Prévia do material em texto
Maria Avelina Imbíriba Hesketh (Organizadora) CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA M aria Avelina Im biriba Hesketh (Organizadora) CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA 8^ % EDITORA R ubens A pprobate M achado Presidente da OAB e Presidente Honorário da OAB EDITORA Jefferson Luis Kravchychyn Presidente Executivo da OAB EDITORA Projeto Gráfico F. J. Pereira Capa e Diagramação Rodrigo Pereira Revisão Dacio Luiz Osti Conselho Editorial Jefferson Luis Kravchychyn (Presidente) Cesar Luiz Pasold H erm ann A ss is Baeta Paulo B onavides Raim undo César Britto Aragão Sergio Ferraz Ficha Catalográfíca Elaborada pela Bibliotecária Beatriz Costa Ribeiro - CRB-14/647 H584C Cidadania da mulher, uma questão de justiça / Maria Aveiina Imbiriba Hesketh (Org.). Brasília : OAB Editora, 2003. 184p. 1. Direito, 2. Direito da mulher. I. Hesketh, Maria Aveiina Imbiriba. CDD 340 ISBN - 85-87260-25-1 EDITORA SAS Q uadra 05 Lote 01 Bloco M - Edifício OAB Brasília. DF - CEP 70070-050 Tel. (61) 316-9600 www.oab.org.br e-mail: gabpre®oab.org.br jcfTerson@kravchychyn.com.br SUMÁRIO A PR ESE N TA Ç Ã O ..........................................................................7 R ubens A pproba te Machado IN T R O D U Ç Ã O .............................................................................11 M aria Avelina Im biriba H esketh CID A D A N IA DA MULHER, U M A QUESTÃO DE JU S T IÇ A ............................................... 17 M aria José de Figueiredo Cavalcanti MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - O PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE P A P E L .................................................................75 O dila de M élo M achado MULHERES: UMA VIDA DE LUTAS E C O N Q U IST A S................................................. 135 M ariana Oliveira Pinto REGIME DE BENS N O CASAM ENTO À LUZ DO N O V O CÓ DIGO C IV IL .................................... 163 M aria Bernadeth Gonçalves da Cunha M ULHER DE H O J E .................................................................. 171 M aria Regina Purri Arraes ÉTICA E PR O FISSà O ...............................................................177 Rosangela M aria Carvalho Viana K arinne M atos de Lima e Melo 7 APRESENTAÇÃO Em m eados da década de 1990, q u a n d o P residen te d o Ins t itu to dos A dvogados de São Paulo, escrevi u m artigo sob o títu lo " A s m u lh e re s n o m u n d o d o D ire ito" , n o qual, a lém de considerações conceituais sobre a a tuação d as m u lh e res no cam po das a tiv idades jurídicas, m ostrei m inha firm e in d ig n a ção d e que, a té aquele m om ento , n e n h u m a m u lh e r c o m p u n h a os q u a d ro s d e ju lgadores do S uprem o T ribunal Federal e d o S uperio r T ribunal d e Justiça. Passados quase dez anos d a quele trabalho, a lguns avanços se fizeram, no sen tido de ser reconhecido o profícuo trabalho que as m ulheres das d iversas carre iras ju ríd icas vêm realizando. Ao ap resen ta r , agora , a edição p ro d u z id a pela Com issão N acional da M ulher A d v o gada , c riada na a tual gestão, perm ito -m e hom en ag ea r todas as a d v o g a d a s b rasile iras na figura ím p ar d a C onselheira e p r im eira P re s iden te da C om issão N acional da M u lh e r A d v ogada , c riada nesta gestão, M A R IA A V ELIN A IM BIRIBA H ESK ETH , e todas as dem ais profissionais d as carreiras ju rí dicas nas pessoas d as p rim eiras m ulheres a com por as m ais A ltas Cortes de Justiça brasileira. M inistras ELLEN G R A C IE do STF; FÁ TIM A N A N C Y A L D R IG H I, ELIA N A C A L M O N ALVES e LA URITA H IL Á R IO VAZ, d o STJ, q u e queb ra ram barre iras e abriram , po r m éritos próprios, cam inhos, trazer à recordação aquele artigo que p ro d u z i há q u a se u m decên io , tra n sc re v e n d o -o , com a d e v id a vên ia , na ín teg ra , a saber: 8 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA M s mulheres no mundo do Direito. É inconcebível que, n u m país com m ais de 150 m ilhões de habitantes, não haja, ainda, u m a única m u