim considerada, a priori, como aquela apropriada e capaz de Fórum Administrativo ‐ FA Belo Horizonte, ano 6, n. 67, set. 2006 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital satisfazer a fundamental missão estatal de cura dos interesses da sociedade. Nesta fase, o que sobreleva é, pois, a importância de que essa escolha seja teoricamente eficaz, ou, em outras palavras: bastando que se apresente apta para produzir a eficácia jurídica que dela se espera, o que vem a ser, assim, a capacidade de gerar os efeitos a que se destina no plano do direito, o que se dará desde que integralmente satisfeito o iter do devido processo da lei para expressar a manifestação válida da vontade. A esta altura, o direito substancial que possa ter o cidadão à efetividade da ação administrativa, ainda não tem como ser concretamente conotado à ação da Administração, limitandose, por isso, o seu controle, apenas à legalidade da formação e da expressão da vontade administrativa, tal como esta vem manifestada nos atos, contratos e atos administrativos complexos, bem como nos processos que os organizem com finalidades determinadas. Temseno, portanto, assim voltado a um conceito referido notadamente à forma: um controle preponderantemente de legalidade formal. Em outros termos: toda conquista do Direito Público na linha da juridicização da vontade da Administração considerava, então e tãosomente, o quem pode (competência), o para quê pode (finalidade), o como pode (forma), o porquê pode (motivo) e o quê pode (objeto) na manifestação da vontade estatal. Assim é que o Direito Administrativo clássico se desenvolveu vinculado a esses cinco elementos volitivos, produzindo uma rica dogmática do ato administrativo, como a expressão síntese do Estadoadministrador, que se sistematizou nos conhecidos elementos essenciais dessa manifestação da vontade: a competência, a finalidade, a forma o motivo e o objeto. Em suma: só o controle da manifestação da vontade ficava, então, juridicizado nessa primeira f a s e da "luta" , d e m o d o q u e o s agentes públicos respondiam apenas pela satisfação preponderantemente formal desses cinco elementos embora olimpicamente distantes e juridicamente irresponsáveis no que respeita à efetiva satisfação, material e concreta, dos interesses da sociedade , ou seja, a própria substância dos interesses que teoricamente eles se dispuseram a atender desenvolvendo sua ação administrativa. Em suma: como preponderava o que se poderia denominar de uma legalidade formal, não se suscitava, por isso, mais do que uma tutela jurídica fraca, em vez de uma desejável legalidade substantiva, a que seria, esta sim, o objeto de uma tutela jurídica forte, para empregar a expressiva nomenclatura, marcadamente pósmoderna, de Rosario Ferrara.10 3 Introduzindo o controle de resultado A segunda fase corresponde à "luta" contra a imunidade do poder no desempenho administrativo, entendido como o resultado da atividade voltada a atender efetivamente a qualquer das missões que hajam sido constitucionalmente cometidas ao Estado para a cura dos interesses da sociedade, entendidos tais interesses, não importando se difusos, coletivos ou individuais, como uma expansão infraconstitucional aplicativa dos direitos fundamentais. Nos termos de Sorrentino, tratase da avaliação do desempenho dos órgãos do Poder Público destinado a atender "à centralidade da pessoa na constituição" e a satisfazer "o papel de serviço da administração à tutela dos direitos das pessoas", ou seja: ante um revisado conceito de missão estatal, que confere à Administração pósmoderna, nas palavras de Giancarlo Sorrentino,"a Fórum Administrativo ‐ FA Belo Horizonte, ano 6, n. 67, set. 2006 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital dimensão organizativa da solidariedade".11 Nesta segunda fase, portanto, distintamente da anterior, em que a ênfase estava na eficácia, sobreleva agora a importância de que esse desempenhoseja realmente eficiente, vale dizer: que haja efetivamente produzido os resultados visados quando da escolha políticoadministrativa e , desse modo, cabalmente exaurida a finalidade do ato, contrato ou processo em que tal escolha foi decidida. Partese, portanto, da existência de um direito cidadão, de natureza constitucional, não apenas à rigorosa observância da legalidade estrita, mas à satisfação da legitimidade da pretensão juspolítica garantida que têm as pessoas à eficiência; em síntese a uma boa administração. Realmente, como efeito da imanente efetividade reconhecida às normas constitucionais, o antigo conceito de legalidade pode ser hoje entendido com uma dupla referência: primo, à lei, no sentido rousseauniano, que vem a ser a observância da vontade geral emanada das assembléias legislativas e parlamentos, e, secundo, à constituição, como lei das leis e fonte primária, dotada de supremacia, como vontade condicionadora da vontade geral das assembléias e dos parlamentos. Temse, assim, como direta aplicação dessa dúplice referência, que a concepção "legalista" da legal idade não poderia conduzir senão a uma legalidade fraca, enquanto a concepção "constitucionalista" de legalidade, que encompassa a legitimidade própria dos direitos fundamentais, estará apta a definir uma legalidade forte para controlar a ação administrativa, voltando a empregar as expressões de G. Ferrara. Esta legalidade, assim constitucionalmente referida, ou, simplesmente, a legalidade constitucional, vincula toda a ação políticoadministrativa dos agentes públicos aos quais cabe definir a escolha e executála concretamente destinada à realização dos fins da ação administrativa, daí se poder denominála, indiferentemente, de legalidade finalística ou de legalidade de resultado. É, pois, desta concepção de legalidade de resultado que se retira a expressão chave deste ensaio administração de resultado que exprime, na síntese de Lucio Iannotta,12 um de seus monografistas apontado entre os mais destacados, que "o princípio de legalidade implica a aplicação indefectível das normas que dão vida aos bons resultados " (n/grifo); "mas implica, outrossim, a impossibilidade de aplicar normas que dêem vida a maus resultados, isto é, que sacrifiquem bens jurídicos delimitados e definidos, em contraste com aqueles mesmos bens objetivados pelo legislador ou com os protegidos pala Constituição escrita ou, ainda mais profundamente, da instituição republicana" (n/destaques). Como conseqüência, a evolução do controle também avança historicamente nessa linha: partindo dos instrumentos da ação os atos e procedimentos da Administração Pública para alcançar a substância da ação os resultados efetivamente por ela alcançados. E, neste sentido, poderseia até falar de um controle fraco, de legalidade moderna, e de um controle forte, de juridicidade pós moderna. Sob outro enfoque, o que se amplia são os critérios de aferição da juridicização do resultado da administração, ao se considerar, portanto, em acréscimo aos critérios referidos da legalidade fraca, mais os seguintes: quem deve, quando deve e como se deve responder pela efetiva execução da vontade estatal, de assento constitucional. Fórum Administrativo ‐ FA Belo Horizonte, ano 6, n. 67, set. 2006 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital Na vertente anglosaxônica dedicada aos estudos da administração pública, notadamente a conotada à, assim denominada, new economy, esse específico aspecto tem sido tratado como um dever de resposta adequada do gestor público às legítimas demandas dos administrados o que naqueles trabalhos se designa como responsiveness,13 entendida como o atendimento adequado da juridicamente esperada legitimidade da ação do poder público, em complemento da tradicional, mas insuficiente, responsability, que é apenas a regular satisfação da legalidade da ação pública. Com efeito, sobre esta idéia de expectativa dos administrados a uma legitimidade de resultados, produziuse uma ampla literatura sobre o conceito da responsiveness, que a guindou a uma perfeita inserção no contexto mais amplo da administração gerencial, tal como desenvolvida nos Estados Unidos da América a partir dos anos noventa, desdobrandose em novas e criativas considerações sobre a participação do administrado no iter administrativo, notadamente no controle social possível desse desempenho finalístico da Pública Administração. 4 Da referência ao Estado de Direito à referência ao Estado Democrático de Direito A referência original novecentista ao Estado de Direito pressupõe a observância da lei, com todo o conteúdo de juridicidade quanto à substância os valores positivamente assentados da sociedade a serem efetivamente satisfeitos e quanto à forma os valores instrumentais de que o direito se vale para fazer prevalecer os valores substantivos. Para aplicar os valores substantivos há não mais que um crivo e uma vontade a considerar a política, daí desenvolverse toda a tarefa nomopoiética a cargo dos governos, em variadas combinações de poder legiferante positivadas entre seus órgãos parlamentares e executivos, nada mais restando ao aplicador, administrativo ou judiciário, que exclusivamente a eles se ater, sem redução ou acréscimo, operando através da lógica do racional para subsumir o fato na norma legal, tal como recebida da fonte estatal. Distintamente, a referência contemporânea ao Estado Democrático de Direito pressupõe conceituação mais extensa que a da lei ou seja, uma concepção do Direito pois que amplia o conteúdo de juridicidade ao expandir o conceito de legalidade estrita do positivismo, de modo a possibilitar a inserção de novos valores dinâmicos da sociedade em sua aplicação. Dáse, pois, nitidamente, uma extraordinária expansão e enriquecimento de referenciais com a ampliação do crivo jurídico de valores, claramente observável na evolução da hermenêutica dos princípios, que, partindo da exclusiva e original tarefa governamental, própria da democracia formal, chega à ampliada e derivada contribuição societal, própria da democracia substancial, que passa a perfazer uma complexa tarefa de integração da norma legal. Essa tarefa societal, jurídica e não mais política, está constitucionalmente cometida a toda a comunidade de intérpretes autorizados, ainda que estes possam ser formalmente estatais, como o são, tanto os que desempenham funções essenciais à justiça, quanto, os que, com a prerrogativa da definitividade da dicção do direito, desempenham as funções jurisdicionais. É essa dramática ampliação do conteúdo normativo da lei em busca da norma justa que se realiza com sua integração aplicativa para que se alcance o conteúdo normativo do direito a que deve ser considerada como uma tarefa própria da democracia substantiva. Fórum Administrativo ‐ FA Belo Horizonte, ano 6, n. 67, set. 2006 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital Com isso, transcendeuse a herança da democracia moderna, do modelo de Westminster, que cometia apenas aos parlamentos o monopólio da legitimidade da dicção de valores, devendose ao modelo constitucional de Bonn essa concepção extensiva da democracia pósmoderna, que, ao flexibilizar o antigo monopólio, de antigas origens regalengas, passou a reconhecer na comunidade dos intérpretes e aplicadores do Direito a legitimidade necessária para que estes considerem e invoquem novos valores incidentes, bem como os ponderem, quando de sua aplicação, operando, assim, não apenas com a lógica do racional, mas com a lógica do razoável, com a finalidade de se produzir uma final e renovada subsunção do fato à justa norma aplicável, assim obtida pela integração e pela reconstrução processualizada, a partir da sua originária fonte estatal. Como se observa, em razão dessa mudança, o dever de resultado do Estado tornase ajusta contrapartida do direito subjetivo público do cidadão, cuja definição valorativa finalística já não se esgota na formulação das normas legais que expressam políticas públicas em sede parlamentar, nem na sua execução, em sede administrativa, mas passam a exigir a aplicação legitimatória, a ser provida pela comunidade dos intérpretes do Direito, pouco importando se os aplicadores pertençam ou não formalmente, como acima se expôs, ao estamento estatal, porque, enquanto aplicadores autorizados, atuam como intérpretes da própria sociedade. E, do mesmo modo, como se constata, graças a essa ampliação do específico controle finalístico das políticas públicas, ao introduzir um controle jurídico substantivamente societal, hoje se está em vias de superar o tradicional ciclo políticoadministrativo de controle estatal genérico, permitindo, inovativamente, levar a ordem jurídica a alcançar e a sancionar os sempre recorrentes, mas, por tanto tempo, incorrigíveis abusos de poder por omissão de eficiência, de que resultam o baixo desempenho, o desbaratamento e o desvio de recursos públicos e, talvez com maior gravidade social, a imensa frustração dos cidadãos com os políticos, com os governos e quiçá com a própria democracia. Enfim, essa expansão do controle de resultados, tal como aqui apresentada, acrescerá à s possibilidades já existentes e atuantes de cada um dos instrumentos de controle da Política e da Administração Pública e, ademais, sem quaisquer ônus para o Estado uma imensa multiplicação de controles substancialmente societais, a serem capilarmente exercidos por inumeráveis cidadãos e intérpretes do Direito. Este, portanto, é o passo adiante que se fazia necessário o controle de resultados, um controle de legitimidade da ação políticoadministrativa que poderá dar um tão esperado basta aos gastos demagógicos dos governos, aos investimentos inúteis, às obras paralisadas, aos projetos mirabolantes, às benesses com recursos públicos, ao assistencialismo inconseqüente, que vicia e estimula a indolência, e a tantas outras formas de implantar falsas e enganosas políticas públicas, que malbaratam os insuficientes recursos a duras penas retirados impositivamente da sociedade. 5 O aperfeiçoamento da legitimidade pela administração de resultado e pelo seu controle, a que se segue breve conclusão Partase da contribuição italiana, que se inicia nos anos sessenta com as primeiras menções aportadas pela pena fértil do extraordinário Massimo Severo Giannini,14 a que se seguiram, além de outros monografistas, alguns já citados, os da resenha oferecida na obra de G. Sorrentino,15 que fazem expressa referência ao papel de serviço desempenhado pela Administração. Fórum Administrativo ‐ FA Belo Horizonte, ano 6, n. 67, set. 2006 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital Releva ainda, nessa contribuição peninsular, o trabalho na linha democrática, de G. Pastori,16 e, identificando a administração de resultado com a sua contraparte anglosaxônica, a "performance oriented administration", o de M. Cammelli,17 culminando este processo, no ano de 1990, com a edição das leis italianas nº 142, de 8 de junho, e nº 241, de 7 de agosto: duas legislações importantes para, na avaliação que lhes faz Sorrentino, delimitarem no tempo o direito dos cidadãos à satisfação de suas necessidades protegidas, o que vale dizer: radicando "a administração no plano concreto da realidade material".18 Devese, ainda, a essa intensa produção italiana sobre o tema, a explicitação de parâmetros principiológicos próprios para a aferição da juridicidade de resultado, sem os quais a tarefa perde a objetividade desejada para o trabalho de identificação da ausência ou da carência de bons resultados, como os constitucionalmente legítimos. Esses critérios principiológicos tanto podem ser introduzidos pelo enunciado da própria norma legal, como pela interpretação aplicativa, podendo arrolarse, além dos já examinados, como a eficácia e a eficiência, vários outros, em elenco exemplificativo, tais como: a pertinência, a adequação dos meios, o mínimo sacrifício, a funcionalidade, a flexibilidade, a pontualidade, a qualidade, o profissionalismo, o pluralismo, a solidariedade e a razoabilidade. Está implícito, portanto, que a chave do êxito do controle de resultado, na linha do que se expôs, está preponderantemente na participação, pois a sintonia fina da legitimidade dela necessita para que se não pratique uma "justiça" genérica, abstrata e distante, mas uma justiça administrativa, concreta e bem próxima das necessidades das pessoas, daí a observação emprestada de Habermas19 "sobre a necessidade de a administração experimentar e praticar formas comunicativas e processuais capazes de satisfazer as condições legitimatórias do Estado de Direito". É a inda a participação, disciplinada pelo procedimento adequado e por isso, um elemento essencial da assim chamada democracia processual que concorre para reestruturar o direito pela renovação da relação entre as normas e as pessoas, para que não seja mais caracterizada por "uma atitude subalterna e passiva, mas uma atitude referida ao ativismo, à instrumentalidade, para saber ler na norma possibilidade e oportunidade, antes que vinculação e sanção", na expressão de M. R. Ferrarese.20 E, se no passado, no processo administrativo decisório, como bem observou Mário Chiti, a discricionariedade tornava supérflua a participação, atualmente, os termos se inverteram e passa a ser a própria discricionariedade que, para ser adequadamente exercida com o máximo de legitimidade, impõe a participação.21 Finalmente, e como reforço da tese da ampla participação legitimatória do controle da administração de resultado e de sua importância no Direito Público do século que se inicia, vale lembrar que a doutrina acrescentalhe duas outras preciosas vantagens: a primeira, por ser um antídoto ao despotismo da maioria22 e a segunda, por inaugurar um novo modo de tomada de decisões nas sociedades pósmodernas, notadamente naquelas ainda em vias de desenvolvimento, em que os reclamos de legitimidade são mais prementes, embora menos auscultados. Com efeito, tanto a democracia deliberativa a que se deve acrescentar, em complemento, a democracia controladora, poderão encontrar, nas amplas oportunidades que se abrem com a Fórum Administrativo ‐ FA Belo Horizonte, ano 6, n. 67, set. 2006 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital introdução da administração de resultado, o seu mais promissor campo de expressão pósmoderna, reduzindo e até eliminando o distanciamento entre administração e administrado que a natural incapacidade burocrática daquela de operar solitariamente tende sempre a ampliar, com a inevitável distorção dos fatos em causa, das interpretações possíveis e, o que é mais dramático, dos valores em questão. Quanto ao ordenamento jurídico brasileiro, parecer inconteste que, depois da explicitação do princípio da eficiência no texto da Carta Magna,23 há mais do que suficiente fundamento constitucional para afirmarse o dever do bom resultado na atividade administrativa pública. Com efeito, o faltar a esse dever, desatendendo ao que, em contrapartida, se tem como o nítido direito da cidadania à satisfação de seus interesses públicos pelos órgãos do Estado, caracterizaria improbidade administrativa do agente responsável, tal como posto nos artigos 10 e 11 da Lei n° 8.429, de 2 de junho de 1992,24 uma vez que, mesmo tendo sido editada antes da Emenda Constitucional n° 19, a remissão que expressamente se contém ao princípio da eficiência, nela introduzido, passa a integrar a conceituação dos atos de improbidade administrativa por atentarem contra os Princípios da Administração Pública, como se dispõe no próprio título da Seção III do Capítulo II, que trata da definição dos atos de improbidade administrativa.Jessé Torres Pereira Júnior, jurista atento às mutações em curso, ressalta esta peculiaridade 25 observando que o art. 4° da referida Lei (sic) "Os agentes públicos de qualquer nível ou hierarquia são obrigados a velar pela estrita observância dos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade no trato dos assuntos que lhe são afetos" deve ser relido pelo hermeneuta de modo que se lhe inclua o dever de eficiência, o que vem a ser o dever do bom resultado. Breve conclusão Parece intuitiva a conclusão que se retira dessa simples resenha, em que se procurou fazer uma sumária apresentação da administração de resultado e de seu controle, tal como se apresentam no Direito Administrativo pósmoderno, com especial referência feita à adiantada experiência italiana. Assim, sem mais insistir nem acrescentar, mas à guisa de orientação para lastrear uma desejável experiência brasileira em busca de uma disciplina legal de resultados constitucionalmente devidos e, por isso, da ação constitucionalmente legítima dos agentes encarregados de promovêlos, pende se da iniciativa de algumas ações em curto e médio prazo. Em curto prazo, desde logo, impende continuar a definir e a aperfeiçoar os parâmetros para a aferição objetiva da eficiência administrativa; uma tarefa que parte de seu explícito fundamento constitucional, para que difunda o seu regular emprego por todas as entidades e órgãos administrativos do País. Ainda em curto prazo, cumpre programar e realizar encontros, simpósios, seminários e congressos dedicados ao aprofundamento do tema da administração de resultado e d e s e u controle, notadamente com a convocação de especialistas multidisciplinares, em direito, economia e administração pública, interessandoos e engajandoos nessa obra que tem tudo para ser uma revolução branca do Direito Administrativo neste século. Fórum Administrativo ‐ FA Belo Horizonte, ano 6, n. 67, set. 2006 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital Em médio prazo, é necessário pensar afincadamente na produção da legislação aplicativa desses temas para todos os entes públicos da Federação definindo os elementos legitimatórios essenciais desse processo: na abertura de controles nos mais variados processos administrativos e na correlativa abertura da participação controladora da sociedade; tudo, enfim, para que um almejado futuro controle de qualidade de resultado na administração pública nos esteja cada vez mais próximo do presente. Teresópolis, inverno de 2006. Referências ALLEGRETTI, Umberto. Amministrazione Pubblica e Costituzione. Pádua: CEDAM, 1996. CAMMELLI, M. Amministrazione di resultato. In: Annuario apud SORRENTINO, Giancarlo. Diritti e partecipazione nell'amministrazione di resultato. Napoli: Ed. Scientifica, 2003. CASSESE, Sabino. Lo spazio juridico globale. Riv. 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Scientifica, 2003. 1 A remissão, aqui é à obra clássica de MAX WEBER, Politik als Beruf, enfocando a política como profissão, na qual é feita essa distinção da ética própria do político profissional. 2 IANNOTTA, 2006, p. 1. 3 IANNOTTA, 2006, p. 12. 4 Giancarlo Sorrentino (2003, p. 6566) sintetiza essa premissa com mestria na seguinte passagem: "L'attenzione verso le persone e i loro concreti bisogni... alla luce della contituzione adeguata ai tempi e alle moderne esigenze di uma società sempre più complessa e articolata impegna sul piano istituzionale la funzione amministrativa a rinovati (e crescenti) compiti di servizio, costituisce per così dire uma costante della pur eterogenea produzione normativa (legislativa e non) che a partir dall'ultimo decennio del secolo scorso ha profundamente inciso sulla configurazione dei raportti tra cittadino e pubblica amministrazione, portando la più avvertita dottrina ad individuare nelle realizzazione di resultati concreti e materiali... il proprium della funzione amministrativa." (nossos destaques). 5 HÄBERLE, 2003, p. 163164. 6 FOULQUIER, 2003, p. 413. 7 ALLEGRETTI, 1996, p. 1112, n/destaque. 8 GARCÍA DE Enterría, 2004. 9 GARCÍA DE Enterría, 2004, p. 107, n/destaque. 10 FERRARA, 2002, p. 19. 11 SORRENTINO, 2003, p. 27. 12 IANNOTTA, 1999, p. 101. 13 Em minhas (Considerações sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 60) traduzi a expressão inglesa responsiveness por responsividade. 14 Como recorda ROMANO TASSONE, 2001, p. 813 et seq. Fórum Administrativo ‐ FA Belo Horizonte, ano 6, n. 67, set. 2006 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital 15 ROMANO TASSONE, 2001, p. 107 et seq. 16 PASTORI, p. 99 et seq. apud SORRENTINO, 2003. 17 CAMMELLI, p. 107 apud SORRENTINO, 2003. 18 SORRENTINO, 2003, p. 70. 19 HABERMAS, J. apud SORRENTINO, 2003, p. 197. 20 FERRARESE, p. 201 apud SORRENTINO, 2003, p. 194. 21 CHITI, 1977, p. 162. 22 CASSESE, 2002, p. 331332. 23 Emenda Constitucional n. 19, de 4 de junho de 1998. 24 "Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:" (n/destaque, seguindose rol exemplificativo). "Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:" (n/destaque, seguindose rol exemplificativo). 25 Em participação no FÓRUM DE CONTROLEDA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, 3, 2006, Rio de Janeiro. Como citar este conteúdo na versão digital: Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Novo referencial no Direito Administrativo: do controle da vontade ao do resultado: a juridicização dos resultados na Administração Pública. Fórum Administrativo – Direito Público – FA, Belo Horizonte, ano 6, n. 67, set. 2006. Disponível em: <http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=37401>. Acesso em: 29 jun. 2015. Fórum Administrativo ‐ FA Belo Horizonte, ano 6, n. 67, set. 2006 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital O controle de constitucionalidade pelo EstadoAdministração Juarez Freitas Resumo: A Administração Pública tem o dever prioritário de proteger os direitos constitucionais. Tal dever supõe ampliação do autocontrole, respeito às decisões judiciais consolidadas e favorece a afirmação do princípio da deferência. A tarefa de evitar a ação ou omissão inconstitucional é de todos os agentes de Estado e, de acordo com as suas atribuições, representa aspecto crítico do novo Direito Administrativo. Por outras palavras, a constitucionalidade além da conformidade com as regras legais precisa ser assegurada e garantida pelo Estado inteiro, incluída a Administração Pública. Palavraschave: Controle de constitucionalidade. Administração Pública. Direitos constitucionais. Sumário: 1 Introdução 2 Da obrigatoriedade de o EstadoAdministração realizar uma espécie de controle da constitucionalidade: implicações 3 Conclusões 1 Introdução As práticas da gestão pública, à vista da cogência do direito fundamental à boa administração pública, precisam ser sindicadas numa perspectiva propriamente constitucional, isto é, examinadas sob a ótica da conformidade não apenas com o princípio da legalidade, mas com a íntegra dos princípios, dos objetivos e das regras da Constituição. Lógico: tal controle é tecnicamente dist into do controle (di fuso e concentrado) de constitucionalidade exercido pelo EstadoJuiz. Com essa ressalva expressa, tudo recomenda, até para que se respeite o princípio da deferência, que a guarda da constitucionalidade seja entendida como tarefa prioritária do EstadoAdministração, sob pena do alheamento deflacionário das exigências do constitucionalismo de ponta. Desde logo, para evitar malentendido: não se preconiza o controle destemperado da constitucionalidade, empreendido pelo guarda de trânsito, a quem incumbe, antes de mais, cumprir zelosamente as regras, ainda que sem atentar contra os princípios. O que se colima, nesse estudo, é acentuar que, observados os limites intransponíveis das atribuições específicas, a guarda da Constituição não se cinge às Cortes judiciais, embora a elas incumba o controle "último", não necessariamente em sentido cronológico. Imperativo tecer uma rede de controle sinérgico e proativo da constitucionalidade, a cargo do Estado inteiro (hábil a realizar a sindicabilidade sistemática externa, interna, jurisdicional e social da gestão pública, isto é, um controle apto da juridicidade constitucional das decisões administrativas, simultaneamente avesso a automatismos rígidos e à discricionariedade pura).1 Tudo no desiderato de filtrar e, não raro, substituir errôneos condicionamentos omissivistas, arraigados no terreno das relações administrativas. Dito de outro modo, força que o Estado Revista de Direito Administrativo e Constitucional ‐ AeC Belo Horizonte, ano 10, n. 40, abr. / jun. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital Administração coopere, incisa e integradamente, para o bom êxito do controle da legalidade, mas não só. Respeitadas as esferas competenciais, urge que promova, em lugar do culto timorato à obediência, o ensejo de que a Constituição, por assim dizer, administre. Não se trata, está claro, de propor a insurgência usurpatória de qualquer matiz, mas de vivamente realçar que: (a) ao EstadoAdministração incumbe realizar mais do que o controle da legalidade, pois, para ilustrar, nos termos do art. 74 da CF, o controle deve ser de eficiência e de eficácia, o que acarreta novo complexo de deveres fundamentais impostos diretamente pela Constituição, assim os relacionados às áreas de saúde, da educação e do tratamento prioritário às crianças e aos adolescentes (c/c CF, art.227); (b) ao EstadoAdministração cumpre realizar de ofício, nas fronteiras constitucionais, por meio de agentes especialmente qualificados e investidos para tanto, máxime os integrantes das Carreiras de Estado, uma espécie de controle da higidez constitucional dos processos e atos administrativos. Controle que permita, motivadamente e em determinados contextos, até a inaplicabilidade de lei ou de ato administrativo normativo, como decorrência da vinculação maior ao compromisso de tutela da Constituição; (c) ao EstadoAdministração resta incontornável preservar, no âmbito do controle sistemático dos atos administrativos "lato sensu", a ponderada eficácia do direito fundamental à boa administração pública, com a correspondente e proporcional sindicabilidade. Naturalmente, levada na devida conta, sem qualquer emotivismo retórico, a totalidade dos princípios regentes das relações administrativas, aí abrangidos os emergentes princípios da prevenção e da precaução. Nesses precisos e insofismáveis termos, intentase lançar luzes sobre a "guarda da Constituição" fora das armadilhas da "concepção unicêntrica de Estado"2 ou da "constitucionalização exacerbada",3 envolvendo todos os Poderes e a sociedade. Tudo sem prejuízo da persistência do Poder Judiciário, em nosso modelo, na condição de controlador "último,"4 alicerçado em "cláusula pétrea" (CF, art. 5º, XXXV), da qual emanam consequências de vulto, a saber: (i) o controle judicial "último" (nem sempre no sentido cronológico, uma vez que a ameaça à lesão deve ser coibida cautelarmente) faz as vezes de "legislador negativo", contudo em face da inércia inconstitucional (omissão imotivada e injustificável) dos outros Poderes, pode adicionar normatividade ao sistema até o que o outro Poder desempenhe o seu papel constitucional (em boa hora, o Poder Judiciário resolveu, por exemplo, empregar o mandado de injunção para tal fim); (ii) o controle judicial "último" faz as vezes de "administrador negativo", com a missão de escoimar, em tempo útil, todos os vícios administrativos insuscetíveis de convalidação, não obstante a admissibilidade de hierarquização axiológica fundamentada que preserve efeitos até de atos inconstitucionais, à condição rigorosa de que a exceção sirva à efetivação (aparentemente paradoxal) dos objetivos fundamentais da República. Todavia, no caso de omissão desproporcional (antijurídica, por definição) do EstadoAdministração, isto é, perante inércia objetivamente descumpridora dos deveres administrativos, ao Poder Judiciário cumpre diligentemente tomar todas as medidas necessárias para que a tutela seja acatada. A ponto de em situaçãolimite paralisar transitoriamente os efeitos de determinada regra Revista de Direito Administrativo e Constitucional ‐ AeC Belo Horizonte, ano 10, n. 40, abr. / jun. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital constitucional, como a do precatório, com o bloqueio de recursos públicos, consideradas as exigências do caso. Por idênticas razões de fundo, o EstadoJuiz podedeve conceder a antecipação de tutela contra o Poder Público, em prol do princípio da dignidade ou de outro princípio de idêntica estatura. Ainda: podedeve determinar, sem permitir a alegação da simples discricionariedade administrativa ou da reserva do possível sem prova, a matrícula de criança em crechemunicipal,5 haja vista o caráter obrigante, direta e imediatamente aplicável, do direito fundamental à educação. Tratase de o EstadoJuiz emprestar efetividade, sem protagonismo desmedido, ao direito fundamental à boa administração pública, entendido como o direito fundamental à administração pública eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, motivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas;6 (iii) o controle judicial "último" deve, ao máximo, respeitar as decisões dos demais Poderes (em função do princípio da deferência, bem entendido), salvo se insanáveis e claramente7 incompatíveis com o todo do sistema constitucional, assumido o pressuposto ("juris tantum") de que os demais Poderes cuidam (e deveriam cuidar), enérgica e zelosamente, da dignidade do sistema constitucional. Naturalmente sem empregar, em nenhum momento, a deferência como atitude frouxa ou condescendente em face do arbítrio por ação ou omissão relativamente às tarefas impostergáveis do EstadoAdministração. Importa remarcar: a Constituição Federal, entendida sem a falácia (assaz comum) da desintegração,8 deve ser lida como inclusiva em matéria de controle da constitucionalidade, ao estabelecer (CF, art. 23, I) a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para zelar pela "guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas." Por certo, ao assim prescrever, não almeja que tal tarefa se resolva, com exclusividade, no Poder Judiciário, mas no controle de juridicidade constitucional extenso e intenso, eficiente e eficaz, de molde a favorecer, ao menos em tese, resultados legislativos e administrativos em consonância com os objetivos fundamentais da República (CF, art. 3º), isto é, com o pleno resguardo, sem retrocessos, dos direitos "entrincheirados".9 A última assertiva, por suposto, merece acolhida sem os entraves das précompreensões demasiado rígidas ou hiperinflacionadas quanto a riscos de desvios usurpatórios. Com efeito, nada há a estranhar que, numa leitura tópicosistemática,10 o EstadoAdministração exerça o poder dever de controlar a conformidade dos atos administrativos, acima de tudo, em linha com a Constituição, de sorte a imprimir, na vida real, a eficácia direta e imediata do direito fundamental à boa administração pública.11 Há, por outras palavras, expressivo e relevante desafio (ao mesmo tempo, pragmático e deontológico),12 qual seja o de, preservado o papel de controlador "último" do Poder Judiciário, expandir e costurar o movimento de luta13 pela redef inição das funções do Estado Constitucional.14 Eis os acordos semânticos propostos para o presente estudo, concernente à expansão do controle da constitucionalidade, nos limites competenciais, a ser efetuado também pela própria Administração Pública, sem prejuízo do caráter derradeiro, cautelarmente ou não, do controle Revista de Direito Administrativo e Constitucional ‐ AeC Belo Horizonte, ano 10, n. 40, abr. / jun. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital jurisdicional,15 nem do controle a cargo do Poder Legislativo e da sociedade.16 O que preconiza é tão só a serena reelaboração daquelas categorias descendentes do tradicional e ultrapassado modelo fixista de controle da constitucionalidade. 2 Da obrigatoriedade de o EstadoAdministração realizar uma espécie de controle da constitucionalidade: implicações O exercício sistemático do controle constitucional dos atos administrativos17 demanda assimilar, com ousadia racional, vez por todas, que o ordenamento constitucional não se reduz ao império das leis, e se concretiza em nome da sociedade que o legitima. Além do Poder Judiciário, outras esferas estatais de controle mostramse imprescindíveis, conquanto se encontrem demasiado tímidas no mister de combater, no nascedouro, a urdidura fatigante das inconstitucionalidades "dolosas" ou "culposas". Com efeito, romper com esse quadro patológico supõe, como uma das profilaxias relevantes, reduzir os conflitos derivados da antijuridicidade habitual da Administração Pública. Conflitos que produzem torrentes de processos judiciais, às vezes sem duração razoável, agravados pela falta de acatamento, em tempo útil, dos ditames judiciais pelo EstadoAdministração. Nessa medida, assimilada com boafé, a noção alargada de controle da constitucionalidade não implica excesso nem invasão, senão representa avanço potencialmente corretivo da performance estrutural da "maquinaria" do Estado brasileiro. Reconhece que todos os Poderes possuem a missão de realizar (por exemplo, por meio de súmulas administrativas vinculantes como no caso do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), com temperamentos e nos limites das respectivas atribuições, a proteção firme e ativa da Constituição contra os lamentáveis expedientes da burla frontal ou oblíqua. Para i lustrar, tomese, de início, o papel do EstadoAdministração no resguardo da constitucionalidade no bojo do processo administrativo fiscal. Certo, norma federal de regência, Decreto nº 70.235/72 (com as significativas alterações em 2009, notadamente pela inclusão do art. 26A) estatui, "prima facie", que se encontra vedado aos órgãos de julgamento afastar a aplicação ou deixar de observar lei, tratado ou decreto, sob o fundamento da inconstitucionalidade. Contudo, não é menos certo, como se constata no §6º do mesmo dispositivo,18 que tal vedação não se aplica aos casos de lei ou ato normativo que já tenham sofrido declaração de inconst i tucional idade por decisão def in i t iva plenár ia do Supremo Tr ibunal Federal (independentemente da existência de súmula vinculante do STF). Tampouco se aplica a vedação quando se trata de crédito tributário objeto de dispensa legal de constituição ou de ato declaratório do ProcuradorGeral da Fazenda Nacional,19 súmula da AGU20 ou, ainda, pareceres do Advogado Geral da União, aprovados pelo Presidente da República.21 Quer dizer, da boa leitura do texto normativo emerge, cristalina, a inferência de que não é boa a précompreensão de que não se tolera julgamento, no processo administrativo fiscal, com base em inconstitucionalidade. Há expressas exceções. De mais a mais, imperioso até que o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais expeça súmulas vinculantes, que contemplem as situações aludidas, no desiderato da tutela administrativa benigna, econômica e improtelável da Revista de Direito Administrativo e Constitucional ‐ AeC Belo Horizonte, ano 10, n. 40, abr. / jun. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital Constituição. Resta ou deveria restar acima de dúvida razoável, nas hipóteses estampadas no art. 26A, que, "a contrario sensu", fazse obrigatório o julgamento administrativo que proteja, "ex officio", o sistema constitucional via afastamento da aplicação ou inobservância de determinadas regras havidas como categoricamente incompatíveis com a Constituição, observadas as cautelas da maturidade. No entanto, sem leniência. Desse modo, ainda que em face da ausência de súmula vinculante do STF a respeito, inquestionável a vinculação do EstadoAdministração às decisões definitivas plenárias do STF (salvo resistência devidamente motivada) e, simultaneamente, o dever de produzir súmulas administrativas e pareceres que disponham sobre matéria de constitucionalidade, nos moldes e limites traçados. Ora bem, qual o nome disso? Controle da constitucionalidade, por meio de juízo emitido pelo próprio EstadoAdministração no bojo de processo administrativo, no qual se impõe, com reserva e comedimento, a inaplicação de lei ou decreto por vício de estridente afronta à Lei Maior. Portanto, temse, como deflui do elucidativo exemplo, de intensificar, com translucidez, a guarda da constitucionalidadepela própria Administração Pública, em sentido lato. O que supõe o fim da omissão lesiva, no tocante à consecução daqueles atos de defesa imunológica dos princípios, dos objetivos e dos direitos fundamentais, inclusive na intimidade do organismo administrativo. Nessa trilha, convém trazer outro exemplo esclarecedor: por se tratar de uma das carreiras de Estado, a Advocacia Pública da União não deve defender ato normativo incorrigível e insanavelmente inconstitucional (esgotadas as tentativas de "interpretação conforme"), ao se manifestar, obrigatoriamente, no processo objetivo de controle da constitucionalidade. Bem verdade que a dicção literal do art.103, parágrafo 3º da CF, estabelece: "Quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará, previamente, o AdvogadoGeral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado." Entretanto, para além do literalismo e do originalismo estrito,22 a melhor intelecção do dispositivo corre no sentido de que o AdvogadoGeral da União defenderá o ato impugnado somente quando o ato for defensável, à base da Constituição. Do contrário, correria o risco de resvalar irracionalmente para o inaceitável servilismo a propósitos secundários, num fluxo ruinoso de desprestígio dos desígnios constitucionais. Tal exemplo corrobora, de modo robusto, a obrigatoriedade do compromisso estratégico dos agentes de Estado com a precípua "guarda da constitucionalidade", com independência em face dos apelos políticos imediatos, eventualmente interessados na produção ou na mantença de dispositivos viciados. Não por acaso, em sintonia com essa visão expansiva do controle da constitucionalidade, útil recordar que o próprio veto presidencial a projeto de lei pode/deve ocorrer também por razões eminentemente constitucionais (CF, art. 66, par. 1º). Tratase de modalidade do controle preventivo de constitucionalidade, a ser responsavelmente incrementado. Serve de argumento adicional de que incumbe a todos os Poderes a decidida tutela da constitucionalidade, em respeito ao art. 78, da CF, ao determinar que o Presidente e o VicePresidente da República, na posse, Revista de Direito Administrativo e Constitucional ‐ AeC Belo Horizonte, ano 10, n. 40, abr. / jun. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital prestem o compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição, além de observar as leis. Consolidando: o controle "lato sensu" de constitucionalidade não é, tampouco seria plausível cogitar que fosse, uma exclusividade das Cortes judiciais. Nesse horizonte, impõese, sem titubeio e meias palavras, cristalizar, a pouco e pouco, uma nova cultura (cognitiva e volitiva) propícia ao desenvolvimento das instituições republicanas de Estado, responsáveis pelo combate ao cortejo dos vícios ligados ao passivismo inconstitucional. Para além disso, a opção do constituinte pelo "controle externo" quanto à legitimidade e à economicidade dos atos administrativos, em vez de adstrito à legalidade, representa outro incontestável argumento a favor da necessidade de dilatação do controle da constitucionalidade, no sentido aqui esposado (CF, art. 70). No mesmo diapasão, na seara do "controle interno", consoante os ditames do art. 74, II, da CF, os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de forma integrada, sistema de controle teleologicamente orientado, não apenas para comprovar a legalidade, mas para "avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e entidades da administração federal, bem como da aplicação de recursos públicos por entidades de direito privado". Vale dizer, a Constituição, com nitidez, determina integração na tutela eficiente e eficaz da sanidade constitucional dos atos administrativos. Vigilância larga a ponto de abarcar os princípios constitucionais da eficácia e da eficiência, da prevenção e da precaução. Dito em outros termos, aos controles (interno, externo e jurisdicional) impõese a observância do princípio constitucional da eficácia, não propriamente no sentido de aptidão para produzir efeitos no mundo jurídico, senão para determinar resultados compatíveis com os objetivos fundamentais da República (CF, art. 3º). Dito numa sentença: querse a instauração do controle eficacial da constitucionalidade dos atos administrativos, acima (não em detrimento) da legalidade. Bem pensadas as coisas, uma abordagem includente em termos de tutela da constitucionalidade deriva de relevantes pressupostos de fundo, designadamente: (a) a omissão no cumprimento diligente da guarda eficacial direta e imediata da Carta pelo EstadoAdministração pode ocasionar danos juridicamente injustos, ainda quando não configure violação às regras infraconstitucionais; (b) se e quando todos os Poderes de Estado, sem exceção, observarem os deveres respectivos de guarda da constitucionalidade, estimase provável a observância concreta do princípio da deferência, segundo o qual as decisões de cada Poder devem ser respeitadas, desde que não colidam, direta ou indiretamente, com a Constituição; (c) força perceber que, precisamente por efetuar espécie de controle da constitucionalidade, nos limites de suas atribuições, o EstadoAdministração (em sentido lato) tem de acatar, prontamente, as decisões definitivas ou pacificadas do Poder Judiciário, mormente em sede de pronunciamentos concentrados ou objetivos, nos quais inexiste, a rigor, a clássica contraposição das partes. Todavia, igualmente se vincula ao decidido, em definitivo, em sede de controle difuso, isto é, quando houver decisão plenária definitiva do STF (independente da sustação da execução da lei pelo Senado).23 Quadra sublinhar que o pressuposto (c) afigurase consectário da ideiaguia de que o Estado Revista de Direito Administrativo e Constitucional ‐ AeC Belo Horizonte, ano 10, n. 40, abr. / jun. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital Administração, não obstante a independência dos poderes, encontrase vinculado à orientação do controlador "último", não apenas na hipótese da súmula de que fala o art. 103A da CF, que ostenta o "efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal". É que, apesar de tal súmula ter, entre os seus objetivos, a interpretação e a eficácia de normas determinadas (acerca das quais haja controvérsia entre órgãos judiciários ou entre esses e a Administração Pública, de molde a acarretar grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica), verdadeiramente ela não exaure as hipóteses de vinculação. Ainda mais ao se assumir o imperativo de guarda da constitucionalidade pela própria Administração Pública. Com efeito, uma das hipóteses de vinculação, independentemente dessa súmula, reside expressamente no art. 102, da CF, §2º, segundo o qual as decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.24 Naturalmente, na seara concentrada de controle judicial da constitucionalidade, o afastamento do mundo jurídico da norma considerada nula é, regra geral, imediato, em face de mácula fulminante. Cumpre ser escoimada, por inteiro, pelo "legislador negativo", tirante as exceções de modulação, diferimento ou mitigação dos efeitos declaratórios da inconstitucionalidade. Modulação, contudo, que, digase de passagem, pode acontecer, justificadamente, em todo e qualquer processo de controle da constitucionalidade, não apenas no concentrado.Então, notadamente à vista dos princípios da confiança legítima e da segurança das relações jurídicas, a Administração Pública não pode praticar atos com arrimo numa regra considerada inconstitucional pelo STF, toda vez que, em definitivo e de modo plenário, suceder uma decisão declaratória do vício, ressalvadas as modulações. Impende registrar que a vinculação jurisprudencial, no Brasil, é fenômeno indesmentível. Notese, novamente com o desiderato ilustrativo, que: (a) a teor do art. 741, parágrafo único, do CPC, na execução contra a Fazenda Pública, os embargos poderão versar sobre inexigibilidade do título, considerado também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação das leis (ou dos atos normativos) tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal;25 (b) nos termos do art. 475, parágrafo 3º, do CPC, não se procede o reexame necessário da sentença proferida contra a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município, e as respectivas autarquias e fundações de direito público, que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução de dívida ativa da Fazenda Pública (art. 585, VI, do CPC). O que importa realçar: segundo o §3º, também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal ou em súmula deste Tribunal ou do Tribunal Superior competente; Revista de Direito Administrativo e Constitucional ‐ AeC Belo Horizonte, ano 10, n. 40, abr. / jun. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital (c) na linha do ineliminável caráter vinculante da jurisprudência superior pacificada (embora diverso, em alguns dos seus efeitos, quando houver súmula vinculante),26 cumpre citar o art. 518 do CPC, consoante o qual interposta a apelação, o juiz, declarando os efeitos em que a recebe, mandará dar vista ao apelado para responder, porém não receberá o recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula (não necessariamente vinculante) do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal. Tais ilustrações, somadas ao exemplo do art. 26A, introduzido pela Lei nº 11.941/09, são mais do que suficientes para provar que existe efeito vinculante da jurisprudência, mesmo nos casos em que não se verifica o ensejo à reclamação. E mais: mister acatar esse caráter vinculante, exceto quando manifesta e teratologicamente equivocada a senda pretoriana e, se tal se configurar, consentida a resistência devidamente motivada. Por outras palavras, o EstadoAdministração, ao acatar, avisadamente e em tempo útil, as decisões "últimas" do Poder Judiciário, deixa de engendrar o pesadelo de custosos conflitos intertemporais, provocados pelo excesso de litigiosidade no trato dos assuntos administrativos. Erro grave que conspira contra o estável e isonômico Estado Democrático, o qual supõe, vez por todas, o domínio sobre impulsos particularistas e subalternos. Nessa linha, merece registro, de passagem, Parecer da Procuradoria da Fazenda Nacional,27 no qual se consigna: "O precedente judicial, oriundo do STF/STJ, formado nos moldes dos arts. 543B e 543C do CPC ostenta uma força persuasiva especial e diferenciada, de modo que os recursos interpostos contra as decisões judiciais que os aplicarem possuem chances reduzidas de êxito. Assim, critérios de política institucional apontam no s e n t i d o d e q u e a p o s t u r a d e n ã o ma i s a p r e s e n t a r q u a l q u e r t i p o d e r e c u r s o (ordinários/extraordinários), nessas hipóteses, é a que se afigura como a mais vantajosa, do ponto de vista prático, para a PGFN, para a Fazenda Nacional e para a sociedade. Nessa mesma linha, também não há interesse prático em continuar contestando pedidos fundados em precedentes judiciais formados sob a nova sistemática." Nesse caso, é como se a guarda da juridicidade constitucional, efetuada pela própria Administração, colaborasse para a tarefa de dizer não aos apelos contrários à racionalidade e à funcionalidade do sistema jurídico. Decerto, isso não significa endosso à imposição autoritária, de cima para baixo, da jurisprudência dominante. Não se confunda, por obséquio, o até aqui sustentado com a defesa acrítica e cega do efeito coativo dos precedentes judiciais. Não é nada disso que se propõe. O conteúdo dos precedentes restará, sempre e sempre, submetido ao inafastável controle judicial e à revisão cabível, sob provocação, exatamente como sucede em relação às leis. Mais: em nosso sistema, todo juiz é juiz constitucional. Não se pode jamais cercear o julgador no razoável desempenho da sua missão de controle da constitucionalidade. Com efeito, a mantença do controle difuso revelase imprescindível à formação da ambiência de internalização dos princípios fundamentais da Lei Maior, em lugar do carcomido e servil legalismo estrito. Depois, força sublinhar que o ato de interpretar e de aplicar os precedentes requer, acima de tudo, uma permanente hierarquização axiológica, de sorte que não subsiste plausibilidade para qualquer gélida subsunção estatutária ou axiomáticodeterminística, justamente porque aos juízes permanece conferido o dever de, fundamentadamente, culminar a positivação do Direito vigente. Revista de Direito Administrativo e Constitucional ‐ AeC Belo Horizonte, ano 10, n. 40, abr. / jun. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital Nesse ponto específico, aliás, não se consubstancia diferença nuclear entre os sistemas da "commonlaw" e o romanísticocontinental,28 a despeito de outras diferenças óbvias. De maneira que o "precedente vinculante" é sempre, no mínimo, questionável, pois o juiz mantém a liberdade para dizer acerca da incidência, ou não, daquele enunciado ao caso vertente, embora observe os precedentes, na maioria das vezes. Em nosso modelo, cada juiz está livre para motivadamente questionar, se entender adequado, a constitucionalidade das decisões judiciais pacificadas. No entanto, a postura consequencial esclarecida (dos juízes e, por suposto, dos administradores), como regra, deliberará a favor do precedente, isto é, da previsibilidade do sistema contra a volatilidade que debilita a tutela jurisdicional dos direitos fundamentais e a guarda efetiva da Constituição. Tudo considerado, a vinculação do administrador público às orientações constitucionais precisa acontecer, acima de outras considerações, como resultado do burilamento das mentalidades 29 e com vistas a ganhos reais na qualidade eficacial da gestão pública. Por uma gama considerável de motivos. Oportuno retomálos, nesse passo. Em primeiro lugar, (a) para que se crie um clima cultural favorável à dimensão civilizatória da Carta e do próprio fortalecimento esclarecido do "judicial review,"30 a serviço dos direitos fundamentais, numa firme contraposição ao alastramento das poluentes inconstitucionalidades dolosas ou culposas.31 A seguir, (b) porque se revela imprescindível reduzir a litigiosidade, não raro, fundada contra o EstadoAdministração, que congestiona a pauta judicial. De mais a mais, no plano das ponderações de ordem sociológica, indispensável reconhecer que o resoluto acatamento das decisões judiciais pela Administração Pública, por si, já desafogaria, sem celeuma, os nossos Tribunais. De fato, a Administração Pública converteuse numa gigantesca e tentacular demandante ou demandada, com a correlacionada erosão da confiabilidade dos agentes públicos. Depois, (c) porque o laço voluntário e de ofício com a Constituição abre espaço para o redesenho do EstadoAdministração menos conflitivo e mais predisposto a adentrar no campo do Direito Administrativo guiado pelo direito fundamental à boa administração pública. Vale dizer, voltadoa resolver os conflitos, preferencialmente na seara administrativa, sem desperdiçar valiosas energias que melhor estariam destinadas à arrecadação, à cobrança da dívida ativa e, sobretudo, às tarefas prestacionais e ao equipado cumprimento das tarefas regulatórias. Ainda: porque (d) o EstadoAdministração, desde que engajado legitimamente na salvaguarda da constitucionalidade, tende a respeitar e a ver respeitado o princípio da deferência, no sentido de, sobretudo em matéria de regulação (atividade administrativa mais de Estado do que de governo), afirmar o acolhimento, na prática, da presunção qualificada de legitimidade constitucional dos atos administrativos. Algo relevante, porquanto hoje, a despeito do que reza a técnica, habita nas mentes a inconsciente recusa dessa presunção. Recusa, até certo ponto, compreensível, mas que gera pleonasmos viciosos em matéria de controle. Deveras, uma vez conquistada e erguida a harmonia entre os Poderes em concerto no qual inexista lugar para superioridades (apenas distinções funcionais) e em que todos estejam, a seu modo, igualmente compromissados com a guarda da Constituição32 reunirseão as condições mínimas para instaurar a vivência alargada Revista de Direito Administrativo e Constitucional ‐ AeC Belo Horizonte, ano 10, n. 40, abr. / jun. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital do discurso constitucional.33 Ademais, (e) a tardança em respeitar a Carta mostrase contrária à duração razoável dos processos administrativos e judiciais, e se revela tenebrosa, especialmente para os cidadãos vitimados pela síndrome das vitórias com sabor amargo. Vencem e não levam, em tempo útil. Nesse aspecto, a calhar, os eventuais atos praticados pela Administração Pública em juízo, em linha discrepante com a boafé processual, configuram inaceitável abuso de defesa ou se revelam inadmissível tática protelatória (art. 273, II, do CPC), sem embargo do enquadramento possível na hipótese de dano irreparável ou de difícil reparação (CPC, art. 273, I). Em quaisquer das hipóteses, podese cogitar até da antecipação da tutela contra o Poder Público,34 injustificável qualquer estreiteza na intelecção das restrições normativas.35 Por fim, importa assimilar e difundir que (f) a vinculação jurisprudencial dos agentes públicos aparece, ao mesmo tempo, em face das "definitivas" decisões tomadas no controle difuso e no controle concentrado, uma vez que a jurisprudência representa, também entre nós, o momento culminante da positivação do Direito. Justamente por isso, impende reiterar que a jurisprudência iterativa dos Tribunais fonte material do Direito Administrativo, por excelência (desde os seus primórdios) , vincula o administrador público, e não somente as súmulas vinculantes. Tampouco é ocioso assinalar que o princípio da moralidade exige que a Administração Pública atue de modo a fazer universalizável a conduta de respeito à confiança legítima nas instituições. Não se admite que o EstadoAdministração dê o péssimo exemplo de litigância de máfé ou de maneirista descaso pelas decisões do Poder Judiciário, "em definitivo", seja no controle incidental, seja no controle concentrado. Tal descaso representa franco e procrastinatório manejo de expedientes destinados a não honrar os ditames da lealdade e da boafé. Tratase, em várias situações, de lastimável e explícita ofensa à dignidade da jurisdição (CPC, art. 14: Contempt of Court).36 Prática que só tem feito onerar, ainda mais, o erário e aumentar a percepção dos riscos associados às relações de administração, algo que intoxica o ambiente dos negócios e inibe o crescimento sustentável. Operam, em amálgama, tais argumentos (a) a (f) nada antinômicos, designadamente para quem compreende o modo de operar e de aplicar o Direito Administrativo, cuja vinculação direta e imediata ao direito fundamental à boa administração pública implica a incidência plena do plexo de princípios constitucionais regentes das relações de administração. De conseguinte, sem negligenciar em nada os afazeres do servidor público, indispensável reservar preciosa e diligente atenção para aquilo que merece o seu cuidado primordial, ou seja, a proteção simultânea do interesse público e dos direitos fundamentais (notadamente do direito fundamental à boa administração). Afinal, o cidadão tem o direito à administração eficiente, eficaz e prestada em tempo hábil, até para que seja permitido grifar os direitos fundamentais não se convertam em miragens ou promessas remotas e quiméricas. Assumido, portanto, o anelo de fazer com que a Constituição administre, resulta nítido que o legislador infraconstitucional equivocouse, na formulação do art. 77 da Lei nº 9.430/1996,37 ao apenas facultar ao Poder Executivo a disciplina das hipóteses em que a Administração Tributária federal, relativamente aos créditos baseados em dispositivo declarado inconstitucional por decisão definitiva do STF, possa absterse de constituílos, bem como retificar o seu valor ou declarálos extintos, de ofício, mesmo que inscritos em dívida ativa, e, ainda, formular desistência de ações de execução fiscal ajuizadas, além de deixar de interpor recursos judiciais. Ora, o real significado Revista de Direito Administrativo e Constitucional ‐ AeC Belo Horizonte, ano 10, n. 40, abr. / jun. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital desse comando, à base do prisma da guarda prioritária da constitucionalidade pela própria Administração Pública, soa distinto do extraído da mera literalidade. Exigese não ceder às costumeiras atecnias do legislador ordinário. De fato, não se está perante uma mera faculdade do agente público, mas de rigoroso e indeclinável dever. A discrição, nesse ponto, resulta vinculada à decisão definitiva ou indisputável do Poder Judiciário, salvo motivação consistente em contrário. Em igual senda e por idênticas razões de fundo, não se mostra minimamente adequada uma compreensão literal do art. 4º da Lei nº 9.469/1997.38 Ali se diz que, não havendo a referida Súmula da AdvocaciaGeral da União, o AdvogadoGeral poderá dispensar a propositura de ações quando a controvérsia tiver sido iterativamente decidida pelo Supremo Tribunal Federal ou pelos Tribunais Superiores. Observese que se trata, tirante casos excepcionalíssimos, de poderdever. Há uma vinculação intensa ao pronunciamento derradeiro ou indisputável. Quer dizer, a dispensa da propositura não é singela faculdade do ocupante do topo dessa Carreira de Estado, comprometido que deve estar, às inteiras, com a guarda da constitucionalidade. Notese que, ao se sustentar tal dever, não se propugna servilismo, nem subserviência ou ímproba prevaricação. Afinal, em situaçõeslimite, se constatado razoável convencimento do desacerto da posição jurisprudencial, revelase perfeitamente legítimo e obrigatório procurar alterála, com a devida motivação39 e percorridas as vias apropriadas. Jamais pelo bafejo da singela tese da "reserva do possível". O ônus de provar a impossibilidade orçamentária, a propósito, será invariavelmente do Estado. Sublinhese que tal posicionamento hermenêutico supera conflitos entre a sociedade e o Poder Público, promove a deferência e valoriza as Carreiras de Estado, sem fomentar hostilidades que minam o sutil tecido do Estado brasileiro. De fato, a vinculação do agente público é à lei e ao Direito. Este e aquela têm os seus conteúdos determinados, plasticamente, pelo positivador derradeiro que é o Poder Judiciário, que tem o dever de exercitar o papel de partejar o Direito objetivo, numa perspectiva tópicosistemática (naturalmente, sem sucumbir a subjetivismos arbitrários ou a decisionismos irracionais). Tal vinculação restringe a discricionariedade aos limites da Constituição. De tudo, brota como inarredável o dever de acatamento pela Administração Pública das pacificadas decisõesdos Tribunais Superiores, notadamente das declarações de inconstitucionalidade por decisão definitiva do Plenário do STF. O maior beneficiário de semelhante postura não será, apenas, aquele que litiga atomiza ou coletivamente contra o Poder Público, mas o contribuinte e, assim, o genuíno interesse público. Em suma, o controle da constitucionalidade deve ser praticado, de ofício, também pela própria Administração Pública, no intuito de ampliar o controle da conformidade administrativa, mais do que em relação às regras, com a Constituição e os seus objetivos fundamentais. Controle de eficácia, de eficiência, de imparcialidade, de prevenção, de precaução e de economicidade. Controle que implica responsável (jamais omissiva) inteligência das regras (e das lacunas legais), sob a ótica inegociável dos princípios e dos direitos fundamentais, especialmente do direito fundamental à boa administração pública. 3 Conclusões Revista de Direito Administrativo e Constitucional ‐ AeC Belo Horizonte, ano 10, n. 40, abr. / jun. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital Do articulado, presente a ideiachave do controle ampliado da constitucionalidade dos atos administrativos em geral (não apenas dos atos normativos), impõese, em sede conclusiva, deixar sulcado que: (a) O pronto acatamento das decisões judiciais iterativas pela Administração Pública é uma decorrência teleológica do primado dos princípios, direitos e objetivos fundamentais que a regem. Bem por isso, a Administração Pública precisa, exemplarmente, acatar os pronunciamentos irrecorríveis do Poder Judiciário (notadamente as decisões definitivas do Plenário do STF, não apenas em sede concentrada), sob pena de fazer perecer a credibilidade do sistema de controle, dele subtraindo o hálito vital do respeito mútuo e da interdependência dos Poderes (arts. 2º, e 60, §4º, III, da CF). Por isso, seria desproporcional formalismo40 não acatar os pronunciamentos em sede difusa, sob o pretexto da carência de manifestação suspensiva do Senado, quando, sobre a matéria, o Poder Judiciário já houver consolidada posição. Ainda aí, desde que largamente pacificada a orientação jurisprudencial superior, afigurase lógico o dever, menos intenso em grau (mas, ainda assim, dever), de acatamento de ofício dos precedentes judiciais e da emissão célere dos atos declaratórios, pareceres normativos e súmulas administrativas confortadoras de tais diretrizes. Como assinalado, em função desse acatamento de ofício, resultará provavelmente fortalecido o princípio da deferência, segundo o qual só se anula ou se considera viciado, por omissão ou excesso, o ato estatal insanável e manifestamente violador da juridicidade. (b) Por motivos de produtividade funcional do discurso da Carta e sem menosprezar o papel da autoridade administrativa (justamente, ao revés), mister entender que o legislador fecunda o preceito jurídico, porém incumbe ao Estadojuiz efetivar o controle definitivo e cabal de adequação à Carta. Do entendimento e da aceitação da intangibilidade desse ciclo (o intérpretejuiz como positivador derradeiro, por assim dizer), surgirá o melhor controle da juridicidade constitucional, especialmente preventivo, a ser efetuado também pelo Estado Administração. Eis um avanço decisivo para que a Administração Pública aja, de ofício, como parte do Estado Constitucional que é, não como vontade particularista que faz cálculos segundo a lógica do adiamento da improtelável responsabilidade, inclusive fiscal. Pagase o contribuinte, bem entendido para compensar a resistência indevida à Carta, sobremodo quando se configura o caráter protelatório ou a litigância de máfé. (c) Quando o EstadoAdministração absorve a vinculação primeira à juridicidade constitucional, reúne as condições para assegurar a eficácia dos objetivos constitucionais no seio das relações administrativas. Além disso, como o agente público tem o dever de recusar o cumprimento de ordem manifestamente ilegal, "a fortiori", com a devida motivação, tem o dever de resistir à ordem manifestamente inconstitucional. Com essa mentalidade nova, a Administração Pública apresentará aquela atitude que faz tranquila a justa deferência, com a bl indagem da presunção (tão chamuscada, na v ida real) da legit imidade e da constitucionalidade dos atos administrativos. (d) Ao valorizar, de modo célere, as orientações jurisprudenciais iterativas (fonte material, por excelência, do Direito Administrativo), não está a Administração Pública deixando de ser zelosa e independente, mas reservando energias para os embates verdadeiramente prioritários. Revista de Direito Administrativo e Constitucional ‐ AeC Belo Horizonte, ano 10, n. 40, abr. / jun. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital (e) A guarda da constitucionalidade, uma vez adotado o acordo semântico proposto, pode ser traduzida, no âmbito do escrutínio e da sindicabilidade dos atos administrativos, como o controle de conformidade não apenas com o princípio da legalidade, mas com todos os princípios e todas as regras da Constituição. Adotada uma acepção desse perfil, persistirá o Poder Judiciário, na condição de controlador "último", alicerçado em "cláusula pétrea" (CF, art. 5º, XXXV). (f) Estabelecidas as coisas nesses precisos termos, não é demasiada ousadia reconhecer que todos os Poderes de Estado precisam realizar a tutela sistêmica da constitucionalidade. Desse modo, o EstadoAdministração também deve, de maneira consistentemente motivada, realizar a defesa, de ofício, da constitucionalidade, no intuito de promover o reconhecimento da eficácia direta e imediata do direito fundamental à boa administração pública. (g) Constatase, em última instância, o expressivo desafio de erguer o renovador e precípuo compromisso com a constitucionalidade pelo administrador público. O que implica tecer e expandir uma rede sinérgica e cooperativa do controle da constitucionalidade. Rede que aperfeiçoa, nos limites das respectivas atribuições, a incidência obrigatória dos princípios, dos direitos e dos objetivos fundamentais no campo das relações de administração. The Review of Constitutionality by the StateAdministration Abstract: The Publ ic Administrat ion has the primary duty of protect ing constitutional rights. Such duty presumes amplification of selfcontrol, respect of consolidated judicial decisions and favors the assertion of the deference principle. The task of avoiding the unconstitutionality is for all State agents and, according to their attributions, represents a crucial aspect of the new Administrative Law. In other words, the constitutionality besides their compliance with legal rules needs to be insured and guaranteed by the whole State, including Public Administration. Key words: Review of constitutionality. Public Administration. Constitutional rights. Recebido em: 03.05.10 Aprovado em: 25.05.10 1 Sobre o tema, vide Juarez Freitas (O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. cap. 1, p. 48). Ainda: "A tarefa mais produtiva do controle sistemático das relações administrativas consiste em bem hierarquizar as escolhas administrativas, com eficiência, economicidade, eficácia, prevenção e precaução, de maneira que a Constituição administre" (p. 151). 2 Na observação de Norberto Bobbio (O filósofo e a política. Rio de Janeiro: Contraponto, 2003. p. Revista de Direito Administrativo e Constitucional ‐ AeC Belo Horizonte, ano 10, n. 40, abr. / jun. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital 270): "A ideia de supremacia da lei foi a conclusão necessária de uma concepção unicêntrica de Estado, que encontrou sua formulação mais acabada no Leviatã de Hobbes. Esta concepção, por sua vez, decorria da convicção deque o Estado estava destinado a dominar, e até mesmo suprimir, os sistemas inferiores (Hobbes) as sociedades parciais (Rousseau) e os órgãos intermediários. Todavia o desenvolvimento político seguiu um caminho oposto (...) quanto mais desenvolvidos econômica e socialmente são os Estados contemporâneos tanto mais se tornam policêntricos (...)". 3 Pertinente referir Luís Roberto Barroso, para quem, não sem antes identificar o "efeito expansivo das normas constitucionais" como "fenômeno positivo", manifesta preocupação com os riscos da constitucionalização excessiva (Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 391). A defesa da guarda da constitucionalidade por todos os Poderes e pela sociedade, como defendida aqui, afirma, com ponderação, somente a dimensão positiva do fenômeno e, deliberadamente, encarece a importância do princípio da deferência. 4Sem que a presente abordagem represente endosso, portanto, à posição extremada de Mark Tushnet contra "judicial review", numa aposta, temerária ao menos por ora, em "legal restraints on government whithout having constitutional ones" e no populismo constitucional (Taking the Constitution Away from the Courts. Princeton: Princeton University Press, 1999. Especialmente cap. 7 e 8). Aqui, propõese ampliar a guarda da constitucionalidade, não debilitar ou esvaziar o controle judicial. Para refletir, adicionalmente, sobre o tema, vide Michael Perry (Protegendo direitos humanos constitucionalmente entrincheirados: que papel deve a Suprema Corte desempenhar?. In: TAVARES, André Ramos (Org.). Justiça constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p. 83151). 5 Vide REAgR nº 410715SP. Rel. Min. Celso de Mello, em cuja ementa se lê: "Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revelase possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão por importar em descumprimento dos encargos políticojurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório mostrase apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional". 6 Sobre o conceito brasileiro de direito fundamental à boa administração, vide Juarez Freitas (Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa Administração Pública. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 22 et seq.). 7 A propósito, útil evocar, sem adotar a sua noção hermenêutica de clareza, a observação clássica de James Bradley Thayer (The Origin and Scope of the American Doctrine of Constitutional Law. Harvard Law Review, v. 7, p. 129156, 189394), com especial destaque para as seguintes considerações (p. 144): "There remains a question the really momentous question whether, after all, the court can disregard the act. It cannot do this as a mere matter of course, merely because it is concluded that upon a just and true construction the law is unconstitutional. (...) It can only disregard the Act when those who have the right to make laws have not merely made a mistake, but have made a very clear one, so clear that it is not open to rational question. That is the standard of duty to which the courts bring legislative Acts; that is the test which they apply, not merely their own judgment as to constitutionality, but their conclusion as to what judgment is Revista de Direito Administrativo e Constitucional ‐ AeC Belo Horizonte, ano 10, n. 40, abr. / jun. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital permissible to another department which the constitution has charged with the duty of making it. This rule recognizes that, having regard to the great, complex, everunfolding exigencies of government, much which will seem unconstitutional to one man, or body of men, may reasonably not seem so to another; that the constitution often admits of different interpretations; that there is often a range of choice and judgment; that is such cases the constitution does not impose upon the legislature any one specific opinion, but leaves open this range of choice; and that whatever choice is rational is constitutional." Michael Perry (op. cit., p. 150151) pondera: "talvez existam razões para se pensar que a deferência thayeriana é adequada nos casos nos quais certos direitos humanos estão em questão, mas inapropriada para casos em que outros direitos humanos estão em questão o direito à liberdade de expressão, por exemplo, ou o direito de não ser discriminado com base em uma visão degradante sobre um aspecto particular de alguém." 8 Sobre a falácia de "disintegration", vide Laurence Tribe e Michael Dorf (On Reading the Constitution. Cambridge: Harvard University Press, 1991. p. 20). 9 Sobre "entrechment," entendido como proibição de retrocesso e tutela mínima dos direitos fundamentais, vide Walber Agra (O entrechment como condição para a efetivação dos direitos fundamentais. In: Justiça constitucional, op. cit., p. 2341). 10 Vide Juarez Freitas (A interpretação sistemática do direito. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2010), ao propor a essencial identidade do pensamento sistemático e da tópica, não conferindo a esta papel apenas auxiliar, bem como a solução de equilíbrio dialético entre as exigências formais e aquelas oriundas do realismo, respeitada a Constituição em sua abertura dialógica e em seus desafios hermenêuticos, sobretudo os de combate à inércia causadora de danos. 11 Vide FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa Administração Pública. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. 12 Sobre os modelos deontológico e consequencialista, como não reciprocamente excludentes, vide Riccardo Guastini (Das fontes às normas. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 239). 13 Sobre a Constituição vista como "processo e como espaço de luta", importa lembrar Clèmerson Merlin Clève (A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 23). 14 Sobre a redefinição funcional do Estado, vide Jacques Chevallier (O Estado pósmoderno. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 59): "se o Estado permanece fortemente presente na vida social, tal se dá sob modalidades diferentes daquelas do passado: vêse perfilhar uma nova concepção do papel do Estado, o esboço de um novo modelo de Estado." 15 A propósito de alterações conceituais, um sinal de mudança em matéria de controle da constitucionalidade das leis vem da França, após longa resistência. Vide Loi Organique 20091523. 16 Sobre o ponto, vide Peter Häberle (Jurisdição constitucional como força política. In: Justiça constitucional, op. cit., p. 81): "Não apenas a jurisdição constitucional, mas todos nós somos, politicamente, 'guardiões da Constituição.'" Revista de Direito Administrativo e Constitucional ‐ AeC Belo Horizonte, ano 10, n. 40, abr. / jun. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital 17 Vide Juarez Freitas (O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. cap.1), que, além de estabelecer a tábua dos princípios constitucionais que devem reger tal controle, reflete sobre as transformações paradigmáticas do Direito Administrativo, inclusive em suas fontes. A propósito, vide, também, as reflexões de Juarez Freitas (ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (Org.). Direito administrativo e seus novos paradigmas. Belo Horizonte: Fórum, 2008). 18 Inserido pela Lei nº 11.941, de 2009. 19 Nos termos dos arts. 18 e 19 da Lei nº 10.522/2002. 20 Nos termos do art. 43 da Lei Complementar nº 73/93. 21 Nos termos do art. 40 da Lei Complementar nº 73/93. 22 Vide,ao veicular argumentos contrários ao textualismo e ao originalismo estrito, Juarez Freitas (A interpretação sistemática do direito. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. cap. 9). 23 A propósito, observa o Min. Gilmar Mendes (A reclamação constitucional no Supremo Tribunal Federal. In: Justiça constitucional, op. cit., p. 297): "é difícil de admitir que a decisão proferida em ADI ou ADC e na ADPF possa ser dotada de eficácia geral e a decisão proferida no âmbito do controle incidental esta muito mais morosa porque em geral tomada após tramitação da questão por todas as instâncias continue a ter eficácia restrita entre as partes." 24 Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45/2004. 25 Min. Teori Zavascki bem historia a evolução legislativa no rumo de vários precedentes vinculantes (inclusive no sistema difuso), além dos aqui citados. Com razão, considera (Ação rescisória: a Súmula 343 do STF e as funções institucionais do Superior Tribunal de Justiça. Revista de Doutrina do STJ, Brasília, STJ, p. 87, 2009. Comemorativa dos 20 anos), que o art. 741, parágrafo único, do CPC, "passou a atribuir a decisões do STF sobre a inconstitucionalidade de normas (mesmo em controle difuso), a eficácia de inibir a execução de sentenças a ele contrárias (verdadeira eficácia rescisória), o que foi reafirmado em 2005, pelo art. 475L, par. 1º, do CPC." 26 Sobre súmula vinculante, vide Lei nº 11.417/2006. Tal diploma acrescentou parágrafo ao art. 56 da Lei nº 9.784/99 (Lei de Processo Administrativo). 27 Parecer PGFN/CRJ/Nº 492/2010. 28 Além disso, tem razão Michel Rosenfeld (O julgamento constitucional na Europa e nos Estados Unidos: paradoxos e contrastes. In: Justiça constitucional, op. cit., p. 228): "O julgamento constitucional tanto no direito romanísticogermânico quanto no commonlaw compreende um componente legal e um componente político onde legal significa a aplicação de normas ou entendimentos préexistentes e 'político' significa escolher um dentre vários princípios ou políticas aplicáveis com o propósito de resolver uma questão constitucional." 29 Com propriedade, arrola Howard Gardner (Cinco mentes para o futuro. Porto Alegre: Artmed, 2007), as "mentes" de cultivo crucial: a disciplinada, a sintetizadora, a criadora, a respeitosa e a Revista de Direito Administrativo e Constitucional ‐ AeC Belo Horizonte, ano 10, n. 40, abr. / jun. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital ética. Fora de dúvida, todas configuram "tipos de mente" indispensáveis à ampliação preconizada de guarda da constitucionalidade na esfera administrativa. 30 Sobre o tema, vide Richard Fallon Jr. (The Core of an Uneasy Case for Judicial Review. Harvard Law Review, v. 121, n. 7, 2008), ao concluir (p. 1735):"I have advanced parallel, substantially overlapping negative and positive theses. The negative thesis is that Jeremy Waldron's provocative arguments in The Core of the Case Against Judicial Review do not succeed. The positive thesis is that judicial review is reasonably defensible within the terms of liberal political theory, even for nonpathological societies, if, but only if, a number of assumptions are valid. Waldron's core case against judicial review rests heavily on premises and arguments suggesting that courts may be no better than legislatures at resolving disputes about individual rights correctly. But the best outcomebased reason to support judicial review is one that Waldron overlooks. The affirmative case for judicial review need not depend on the assumption that courts can identify rights more accurately than legislatures. Rather, the most persuasive case maintains that both institutions should be enlisted in the cause of rights protection because it is morally more troublesome for fundamental rights to be underenforced than overenforced. Waldron's affirmative case that judicial review is unfair and politically illegitimate also fails, and the arguments so demonstrating point once again to grounds of fairness and legitimacy on which judicial review can be affirmatively defended. The fairness and political legitimacy of procedural mechanisms depend on the ends that they serve. If judicial review is reasonably designed to improve the substantive justice of a society's political decisions by safeguarding against violations of fundamental rights, then it is not unfair, nor is it necessarily politically illegitimate. Political legitimacy can flow from multiple sources. Even insofar as judicial review lacks specifically democratic legitimacy, the democratic character of other elements of a political regime can partly compensate for this deficiency". 31 Sobre o tema, vide Juarez Freitas (A interpretação sistemática do direito, op. cit., cap. 9). 32 Antes de seguir no exame do papel de guarda da Constituição do EstadoAdministração, impõe se mencionar que, identicamente, ocorre o fenômeno da guarda da constitucionalidade pelo Parlamento, dada a interdependência dos poderes (CF, art. 2º). Sim, por exemplo, o Parlamento pode fazêlo por meio da Comissão de Constituição e Justiça, que podedeve arquivar uma PEC que admita o terceiro mandato presidencial, por ofensiva ao princípio republicano, que supõe alternância periódica dos ocupantes do poder, em mandatos não demasiado longos. Ao fazêlo, poupa o Supremo Tribunal Federal de ter de enfrentar o tema. Ainda no tocante ao Parlamento: como mencionado, nos termos do art. 52, X, cabe ao Senado suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF, em controle incidental ou difuso. Tal competência privativa do Senado comporta revisão hermenêutica, como referido. Mais um exemplo: a deliberação de cada uma das Casas do Congresso Nacional sobre o mérito das medidas provisórias depende de juízo prévio sobre o atendimento de seus pressupostos constitucionais (parágrafo 5º do art. 62, incluído pela EC nº 32/2001). São suficientes tais ilustrações sobre o controle de constitucionalidade exercitável pelo Poder Legislativo. A propósito, ainda, sobre o poder congressual de sustar atos do Poder Executivo como controle político de constitucionalidade, vide Anna Cândida da Cunha Ferraz (Conflito entre Poderes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 206). 33 Com acerto, no ponto, Cass Sunstein, ao dizer que "é fundamental reviver esse entendimento Revista de Direito Administrativo e Constitucional ‐ AeC Belo Horizonte, ano 10, n. 40, abr. / jun. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital mais amplo da Constituição, que se tornou uma parte indissolúvel do compromisso originário para a democracia deliberativa" (A Constituição parcial. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 2). 34Vide, a propósito, RE nº 495740. Rel. Min. Celso de Mello. 35 Não se ignora, portanto, o julgamento da ADC nº 4, pelo STF. Tampouco o art. 7º da nova Lei de Mandado de Segurança (Lei nº 12.016/2009). 36 Nos termos do art. 14 do CPC. Ressalvados os advogados, inclusive públicos, que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB. A violação do disposto no inciso V deste artigo constitui ato atentatório ao exercício da jurisdição, podendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta e não superior a vinte por cento do valor da causa; não sendo paga no prazo estabelecido, contado do trânsito em julgado da decisão final da causa, a multa será inscrita sempre como dívida ativa da União ou do Estado. 37 Dispõe o art. 77. Fica o Poder Executivo autorizado a disciplinar as hipóteses em que a administração tributária federal, relativamente aos créditos tributários baseados em dispositivo declarado inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, possa: I absterse de constituílos; II retificar o seuvalor ou declarálos extintos, de ofício, quando houverem sido constituídos anteriormente, ainda que inscritos em dívida ativa; III formular desistência de ações de execução fiscal já ajuizadas, bem como deixar de interpor recursos de decisões judiciais. 38 Assim dispõe: "Não havendo Súmula da AdvocaciaGeral da União (arts. 4º, inciso XII, e 43, da Lei Complementar n. 73, de 1993), o AdvogadoGeral da União poderá dispensar a propositura de ações ou a interposição de recursos judiciais quando a controvérsia jurídica estiver sendo iterativamente decidida pelo Supremo Tribunal Federal ou pelos Tribunais Superiores". Não se trata, como sustentado, de simples faculdade, mas, como regra, de um dever. 