lher no Suprem o Tribunal Federal e nem no Superior Tribunal de Justiça. Ao g rande n ú m ero de m inistros, em am bas as Cortes, que já têm se m anifestado , em público o u em particu lar, n o sen tido de profligar a lacuna existente, desejam os som ar a nossa voz. Às m ulheres, po r esforço p ró prio, foi aberto , nestes ú ltim os cinqüenta anos, am plo espaço, an te r io rm en te reservado aos hom ens, tanto na v ida econôm i ca, p ro d u tiv a , quan to na v ida pública. N as letras, nas artes, nas ciências, as m ulheres vêm recebendo láureas e justo real ce. Esse espaço foi aberto não po r concessão, m as p o r con quista , n u m a constante, d en odada e sofrida luta contra o p re conceito que, infelizm ente, até hoje se faz p resen te , m esm o nos m ais dem ocráticos m eios de com unicação, referindo-se às m ulheres com o sendo o "sexo frágil". A força das m ulheres não está nos m úsculos, m as no cérebro; na extrem a ded ica ção; na v o n tade de vencer. Essas são as a rm as u til izadas na ve rdade ira guerra que vêm travando, pela justa conquista de espaço e pe lo reconhecim ento de seus m éritos po r parte de toda a sociedade. Prim eiro na advocacia e nas letras, depois na m ag is tra tu ra e no M inistério Público, em segu ida nos m ei os políticos e econômicos, as m ulheres im puseram -se à p re conceituosa estuitice dos que queriam fazer crer serem elas física e m en ta lm en te inferiores ao sexo m asculino. A sua m e n o r ap tidão à força física tem, com o con trapartida , o estoicis- m o, a ag udez de espírito, a inteligência e a indôm ita pers is tência na consecução de seus objetivos. A lu ta - sem os "femi- n ism os" - foi e é á rdua e extenuante. M uito especialm ente do p on to de vista psicológico: é que no inconsciente coletivo de u m a sociedade m ultissecularm ente com andada po r hom ens. APRESENTAÇÃO 9 à m u lh e r teria sido reservado u m lugar secundário , de m era coad juvan te d o com panheiro nos seus êxitos, o u fracassos. N esse q u a d ro preconceituoso , as m u lh e res - com especial m enção às advogadas - souberam im por a sua presença. São hoje in fo rm adas e inform atizadas; cultas; firmes; corajosas e b em p rep a ra d as p a ra seus misteres. Estão forjadas, com o se forja 0 aço, já que na sociedade m achista não se exige dos h o m ens ficarem "p rovando" de que são capazes. E o repúd io que a inda a lguns setores insistem em lhes devo tar, p ro cu ra n do ocultar o seu brilho, faz com que sejam elas obrigadas a um a constan te necessidade de resplandecer. E com o resp lan decem! A toga ou a beca, vestida po r um a m ulher , parece con trariar as leis d a física: a vestim enta escura d a toga ou d a beca em ite LUZ. N ão é a toga ou beca, m as o cérebro da m u lher que a veste, d a n d o form a e força aos argum en tos que expende. Dá ela v ida e b rilho p róprio a essas vestim entas param entais. Às m ulheres foi reservado o d ivino dom de gerar a v ida. Mas não o fazem só no sen tido biológico. Elas dão vida aos a rg u m entos e às expressões de seus pensam entos. A sua p rópria p e rsona lidade é o e loqüente sím bolo da v ida. As m ulheres, na advocacia e nas carreiras jurídicas, têm transm itido esse seu p o d e r de da r vida a todos os seus trabalhos. Às inúm eras m ulheres que, ao longo do tem po, se ded icaram à justa con quista desses espaços -a inda in justam ente p equenos - as nos sas hom enagens. À quelas que ainda virão, a nossa fraterna acolhida. N enhum a , porém , isoladam ente, deve m erecer h o m enagem especial, p o rque o m aior fulgor de u m a estrela não p o d e e nem deve apagar o das dem ais, sob pena de se perder a visão de conjunto da constelação. A constelação - enorm e - é a in da vista e considerada, po r a lguns setores, de form a pe quena. Porque, se m uitos as adm iram , outros o têm feito como 1 0 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA se a constelação p rocurassem não ver. Têm elas, con tudo , luz p róp ria e i rrad iam vida, graça, constância, força, firm eza e equilíbrio. Vida, graça e constância ag radam e a traem os olhos m