39 A teor do art. 50, VII, da Lei nº 9.784, a motivação deve ser "explícita, clara e congruente" sempre que o administrador público deixar de "aplicar jurisprudência firmada sobre a questão". 40 Recordese Giorgio Berti (Interpretazione Costituzionale. Padova: CEDAM, 2001), no ponto específico em que assinala que "il sistema delle fonti formali deve integrarsi constantemente con la normatività sostanziale" (p. 89). Como citar este conteúdo na versão digital: Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FREITAS, Juarez. O controle de constitucionalidade pelo EstadoAdministração. A&C Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 10, n. 40, abr./jun. 2010. Disponível em: <http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=67726>. Acesso em: 29 jun. 2015. Revista de Direito Administrativo e Constitucional ‐ AeC Belo Horizonte, ano 10, n. 40, abr. / jun. 2010 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital Controle judicial de políticas públicas: possibilidades e limites1 Maria Paula Dallari Bucci Palavraschave: Controle judicial (políticas públicas). Controle judicial (limites). Controle judicial (objeto). Sumário: Parte 1 O controle judicial como instrumento da força normativa da Constituição e das leis a) Possibilidades b) Limites b.1) Papel subsidiário do Poder Judiciário em matéria de iniciativas para concretização de direitos b.2) Argumentos doutrinários sobre os limites do controle judicial b.3) Examinando mais de perto o objeto do controle judicial Parte 2 Alguns exemplos concretos ou "o que você faria se fosse o gestor público?" a) Possibilidades Política de prevenção da Aids b) Limites Vagas em creches Conclusão Conjugando possibilidades e limites Parte 1 O controle judicial como instrumento da força normativa da Constituição e das leis a) Possibilidades A possibilidade de controle judicial para a garantia do exercício é o que faz das normas de direitos fundamentais prescrições obrigatórias, no sentido fático. Como se sabe, o direito subjetivo é aquele dotado de ação para exigir o seu cumprimento. Essa possibilidade, alçada à Corte Suprema do país, aparelhada dos mecanismos processuais necessários, garante a força normativa de uma Constituição, de modo que essa supere a condição de mera folha de papel. A grande inovação do constitucionalismo europeu do pósguerra, que se irradiou para toda sua área de influência, é a existência desse aparato institucional de garantia de cumprimento, com a atuação dos Tribunais Constitucionais. Mesmo chegando mais tarde em alguns países, a diretriz relativa à obrigatoriedade da existência de uma corte independente para o julgamento da matéria constitucional, assimilada oficialmente pelas instâncias dirigentes da União Européia, levou à quebra de paradigmas, de que é exemplo eloqüente a decisão sobre a criação da Corte Constitucional na Inglaterra, pelo Constitutional Reform Act, aprovado no governo trabalhista em 2005.2 A superação do positivismo formalista, com a introdução da dimensão axiológica nas normas, e o desenvolvimento de padrões de interpretação e aplicação baseados na coexistência de princípios e regras igualmente impositivos, confere à jurisdição papel mais ativo na efetivação dos direitos prescritos na Constituição e na legislação. Em que pese a percepção de um certo exagero ou "euforia principiológica",3 a demandar a busca por um ponto de equilíbrio, é certo que a prática e a cultura jurídica de um país de dimensões continentais como o Brasil civilizamse com a existência de referenciais de sentido axiológiconormativo cogentes em qualquer tempo, lugar e circunstância, em face das pessoas ou dos poderes instituídos, sejam eles públicos ou privados. Que os tribunais — e os atores da cena jurídica, partes, advogados, Ministério Público, associações e organizações — se dediquem a explorar ao máximo as fronteiras para a tutela dos direitos Fórum Administrativo ‐ FA Belo Horizonte, ano 9, n. 103, set. 2009 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital fundamentais no âmbito do processo judicial, é não apenas meritório, mas um eixo importante da evolução do significado concreto das prescrições jurídicas para os agentes do processo político, governantes, parlamentares e grupos de interesse. Que a teoria jurídica se debruce sobre esse fato e procure alargar as fronteiras de aplicação de seus conceitos fundamentais, à luz desse novo papel, como tem acontecido no direito constitucional mais recente no Brasil, é bastante auspicioso. b) Limites b.1) Papel subsidiário do Poder Judiciário em matéria de iniciativas para concretização de direitos No entanto, nos países periféricos, que receberam por inspiração o modelo constitucional da reconstrução da Europa no pósguerra, a percepção da importância dessa inovação e a abertura de possibilidades antes inéditas no campo da interpretação constitucional têm ofuscado a consciência de que a elevação do patamar da cidadania depende mais de alterações estruturais na organização e no funcionamento do Estado e do sistema econômico do que das decisões do Poder Judiciário, cujo papel é subsidiário, em matéria de políticas públicas. A evolução recente do tema revela, a meu ver, uma certa hipertrofia do olhar focado na atuação judicial para concretização dos direitos, em especial os direitos sociais. E não se dá conta da insuficiência da prescrição constitucional do catálogo de direitos para as tarefas necessárias à implementação da igualdade social. Os desafios do desenvolvimento, que podem levar à superação das desigualdades de renda e oportunidades, reclamam a modificação de estruturas econômicas, políticas e sociais produtoras e reprodutoras de desigualdade e exclusão. A minimização desse fato, mais significativa no contexto acadêmico que no judicial, desvia atenção de questões mais centrais para o tema, como a persistência da desigualdade de renda, num cenário de crescimento econômico, no qual seria possível, em certa medida, a outorga de prestações sociais, sem a modificação das estruturas geradoras da pobreza. Criase uma sobrecarga de expectativas em relação às reais possibilidades da enunciação constitucional dos direitos, em detrimento das condicionantes — também constitucionais — ligadas ao processo político, às estruturas regionais do poder, à permanência das condições de exercício das forças econômicas dominantes etc. Os direitos fundamentais constituem, inequivocamente, a referência normativa principal de um patamar mínimo de civilidade, ponto de partida e de chegada. Entretanto, o enfrentamento dos mecanismos sociais, políticos e econômicos geradores da exclusão requer a compreensão mais alargada dos elementos e processos pelos quais se exercem a dominação e a privação de direitos na sociedade brasileira, inteiramente permeados de institucionalização jurídica. A experiência pósconstitucional mostra que é necessária nova superação, de modo que não nos limitemos à interpretação jurídica e nãonos atenhamos ao direito posto, seja o texto constitucional sejam a legislação e normas infralegais. Isso não significa, evidentemente, a defesa do direito alternativo, a interpretação contra lei, mas, ao contrário, a ocupação de vazios existentes nos espaços tradicionais e legítimos de criação do direito. Fórum Administrativo ‐ FA Belo Horizonte, ano 9, n. 103, set. 2009 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital O papel da norma e o significado do processo legislativo são temas que, salvo raras exceções, não vêm sendo contemplados pelo constitucionalismo nacional mais recente. A desproporção entre o número de trabalhos sobre interpretação constitucional e sobre as condições do exercício do poder político é bastante elevada e faz pensar. Numa pauta européia de pesquisa em direito público, talvez se explicasse essa opção, vez que o processo político está relativamente estabilizado e maduro. Entre nós, contudo, o processo de elaboração da norma, seja legislativo, em sentido estrito, seja o que compreende a formação dos projetos de lei e normas infralegais no âmbito do Poder Executivo, tem merecido pouca atenção sistemática nos estudos do direito público. E esse conhecimento é necessário quando se deseja passar de um olhar retrospectivo do fenômeno jurídico a um olhar prospectivo. A presença dos profissionais jurídicos nos processos de renovação do direito tem se dado, com mais freqüência, por meio das representações de classe, entidades de magistrados, membros do Ministério Público ou advogados. A contribuição da ciência jurídica mais qualificada como subsídio para a elaboração normativa e como caixa de ressonância dos seus efeitos sobre o sistema jurídico tem se revelado um tanto acanhada. Podese dizer, com certo exagero, em relação ao tema da efetivação dos direitos sociais, que os juristas se desinteressaram das tarefas de entender, explicar e orientar — por que não? — a organização do Estado e suas injunções jurídicas, preferindo armar se para as batalhas judiciais em torno da questão. É possível que essa abordagem se explique em razão da crise de legitimação do poder e da representação políticos, cujos loci são o Poder Executivo e o Poder Legislativo. O exercício do poder político entre nós está muito longe de um padrão racional, apreensível pelo direito. A política brasileira, dizia um professor de direito familiarizado com o ambiente parlamentar, está mais perto de ser explicada pela antropologia, com seus conhecimentos sobre tribos, clãs e famílias no poder. Mas é forçoso reconhecer que o período que se segue à promulgação da Constituição de 1988 tem visto um amadurecimento institucional, esse sim, sem precedentes na história do país. E uma expressão desse amadurecimento há de se traduzir no enfrentamento mais sistemático do uso dos meios à disposição do Estado para a implementação da cidadania e dos direitos sociais. b.2) Argumentos doutrinários sobre os limites do controle judicial Alguma coisa se tem escrito sobre as limitações do processo judicial para o controle de políticas públicas.4 Os argumentos encontrados com maior freqüência são de duas grandes ordens, a primeira, de cunho políticoinstitucional, e a segunda, de cunho econômicofinanceiro, e essas, por sua vez, se subdividem da seguinte maneira: I) Argumentos de ordem políticoinstitucional: Separação de poderes, com base no art. 2º da Constituição Federal; Déficit democrático do Poder Judiciário;5 Fórum Administrativo ‐ FA Belo Horizonte, ano 9, n. 103, set. 2009 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital Limitações técnicas do Poder Judiciário para apreciação das políticas públicas em toda sua complexidade; Discricionariedade administrativa; II) Argumentos de ordem econômicofinanceira: "reserva do possível": Questão da iniciativa das políticas públicas: Poder Executivo (CF, art. 61, §1º, II, a e b) e Poder Legislativo. Quanto ao primeiro grupo de argumentos, a matriz da separação de poderes sintetiza o problema político. O então juiz federal, hoje deputado, Flavio Dino de Castro examinou a questão a partir da indagação sobre o caráter absoluto de limites impostos à função de julgar, exercida pelo Poder Judiciário. E conclui refutando a tese, uma vez que "não há incompatibilidade principiológica entre o exercício do controle jurisdicional sobre a atuação sobre os demais Poderes e o postulado inscrito no art. 2º da nossa Constituição".6 Na verdade, entendo que a invocação desse argumento, tout court, como obstáculo para apreciação de atos do Poder Executivo pelo Poder Judiciário faz parte de uma tradição anterior à Constituição de 1988. Essa abordagem, contemporânea à figura dos "atos de governo", insuscetíveis de controle judicial, encontrase, como aquela, em grande medida superada na prática e na teoria pelo exercício de controles judiciais, que se dá em relação ao processo de produção dos atos e decisões do Poder Público, à motivação e até mesmo em relação à razoabilidade de seu teor. No mesmo sentido evoluiu a doutrina das questões políticas, que impunha ao Supremo Tribunal Federal autocontenção em assuntos vinculados à vida político institucional do país. "A regra agora é o controle judicial das questões políticas; a exceção, o exercício pelo Tribunal de sua autocontenção."7 Caíram, portanto, os círculos de imunidade absoluta do poder político ao controle jurisdicional. O que, todavia, torna o problema mais complexo, na medida em que se faz necessário definir parâmetros e critérios dentro dos quais o exercício do controle é legítimo. A atuação judicial revisora dos atos do Poder Executivo ou Legislativo, a toda evidência, não pode usurpar as atribuições próprias daqueles Poderes, cujos titulares neles foram investidos por força do voto. E daí se passa ao problema do déficit democrático do Poder Judiciário. A não responsabilização política do juiz pelo teor da decisão, no sentido de sua não exposição à fonte de legitimação do poder, pelo exercício do voto, debilita, em certa medida, a legitimidade da atuação judicial no controle de políticas públicas. O juiz não conhece os ônus subjacentes a cada escolha que resultou naquele arranjo complexo, nem a composição de interesses que sustenta a decisão política, tampouco assumirá conseqüências pela interferência sobre a estratégia que orientou a adoção de um ato ou outro (a qual pode ter conexões, meritórias ou perversas, com outras estratégias, pertinentes a outras políticas do governo). Nesse sentido é que se fala da irresponsabilidade política do Judiciário. Esse problema se conecta a um outro, ao mesmo tempo técnico e político, relativo à impossibilidade de o juiz se assenhorear das circunstâncias mais amplas nas quais se insere o pedido individualizado na ação. Nessa linha, algumas pesquisas têm demonstrado que se pode manipular os recursos ao Poder Judiciário, de forma a proteger interesses distintos do apregoado interesse público.8 Ocorre, não poucas vezes, com a assunção de posição pouco informada no processo, considerando que o universo da política pública é multifacetado e muito mais cheio de Fórum Administrativo ‐ FA Belo Horizonte, ano 9, n. 103, set. 2009 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital nuances do que aparenta. A hipótese de criação de uma estrutura técnica de suporte ao juiz nesse sentido, aventada por alguns, responderia de forma parcial e provavelmente insatisfatória a esse problema. Isso porque a lógica da atuação judicial é essencialmente atomizada, baseada nos conflitos explicitados, sejam eles individuais ou coletivos. A lógica das políticas públicas é, ao contrário, ampla, aglutinadora de perspectivas e informações, as quais se enfeixam na estratégia de decisão e implementação finalmente adotada. O argumento da proteção à esfera de discricionariedadeadministrativa é evidentemente conexo ao da separação de poderes e bastante familiar ao leitor, razão pela qual me permito recorrer, mais uma vez, à conclusão sumariada por Flavio Dino, de que não mais prevalece a doutrina da imunidade absoluta dos atos discricionários ao controle judicial. A uma, em vista do dever de motivação, hoje positivado no art. 50 da Lei do Processo Administrativo, Lei nº 9.784, de 1999, sucedendo a doutrina dos motivos determinantes e do desvio de finalidade, que assegura, em qualquer circunstância, a possibilidade de cotejo dos fundamentos do ato atacado com a motivação apresentada, além dos aspectos formais, nunca afastados da sindicabilidade judicial. A duas, em vista da possibilidade de confrontação do mérito administrativo do ato que compõe a política, ainda que de forma excepcional e limitada, em relação aos seus pressupostos, o que a doutrina francesa mais recente chama de controle da qualificação jurídica dos motivos. Dos argumentos relacionados como objeções à intervenção do Judiciário em matéria de políticas públicas, o mais perturbador é o das limitações econômicofinanceiras, uma vez que se trata, claramente, de matéria que escapa ao domínio pleno do direito. Em que pese a existência da disciplina orçamentária, ângulo pelo qual se tem discutido a questão, no âmbito do direito, a escassez de recursos para fazer face às necessidades de investimento e custeio relativas aos serviços e prestações que concretizam direitos sociais é um fato incontornavelmente econômico. Os limites são dados pelos recursos efetivamente existentes e ainda que se trabalhe com a idéia de produção de déficits pelo Estado que amenizem condições adversas, movimentando a economia em direção ao crescimento, é fato que também esses recursos são limitados. A superação das condições que impedem o pleno desenvolvimento é bastante complexa e depende da adoção de estratégias pactuadas pelas diversas forças políticas, sociais e econômicas de um país, para que se conjuguem os vários fatores envolvidos no processo. A presença atuante do Poder Judiciário será um desses fatores, mas é preciso não superestimála e concentrar esforços e atenções em tópicos que concretamente atuam como obstáculo a esse movimento. Outro aspecto a considerar, nesse ponto, diz respeito à possibilidade de que a escassez de recursos, tratada por um ângulo particularizado, desencadeie uma corrida entre direitos, que concorrerão por recursos escassos, dilema que só pode ser resolvido pela adoção de estratégias mais gerais, que modulem no tempo as etapas de atendimento dos direitos em seu conjunto, estabelecendo compromissos do governo, explicitados nos seus planos e leis orçamentárias. Essa é a razão pela qual recai sobre o Poder Executivo a iniciativa de projetos de lei que criem despesas diretas ou serviços públicos que suportam a realização das políticas públicas.9 b.3) Examinando mais de perto o objeto do controle judicial Fórum Administrativo ‐ FA Belo Horizonte, ano 9, n. 103, set. 2009 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital Passei de forma aligeirada pelos argumentos que vêm sendo apontados em decisões judiciais e nos comentários teóricos, porque me interessa explorar uma outra perspectiva. O que me parece é que a abordagem das políticas públicas instrumentaliza um outro modo de ação, mais adequado às demandas de efetivação constitucional, visto que mais apto a combinar, em um único conjunto cognitivo, várias dimensões que compõem o agir governamental. As políticas públicas são esquemas de aglutinação de conhecimentos e ações. As decisões usualmente associadas ao controle de políticas públicas, na verdade tratam do cumprimento de direitos, na ausência dessas, e não propriamente da formulação ou implementação de políticas públicas. Cumpre ilustrar com alguns exemplos: ação do Ministério Público para compelir um hospital público a contratar pessoal, ação em face de escola pública determinando a criação de programa especial para deficientes visuais, ação exigindo o aumento da oferta de vagas no ensino noturno em universidade pública etc. Essas decisões manejam, a rigor, categorias já estabelecidas no direito, de forma alargada, vez que a questão contenciosa predominantemente diz respeito a obrigação de fazer pelo Poder Público. A grande inovação que elas trazem é imputar conseqüências, dentro de determinados parâmetros — ainda não estabilizados e definidos de forma sistemática (e aí está o problema) —, para a inércia ou a incúria dos governos em implementar as políticas públicas ou medidas necessárias para a efetivação dos direitos. Pesquisando as características peculiares das políticas públicas, explicitamse alguns traços, que podem ser úteis ao aprofundar a compreensão sobre o modo de incidência do controle judicial. Evoluindo em relação a reflexões que venho empreendendo,10 tomo como ponto de partida da noção de política pública o processo decisório governamental. As políticas públicas devem ser compreendidas como arranjos institucionais complexos, expressos em estratégias formalizadas ou programas de ação governamental, visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados, e resultam de processos conformados juridicamente. Nesse sentido, são próprias da ação governamental, isto é, dos poderes dotados de iniciativa de ação e, portanto, predominantemente o Poder Executivo, dentro dos marcos legais definidos pelo Poder Legislativo. Como arranjos complexos (ou outputs da ação governamental, se não quisermos frisar a forma que essa externalização da ação assume), agregam elementos políticos, econômicos, sociais, organizacionais, relativos à gestão pública e legais, numa combinação peculiar que resulta de processos, juridicamente disciplinados. As políticas públicas não se confundem com os direitos. Por essa razão, salvo excepcionalmente, a Constituição não contém políticas públicas, mas direitos, cuja efetivação, especialmente no caso dos direitos econômicos, sociais e culturais, ditos, elipticamente, sociais, depende das políticas públicas. A noção de política pública é útil, para o direito, na medida em que permita compreender, analisar e tratar fenômenos que a teoria jurídica tradicional não logra fazer, organizando a compreensão, com base no diálogo interdisciplinar, de fenômenos econômicos, políticos, sociais e da gestão Fórum Administrativo ‐ FA Belo Horizonte, ano 9, n. 103, set. 2009 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital pública que influenciam na formação de decisões conformadas pelo direito e geram efeitos jurídicos. Os direitos sociais não são políticas públicas nem devem ser confundidos com elas. São direitos fundamentais, cuja satisfação integral requer programas, recursos públicos, os quais, em circunstâncias de escassez, são alocados segundo a dinâmica política, que combina tempo e definição de prioridades. Resultando de processos juridicamente regulados (eleitoral, administrativo, legislativo, orçamentário, e também, em certa medida, judicial) as políticas públicas são conformadas pelo Direito, embora não redutíveis a ele. E esse é um ponto importante quando se discute o controle judicial, em vista da necessidade de identificar que componente da política pública se põe sob o foco da ação judicial. Proponho, portanto, uma abordagem mais restritiva, a fim de ganhar em precisão, retirando do campo da análise casos abrangidos dentro do leque da "judicialização da política", cuja solução se dá com base na leitura política de aspectos sedimentados na teoria jurídica. Não é disso que cuida a noção de política pública em meu modo de abordar. A noção de política pública agrega vantagens analíticas importantes tanto para a compreensão da atuação do poder público como para a prescriçãode modelos de ação. Por essa razão cabe enfatizar a tônica prospectiva do trabalho com políticas públicas, distinto da atividade jurisdicional típica, cujo olhar é retrospectivo. As decisões judiciais não se pautam, primordialmente, pelos efeitos que a jurisprudência, como fonte de direito, irá gerar sobre outros casos não submetidos a julgamento, mesmo que saibamos que essa circunstância pode se apresentar (e geralmente se apresenta) entre as considerações do juiz. Já a política pública é, por definição, prospectiva, resultando de uma atividade programada, de escala ampla. Nesse ponto reside uma diferença essencial entre o provimento jurisdicional e a ação governamental. O objeto de uma política pública é, sempre, não apenas plúrimo, mas abrangente de uma coletividade previamente definida, e.g., as crianças do Município, os doentes com determinada moléstia, os habitantes do Estado, as empresas exportadoras do produto tal ou qual e assim por diante. A questão da escala opõe o processo judicial ao processo administrativo em sentido amplo. Se adotarmos a dualidade sistema/problema, veremos que as políticas públicas são instrumentos mais adequados ao tratamento sistemático de questões jurídicas. Nesse sentido, são úteis como esquemas de construção de relações. O manejo das políticas públicas representa atividade fragmentada de planejamento e execução de decisões pelo poder público e particulares. É meio, portanto, de organizar um conjunto de ações e relações, em direção a um sentido comum. Já o controle jurisdicional se dá sob a forma de ações judiciais, cada uma delas expressando um conflito atomizado. Na dualidade proposta, apresentamse como problemas. Não por acaso, o processo judicial moderno tem evoluído no sentido de buscar a agregação de interesses, seja sob a forma dos direitos individuais homogêneos, ou direitos coletivos ou difusos. Por essa razão, as ações coletivas e as ações cujas decisões têm efeitos contra todos são mais afeitas ao controle judicial das políticas públicas ou das obrigações de fazer subjacentes a políticas públicas idealmente concebidas. Fórum Administrativo ‐ FA Belo Horizonte, ano 9, n. 103, set. 2009 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital Seria de se cogitar de um regime processual específico de prestação de informações pelo Poder Público legitimado no pólo passivo, ao qual se seguiria a concessão de prazos escalonados para obrigações de fazer que, se não correspondessem ao implemento integral da obrigação, consolidariam passos irreversíveis em direção a tal, segundo a dinâmica a que é induzido o próprio ente público. Quanto mais a atividade jurisdicional de controle compreender o processo de formação e execução das políticas públicas na dinâmica própria da atividade política, mais eficaz tende a ser o controle. Segundo a teoria política, o ciclo de formação de uma política pública se dá em cinco etapas: I) inclusão do tema na agenda; II) formulação de alternativas; III) decisão; IV) implementação da política; e V) avaliação. Eduardo Appio entende que o controle judicial é admissível sobre o momento da execução e não da formulação da política.11 Esse conjunto de critérios e balizas para enfrentamento das omissões há de se estabelecer, predominantemente com base em regras processuais que permitam7 o contraditório entre a medida governamental reclamada pelo autor (que a coerência recomenda seja um legitimado pela coletividade) e a ação desempenhada — dentro dos limites do possível ou abaixo desse, caberá ao juiz decidir — pelo ente governamental responsável. Parte 2 Alguns exemplos concretos ou "o que você faria se fosse o gestor público?" Essa exposição seria incompleta se não explorássemos a perspectiva própria da Administração Pública. Com a consolidação do processo democrático no Brasil, o poder político encontrase, concreta ou potencialmente, em mãos diversas no País, o que enfraquece o discurso teórico produzido sob o influxo da resistência. Impõese reorganizar os fundamentos jurídicos da ação propositiva. O teste relativo a essa perspectiva, a ser aplicado em cotejo com o controle judicial aqui examinado, é formularse a pergunta: "o que você faria se fosse o gestor público?" Passarei a examinar dois casos concretos, objeto tanto de processos judiciais como de medidas governamentais, em que a diferença de perspectivas se faz muito nítida e, assim, útil para conhecimento das peculiaridades do processo judicial que se pretende estudar. a) Possibilidades Política de prevenção da Aids O histórico da política brasileira de controle da AIDS, mundialmente festejada como estratégia de salvação de vidas humanas com base na prevenção, a um custo muito mais reduzido que seria o do tratamento, é associado à existência de demandas judiciais postulando a distribuição de medicamentos. De fato, no início dos anos 90 houve uma série de ações judiciais exigindo o fornecimento de medicamentos, em alguns pontos semelhantes às que hoje se intentam em relação às mais diversas doenças. Ao cabo de sucessivas decisões judiciais concessivas dos pleitos, firmouse jurisprudência favorável ao fornecimento de medicamentos. O Supremo Tribunal Federal, pela relatoria sempre lúcida do Fórum Administrativo ‐ FA Belo Horizonte, ano 9, n. 103, set. 2009 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital eminente Ministro Celso de Mello, decidiu o Recurso Extraordinário nº 267.612, vinculando a proteção ao direito fundamental à saúde ao fornecimento concreto das prestações requeridas, cuja ementa sintetiza o argumento essencial sobre a matéria: Medicamentos para Pacientes com AIDS. Pacientes com HIV/AIDS. Pessoas destituídas de recursos financeiros. Direito à vida e à saúde. Fornecimento gratuito de medicamentos. Dever constitucional do Estado (CF, arts. 5º, caput, e 196). Precedentes (STF). O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular — e implementar — políticas sociais e econômicas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência médicohospitalar. O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política — que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro — não pode converterse em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. (...) Se nos detivermos na análise do objeto da ação, veremos que a questão posta em julgamento era, como não poderia deixar de ser, tópica, versando sobre o direito à obtenção de medicamentos fornecidos pela rede pública de saúde, e, nesse sentido, mais restrita que o que veio a se consubstanciar no Programa de AIDS do Ministério da Saúde, esse sim, a política pública na acepção mais precisa da expressão. A distinção é o que explica que se tenham incontáveis decisões determinando o fornecimento de medicamentos a particulares — para diabetes, câncer, doenças coronarianas etc. —, sem que delas resultem, necessariamente políticas públicas tal como se conhece em relação à AIDS. Em alguns casos ocorre mesmo o contrário, as decisões judiciais produzem um efeito de desorganização de políticas existentes, na medida em que o fornecimento de medicamentos em demandas individuais, amplificadas pela repetição de demandas, pode comprometer o funcionamento de determinadosserviços de atendimento coletivo. Uma política pública de saúde, mesmo se estruturada sobre a distribuição de medicamentos, necessariamente se insere numa estratégia mais abrangente, que deve ser constantemente reafirmada, uma vez que se desdobra na existência de medidas necessárias como apoio e confirmação do núcleo central da política, tais como a estruturação de serviços de referência, a renovação da destinação de recursos e uma série de outras. O relato oficial do Programa da AIDS, inserido na página eletrônica do Ministério da Saúde, é ilustrativo dessa abrangência: Fórum Administrativo ‐ FA Belo Horizonte, ano 9, n. 103, set. 2009 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital É em 1996, contudo, com o advento de uma nova classe de fármacos, os inibidores da protease, e uma nova abordagem terapêutica, com a utilização simultânea de múltiplas drogas, que uma importante vitória na luta contra a doença é alcançada. A combinação de medicamentos detém a progressão da doença e evita a progressão da deterioração do sistema imunológico. A mortalidade pela AIDS cai drasticamente com a nova terapêutica. Amparado pela aprovação naquele mesmo ano de legislação garantindo o acesso aos medicamentos, mesmo contra recomendações e advertências do Banco Mundial, o Brasil adota uma política de distribuição da medicação, via SUS, para todas as pessoas acometidas pela doença. Com o passar do tempo, esta estratégia mostrase não apenas eficaz, do ponto de vista da redução da mortalidade, mas também poupadora de recursos, na medida em que os gastos com o tratamento da aids em seus estágios iniciais consomem menos recursos que as repetidas internações dos pacientes em estado grave. (...) A mera distribuição dos medicamentos, contudo, não garante a qualidade do tratamento; é necessário monitorar a resposta dos pacientes à medicação, para que se possa avaliar sua eficácia. Dois exames, em particular, a contagem de linfócitos CD4 (...) e o teste de carga viral, que identifica a quantidade de vírus circulando no organismo (ao contrário dos testes sorológicos, que assinalam a presença de anticorpos para o HIV), são relativamente sofisticados e caros, e estariam fora do alcance da maioria da população brasileira, por um lado, e a ausência de um controle da qualidade de sua realização poderia ter resultados catastróficos no acompanhamento de pacientes em uso da medicação. Para enfrentar estes problemas, não só se estimulou a implantação destas técnicas em laboratórios ligados ao SUS em todo o país, como em 1997 foi criada a Rede Nacional de Laboratórios para Realização de Exames de Carga Viral e Contagem de CD4+/CD8+. (...) O Brasil tem enfrentado as pressões da indústria farmacêutica multinacional, que, amparada na legislação internacional sobre patentes, pratica preços francamente abusivos para as novas drogas, como é o caso dos antiretrovirais.12 Com base no relato oficial, o papel das ações judiciais é relativizado, em vista da disposição legislativa e da existência de um conjunto de medidas, de ordem administrativa, tipicamente caracterizadas como serviço público, a cargo de diversos entes governamentais. Mais importante, esse conjunto de iniciativas se orienta segundo uma estratégia, cuja efetivação depende de racionalidade, coerência, além da apreensão fiel dos elementos históricos e organizacionais envolvidos na formulação e implementação da política. Isso permite entender de que forma o controle judicial atua sobre elemento ou parte da política ou ainda se ele opera como fator de pressão pela formulação da política pública. b) Limites Vagas em creches Uma decisão paradigmática do Supremo Tribunal Federal, mais uma vez sob a relatoria corajosa do Fórum Administrativo ‐ FA Belo Horizonte, ano 9, n. 103, set. 2009 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital Ministro Celso de Mello, nos oferece oportunidade de explorar o problema dos limites da decisão judicial em matéria de políticas públicas. A decisão tem a maior importância, no sentido de afirmar o caráter obrigatório dos direitos referidos na Constituição. O argumento da fundamentalidade nesse caso é preponderante, pois o caso trata da educação infantil, compelindo o Município a ofertar vagas em creches e préescolas, de modo a assegurar a formação e proteção das crianças de idade mais tenra. A decisão dá corpo a algo que é consenso entre pedagogos, o caráter determinante da educação nos primeiros anos de vida em relação às possibilidades de evolução pessoal e social do indivíduo. A decisão no Agravo Regimental em Recurso Extraordinário interposto pelo Ministério Público do Estado de São Paulo em face do Município de Santo André, REAgR nº 410.715, tem a seguinte ementa: Recurso Extraordinário – Criança de até seis anos de idade – Atendimento em creche e em préescola – Educação infantil – Direto assegurado pelo próprio texto constitucional (CF, art. 208, IV) – Compreensão global do direito constitucional à educação – Dever jurídico cuja execução se impõe ao poder público, notadamente ao Município (CF, art. 211, §2º) – Recurso Improvido. A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à préescola (CF, art. 208, IV). Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das "crianças de zero a seis anos de idade" (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré escola, sob pena de configurarse inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal. A educação infantil, por qualificarse como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. Os Municípios — que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, §2º) — não poderão demitirse do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade políticoadministrativa dos entes municipais, cujas opções, tratandose do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revelase possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão — por importar em descumprimento dos encargos políticojurídicos que sobre eles incidem em caráter Fórum Administrativo ‐ FA Belo Horizonte, ano 9, n. 103, set. 2009 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital mandatório — mostrase apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à "reserva do possível". Doutrina. Destaquemse na argumentação do voto a refutação às teses da discricionariedade da administração e à reserva do possível comoelementos de amparo à inércia do Poder Público competente para a realização do direito. Mas convém examinar, à luz desse notável acórdão, as relações da decisão judicial com as políticas públicas, sempre contrapondo possibilidades e limites. As conseqüências imediatas que se pode projetar para a oferta de educação infantil no Município de Santo André são a ampliação da oferta, com a construção de creches e a alocação da estrutura e pessoal necessários ao cumprimento da decisão. No entanto, caso exista, de fato, limitação econômica e se trate de invocação leal da reserva do possível, um possível "efeito colateral" poderá ser a retirada de recursos de outro programa para o atendimento desse, com as formalizações pertinentes nos termos da legislação orçamentária, se necessário. Há um risco, portanto, de exacerbação da concorrência entre direitos, privilegiandose aqueles que lograram ultrapassar o filtro de seletividade da atuação do Ministério Público. No plano das possibilidades, devese considerar o aprendizado institucional que deve advir dessa decisão, de modo que o Ministério Público do Estado de São Paulo passe a intentar outras ações semelhantes, em face de outros Municípios, com o efeito global de aumento real da oferta da educação infantil, pelo menos no Estado de São Paulo. No entanto, pareceme que o argumento mais importante, no plano dos limites, é o que se refere à escala, sendo bastante elucidativo o diagnóstico contido no Plano Nacional de Educação, aprovado pela Lei nº 10.172, de 2001, em relação aos antecedentes da carência de vagas na educação infantil. A Sinopse Estatística da Educação Básica/1999 registra um decréscimo de cerca de 200 mil matrículas na préescola, em 1998, persistindo, embora em número menor (159 mil), em 1999. Temse atribuído essa redução à implantação do FUNDEF, que contemplou separadamente o ensino fundamental das etapas anterior e posterior da educação básica. Recursos antes aplicados na educação infantil foram carreados, por Municípios e Estados, ao ensino fundamental, tendo sido fechadas muitas instituições de educação infantil. Na década da educação, terá que ser encontrada uma solução para as diversas demandas, sem prejuízo da prioridade constitucional do ensino fundamental. (item 1.1) Segundo esse diagnóstico, a política pública de universalização da educação fundamental, consubstanciada na criação do Fundo Nacional da Educação Fundamental (Fundef) pela Emenda Constitucional nº 14, de 1996, que alterou o art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, teria operado uma seleção de prioridades, excluindo do financiamento especial os Fórum Administrativo ‐ FA Belo Horizonte, ano 9, n. 103, set. 2009 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital segmentos da educação infantil e do ensino médio. Confirmandose o diagnóstico do PNE, uma resposta satisfatória ao problema teria que assumir a mesma escala do Fundef. E de fato, expirandose a Emenda nº 14, foi aprovada, por iniciativa do Poder Executivo, a Emenda Constitucional nº 53, que instituiu o Fundo Nacional da Educação Básica (Fundeb). O art. 8º, §§1º a 3º, da Lei nº 11.494, de 2007, que regulamenta o Fundeb, considerando a inexistência de vagas disponíveis na rede pública de educação infantil, prevê a possibilidade de oferta de vagas em regime de convênio com creches (crianças de até 3 anos) ou escolas de educação infantil (4 ou 5 anos),13 comunitárias ou filantrópicas, sem fins lucrativos, observados os requisitos pertinentes. A medida resultou de intensos debates no Legislativo, mas parece ter se revelado acertada, como estratégia, conforme dados do censo da educação básica, que apontam o crescimento de matrículas nas creches da rede pública, no território nacional, da ordem de 13,7%, entre 2006 e 2007 (Diário Oficial da União, 14 nov. 2007). O que se demonstra, portanto, é que há uma diferença significativa de escala entre o resultado de uma política pública bemsucedida e o de um conjunto de ações judicialmente igualmente bem sucedidas para exigir o cumprimento de prestações voltadas à efetivação de direitos sociais. Evidentemente, não se trata de abordagens excludentes, mas complementares. Mas a peculiaridade de cada uma há de ser reconhecida, se pretendemos alimentar a pesquisa teórica com demandas jurídicas reais. Conclusão Conjugando possibilidades e limites Seria conservadora, se não retrógrada, uma leitura que atribuísse caráter absoluto aos limites, preservando a esfera de atuação de poderes deslegitimados, em vista do descaso na efetivação dos direitos constitucionais. Uma visita aos presídios brasileiros seria suficiente para convencer quem duvidasse que a implantação da constituição ainda é uma tarefa por se fazer e que deve envolver não só os poderes responsáveis pela formulação de políticas públicas ainda inexistentes, Poderes Executivos e Legislativos das várias esferas federativas, como também, intensamente, o Poder Judiciário, além da imprensa, a sociedade civil organizada e a comunidade internacional, cada um em seu papel.14 A consideração sobre os limites da atuação judicial visa chamar a atenção para o que me parece um desvio da rota mais importante para a implementação dos direitos, em especial os direitos sociais, nas preocupações do constitucionalismo mais avançado. De um lado, considero perigosa a tônica preponderante do controle, que tende a tornar mais robusto o nãofazer do que o fazer do poder público. Essa tônica reforça a oposição entre a Administração Pública, responsável pela outorga de prestações, e os cidadãos. De outro lado, o desejável, na minha opinião, na linha da construção da Administração Pública democrática, seria fomentar mecanismos de coordenação e produção de consenso ou da explicitação e processamento do dissenso, quando aqueles não são possíveis. Nesse sentido os modos de organização e processamento das decisões do poder público, em especial o Poder Executivo, carecem de vigorosa modernização, para o que se reclama a presença da teoria jurídica. Fórum Administrativo ‐ FA Belo Horizonte, ano 9, n. 103, set. 2009 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital A caixa de ferramentas dos juristas para a elaboração das políticas públicas tem, neste momento, pouco mais que alguns apetrechos enferrujados e peças gastas pelo uso. Sempre me pareceu que esse é um debate fora do lugar. O controle judicial das políticas públicas é possível, mas limitado. Do ponto de vista estrito, tratase do controle judicial dos atos e processos jurídicos que compõem a política. Do ponto de vista amplo, tratase de um controle de omissões, quando não há ato ou processo que leve a resultado compatível com o objetivo constitucional. Nesse sentido, a elaboração teórica em torno da noção de política pública deveria anteciparse e se voltar ao estudo das características jurídicas dos atos e processos e, a partir daí, dos modelos jurídicos, que configuram políticas públicas. O desafio está em estudar práticas bemsucedidas de implantação de um regime de direitos, seja no contexto do direito comparado, seja no contexto de experiências de sucesso localizadas para a concretização de um ou outro direito num espaço local definido. Isso exigirá a construção de um acervo de modelos, possivelmente, por temas, isto é, em matéria de saúde, educação, assistência social, posteriormente examinandose as políticas públicas voltadas à infraestrutura. E esses modelos se valerão de determinados instrumentos, e aí, sim, teremos vasto material de trabalho para estudos de direito ainda mais transformadores. 1 O texto é resultado de comunicações feitas no V Congresso Mineiro de Direito Administrativo, em Belo Horizonte, em junho de 2007, e no II Congresso Internacional de Direitos Sociais, promovido pela ProcuradoriaGeral do Município do Rio de Janeiro,em 14 de novembro de 2007. Muito me alegra a oportunidade dessa homenagem ao Prof. Fabio Konder Comparato. A escolha do tema foi natural, não apenas porque se trata do assunto que venho pesquisando nos últimos anos, mas porque a inspiração para o assunto teve origem nas aulas do Prof. Comparato, nas disciplinas Direitos Fundamentais e Direito do Desenvolvimento, que cursei durante o doutorado, quando se abriu, para mim, uma importante chave de conexão entre o pensar e o fazer jurídicos, síntese que representa a marca mais forte do aprendizado com o Prof. Comparato. Ao mestre, com carinho. 2 CYRINO, André Rodrigues. Revolução na Inglaterra? Direitos humanos, Corte Constitucional e declaração de incompatibilidade das leis. Novel espécie de judicial review?. Revista de Direito do Estado, Rio de Janeiro, n. 5, p. 267288, jan.mar. 2007. 3 Vejase, nesse sentido, a esclarecedora retrospectiva traçada por Ana Paula de Barcellos em "O direito constitucional em 2006" (Revista de Direito do Estado, Rio de Janeiro, n. 5, p. 324, jan. mar. 2007). 4 APPIO, Eduardo. Controle judicial de políticas públicas no Brasil. Curitiba: Juruá, 2005; COSTA, Flavio Dino de Castro e. A função realizadora do Poder Judiciário e as políticas públicas no Brasil. Revista do TRF1a. Região, p. 2747; VALLE, Vanice Lírio do. Dever constitucional de enunciação de políticas públicas e autovinculação: caminhos possíveis de controle jurisdicional. Mimeografado; PIOVESAN, Flavia. Justiciabilidade dos direitos sociais e econômicos no Brasil: desafio e Fórum Administrativo ‐ FA Belo Horizonte, ano 9, n. 103, set. 2009 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital perspectivas. Revista de Direito do Estado, Rio de Janeiro, n. 2, p. 5570, abr.jun. 2006; CRISTOVAM, José Sérgio da Silva. O controle jurisdicional das políticas públicas. Informativo de Direito Administrativo e Responsabilidade Fiscal, n. 41, p. 451463, dez. 20042005, entre outros. 5 Referido por Luis Roberto Barroso na conferência "Responsabilidade e Políticas Públicas", de setembro de 2007, noticiada por VALLE, ob. cit., p. 5. 6 COSTA, ob. cit., p. 30. 7 TEIXEIRA, José Elaeres Marques. A doutrina das questões políticas no Supremo Tribunal Federal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005. p. 162. 8 É o caso das ações judiciais para o fornecimento de medicamentos, que deixarei de comentar neste estudo, tendo em vista a grande quantidade de material já produzido sobre o tema. A possível existência de beneficiários privados não carentes, em parcela significativa dessas ações, está sendo trabalhada por Fernanda Terrazas e Virgílio Afonso da Silva em estudo, cujos dados preliminares foram apresentados no II Congresso de Direitos Sociais, de iniciativa da Procuradoria Geral do Município do Rio de Janeiro, naquela cidade, em novembro de 2007. 9 Tratei desses pontos em "O conceito de política pública em direito" (In: BUCCI, Maria Paula Dallari (Org.). Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 150, especialmente p. 36). 10 Em "O conceito de política pública em direito" (ob. cit.), formulei a seguinte proposição: "Política pública é o programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados — processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial — visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. Como tipo ideal, a política pública deve visar a realização de objetivos definidos, expressando a seleção de prioridades, a reserva de meios necessários à sua consecução e o intervalo de tempo em que se espera o atingimento dos resultados." 11 Ob. cit. 12 Extraído da página eletrônica do Ministér io da Saúde sobre o Programa de Aids, <www.aids.gov.br>, em 16 nov. 2007. Texto original de Kenneth Camargo, em outubro de 2005, adaptado pelo Dr. Pedro Chequer, exDiretor do Programa Nacional de DST e Aids. A lei em questão é a Lei nº 9.313, de 13 de novembro de 1996, cujos dispositivos mais importantes são os seguintes: Art. 1º Os portadores do HIV (vírus da imunodeficiência humana) e doentes de AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) receberão, gratuitamente, do Sistema Único de Saúde, toda a medicação necessária a seu tratamento. §1º O Poder Executivo, através do Ministério da Saúde, padronizará os medicamentos a serem utilizados em cada estágio evolutivo da infecção e da doença, com vistas a orientar a aquisição dos Fórum Administrativo ‐ FA Belo Horizonte, ano 9, n. 103, set. 2009 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital mesmos pelos gestores do Sistema Único de Saúde. §2º A padronização de terapias deverá ser revista e republicada anualmente, ou sempre que se fizer necessário, para se adequar ao conhecimento científico atualizado e à disponibilidade de novos medicamentos no mercado. Art. 2º As despesas decorrentes da implementação desta Lei serão financiadas com recursos do orçamento da Seguridade Social da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, conforme regulamento. (...) 13 No caso de estabelecimento para crianças de 4 a 5 anos, a possibilidade é temporária, restrita aos 4 anos de vigência da lei. 14 Cabe referir, mais uma vez, a resenha de Ana Paula de Barcellos: "O contraste da realidade com as pretensões normativas da Carta de 1988 se mostrou tão chocante em determinados momentos que pareceu veicular, afora muitas outras mensagens, uma provocação debochada dirigida aos juristas. É certo, porém, que a constrangedora impotência do instrumental jurídico tradicional para levar a cabo as pretensões de determinadas disposições constitucionais, que se tornou evidente, acabou por fomentar a busca por soluções diversas. Os eventos que talvez ilustrem com maior dramaticidade esse confronto são aqueles que envolveram (e continuam a envolver) a violência, sobretudo urbana, e o sistema penitenciário brasileiro" (Ob. cit, p. 8). Como citar este conteúdo na versão digital: Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BUCCI, Maria Paula Dallari. Controle judicial de políticas públicas: possibilidades e limites. Fórum Administrativo Direito Público FA, Belo Horizonte, ano 9, n. 103, set. 2009. Disponível em: <http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=62501>. Acesso em: 29 jun. 2015. Fórum Administrativo ‐ FA Belo Horizonte, ano 9, n. 103, set. 2009 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital O controle do gasto público pelos Tribunais de Contas e o princípio da legalidade: uma visão crítica Marcos Nóbrega Palavraschave: Gasto público (controle). Tribunais de Contas. Princípio da legalidade. Controle externo (Brasil). Auditoria. Sumário: O sistema de controle externo brasileiro Controle de legalidade e de mérito Auditoria por resultados (performance audit) Conclusões Referências Os direitos administrativo e financeiro brasileiro remontam à clássica tradição européia estabelecida sobremodo no século XIX, o chamado grande século da codificação, quando as bases desses ramos do direito foram estabelecidas. É bem verdade, no entanto, que muito das diretrizes fundantes foram, de fato, postas no século XVIII, considerando os princípios estabelecidos pela Revolução Francesa. No mesmo sentido, a noção de Regime Jurídico Administrativo estabelecendo que a Administração deverá posicionarse em um pólo jurídico de superioridade em relação ao particular. Dessa forma, por óbvio, o princípio que vai balizar toda a interpretação desses ramos do direitoé o principio da legalidade, consubstanciandose no vetor interpretativo balizador da aplicação do direito desde então. No entanto, o crescente aumento das atribuições do Estado somadas às mudanças introduzidas no ordenamento e, o que é mais importante, pelos imperativos de eficiência e transparência que vem pautando a Administração pública desde a última década, colocam em xeque esse princípio da legalidade estrita, condicionando sua abertura para outras óticas e visões da administração pública e da Atividade Financeira do Estado. Dessa forma, considerando o ordenamento administrativo e financeiro pátrios, cumpre investigar como o sistema de controle, particularmente o controle externo, tem se adaptado a todas as inovações e como poderia aprimorarse para fazer face aos desafios do porvir. Sendo assim, fazse mister investigar a princípio as características gerais do nosso modelo de controle externo (Tribunais de Contas), suas vicissitudes e fragilidades para depois pontuar os aspectos que ensejam aperfeiçoamento e aprimoramento. Para tanto, pontos como assimetria de informação e custos de transação devem ser investigados, bem como novos e modernos instrumentos de controle como a performance audit (auditoria de performance). O sistema de controle externo brasileiro Um dos pontos sensíveis da construção de um Estado ágil e transparente é a questão do controle. Esse tema que por muito tempo foi tratado como secundário, pouco relevante, ganha espaço cada vez mais contundente em diversos países. Isso se traduz em duas preocupações. Em primeiro lugar, a necessidade de maximizar a aplicação de recursos escassos e, em seqüência, a importância de incrementar os mecanismos de controle para incentivar a participação da sociedade e o controle social. Assim, para garantir uma maior transparência e confiabilidade nas ações da Administração Pública, que permitam ao cidadãocontribuinte certificarse de que os recursos públicos estão sendo devidamente aplicados, uma série de mecanismos de controle é posta pelo ordenamento jurídico. Percebese também a importância de uma correta modelagem do sistema de controle com fito de revelar o correto nível de esforço do agente público na aplicação adequada dos recursos. Temse, portanto, uma relação clássica de AgentePrincipal quando o Principal seriam os diversos governos e os agentes seriam aqueles que, de fato, são responsáveis pelo processamento da despesa Revista Brasileira de Direito Público ‐ RBDP Belo Horizonte, ano 6, n. 23, out. / dez. 2008 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital pública. Assim, como o auxílio de mecanismos adequados de controle, estaria o Principal (o Governo) mais bem aparelhado para avaliar adequadamente os resultados dos programas empreendidos pelo agente. Fica claro, então, que colusão, deficiências organizacionais, leniência, falta de responsividade, não podem ser adequadamente detectados exceto com uma boa supervisão e controle (Código de Boas Práticas IMF). Nos últimos tempos e em vários contextos, têmse aprimorado os mecanismos de controle externo aplicados à fiscalização da atividade administrativa e financeira. Esse controle é exercido por agente exterior aquele que pratica o ato. Tratase, por definição, de controle independente que deverá incidir sobre a função administrativa e financeira de todos os poderes. No caso brasileiro, esse controle deve, em primeira medida, averiguar a compatibilidade do exercício da função administrativa com a lei. Não poderá adentrar o juízo de conveniência e oportunidade exercido pela Administração Pública, por se tratar de manifestação meritória que foge ao escopo do controle em apreço. Existem dois principais sistemas de controle externo no mundo. O modelo de Auditor Geral (Westminster Model) e o modelo de Tribunais de Contas. O modelo de Auditor Geral é usado no Reino Unido e em muitos países do Commonwealth, além de países da África subsaariana e alguns países europeus como Irlanda e Dinamarca. Esse modelo também é encontrado (com pouca freqüência) em países latinoamericanos como Chile e Peru. Considerando 126 Instituições Superiores de Controle (ISC) em várias partes do mundo, esse modelo é utilizado em 73 países (57% da amostra), enquanto que o modelo de Tribunais de Contas é observado em 17 países (13%) e encontramos em modelos híbridos nos demais países da amostra (30%). Esse modelo de Auditor Geral é conectado ao sistema parlamentar de accountability na medida em que as avaliações efetuadas pelo Auditor Geral são reportadas ao Parlamento. O Parlamento então faz as recomendações para o Executivo e, finalmente, este responde ao Parlamento. Uma das grandes fragilidades do modelo de Auditor Geral é seu caráter centralizador e fortemente marcado pela figura do Auditor Geral. O mandato do Auditor é geralmente estabelecido para um período fixo que, às vezes, pode ser estendido. Não há qualquer função judicial, cabendo ao Auditor Geral apenas preparar relatórios e dar ao Parlamento uma visão abrangente sobre as contas públicas auditadas. O foco do controle é, portanto, de natureza financeira e o perfil profissional dos servidores é quase exclusivamente composto de auditores e contadores. O modelo de Auditor Geral é também fortemente direcionado para uma auditoria financeira e no "value of Money", deixando a auditoria de legalidade, a auditoria dos parâmetros legais para segundo plano. O modelo de Tribunal de Contas, por sua vez, pode ser visto em países europeus como França, Espanha e Portugal. Países latinoamericanos, como Argentina e Brasil, também seguem esse modelo, bem como as excolônias portuguesas na África, cito Moçambique e Angola. Os Tribunais de Contas são, via de regra, órgãos colegiados, favorecendo o contraditório e o debate. Nas Cortes de Contas, os membros geralmente são juízes que podem impor sanções e sugerir ações corretivas para os auditados. Por isso mesmo, os membros possuem sólidas garantias funcionais, sendo geralmente investidos por tempo indeterminado e podendo ser destituídos somente mediante processo especial, dando a eles, portanto, considerável estabilidade funcional. O modelo brasileiro apresenta algumas peculiaridades que repercutem no seu desempenho. Um Revista Brasileira de Direito Público ‐ RBDP Belo Horizonte, ano 6, n. 23, out. / dez. 2008 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital primeiro ponto relevante é a abrangência do sistema. No Brasil, além do Tribunal de Contas da União (TCU), existem 27 Tribunais de Contas dos Estados (TCEs), seis Tribunais de Contas dos Municípios e mais dois Tribunais de Contas do Município (Rio de Janeiro e São Paulo), somando um total 38 Tribunais espalhados pelo país. Há, portanto, uma imensa capilaridade, abrangência do sistema. Poucos países do mundo (sobretudo aqueles de dimensões continentais como o Brasil) possuem um sistema de controle tão abrangente e já instalado, caracterizando um diferencial extremamente importante para o nosso controle. Embora em diversos países os Tribunais de Contas pertençam ao Poder Judiciário e suas decisões possuam força de sentença judicial, isso não ocorre no caso brasileiro. Apesar de a moderna doutrina apontar os Tribunais de Contas como órgãos de estatura constitucional, independentes de qualquer outro poder, não apresentam perfil judicante; são tribunais administrativos e suas decisões podem ser revistas pelo Poder Judiciário. Nesse sentido, há no caso brasileiro uma sensação de que os Tribunais de Contas pouco punem. Cabe então, encontrar mecanismos de incentivos para aumentar o enforcement das suas deliberações. Além disso, a arquitetura institucional da formação do corpo de julgadores (conselheiros) não privilegia critérios técnicos, o que contribui para uma baixa credibilidade do controle. Ademais, muitas vezes reformas nas leis orgânicas nos Tribunais de Contas, emnome de modernidade, acabam por complicar as rotinas, burocratizando procedimentos e aumentando os processos formalizados. Assim, depois das reformas, constatase que os Tribunais podem até julgar mais, proferir mais decisões, no entanto, a eficiência da ação continua deficitária. Isso muitas vezes é útil para os Tribunais advogarem mais recursos orçamentários dos seus governos em contrapartida ao aumento dos seus custos operacionais. Logo, se aparentemente mostram melhores resultados, podem pleitear mais recursos. É óbvio que isso depende de cada situação específica e merece uma abordagem mais apurada. Se não bastassem problemas estruturais, há problemas sistêmicos do nosso modelo clássico de direito administrativo e financeiro. Controle de legalidade e de mérito O nosso modelo jurídico de tradição francesa (civil law) apresenta a lei como principal fonte do direito e o princípio da estrita legalidade passou a ser o grande vetor da aplicação do nosso direito administrativo e financeiro. Ocorre o contrário nos países de common law onde a jurisprudência (e não a lei) é a principal fonte jurídica. Como corolário desse aspecto, ainda estamos presos, no sistema brasileiro, a parâmetros e padrões estabelecidos no século XIX, quando as bases do direito administrativo e financeiro franceses (que ainda hoje nos serve de alicerce) foram estatuídas. Assim, reverberando o "estado de artes" daquele século, o direito administrativo e financeiro pressupõem informação perfeita, contratos simétricos e ausência de custos de transação. Essa pouca flexibilidade do sistema brasileiro tem trazido uma série de dificuldades, sobremodo porque o próprio Poder Judiciário e os Tribunais de Contas ainda raciocinam na base do estrito legalismo, criando dificuldades imensas para a efetividade do controle. É bem verdade que a própria Constituição Federal (art. 71) estabelece a necessidade do cumprimento de parâmetros de economicidade e de eficiência (art. 37), no entanto ainda pouca concretude tem sido dada a esses princípios. Revista Brasileira de Direito Público ‐ RBDP Belo Horizonte, ano 6, n. 23, out. / dez. 2008 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital O controle de legalidade é importantíssimo e não deve ser abandonado, no entanto a ele deve ser acrescentada a análise do mérito da despesa pública, quanto à eficiência da aplicação dos recursos escassos. Percebam que no modelo de simples legalidade, a ação do controle tem muito poucas condições de revelar o nível de esforço do agente e ajudar na modelagem mais adequada de contratos. Um controle baseado apenas, ou preponderantemente, na legalidade servirá pouco como instrumento de revelação de informação. Um controle principalmente focado na legalidade minimiza o esforço do agente e gera perda de eficiência. Essas deficiências e restrições também são notadas quando discutimos o momento em que o controle é efetivado. Percebese que o controle prévio é modelado ex ante, previamente à execução do bem ou serviço e sendo pouco útil para o Principal estabelecer seu esquema de incentivos. Além disso, em muitos países, o controle prévio ainda tem um perfil burocratizante e cartorial, como em Portugal e em muitos países africanos de língua portuguesa. Lá, o instituto do "visto prévio" coloca imensos entraves ao célere processamento da despesa além de não comunicar informação alguma. Assim, o controle prévio pode ser utilizado como ferramenta auxiliar no entanto não devendo ser o mais importante controle utilizado, principalmente pela sua reduzida capacidade de revelar informações do nível de esforço despendido pelo agente. O controle sucessivo, por sua vez, tem por objeto avaliar, ex post, a legalidade, a correção, a eficiência e a adequação da gestão financeira, bem como a correta aplicação dos programas governamentais. No caso dos Tribunais de Contas, por determinação legal, todas as contas de gestores públicos são devidamente auditadas. Dessa forma, o problema não é especificamente quanto se audita, mas como se audita. Se a auditoria for bem conduzida e utilizar parâmetros adequados, certamente diminuirão os custos de agência. Por outro lado, quando o grau de penalidade imposto é baixo ou pouco efetivo, devem ser construídos outros incentivos para melhorar a ação do controle. Em qualquer circunstância, tem que ser avaliado o custo benefício da ação do controle, seu retorno efetivo. Um controle baseado exclusivamente em rotinas e parâmetros estritamente legalistas será extremamente caro diante da baixa capacidade de revelar a qualidade do gasto público. Esse parece ser um grave problema das Cortes de Contas no Brasil. Um ainda acentuado viés prólegalista diminui a efetividade do controle e compromete a percepção da sociedade quanto à utilidade. Se não bastasse, há um problema de inconsistência temporal. Muitas vezes há um enorme lapso entre a realização da despesa e a ação da auditoria, fazendo com que a informação revelada seja pouco útil, aumentando o custo relativo do controle. Ademais, considerando a nossa tradição processualística e formalista, o excesso de rotinas, procedimentos e processos determinam um imenso custo de transação na ação do controle. É necessário, no âmbito das Cortes de Contas brasileiras, promover um amplo processo de desburocratização e simplificação, com vistas a baratear e racionalizar a ação do controle. Uma possível "Lei Orgânica dos Tribunais de Contas" embora podendo enfrentar entraves constitucionais, decerto poderia ajudar bastante. No mesmo sentido, um possível "Conselho Nacional dos Tribunais de Contas", a exemplo do que já ocorre no Brasil com o Poder Judiciário e o Ministério Público, seria um instrumento para uniformização de rotinas, transparência e accountability. Por fim, a criação no Brasil do "Conselho de Gestão Fiscal", importante inovação trazida pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF, 2000), que teria, entre outras atribuições, uniformizar procedimentos para a aplicação da lei pelos Tribunais de Contas. Revista Brasileira de Direito Público ‐ RBDP Belo Horizonte, ano 6, n. 23, out. / dez. 2008 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital Evidentemente essas fragilidades repercutem nos critérios de julgamento. Ainda são poucos os julgados que evocam a preocupação com parâmetros de eficiência ou custobenefício. Não há ainda preocupação com a repercussão econômica das decisões, ou seja, seu impacto no nível de atividade de um determinado município e as externalidades que poderão advir do decisum. O "confortável" manto do estrito legalismo, do positivismo exacerbado, impede um critério de julgamento mais condizente com a realidade social, com os impactos econômicos e com o princípio da eficiência. Dessa forma, é fundamental ampliar o escopo das auditorias, incorporando aspectos que vislumbrem a performance do gasto público. Uma auditoria baseada em performance certamente possibilitará ao Principal detectar corretamente a qualidade do gasto público e propor providências para dirimir as distorções. Um passo adiante precisa ser dado e a mudança ou aperfeiçoamento dos métodos de análise precisam ser buscados. A auditoria de desempenho pode dar uma boa resposta a isso tudo. Auditoria por resultados (performance audit) Vários países latinoamericanos fizeram, no âmbito do chamado "Consenso de Washington" um enorme esforço de equilíbrio fiscal e modernização de suas economias. Feitas as reformas, uma nova agenda se instalou apontando para a melhoria dos padrões de gasto público. Assim, mecanismos de avaliação de gestão, conduzindo a sistemas de indicadores de desempenho passam a ser imperiosos. Esses fatores determinarão novos desafios para o controle, sobretudo para os Tribunais de Contas, e facilitarão a participação da sociedade na análise e controle dos gastos públicos. A avaliação deve ser cuidadosa com os outputs; outcomes;impacto e alcance. Os outputs são os resultados imediatos, como por exemplo, número de crianças matriculadas em escolas públicas ou o número de pessoas atendidas em hospital público. O outcome, por sua vez, apresenta uma dimensão dinâmica e corresponde aos desdobramentos daquela despesa. Assim, seriam outcomes a melhoria da qualidade do ensino ou as oportunidades que os alunos tiveram após concluir seus estudos, além de amplas metas como a diminuição da pobreza e do analfabetismo. No caso da saúde, o aumento da expectativa de vida ou a diminuição da mortalidade infantil. Na verdade, o outcome considera as externalidades (spillovers) advindas do gasto público. O impacto deverá repercutir as metas e conseqüências para futura provisão de bens e serviços públicos e o alcance preocupase em detectar se os programas estão realmente atingindo a populaçãoalvo. Dessa forma, há a necessidade imperiosa da implementação de uma auditoria de desempenho (performance audit), transcendendo o aspecto da mera legalidade, voltandose para a eficiência, qualidade, economicidade e maior transparência do gasto público. Embora a idéia seja intuitiva, a sua implementação não é tão simples. É preciso uma mudança profunda na mentalidade de gestores, políticos e burocratas. A administração e o controle autoreferido, pouco eficiente e sem transparência, dificulta a obtenção de melhores resultados, ensejando o desperdício de talento, energia e dinheiro. Sendo assim, para uma auditoria por desempenho é fundamental, em primeiro momento, a modernização das técnicas orçamentárias e financeiras. No caso brasileiro, a legislação ainda não captou adequadamente essas inovações, embora a Lei de Responsabilidade Fiscal tenha estabelecido importantes avanços na preparação e análise dos orçamentos. No entanto, ainda não conseguimos estabelecer um adequado benchmark para avaliar o impacto das políticas públicas em diferentes grupos sociais. Um bom caminho seria a utilização do Poverty and Social Impact Analisys Revista Brasileira de Direito Público ‐ RBDP Belo Horizonte, ano 6, n. 23, out. / dez. 2008 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital (PSIA) que contribuiria para (Código de Boas Práticas IMF, 2007): Relacionar as reformas políticas e seu impacto na pobreza e em determinados grupos sociais; Explicitar o impacto redistributivo de políticas públicas; Reforçar os aspectos positivos das reformas; Identificar fragilidades de gerenciamento e os riscos políticos implícitos nas reformas. O Fundo Monetário Internacional (FMI) chama a atenção que embora não exista um modelo de avaliação padrão, essas análises deverão considerar os grupos sociais afetados; os mecanismos necessários para implementação das reformas; os mecanismos de transmissão (emprego, preços, etc.), além de riscos críticos que poderiam colocar em xeque o sucesso das reformas. Tais análises são complexas e, em muitos casos, as conclusões são suportadas por rigorosos estudos analíticos considerando, por exemplo, análise de incidência (incidence analisys) ou mesmo modelos de equilíbrio geral (computable general equilibrium). De qualquer forma, ao avaliar os programas governamentais e implementar uma abordagem de performance, devemos ter em mente que não se trata apenas de um instrumento de informação externa, mas sim poderoso elemento que ajudará o gestor no aperfeiçoamento das políticas públicas. Sendo assim, para analisar os programas com base em desempenho, devemos considerar (WHOLEY, 2005): Se os resultados da avaliação influenciarão as futuras decisões sobre o programa de governo. Se a avaliação poderá ser feita em tempo hábil, dando agilidade à ação do controle. Quanto tempo e esforço levarão para coletar as informações devidas. Se o programa é relevante o bastante para merecer uma análise de mérito e se o montante de recursos envolvidos no programa justificam uma análise de performance. Além disso, temos que considerar se o sistema orçamentário deve ser apto a absorver essas metodologias. O chamado PerformanceBased Budget procura transcender as clássicas formatações de orçamento, como o orçamentolinha ou a abordagem marginalista (zerobased) e o orçamento programa, para focalizar sua ação nos resultados e nos incentivos que levam a uma adequada execução orçamentária. Em termos de ação do controle externo, deverá se preocupar com a matriz de risco (risk audit), a materialidade e o destinatário da informação. Deve estar atenta para os mecanismos que convertem inputs em outputs e avaliar com precisão se o nível de esforço do agente está sendo adequadamente convertido em resultados. Dessa forma, detectará o adequado "estado de natureza" no qual a implementação do programa governamental se desenvolve. Como exemplo, uma ação do Tribunal de Contas em pequena localidade pode detectar a baixa qualificação da Revista Brasileira de Direito Público ‐ RBDP Belo Horizonte, ano 6, n. 23, out. / dez. 2008 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital burocracia local para implementação do programa (baixo estado de natureza). Nesse caso, sinalizará para o Principal (governo local) a necessidade de treinamento e capacitação para adequada implementação dos programas porque este problema está impedindo a execução de adequado nível de output. Ao dar total transparência das suas auditorias, ajudará o governo local a modelar os seus programas, estabelecendo melhores mecanismos para a efetividade dos seus gastos. Percebese que a introdução de auditorias de desempenho diminuirá os custos de transação do sistema, facilitando a ação da Prefeitura. Vêse, portanto, que ainda está sendo feito um enorme esforço conceitual para estabelecer adequado benchmark e desde já vislumbramos o imenso esforço que os Tribunais de Contas terão para implantar essas metodologias. Conclusões Como vimos, não se pode querer aplicar o direito com base em cânones estabelecidos quase duzentos anos atrás. O princípio da legalidade é, antes de tudo, uma conquista irretorquível, um princípio basilar do qual se extraem tantos outros, permitindo um controle e uma administração pública mais racional e profissional. Não por menos, esse princípio foi importante pano de fundo para o estabelecimento de uma administração burocrática, nos moldes weberianos. Essa administração e, como corolário, esse controle está baseado no racionalismo, nas rotinas claramente predefinidas, da codificação (existência de manuais) e da profissionalização. O controle, com certo retardo, seguiu esse caminho e se profissionalizou para acompanhar o estabelecimento de uma burocracia profissional e moderna. É bom que se diga que com o advento da Emenda Constitucional nº 19 e todo o processo de reforma do Estado que daí adveio, uma tendência de estabelecimento de uma administração gerencial, voltada para o cidadão e focada em resultados e não mais em rotinas passou a ser a tônica. Essa nova Administração está calcada em parâmetros de eficiência, produtividade, responsividade, accountability e cidadania. Nesse caso, há de se inquirir se o aparado de controle está apto para compreender, processar as mudanças e agir dentro desse novo ambiente institucional. Assim, nesse novo contexto, o estrito legalismo, fruto de herança continental, sobretudo ibérica, perde força e deve abrir espaço para uma análise mais aprofundada, visando à eficiência. O controle não pode continuar voltado para o passado atado a duas amarras: o legalismo e a burocracia. Dessa forma, quando diante de desafios, reage simplesmente com produção normativa que é a solução burocrática clássica para resolver problemas. Quanto mais legislação e intrincadas regras processualísticas, mais se abre espaço para comportamentos rent seeking e imensos custos de transação. Transitar para um modelo de administração eficiente sem um correlato avanço do controleseria uma vitória de Pirro. Assim, os desafios são imensos e os Tribunais de Contas, gestados em um ambiente conservador, muito custaram a sequer perceber que estávamos em um Estado burocrático e não patrimonialista. Agora, continuam padecendo de uma lentidão crônica, tendo enormes dificuldades de apreender e aprender as regras de uma administração gerencial e eficiente. Há pouca, ou nenhuma, preocupação com a eficiência econômica das decisões e a necessidade de reformas tornase imperiosa para que as instituições de controle possam adequar se aos imensos desafios do século XXI. Revista Brasileira de Direito Público ‐ RBDP Belo Horizonte, ano 6, n. 23, out. / dez. 2008 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital Referências AHMAD, Ehtisham; MARTINEZ, Leonardo. On the Design of Targeted Expenditure. IMF Working Paper, WP/04/220, 2004. AHMAD, Ehtisham; TANDBERG, Eivind; ZHANG, Ping. On National and Supranational. [Washington, D.C.]: International Monetary Fund, 2002. DABLANORRIS, Era; PAUL, Elisabeth. What Transparency Can Do When Incentives Fail: An Analysis of Rent Capture. IMF Working Paper, WP/06/146, June 2006. ISLAM, Roumeen. 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Belknap Press of Harvard University Press, 2004. Como citar este conteúdo na versão digital: Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NÓBREGA, Marcos. O controle do gasto público pelos tribunais de contas e o princípio da legalidade: uma visão crítica. Revista Brasileira de Direito Público RBDP, Belo Horizonte, ano 6, n. 2 3 , o u t . / d e z . 2 0 0 8 . Disponível em: <http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx? pdiCntd=56093>. Acesso em: 29 jun. 2015. Revista Brasileira de Direito Público ‐ RBDP Belo Horizonte, ano 6, n. 23, out. / dez. 2008 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital Empresas estatais e o controle pelos Tribunais de Contas Alexandre Santos de Aragão Empresas estatais. Tribunais de Contas. Fiscalização. Controles externos.1 Introdução 2 Os contratos voltados às atividadesfim das estatais 3 A fiscalização sobre as empresas privadas contratadas pelas estatais 4 A perspectiva consequencialista e os princípios constitucionais aplicáveis 4.1 Princípio da proporcionalidade 4.2 Princípio da eficiência 4.3 Princípio da economicidade 5 Conclusões 1 Introdução O Direito procura elaborar classificações e conceitos para sistematizar o seu estudo, para organizar um plexo indeterminável de casos e situações concretas. Se, por um lado, não podemos perder de vista que esse esforço metodológico atende a uma legítima necessidade pedagógica de organização dos institutos, por outro, não podemos perder de vista que, sobretudo na pósmodernidade1 em que vivemos, os conceitos e classificações (com as suas conseqüentes disciplinas) estanques constituem apenas uma tentativa vã de apreender uma realidade fluida e multifacetária, que a todo momento demanda tratamentos específicos para dar conta das suas peculiaridades à luz dos valores maiores contemplados na Constituição, em primeiro lugar, e, também, nas legislações setoriais. É inegável o papel dos conceitos jurídicos, naturezas jurídicas e classificações2 p a r a a sistematização da ciência jurídica, principalmente para fins didáticos. Essa importância não deve, contudo, ser superdimensionada, havendo de se ter consciência dos seus limites diante da realidade multifacetária e dinâmica que pretendem, em uma contínua tentativa, organizar, 3 sempre a partir do direito posto pelo legislador.4 Robinson denuncia que "as cansativas pesquisas dos juristas para `descobrir' a natureza jurídica de determinada instituição ou relação estão de antemão irremediavelmente fadadas ao fracasso. A explicação para que, apesar de tudo isto, continuarse tentando elaborar conceitos, classificações e naturezas jurídicas, é, entre outras, o desejo de se achar um ponto de partida fixo e seguro para a posterior tarefa de classificação e sistematização. Além disso, há o desejo de equiparar as instituições de surgimento recente às de outras linhagens mais ilustres, atenuando dessa maneira o choque da novidade mediante sua absorção por um mundo familiar de idéias já elaboradas".5 Ensina Genaro R. Carrió que "não podemos ter a falsa segurança de que os tecnicismos da linguagem jurídica podem enquadrar todos os casos. A experiência diária dos tribunais e, em geral, o contato profissional com o Direito, nos mostram que essa segurança é quimérica. (...) Não há como deixarmos de tropeçar com a imprecisão e a relatividade dos conceitos jurídicos, pois existem numerosas zonas de transição, nas quais o jurista deve estar atento para não cair na tentação de uma perigosa geometria jurídica".6 A teoria dos princípios se soma a essas necessidades práticas para tornar cada vez mais concreta interpretação do Direito Administrativo, em uma evidente aproximação do nosso sistema ao da common law,7 já que, como hoje já é de conhecimento comum, a ponderação e aplicação dos princípios só pode ser definida diante dos casos concretos, variando a solução final de acordo com Revista de Direito Público da Economia ‐ RDPE Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2008 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital as características de cada um.8 É justamente à luz desses paradigmas teóricos que pretendemos fazer uma releitura de algumas linhas a respeito das extensões horizontais (tipos de atos e contratos controláveis) e verticais (com que profundidade os atos sujeitos a controle podem ser censurados) dos controles pelos Tribunais de Contas das sociedades de economia mista e empresas públicas, atuando elas ou não em concorrência com a iniciativa privada. Pretendemos demonstrar que não existe apenas uma espécie de controle dos Tribunais de Contas sobre as empresas estatais. O conteúdo desse controle varia de acordo com as situações concretas que podem ocorrer, possuindo, portanto, diversos possíveis matizes. Procuramos identificar alguns deles. 2 Os contratos voltados às atividadesfim das estatais Em 04 de junho de 1998 foi promulgada a Emenda Constitucional nº 19, conferindo nova redação ao §1º do art. 173 da Constituição, de forma a reforçar a sujeição das empresas públicas e sociedades de economia mista ao regime jurídico próprio das empresas privadas, assegurandolhes igualdade de condições, inclusive no que diz respeito às suas contratações,9 desde que respeitados os princípios gerais da administração pública, isto é, a legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37, caput, CF). Referido dispositivo constitucional é corolário do princípio constitucional da isonomia,10 vedando o estabelecimento de quaisquer distinções, sejam elas favoráveisàs empresas estatais ou não. Nesse sentido, esclarece Marçal Justen Filho que "a competição com o setor privado deve fazerse em igualdade de condições. Se não se admitem vantagens ou benefícios, também não se podem admitir regras mais desvantajosas do que as praticadas no âmbito privado". Do mesmo modo, José Eduardo Martins Cardoso ensina que também "haverá de ser ofensivo à nossa Lei Maior o estabelecimento de quaisquer deveres ou ônus de atuação que impeçam sua atuação no mercado nos moldes em que uma empresa privada o faria. Deverão sempre atuar em pé de igualdade, vedados privilégios e o estabelecimento de ônus de qualquer natureza que impliquem formas de desigualdade jurídica de tratamento ao longo de suas respectivas atuações no campo econômico."11 Assim, entender de forma diferente é desatender "à ratio da norma constitucional que determina a igualdade de tratamento, sob regime privado, entre as duas diferentes espécies de empresa."12 Também nesse sentido, Floriano de Azevedo Marques Neto aduz que "a interface entre os entes estatais exploradores de atividades econômicas pelo prisma de competição (empresas estatais e suas concorrentes privadas) deve se dar em condições de ampla e justa competição, sendo vedada qualquer regra legal que ofereça privilégio ou, ao contrário, estabeleça restrições à atuação do ente estatal".13 Nguyen Quoc Vinh14 sustenta que é imprescindível conferir autonomia à empresa pública, do que decorre que os controles sobre elas exercidos devem ser mais brandos. Nas suas palavras "os controles exercidos sobre a empresa pública devem salvaguardar a necessária autonomia destas Revista de Direito Público da Economia ‐ RDPE Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2008 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital últimas. Com efeito, muito embora dependam do Poder Público, a empresa pública não merece ser denominada de empresa a não ser que possua uma vida própria e persiga livremente o seu objeto". E acresce o autor: "o movimento em favor da autonomia reforçada das empresas públicas se explica notadamente por considerações conjunturais, pelo desejo de assimilar a empresa pública a uma empresa privada (...) O reforço da autonomia da empresa pública deverá ser acompanhado de um abandono progressivo das regras derrogatórias do direito privado". E aqui, devemos esclarecer: ainda que exploradora de atividade econômica lato sensu consistente em serviço público,15 eventualmente sem concorrentes privados, se aplica o art. 173 da CF, já que, se não fosse para se valer dos meios mais ágeis da iniciativa privada, não haveria por que o Legislador transferir aquela atividade para uma empresa do Estado. Poderia têla deixado na Administração Direta ou entregue a uma simples autarquia. Essa é a mesma lógica que faz com que, por exemplo, o pessoal das estatais sejam regidos pela CLT, sejam elas prestadoras de serviços públicos econômicos ou de atividades econômicas stricto sensu. Também nesse sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello afirma que "o Poder Público, invejando a eficiência das sociedades comerciais, tomou de empréstimo os figurinos do direito privado e passou a adotarlhe os processos de ação, constituindo pessoas modeladas à semelhança delas para prestação dos mais variados serviços. Quer para a prestação de serviços públicos propriamente ditos, quer para o desempenho de atividades de exploração econômica em setores onde se fazia necessária sua atuação supletiva ou, até mesmo, monopolística, o Estado acolheu o sistema próprio do direito privado, pela natureza peculiar da atividade que, por assim dizer, não se compatibiliza com outro meio de ação".16 Essa necessidade de conferir às empresas estatais igualdade de condições de competição no mercado pressupõe o tratamento especial de suas atividades em comparação ao tratamento conferido aos demais órgãos e entidades da Administração Pública. Assim é que, por exemplo, no que concerne ao seu regime licitatório, prevê a Constituição Federal (art. 173, §1º, III) que a lei que estabelecer o seu estatuto jurídico poderá prever um sistema licitatório especial, diverso daquele previsto na Lei nº 8.666/93. Isso porque, como explica Gustavo Binenbojm:17 A verdade é que a aplicação da Lei 8666/93 às empresas estatais exploradoras de atividade econômicas sempre se revelou problemática na prática, seja pela excessiva lentidão e onerosidade de seus ritos, como pela baixa economicidade de seus resultados. Inseridas, muitas vezes, em ambientes de livre concorrência, a Lei de Licitações sempre representou um ingrediente importante da baixa competitividade das estatais brasileiras visàvis de empresas privadas libertas dos mesmos entraves burocráticos. Adicionalmente, a doutrina18 ainda defende que as empresas estatais não estão submetidas ao dever de licitar quando no exercício das suas "atividadesfim",19 também como decorrência da garantia de igualdade de condições de competitividade. Afinal, tais empresas podem ter que disputar mercado com suas concorrentes privadas e, se tivessem que licitar obrigatoriamente, seriam prejudicadas pelo tempo necessário e pelos custos a maior que lhe seriam impostos.20 Revista de Direito Público da Economia ‐ RDPE Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2008 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital Por essas razões, Marçal Justen Filho afirma que "não seria imaginável impor obrigatoriedade de licitação como requisito para exercício pela entidade de contratos que constituam o núcleo de seu objeto. (...) A diferença entre atividadefim e atividade meio está na vinculação do contrato com o objetivo cujo desenvolvimento constitui a razão de ser da entidade. A atividade fim é aquela para a qual se vocaciona a sociedade de economia mista ou empresa publica."21 Nesse ponto, há a jurisprudência do Tribunal de Contas no sentido de que as estatais exploradoras de atividade econômica, nas contratações diretamente relacionadas à sua atividade fim, não devem observar a Lei nº 8.666/93.22 Há inúmeros julgados nesse sentido,23 porém, citase como exemplo o Acórdão nº 624/2003, que em julgamento das contratações de seguros efetuadas pelo Banco do Brasil, considerou que "restou demonstrado que a contratação dos seguros ora tratados consubstanciase em atividade eminentemente financeira, coincidindo com a atividadefim do Banco do Brasil, tornando, portanto, nãoobrigatória a realização de procedimento licitatório sob a regência da Lei 8.666/93 nessas contratações". O mesmo Tribunal, no Acórdão nº 121/1998, entendeu que não estava obrigada a Petrobras Distribuidora BR a realizar processo licitatório para as contratações de transportes que sejam atividadefim da empresa, permanecendo esta obrigatoriedade tão somente para as atividades meio. Nos termos do voto do Relator, o Ministro Iram Saraiva: (...) Como acima enunciado, a Constituição Federal de 1988 (original), em seu Art. 37, inciso XXI, estabelece uma regra geral, aplicável inicialmente a todas as empresas estatais. Por outro lado, o art. 173 separa uma espécie de empresa estatal, a que explora atividade econômica. Desta vez, para dizer que apenas esta pode e deve regerse pelas mesmas normas aplicáveis às empresas privadas. (...) Vale ainda lembrar que as empresas estatais, especialmente as constituídas sob a forma de sociedade anônima, estão presas a um dever de eficiência, segundo dispõe a Lei das Sociedades Anônimas nº 6.404/76: "Art. 153 O administrador da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios. "Art. 238 A pessoa jurídica que controla a companhia de economia mista tem os deveres e responsabilidades do acionista controlador (artigos 116 e 117), mas poderá orientar as atividades da companhia de modo a atenderao interesse público que justificou a sua criação". (...) Esta constatação tornouse mais clara com o advento da Lei 9.478/97, que consolidou o acirramento da concorrência no setor em que a BR atua, constituindo fato novo a corroborar a necessidade da empresa atuar com agilidade e competitividade no mercado, como forma de preservar o patrimônio que a constitui. 