asculinos. Força, firmeza e equilíbrio parecem , porém , fazer com que a lguns olhares se desviem , p rocu ran d o ignorá-las. E, se o p rim eiro o lhar é de adm iração, o segundo está, a inda, e ivado d o m ultissecular preconceito. N a lu ta p a ra a definitiva superação de tão descabidos atos discrim inatórios, neste m o m en to em que estam os à beira d o terceiro m ilênio da era cris tã, é que conclam am os os m eios jurídicos e em especial a O r d em dos A dvogados d o Brasil, o Poder Judiciário, o M inisté rio Público, a reconhecerem o fato óbvio de que as m ulheres represen tam , quan tita tiva e qualitativam ente , m etade da p o pulação; a adm itirem a justiça de sua luta; a considerarem que o am plo espaço conqu is tado é d im in u to frente à relevante participação fem inina na v ida jurídica. Por isso é que re itera m os o b rad o de todas as forças a serem som adas, i rm anadas na lu ta d a igualdade , para verm os, po r justiça, nas m ais Altas Cortes, a figura segura, soberana, dedicada , in teligente, pe r sistente, da m ulher, a fim de que os nossos pretórios, em to dos os seus g raus de jurisdição, possam contar com o brilho, a cu ltura , o equilíbrio, a firmeza e a força das m ulheres q u e tan to h o n ram e dignificam as nobres carreiras juríd icas que ab ra çaram: pelo Direito e pela Justiça!" Rubens Approbate Machado Presidente Nacional da OAB 11 INTRODUÇÃO N ão m uito d istan te , q u a n d o se falava na m ulher , de im ed i ato se associava a idéia de fitas, rosas, sedas, rendas , laços, saias rodadas, curvas sensuais, d en tro de longu inhos pretos ou fora deles. Associava-se, a inda, lágrim as, frag ilidade, p ro teção e cuidados. D iante dessa m agia feminina descendente de Eva, longe de se im aginar a existência das m ãos calejadas da M aria, auxiliar doméstica; da pele da Benedita, en rugada e tostada, pelo traba lho na roça; da Tereza que, às cinco da m anhã, enfrenta duas conduções para chegar ao trabalho, após o prim eiro tu rno d o méstico; d o stress d a Márcia, para ver cum prida a agenda de executiva; d o corre-corre da Sonia nos corredores do Fórum, vencendo prazos e enfrentando juizes e oficiais de justiça, e de tantas outras situações que m arcam a presença da m ulher, como força p rodu tiva e inovadora, na construção da sociedade. Isso porque, o tem po em que as m ulheres saíam de den tro da casa de seus pais, passavam para d en tro da casa d o m arido e cu idavam dos filhos... até m orrer, já passou . N aquele tem po, elas e ram tranqüilas, devotas, anôn im as, eficientes, m as subm issas. V oltando na história, na Rom a A ntiga’ , q u a n d o a pátria corria perigo, em apoio aos seus hom ens e m aridos, as m ulhe- ’ Em Grandes Discursos da História, de Hernâni Donato, Ed. Cultrix, São Paulo, pág. 17. 1 2 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA res contribu íam para o sucesso da guerra , com u m a parcela de sacrifício pessoal; quan d o havia necessidade de acalm ar a fúria dos deuses, p o r qua lquer razão, a parcela de sacrifício delas era m aior; du ran te as guerras havia necessidade de re forçar o ân im o dos soldados, dando-lhes segurança e m os trando aos céus q ue as m ulheres con tinuavam castas, m o d es tas e pudicas; enquan to o inim igo rondasse a m u ra lh a e os deuses n ão m u d asse m o destino da guerra , com o sacrifício, as m ulheres , n om eadas p rocuradoras d e seus hom ens d ian te do juízo e da ira celeste, deveriam privar-se de qualquer m eio de condução, transitavam unicamente a pé, não usavam ador nos, nem tecidos de cores, pois só podiam se vestir com rou pas escuras. Era a Lei Oppia. Irresignadas, as m ulheres foram às ruas, levan taram -se em m ovim en to de pressão sobre o Senado e consegu iram revo gar a Lei O ppia , no ano 195 a.C. Então Marco Pórcio Catão^, censor de Roma, h o m em duro , eruditOy visionário e p reocupado com aquele m ov im en to das m ulheres, p roferiu o seguin te discurso: "Senhores: Se cada um de nós tivesse sabido conservar a autoridade e os d ireitos do m arido, no interior do lar, não teríam os chega do a este ponto . Eis