23. Neste sentido cumpre destacar que por força do "caput" e parágrafos do artigo 61 da lei que instituiu a ANP Agência Nacional do Petróleo, a Petrobras e suas subsidiárias, dentre elas a BR, quando desenvolverem atividade econômica relativa à pesquisa, à lavra, à refinação, ao processamento, ao comércio e ao transporte de petróleo e de seus derivados, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos, bem como de quaisquer outras atividades correlatas ou afins, devem atuar em caráter de livre competição com outras empresas, em função de condições de mercado. (...) Por isto, viável a contratação direta de bens, serviços Revista de Direito Público da Economia ‐ RDPE Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2008 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital e produtos atinentes à atividadefim da BR, ou seja, aqueles decorrentes de procedimentos usuais do mercado em que atua e indispensáveis ao desenvolvimento de sua atividade normal, dentre eles, o transporte dos produtos por ela distribuídos. (...) para poder concorrer, em igualdade de condições com as outras empresas privadas distribuidoras de derivados de petróleo (atividade não monopolizada), a Petrobrás Distribuidora S/A BR precisa ter liberdade de contratação, para bem negociar os contratos de transporte. Sem isso, ela não tem como manterse. (...) Isso é o que deflui da interpretação sistemática da Constituição Federal. O art. 37 efetivamente estabelece uma obrigatoriedade geral de licitar, para todas as entidades da administração indireta ou descentralizada, sem exceção. Lido isoladamente, fora de seu contexto, essa é a interpretação dele decorrente. Mas nenhuma disposição normativa tem vida fora do contexto em que está necessariamente inserida. O universo normativo não é um amontoado caótico de prescrições, mas, sim, um sistema, organizado, articulado e hierarquizado, no qual as contratações são apenas aparentes. Interpretado sistematicamente, em conjunto com o disposto no art. 173 (...) o art. 37 apenas estabelece uma regra geral, que, entretanto, não é absoluta, pois encontra exceção exatamente na disciplina jurídica constitucionalmente estabelecida para as empresas estatais exploradoras da atividade econômica, as quais devem atuar em regime de competição, ao lado dos particulares, em relação aos quais não pode ter nem privilégios nem desvantagens, salvo aqueles decorrentes dos fins sociais que determinam sua criação. (...) Portanto, a liberdade de contratação de serviços de transporte, como parte essencial da atividade de distribuição, que é a atividadefim por excelência dessa empresa, nunca foi ilícita. Aliás, o direito nunca foi incompatível com o simples bomsenso. Atualmente, a licitude dessa conduta ficou ainda mais acentuada. Com efeito, após a promulgação da Emenda Constitucional nº 19 (Reforma Administrativa), que introduziu na Administração Pública um modelo gerencial, no qual o controle dos processos administrativos passa a ser substituído pelo controle de resultados, a liberdade de contratação pelas empresas estatais exploradoras de atividade econômica foi ainda mais acentuada. O §1º, do art. 173, afirma, textualmente, que essas empresas devem regerse, em seus direitos e obrigações comerciais, pelas mesmas normas aplicáveis às empresas privadas e, no tocante aos procedimentos licitatórios, permite a edição de regulamentos próprios, sempre com observância dos princípios da administração pública. Essa liberdade foi compensada por mecanismos mais adequados de controle [em observância, acrescemos, ao princípio da proporcionalidade], como é o caso da criação das agências reguladoras.24 Tal entendimento vem sendo reafirmado pelo Tribunal de Contas da União em decisões recentes, como no voto do Exmo. Ministro Relator Ubiratan Aguiar, que ressaltou que "não se aplica a Lei nº 8.666/93 à atividade fim das empresas públicas e das sociedades de economia mista, desde que os trâmites inerentes a esse procedimento constituam `óbice intransponível à atividade negocial da empresa, que atua em mercado onde exista concorrência'".25 Além do regime específico de contratações, outros instrumentos também são utilizados para garantir às empresas estatais igualdade de condições de atuação no mercado. Como afirma José Leal,26 "tal expediente dar às sociedades de economia mista a natureza jurídica de direito privado Revista de Direito Público da Economia ‐ RDPE Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2008 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital cumpre diversos objetivos. Dentre eles o acima mencionado, de darlhes uma estrutura administrativa análoga à das empresas privadas com as quais irá concorrer. Um outro objetivo é gerir os seus recursos humanos dentro de regras de mercado, isto é, sua mãodeobra é submetida ao regime da CLT e não estatutário, os salários são os de mercado, a progressão não se sujeita às regras de provimento de cargos públicos". Assim, a doutrina destaca que, por exemplo, delas não se exige obediência ao princípio da reserva legal para a criação de empregos públicos, nem para a definição do escopo e condições de exercício dos serviços a serem prestados: Realmente, se as empresas estatais exploradoras de atividade econômica dependessem de prévio processo legislativo para a criação de seus respectivos empregos, restaria seriamente comprometida a sua atuação em igualdade de condições com a iniciativa privada, que conta com instrumentos flexíveis para a implementação de novos vínculos trabalhistas. Se é assim para a criação de empregos, com mais razão o mesmo procedimento deve ser aplicado no tocante à estipulação das condições e dos requisitos prévios de admissão dos empregados, além daqueles previstos na Consolidação das Leis do Trabalho e nas leis de regência das estatais, a serem exigidos por ocasião da contratação ou no ato de inscrição do respectivo concurso público ou de determinada fase procedimental do certame (...).27 Vemos, portanto, que a natureza das pessoas privadas da Administração Indireta acarreta uma série de derrogações nas restrições e controles a elas aplicadas. Pela mesma ratio, qual seja, a agilidade, flexibilidade, eficiência e competitividade das empresas estatais também o regime de fiscalização incidente sobre as atividadesfins dessas entidades deve ser diferenciado, para não comprometer a sua competitividade e eficiência de atuação no mercado28 e, sobretudo, para não comprometer a sua independência negocial. O que ora se defende possui supedâneo também no inciso I, §1º, do art. 173 da Constituição Federal, o qual dispõe que o estatuto jurídico das empresas públicas e das sociedades de economia mista deverá dispor acerca das "formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade sobre elas incidente". Ou seja, a própria Constituição Federal prevê a necessidade de as empresas públicas e sociedades de economia mista, considerando a sua natureza empresarial e finalidade econômica, não serem submetidas ao mesmo tipo e grau de controle externo a que são expostos os demais órgãos e entidades da Administração Pública, tendo em vista justamente o possível comprometimento da competitividade, eficiência e agilidade da atuação dessas empresas no mercado. Nessa linha, Ricardo Lobo Torres aduz que, "em se tratando de entidade da administração indireta com personalidade jurídica de direito privado, o controle é genérico e global, com o objetivo precípuo de evitar a ilegalidade das ações das estatais, mas sem lhes prejudicar o funcionamentosegundo os métodos das empresas privadas".29 Há quem defenda, o que, podemos adiantar, não é a nossa posição, que não se aplica qualquer controle do Tribunal de Contas sobre as empresas estatais que exploram atividades econômicas em sentido estrito. Toshio Mukai, nesse sentido, aduz que tais empresas não estão submetidas ao Revista de Direito Público da Economia ‐ RDPE Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2008 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital controle referido no artigo 70 da Constituição Federal, o que não impede, todavia, que "o legislador ou a autoridade administrativa [aliás como prevê o §3º do art. 173] as submeta a um controle financeiro de ordem diversa, próprio para a atividade empresarial econômica, com o grau de flexibilidade que ela requer".30 Muito embora não concordemos integralmente com o autor, já que nos parece incidir sim o controle previsto no art. 70 da Carta Maior sobre as estatais, com ele concordamos sobre o fato de que os controles sobre ela incidentes devem ser compatíveis com as atividades por ela exercidas e, por isso, não podem incidir da mesma forma que sobre as demais entidades e órgãos da Administração Pública. É imprescindível que essas empresas tenham liberdade negocial, liberdade para assumir riscos e para realizar negócios que, a princípio, podem não parecer, sob a ótica dos Tribunais de Contas, os mais econômicos, mas que se fundamentam pela elevada especialização e know how dos dirigentes e demais agentes da empresa, sobretudo em um mercado tão específico. Gaspar Ariño Ortiz,31 em estudo sobre o setor empresarial público na Espanha, explica que "a empresa pública não deve ter regulações especiais em relação à privada. (...) o estatuto da empresa pública tem que estabelecer, no referente ao funcionamento interno das empresas, as mínimas diferenças entre as públicas e as privadas, e deve partir de um conceito de empresa pública que esteja regido por princípios de rentabilidade e eficácia, ou seja, que persiga o benefício". O autor defende que a falta de êxito das empresas públicas espanholas decorre, em grande parte, do fato de que "não se tem conseguido liberar as empresas do asfixiante controle e dependência estatal (isto é, darlhe a liberdade de que gozam as privadas)". Por fim, o autor conclui que "a empresa pública tal como a conhecemos hoje, nesse molde que mescla o direito e procedimentos públicos e privados, está facilmente condenada ao fracasso (...)".32 Daí exsurge que o tratamento constitucional e legal das empresas estatais deve ser, ao máximo possível, semelhante àquele dispensado às empresas privadas, sobretudo no que tange ao controle sobre elas exercido e ao grau de dependência ao Poder Executivo central, sob pena de serem as mesmas fadadas ao insucesso. Alfredo De Almeida Paiva33 pondera que afastar as empresas estatais "da técnica das empresas privadas e de suas características de independência de ação e conseqüente liberdade administrativa" fará com que elas deixem de ser "os instrumentos simples, flexíveis e eficientes, correndo o risco de falharem em suas finalidades". Nesse sentido, Oscar Saraiva também afirmava que "as entidades autárquicas envelheceram precocemente em decorrência das influências centralizadoras de padronização, uniformização e controle, tornando em muitos casos sua administração quase tão rígida quanto a do Estado".34 Nas palavras de Cotrim Neto, o "valor peculiar" das empresas estatais reside na "liberdade de operação, na f lexibi l idade, na ef ic iência para os negócios, e na oportunidade para experimentações", ou, conforme White, na possibilidade de "levantar fundos, maleabilidade nas despesas com a libertação dos controles orçamentários estatais, afastamento das normas e estatutos oficiais para a administração do pessoal, para a realização de contratos, o uso das propriedades, as práticas contábeis".35 Revista de Direito Público da Economia ‐ RDPE Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2008 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital Também Hely Lopes Meirelles afirma que "embora paraestatal, a sociedade de economia mista ostenta estrutura e funcionamento da empresa particular, porque isto consiste, precisamente, a sua própria razão de ser. Nem se compreenderia que se burocratizasse tal sociedade a ponto de emperrarlhe os movimentos e flexibilidade mercantil, com os métodos das estatais. O que se visa, com essa organização mista, é, no dizer de Ascareli, `utilizarse da agilidade dos instrumentos de técnica jurídica elaborados pelo direito privado'". Lafayette Ponde36 externou que "seria burocratizar as sociedades de economia mista e diminuir a sua própria finalidade, se nós tivéssemos de forçálas aos mesmos processos de controle das entidades autárquicas (...) desejo declarar ao plenário que exclua as sociedades de economia mista do controle financeiro dos Tribunais de Contas, para que elas não percam sua função normal, nem deixem de atuar, amplamente, no campo do direito privado, com a mesma flexibilidade das sociedades anônimas." No direito comparado, acerca do controle dos enti pubblici economici, empresas italianas equivalentes às empresas públicas brasileiras, Giuseppino Treves enuncia ser necessário "liberar se de todo estorvo burocrático e obter uma maior eficiência no exercício de uma empresa, mediante a adoção completa das formas organizacionais do direito privado".37 Aplicase às estatais a idéia de que, assim como já defendido com relação às agências reguladoras, que elas "somente terão condições de desempenhar adequadamente o seu papel se ficarem preservadas de ingerências externas indevidas, tanto no que diz respeito às suas deci sões político administrativas quanto à sua capacidade financeira. (...) No desempenho de tais atribuições, (...) têm de ver preservado o seu espaço de legítima discricionariedade, imune a injunções de qualquer natureza, sob pena de falharem na sua missão (...). A ingerência indevida e não importa, aqui, se movida pelos interesses mais elevados deve ser rejeitada de modo sumário".38 Nesse sentido, importante "é a autonomia de atuação no que respeita às suas atividades finalísticas, sobre a qual não há qualquer interferência do Poder Público. Elas têm plena liberdade de atuação, submetendose aos riscos de mercado, sem que lhes seja cobrado qualquer resultado, além daqueles que são estabelecidos pelos mecanismos de gerenciamento interno, correntes nas empresas privadas".39 Além do problema atinente ao comprometimento da independência decisória e negocial, decorrente do receio de futuras penalizações, outro problema decorrente da sujeição dessas empresas ao controle externo clássico incidente sobre os demais órgãos e entidades públicas diz respeito ao inexorável aumento dos seus gastos. A esse respeito, Odete Medauar40 adverte que o acréscimo de exigências e o excesso de fiscalização sobre essas entidades importam em maiores gastos e, consequentemente, perda de competitividade. Fazendo referência a um artigo publicado no jornal O Estado de S.Paulo, de 18.05.86, a autora defende que "outro problema que contribui para o inchamento das despesas das estatais, criando o que se denominou `gordura administrativa', é a necessidade que alguns desses órgãos apresentam de criar novos departamentos para atender aos controles de prestação de contas". Não se coaduna, portanto, com esse novo ambiente empresarial público, que a estatal esteja Revista de Direito Público da Economia ‐ RDPE Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2008 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital sujeita a procedimentos de fiscalização custosos e demorados no que toca às suas atividadesfim, inclusive enquanto suas eventuais concorrentes a nada disso se sujeitam. Conforme se verá nos tópicos seguintes, se a finalidade principaldo controle exercido pelo TCU é a garantia da economicidade das atuações dos agentes públicos, no caso específico das atividadesfim das estatais, esse controle não faz sentido, já que acarreta justamente o inverso: a criação de gastos desnecessários, custos não suportados pelas contratadas de outras empresas e, sobretudo, perda de receita pela estatal por ter que remunerar riscos e despesas que as outras empresas não têm. Um terceiro problema diz respeito à necessidade de manutenção do sigilo quanto às atividadesfim dessas empresas. Também por esse motivo o controle do Tribunal de Contas da União sobre as atividadesfins das empresas estatais viola o direito dessas empresas à igualdade de condições de competição. Outras empresas mantêm os seus dados estratégicos em sigilo e, por isso, têm melhores condições de competir no mercado. Daí ser essencial que, se por um lado, os controles externos das estatais não devem ser afastados tout court, devem ser exercidos compativelmente com a necessidade de garantir a igualdade de condições para a sua atuação no mercado, permitindolhes agir com a maior eficiência possível. Uma forma essencial de compatibilização é justamente a vedação do controle sobre as atividades fim dessas entidades. Esse entendimento já foi confirmado pelo Superior Tribunal de Justiça ao decidir o Recurso em Mandado de Segurança nº 17.949/DF: MANDADO DE SEGURANÇA. SIGILO BANCÁRIO. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA EXPLORADORA DE ATIVIDADE ECONÔMICA. FISCALIZAÇÃO PELO TRIBUNAL DE CONTAS. FORNECIMENTO DE INFORMAÇÕES. SIGILO BANCÁRIO. CONTRATO ADMINISTRATIVO. OPERAÇÕES COMERCIAIS. 1. Não configura violação de sigilo bancário a intervenção dos Tribunais de Contas visando aferir a regularidade de contratos administrativos formalizados no âmbito das instituições financeiras exploradoras de atividade econômica. 2 . Em se tratando de sociedades de economia mista ou de empresas públicas referidas no art. 173 da Constituição Federal, a fiscalização dos Tribunais de Contas não poderá abranger as atividades econômicas das instituições, ou seja, os atos realizados com vistas ao atingimento de seus objetivos comerciais. 3. Recurso ordinário parcialmente provido.41 Não se defende aqui de forma alguma o afastamento do controle, genericamente considerado, do Tribunal de Contas da União sobre as estatais, mas tãosomente a sua compatibilização com os princípios constitucionais que regem a presença estatal da economia. E tal controle, como visto, é incompatível com a independência, agilidade e eficiência necessárias à realização das atividades fins dessas empresas. 3 A fiscalização sobre as empresas privadas contratadas pelas estatais As competências institucionais dos Tribunais de Contas possuem sede constitucional nos arts. 70 e 71 da Carta Maior. A fiscalização por ele exercida, conforme expõe Hely Lopes Meirelles, "se refere Revista de Direito Público da Economia ‐ RDPE Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2008 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital fundamentalmente à prestação de contas de todo aquele que administra bens, valores ou dinheiros públicos".42 O art. 70 da Constituição Federal define o âmbito do controle externo exercido pelo Congresso Nacional sobre a Administração Pública: Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder. Parágrafo único. Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) É inegável que a Constituição atual sobretudo com a redação dada pela EC/1943 alargou consideravelmente a atividade fiscalizatória externa, ampliando o controle a todos aqueles que venham a deter recursos públicos, independente de sua natureza pública ou privada. Entretanto, essa nova abrangente configuração não pode afastarse das pautas constitucionais. Como se vê, muito embora a própria Constituição estabeleça a possibilidade de controle sobre empresas privadas, certo é que esse controle só se torna possível, logicamente, quando a empresa, nos termos do art. 70 da Carta Maior, utiliza, arrecada, guarda, gerencia ou administra dinheiros ou bens públicos. Isso porque o foco do controle externo exercido pelo Tribunal de Contas da União reside no controle da Administração Pública, abarcando entidades privadas apenas quando atuam como administradores de bens ou verbas públicas. Nas precisas palavras de Egon Bockmann Moreira,44 "a Corte de Contas aprecia e julga as contas públicas", sendo este o objeto primordial do seu controle. Empresas privadas contratadas pelas estatais não administram bens, valores ou dinheiros públicos, sendo incabível a fiscalização dos Tribunais de Contas sobre as suas contas. Também não "utilizam" recursos públicos. Em primeiro lugar porque, de acordo com as observações de Toshio Mukai com relação aos bens das estatais, "ainda que originariamente o bem (de capital, ou de patrimônio, ou de qualquer outra classificação) questionado tivesse sido do Estado, deste ele se desintegrou, foi desafetado da condição de bem público, (...); nessas condições, tendo deixado de estar in publicum relicta, e havendo padecido a remoção da expublicatto, o novo regime jurídico passa a ser o que o Código Civil defere à propriedade privada."45 Isto é, os bens das estatais sequer podem ser considerados públicos. Além disso, muito embora haja, de fato, uma transferência de valores das estatais para as empresas privadas por elas contratadas, essa se dá a título de remuneração, paga pela última como contraprestação por um serviço que lhe foi prestado pela primeira.46 Revista de Direito Público da Economia ‐ RDPE Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2008 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital Nessa hipótese, o recurso transferido perde qualquer característica de afetação pública47 n o momento da sua tradição, não havendo mais que se falar em controle do TCU sobre esses recursos, tendo em vista que não se trata de recursos públicos. Quando, com efeito, os valores são transferidos ao patrimônio das empresas privadas contratadas, passam a se caracterizar imediatamente como bens privados, sujeitos à sua própria administração. A partir dessa perspectiva, tornase evidente que a utilização de que trata a Constituição Federal, na verdade, diz respeito àquelas hipóteses em que o repasse de valores públicos não implica a desafetação da sua finalidade. Ou seja, a fiscalização se aplica aos casos em que os recursos continuam sendo públicos, pois são utilizados por entes privados para uma finalidade pública. É o caso, por exemplo, da utilização de recursos públicos através da celebração de convênios ou contratos de gestão com fundações privadas com vista à real ização de determinado programa/projeto público. Nessa hipótese, a entidade privada não se remunera com o recurso público, mas o utiliza administra para uma finalidade pública, previamente estabelecida em instrumento contratual, sendo legítima a tomada de contas.48 Além disso, sendo o controle uma espécie de restrição imposta ao direito de livre iniciativa das empresas privadas, a interpretação deve ser necessariamente restritiva, já que, fora do âmbito de sua incidência, vige a norma geral pro libertate inerente aos direitos fundamentais.49 Como afirma Tércio Sampaio Ferraz Júnior, "no caso dos direitos fundamentais e das normas excepcionais,o intérprete deve interpretar restritivamente".50 É por isso que Egon Bockmann Moreira,51 ao tratar das entidades submetidas ao controle do Tribunal de Contas da União, afirma que a atividade desse Tribunal "dirigese à função administrativa do Estado em sentido amplo, abrangendo os atos e contratos do Legislativo, Judiciário, Executivo (Administração Direta e Indireta) e `terceiro setor'". De fato, apesar de possuírem natureza privada,52 as entidades do terceiro setor caracterizamse, essencialmente, por "prestar atividade de interesse público."53 Conforme Tarso Cabral Violin,54 essas entidades são consideradas a "salvação dos problemas sociais em nosso país, como substituto de uma ação direta do Estado em áreas sociais como educação, saúde e assistência social". Daí decorre a necessidade de controle pelo TCU, tendo em vista que tais entidades se utilizam de bens e recursos públicos, frisese: para desenvolver atividades de utilidade pública previstas em contratos de gestão e convênios.55 Marçal Justen Filho, dissertando sobre as organizações sociais,56 estatui que a idéia fundamental é que tais entidades, embora pessoas jurídicas de direito privado, desempenham funções de interesse público. Sobre o contrato de gestão, afirma que: "a peculiaridade reside em que o particular, através do contrato de gestão, atuará em nome próprio, sob regime de Direito Privado, mas receberá apoio estatal."57 Desta forma, tanto entidades privadas que recebem recursos oriundos de contribuições Revista de Direito Público da Economia ‐ RDPE Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2008 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital parafiscais58 quanto organizações do terceiro setor que utilizam recursos públicos em benefício de determinadas metas governamentais são indubitavelmente submetidas ao controle dos Tribunais de Contas, justamente em virtude de os recursos a ela repassados continuarem sendo públicos, sendo por elas apenas administrados. Fica claro, portanto, que a ratio da Constituição e da nova redação dada pela EC/19 é incluir no alcance fiscalizatório do TCU as entidades do terceiro setor, mas não as contratadas pela Administração que tão somente se remuneram com o dinheiro público. Essa constatação se reforça quando utilizamos como parâmetro interpretativo o que dispõe o art. 71 da Constituição Federal. É cediço que a Constituição não deve ser interpretada por tiras, ou aos pedaços, nem ao modo do "tudo ou nada", orientado por uma lógica formal subsuntiva59 e cada vez mais desacreditada.60 Como evidencia Eros Roberto Grau, nenhum disposit ivo legal, muito menos de nível constitucional,61 pode ser interpretado isoladamente, desvinculado do contexto no qual está inserido.62 Nesse contexto, observase da análise o art. 71, §1º, que a própria Constituição confere tratamento diferenciado para o controle das relações travadas entre a Administração Pública e empresas privadas, ao dispor não caber ao Tribunal de Contas da União suspender a eficácia dos contratos da Administração,63 e que tal medida deverá ser "adotada diretamente pelo Congresso Nacional, que solicitará, de imediato, ao Poder Executivo as medidas cabíveis".64 Prevê ainda o mesmo dispositivo que as inspeções e auditorias de competência do Tribunal de Contas serão realizadas nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário (art. 71 IV, CRFB) e nas entidades da Administração Direta e Indireta, incluídas as fundações e associações instituídas e mantidas pelo Poder Público (art. 71 II, CRFB), não abrangendo aos contratados da Administração.65 Conforme enunciam Canotilho e Vital Moreira,66 a interpretação constitucional deve ser realizada de modo a evitar a contradição de suas normas, tendo em vista o princípio da unidade da Constituição. A esse respeito, citese também a clássica lição de Carlos Maximiliano67 que afirma que: "o Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio. De princípios jurídicos mais ou menos gerais deduzem corolários; uns e outros se condicionam e restringem reciprocamente, embora se desenvolvam de modo que constituem elementos autônomos operando em campos diversos. Cada preceito, portanto, é membro de um grande todo; por isso do exame em conjunto resulta bastante luz para o caso em apreço. Confrontase a prescrição positiva com outra de que proveio, ou que da mesma dimanaram; verificase que o nexo entre a regra e a exceção, entre o geral e o particular, e deste modo se obtém esclarecimentos preciosos. O preceito, assim submetido a exame, longe de perder a própria individualidade, adquire realce maior, talvez inesperado. Com esse trabalho de síntese é melhor compreendido. O hermeneuta eleva o olhar, dos casos especiais para os princípios Revista de Direito Público da Economia ‐ RDPE Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2008 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital dirigentes a que eles se acham submetidos; indaga se, obedecendo a uma, não viola outra; inquire das conseqüências possíveis de cada exegese isolada. Assim, contemplados do alto os fenômenos jurídicos, melhor se verifica o sentido de cada vocabulário, bem como se um dispositivo deve ser tomado na acepção ampla, ou na estrita, como preceito comum, ou especial. Já se não admitia em Roma que o juiz decidisse tendo em mira apenas uma parte da lei; cumpria examinar a norma em conjunto: incivile est, nisi tota lege perspecta, una aliqua particula ejus proposita, judicare, vel respondere "é contra Direito julgar ou emitir parecer, tendo diante dos olhos, ao invés da lei em conjunto, só uma parte da mesma". Por todas essas razões, ao se realizar a atividade hermenêutica, devese proceder a uma interpretação sistemática, que, como bem ensinou Juarez Freitas, consiste em "atribuir a melhor significação, dentre várias possíveis, aos princípios, às normas e aos valores jurídicos, hierarquizandoos num todo aberto, fixandolhes o alcance e superando antinomias, a partir da conformação teológica, tendo em vista solucionar os casos concretos".68 Toshio Mukai também alerta para a necessidade de interpretar o art. 70 da Constituição "dentro de um contexto doutrinário, e não em função de um enfoque comum, leigo e sem maiores reflexões científicas."69 Resguardase desta forma a boa hermenêutica, ao atribuir sentido sistemático aos art. 71 incisos II e IV e §1º da CRFB, de forma a excluir as entidades contratadas pela Administração do controle pelo TCU. Esse é o entendimento de Edgard Camargo Rodrigues, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo: É precisa e exaustiva a descrição de quem são as pessoas sujeitas às ações do controle externo, enumeração que se limita a agentes do poder público ou equiparados. Não têm por isso, os Tribunais de Contas poder e influência ou, se permitido o termo, jurisdição sobre particulares, salvo quando estes detenham ou administrem bens, direitos ou verbas públicas, limitada a atuação do Tribunal à fiscalização do manejo desses bens ou direitos.70 Prossegue o autor, ressaltando que " ainda que em alguns casos ações de particulares possam ser objeto de verificação e apreciação porque refletindo no ato administrativo, o que se julgam são as prestações de contas dos responsáveis pela produção do ato de despesa. As atitudes de terceiros que possam merecer censura escapam ao poder de julgamento, mas são comunicadas às autoridades competentes ou ao Ministério Público para as providências adequadas."71 Adiante, complementa que "ganha a regra especial relevo quando se cuida dos contratos administrativos, atos jurídicos que envolvem, necessariamente, a participação do agente público e de pessoa estranhaà Administração, insuscetível esta última de submissão ao que venha a ser decidido. No exercício da competência para exame dos contratos, convênios ou atos jurídicos análogos, decorrência necessária do art. 71 da Constituição Federal e previsão expressa do art. 173 da Lei de licitações e Contratos Administrativos, as determinações e decisões do Tribunal de Contas permanecem circunscritas aos agentes da Administração, ainda que cuidando de relação jurídica complexa com envolvimento de terceiros. Mesmo configurada ou caracterizada prática ilegal por parte do contratado, não tem o Tribunal capacidade de submetêlo a qualquer forma de Revista de Direito Público da Economia ‐ RDPE Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2008 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital investigação ou de requisição de informações ou documentos, embora, como decorrência do princípio da ampla defesa nos processos administrativos, possa o particular participar do feito como terceiro interessado, inclusive com apresentação de recursos".72 Também Marcos Juruena Vilella Souto73 entende que não pode haver fiscalização sobre as contratadas da Administração Pública, já que o Tribunal de Contas não pode intervir no domínio econômico. Nas palavras do autor "a auditoria de competência do Tribunal de Contas é apenas nas unidades administrativas (CF, artigo 71, IV) e nas entidades da Administração Pública (CF, artigo 71, II). (...) Quanto ao mais, vale o direito constitucional da inviolabilidade de dados, excetuado, na forma da lei, para investigação criminal ou instrução processual penal (CF, artigo 5º, XIII). Enfim, o controle externo da Administração não poderia resultar em devassa na contabilidade dos contratados (...). O Tribunal de Contas não é órgão de atuação em matéria de poder de polícia". Não há que se falar, portanto, em fiscalização de empresas privadas contratadas por estatais, sendolhe, contudo, facultado participar do processo, em virtude do devido processo legal, considerando os reflexos deletérios que os juízos formados possam vir a ter em outras instâncias de controle, sobretudo no Poder Judiciário, por provocação do Ministério Público ou de outro legitimado. 4 A perspectiva consequencialista e os princípios constitucionais aplicáveis Em tempos de globalização e internacionalização das fases da cadeia produtiva, cada vez mais "abrese espaço para a incursão da teoria econômica na teoria jurídica. Criase, de fato, um ambiente propício à transposição de critérios, categorias e classificações econômicas para a teoria jurídica, na medida em que se reconhece que, funcionalmente, Direito e Economia devem ter o mesmo destino, delineado pela Ordem Constitucional."74 Nesse novo cenário, a análise econômica do Direito tem ganhado espaço no meio jurídico brasileiro.75 Nesse sentido, Armando Castelar Pinheiro ensina que "o Direito e a Economia, ao diluírem suas diferenças, tornamse essenciais um para o outro."76 Não se trata propriamente de uma sobrepujança da Economia sobre o Direito, mas sim de uma inevitável em razão do aumento do poder efetivo dos capitais globalizados valorização do elemento econômico na interpretação jurídica, elemento este que não era muito considerado pela hermenêutica jurídica. Essa valorização revela o aumento da intercomunicação entre o Direito e a Economia, e a tomada de consciência por parte dos operadores daquele de que, levando em conta as pautas desta, terão maiores chances de realizar na prática os objetivos jurídicos, evitando inclusive efeitos colaterais adversos ou, como diria a teoria econômica, externalidades negativas. Resta inconteste, portanto, que a economia contribui para que o Direito seja percebido numa nova dimensão, que é extremamente útil na compreensão da formulação de políticas públicas.77 Dentro desse contexto, tornase mister analisar os eventuais efeitos econômicos e antieconômicos da fiscalização do TCU sobre as atividadesfins das estatais e das empresas privadas contratadas pela Administração Indireta. É trivial que, em mercados competitivos, as empresas precisam manter baixos custos. Caso contrário, correm o risco de serem expulsas do mercado por concorrentes mais hábeis.78 Nesse Revista de Direito Público da Economia ‐ RDPE Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2008 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital contexto, o agente econômico, na busca constante da maximização de seus lucros, responde de forma racional a estímulos.79 Para ele, a possibilidade de fiscalização do TCU é mais um dos elementos das relações de custobenefício com as quais deve lidar diuturnamente na condução dos seus negócios. Nesse sentido, de um lado a fiscalização do TCU reduziria a independência das estatais em suas atividadesfim, já que estas, ao tomar as suas decisões, têm que considerar possíveis questionamentos desse Tribunal, além de aumentarem os seus custos de gestão e a probabilidade de vazamento de informações sigilosas. Por outro, as empresas privadas contratadas também teriam que considerar possíveis custos decorrentes da fiscalização de seus contratos pelo TCU, decorrentes da mobilização de funcionários e contratação de advogados, por exemplo, além de possível sustação de atos e contratos administrativos, com a paralisação do repasse de recursos financeiros. O natural é que os empresários monetizem o risco criado, repassando para o preço final toda a previsão de seus custos.80 Assim, o aumento dos riscos em um contrato repercute no preço final do mesmo. Na economia, todo risco é precificado. Dito de outra forma, nesses casos o controle do TCU traria o efeito colateral inafastável de onerar e dificultar a contratação das Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista, em razão da intensificação dos riscos do contrato81 e conseqüente encarecimento do preço dos serviços a elas prestados, gerandolhe prejuízos, reduzindo sua capacidade de competir com suas eventuais congêneres privadas e comprometendo o bom desempenho de suas atividades. Constatase, com isso, que a atuação do TCU deve levar em conta não somente as conseqüências da decisão no plano estritamente jurídico, mas também no plano dos fatos, notadamente as suas repercussões econômicas, que são juridicizadas no conceito amplo de legalidade através, sobretudo, dos princípios da economicidade e da eficiência,82 que, ao terem sido integrados à Constituição, a Lei Maior, passaram a também integrar o conceito de legalidadejuridicidade. A ênfase nessa perspectiva conseqüencialista e pragmática é defendida por Richard Posner, que alerta para uma concepção "interessada nos fatos e também bem informada sobre a operação, propriedades e prováveis efeitos de cursos alternativos de ação."83 E esse pensar por conseqüências, essa perspectiva pragmática quanto aos resultados, que também deve influir e orientar a atividade judicante,84 se torna ainda mais relevante em se considerando que a finalidade do controle exercido pelo TCU é justamente a proteção do erário e a garantia da economicidade e eficiência dos atos públicos.85 Isso é, submeter as atividadesfim das estatais e as empresas contratadas pela Administração ao crivo dos Tribunais pode acarretar efeitos inversos ao almejado, com o desperdício dos recursos públicos ali alocados e com afronta aos princípios da eficiência,86 proporcionalidade e economicidade, dos quais trataremos mais detalhadamente a seguir. 4.1 Princípio da proporcionalidade A submissão das atividadesfim das empresas estatais, e das por elas contratadas para esse Revista de Direito Público da Economia ‐ RDPE Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2008 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital objetivo, à fiscalização do Tribunal de Contas não seria compatível com o princípio da proporcionalidade.87 De acordo com Daniel Sarmento,88o princípio visa, em última análise, à contenção do arbítrio e a moderação do exercício do poder, em favor dos direitos dos particulares, desempenhando "um papel extremamente relevante no controle de constitucionalidade dos atos do poder público, na medida em que ele permite de certa forma a penetração no mérito do ato normativo, para aferição da sua razoabilidade e racionalidade, através da verificação da relação custobenefício da norma jurídica, e da análise da adequação entre o seu conteúdo e a finalidade por ela perseguida", podendo ser dividido em três subprincípios: "(a) da adequação, que exige que as medidas adotadas tenham aptidão para conduzir aos resultados almejados pelo legislador; (b) da necessidade, que impõe ao legislador que, entre vários meios aptos ao atingimento de determinados fins, opte sempre pelo menos gravoso; (c) da proporcionalidade em sentido estrito, que preconiza a ponderação entre os efeitos positivos da norma e os ônus que ela acarreta aos seus destinatários". E o autor conclui: "Assim, para conformarse ao princípio da proporcionalidade, uma norma jurídica deverá, a um só tempo, ser apta para os fins a que se destina, ser a menos gravosa possível para que se logrem tais fins e, causar benefícios superiores às desvantagens que proporciona".89 Sob o prisma da adequação, primeiro elemento do princípio da proporcionalidade, observase que a restrição à liberdade do mercado decorrente do controle pelo TCU das atividadesfim das estatais não se mostra apropriada à realização dos objetivos sociais perquiridos. Isto porque, uma eventual decisão de fiscalizar o desenvolvimento do objeto social das empresas estatais redundaria desnecessariamente em oneração nos contratos firmados pela Administração Indireta, e em gasto desnecessariamente excessivo de recursos. A medida ainda é desnecessária, tendo em vista que há medidas menos gravosas aos direitos fundamentais de livre iniciativa e igualdade de concorrência que seriam igualmente aptos a alcançar o mesmo fim proteção ao Erário, como os aventados em seguida. Nesse sentido, o subprincípio da necessidade exige que o Estado, entre os meios idôneos para alcançar seus objetivos, deve optar pelos que não restrinjam a concorrência e a livre iniciativa, ou os que menos as restrinjam.90 Isto significa que na medida em que os valores sociais constitucionalmente assegurados não sejam prejudicados, o Estado não deve restringir a liberdade dos agentes econômicos, e, caso seja necessário, deve fazêlo da forma menos restritiva possível.91 Heinrich Scholler observa que as restrições à liberdade econômica devem "operar apenas em um degrau (ou esfera)", passando para a fase seguinte "tãosomente quando uma restrição mais intensa se fizer absolutamente indispensável para a consecução dos fins almejados".92 Ora, do ponto de vista jurídico, e em consonância com a Constituição Federal, é de se notar que existem diversas normas infraconstitucionais que regulamentam, de forma bastante satisfatória e menos onerosa, a fiscalização de tais entidades no exercício das suas finalidades sociais. Conforme Sérgio de Andréa Ferreira, as estatais estão sujeitas a duas formas de controle, que não incluem a tomada de contas pelo TCU, que são "o controle societário, interno, que já é específico, Revista de Direito Público da Economia ‐ RDPE Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2008 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital em confronto com o exercido no interior das sociedades anônimas comuns" e o "controle administrativo, exercitado através da supervisão, da tutela administrativa, também com peculiaridades em comparação com aquela a que se submetem autarquias e fundações."93 Nesse sentido, não se pode olvidar dos mecanismos de controle interno previstos na Lei das Sociedades Anônimas.94 Por exemplo, o Conselho Fiscal é um órgão autônomo, de controle e fiscalização das atividades financeiras da sociedade e da atuação dos administradores. Dessa forma, consiste, portanto, em um órgão defensor dos direitos dos acionistas e de terceiros, possuindo para tanto amplas atribuições, que não se esgotam na mera revisão de contas, mas atingem a própria fiscalização da gestão administrativa.95 Da mesma forma, o Conselho de Administração das Sociedades Anônimas, é órgão de deliberação colegiada e também fiscalizador, conforme rege o art. 138, §1º da lege ferenda. Por fim, vale lembrar também que, conforme já foi dito amplamente, as atividadesmeio das estatais continuam sob o alcance fiscalizador do TCU, medida que é, por evidente, menos restritiva à liberdade de mercado e a livre concorrência, bem como eficaz para a finalidade de controle e proteção ao Erário. Quanto à proporcionalidade em sentido estrito, que impõe uma relação de custobenefício razoável entre a restrição imposta e os benefícios dela decorrentes, no caso também não está presente, pois os eventuais benefícios em termos dos eventuais resultados do controle neste ou naquele caso onerariam generalizadamente todos os contratos das estatais criando contratos mais caros e desigualdades no ambiente concorrencial do qual participam. 4.2 Princípio da eficiência Conforme Maria Sylvia Di Pietro, o princípio da eficiência impõe à Administração que atue de forma a produzir "resultados favoráveis à consecução dos fins que cabem ao Estado alcançar."96 Assim, toda atuação administrativa só será válida ou validamente aplicada se, ex vi do princípio da eficiência97 (art 37, caput, CF), for a maneira mais eficiente ou, na impossibilidade de se definir esta, se for pelo menos uma forma razoavelmente eficiente de realização dos objetivos previstos no ordenamento jurídico. É o Princípio Constitucional da Eficiência (art. 37, caput, CF) que deve iluminar a aplicação das leis, para que ela não leve a uma consecução ineficiente ou menos eficiente dos objetivos legais primários. As normas "passam a ter o seu critério de validade aferido não apenas em virtude da higidez do seu procedimento criador, como da sua aptidão para atender aos objetivos da política pública, além da sua capacidade de resolver os males que esta pretende combater".98 Paulo Modesto ensina que "o princípio da eficiência pode ser percebido também como uma exigência inerente a toda atividade pública. Se entendermos a atividade de gestão pública como atividade necessariamente racional e instrumental, voltada a servir o público, na justa ponderação das necessidades coletivas, temos de admitir como inadmissível juridicamente o comportamento administrativo negligente, contraprodutivo, ineficiente."99 Revista de Direito Público da Economia ‐ RDPE Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2008 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital A Constituição de 1988, expõe Diogo Figueiredo Moreira Neto, "já estabelece todo fundamento necessário para a afirmação e aplicação, em nosso País, da doutrina da, assim denominada, administração de resultado, ou seja: confere uma base institucional da legalidade finalística (...) É indubitável que o futuro deva ser realmente considerado como uma das dimensões temporais próprias a qualquer norma, o que lhe faz merecedor de uma cuidadosa atenção prospectiva, tanto por parte dos seus elaboradores quanto dos seus aplicadores."100 Em outro trabalho101 também assevera que "não basta, hoje, ao Direito, que a ação administrativa do Estado exista, seja válida e eficaz. A simples busca da produção de efeitos, ou seja, pretenderse apenas a eficácia da ação, já era insuficiente para a Sociologia do Direito. Agora passou a sêlo também para o Direito Administrativo. Acrescentouse, aos quatro princípios constitucionais da administração pública, um quinto, o da eficiência, que, doutrinariamente, no plano do Direito Público, poderá ir até mais além, para nortear, acolá da ação administrativa, também a produção legislativae a interpretação judiciária". A eficiência deve, portanto, ser compreendida como a busca do melhor exercício das missões de interesse coletivo que incumbem ao Estado,102 aí incluídos, obviamente, os tribunais de contas. Os resultados práticos da aplicação das normas jurídicas, longe de serem objeto de preocupação apenas sociológica,103 são, muito pelo contrário, elementos essenciais para determinar como, a partir destes dados empíricos, devem legitimar a sua aplicação. É dizer: à luz do princípio da eficiência é vedada toda atuação contraproducente ou ineficiente, que produza efeitos negativos paralelos. Pois bem, aplicado ao caso concreto o princípio da eficiência torna ilegítimo o controle do Tribunal de Contas da União sobre as atividadesfins das empresas estatais, já que este, longe de ser o modo mais eficiente de proteção do erário, faz com que estas empresas percam melhores condições contratuais, competitividade e agilidade na atuação no mercado, com, evidentemente, perdas ao erário. Isto porque, como bem expõe Marcos Juruena Villela Souto, "a eficiência empresarial está ligada ao êxito da entidade no desenvolvimento da sua atividadefim. O foco da sua atuação deverá ser a permanente busca do cumprimento das finalidades que ensejaram a sua criação; afinal, como dito, esta é a razão da sua existência e da intervenção estatal no domínio econômico. Atuando para realizar seu objeto social, a eficiência deverá ser a tônica do exercício da atividade empresarial, mormente quando o regime é o de livre mercado e concorrência. Sem a eficiência como pressuposto na sua atuação, a empresa assume o risco de ter custos mais elevados, de perder clientela, de produzir bens e serviços de pouca qualidade, se colocando em posição de inferioridade perante os demais competidores de mercado."104 Dito de outra forma: a fiscalização pelo TCU contrariaria a própria finalidade105 e o espírito à qual tal controle se proporia, revelandose medida na contramão do estado de eficiência que deve informar a atuação e a organização do Estado. 4.3 Princípio da economicidade Intimamente ligado ao princípio da eficiência, está o princípio da economicidade, que, "embora Revista de Direito Público da Economia ‐ RDPE Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2008 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital referido a propósito da execução da fiscalização contábil, financeira e orçamentária, deve ser recebido como um princípio geral do Direito Administrativo, em razão de sua amplitude no desempenho da administração pública interna."106 Exige a economicidade que a Administração adote a solução mais conveniente e eficiente sob o ponto de vista da gestão dos recursos públicos. Como afirma Paulo Soares Bugarin, em monografia específica sobre o tema, o princípio da economicidade "trata da obtenção do melhor resultado estratégico possível de uma determinada alocação de recursos financeiros, econômicos e/ou patrimoniais em um dado cenário socioeconômico. (...) Por alocação ótima entendese aquela que propicia se alcançar o máximo resultado econômico da alocação de bens e/ou serviços, ou seja, permite o alcance da máxima eficiência econômica. (...) `Economizar significa maximizar lucros".107 Ora, uma eventual decisão de fiscalizar as atividadesfins e as contratadas das empresas estatais redundaria, repisese, necessariamente, em gasto excessivo de recursos e oneração dos seus contratos. O Tribunal de Contas de União (TCU) constatou a necessidade de, diante do caso concreto, afastar a fiscalização em contratos celebrados por entidades sujeitas a seu controle por força do princípio da eficiência em sua vertente da economicidade. O Tribunal já consignou que "o cumprimento do princípio da legalidade não pode, entretanto, resultar em invalidação do princípio constitucional da economicidade." Em vista disso, dispensou a empresa "das diligências, audiências prévias e citações solicitadas", pois "a estrita e formal adequação do contrato, implicaria, inexoravelmente, gastos superiores ao ocorrido". Concluiu o Tribunal que "não se pode falar em dano ao Erário já que se verificou ter sido plenamente atendido o princípio constitucional da economicidade" (Decisão nº 753/1996 Plenário). 5 Conclusões De todo o exposto, e dentro do escopo enunciado na introdução, podemos extrair algumas assertivas objetivas: 1. Os necessários controles externos incidentes sobre as sociedades de economia mista e empresas públicas devem ser compatíveis com a necessidade de garantir a igualdade de condições da sua atuação no mercado. 2. Não se defende aqui de forma alguma o afastamento do controle, genericamente considerado, do Tribunal de Contas da União sobre as empresas estatais, mas tãosomente a sua compatibilização com os princípios constitucionais que as regem, de forma a preservar, sobretudo, o exercício da sua atividadefim em moldes os mais similares possíveis aos vigentes na iniciativa privada. 3. As empresas privadas contratadas pelas estatais não administram bens, valores ou dinheiros públicos. A partir do momento que recebe a sua remuneração, esse valor é objeto de propriedade particular sua, sem qualquer afetação pública. 4. Os controles externos devem evitar onerar a contratação de empresas privadas pelas empresas públicas e sociedades de economia mista, com a intensificação dos riscos do contrato, e com o Revista de Direito Público da Economia ‐ RDPE Belo Horizonte, ano 6, n. 23, jul. / set. 2008 Biblioteca Digital Fórum de Direito Público Cópia da versão digital conseqüente encarecimento em grande medida do preço dos serviços a elas prestados, reduzindo sua capacidade de competir com suas eventuais concorrentes privadas e comprometendo o atendimento ao interesse público a elas congênere. 5. Submeter as atividadesfim das estatais e as empresas contratadas pela Administração ao crivo dos Tribunais de Contas pode gerar efeitos inversos aos constitucionalmente almejados pelas próprias Cortes de Contas, com o desperdício de recursos públicos e afronta aos princípios da proporcionalidade, eficiência e economicidade. * <alexaragao@zipmail.com.br>. 1 Há muito poucas autodefinições do pósmodernismo, até porque a própria idéia de definição, a de apreender uma realidade complexa e fugidia, é antagônica com o pensamento pósmoderno. A este respeito, Krishnan Kumar observa que "os pósmodernistas têm horror a definir, em parte porque é difícil evitar dar uma definição moderna do pósmoderno; na verdade toda a definição de pós moderno acabará por ser modernista. Definições entram em choque com as próprias características de racionalidade e objetividade que os pósmodernistas se esforçam para negar" (Da sociedade pósindustrial à pósmoderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997). 2 Não pretendemos neste trabalho entrar em pormenores bizantinos das diferenças entre essas expressões até por serem intimamente relacionadas entre si. 3 "Talvez para superar um possível complexo de inferioridade em relação às ciências naturais, a ciência jurídica dedicou muito de sua atenção ao estudo taxionômico. Classificar espécies de categorias jurídicas ditando com precisão sua conceituação e natureza foi sempre considerado uma meta para o jurisconsulto tradicional. A despeito da evidente contribuição para o apuro técnico do estudo jurídico, devemos relativizar a importância desse tipo de análise. Pelo menos não podemos realizála sem reconhecer a existência de uma conflituosa relação entre direito e objetividade, posto que a categoria jurídica é um dado cultural que se constrói a partir de determinadas premissas políticas, que podem variar em função do tempo, do contexto social e até mesmo de posições pessoais do intérprete. Não devemos desconsiderar, contudo, o legado do esforço pandectista. O direito também é técnica, e a sua melhor expressão, pode, com certeza, contribuir