exa tam en te onde estam os neste m om ento: após haver an iqu ilado nossa liberdade de ação em fa m ília , a tirania das mulheres está pron ta a destruí-la tam bém no Senado. Lembrem-se do grande trabalho que tem os t ido para m a n ter nossas mulheres tranqüilas e para refrear-lhe a licenciosi- dade, o que sucederá, daqui por diante, se ta is leis fo re m revo- ^ Idem, págs. 15/16. INTRODUÇÃO gadas e se as mulheres se puserem, legalm ente considerando, em p é de igualdade com os homens! O s senhores sabem como são as mulheres: fa ça m -n a s suas iguais e im ed ia tam ente elas quererão subir às suas costas para governá-los. Acabarem os por a ss is t ir a isto: os hom ens do m undo inteiro, que são hom ens que governam as suas m u lhe res, serem governados pelos línicos hom ens que se deixam g o vernar pelas suas mulheres - os rom anos." Catão tinha razão. N ão quanto à subm issão da m ulher, mas, p o rque v islum brava que no fu turo a m ulher conquistaria , pela sua capacidade, o poder, sob qua lquer de suas formas. Reagindo a essas postu ras, de form a isolada ou em m ovi m entos organ izados, a luta pelos Direitos da m u lh e r pau la ti n am en te recrudesceu, e, o m ovim ento fem inista d o século XX, com o resu ltado desse em bate m ilenar, rep ag in o u a história da m ulher. Assim , a O rd e m Jurídica Internacional e, particu la rm ente , a d o s p a íse s oc id en ta is , rec o n h eceu a C ID A D A N IA D A M U LH ER e, s ina lizando a segurança juríd ica d a regra d e que h om ens e m ulheres são iguais em d ireitos e obrigações, levou a crer que n ada m ais precisaria ser feito, p o rq u e a conquista d o Direito no rm atizado teria o pod e r de m odificar o coração, a consciência e a v ida do seres hum anos. Quiçá fosse possível! A d u ra rea lidade m ostra as rom anas e os C atões de ontem , com u m a ro u p ag em con tem porânea . E a despeito da repaginação da m ulher, a im prensa de la ta as dores e os receios que m u d aram apenas de tem po e lugar. A ssim , su rp re e n d en te m e n te , no ano de 1998 d.C., p o r ta n to, 2.193 anos após C atão, a m esm a p reocupação . A revista V eja , na ed ição de 25 de fevereiro, adverte : O s H om ens que se Cuidem. 1 4 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA E os registros policiais, os dados históricos e estatísticos contam situações m ais do loridas do q ue aquela da Rom a A n tiga. Em todos os países da Am érica Latina e Caribe, m ais de setenta po r cento da violência contra a m u lher é dom éstica e p e rp e trad a po r m aridos, com panheiros, pais e irmãos; os n í veis salariais d as m ulheres é m ais baixo d o que o dos hom ens, a té em países d o p rim eiro m u n d o , como Estados U nidos, Ja pão e A lem anha; em algum as c om unidades africanas, as m u lheres são desclitorizadas; o acesso ao poder, sob q ua lque r de suas form as, é v isivelm ente boicoitado etc. Pois bem. Essa igualdade jurídica que tem assegu rado ta n tos avanços na c idadania da m ulher, não consegu iu vencer, a inda, a d es igua ldade da vida, que é sentida na a tua lidade , independen tem en te de países, econom ias e índices de d esen vo lv im ento hum ano . A des igua ldade é real em todas as ca m ad as sociais, esferas de trabalho, categorias profissionais e representação política, pondo-se a exigir, p o r responsab ilida de histórica, m ed id as afirm ativas v isando refrear e m in im izar os efeitos perversos desse descom passo. Portanto , sensível a essa realidade, e ac red itando na tran s form ação evo lu tiva da sociedade, o Dr. R ubens A pprobato M achado, corajoso Presidente d o C onselho Federal da O rdem d os A dvogados d o Brasil, em sintonia com a h istória , criou a C N M A - Com issão Nacional da M ulher A dvogada, a qual vem d esenvo lvendo u m trabalho voltado p a ra form ar u m a g rande rede de consciência da m u lher advogada, sobre a potenciali- zação de seus direitos, como retorno social. Assim , o resu ltado d o I Concurso de M onografia Jurídica, in titu lado C idadan ia da M ulher - U m a Q uestão de Justiça, realizado pela CN M A , é u m dos fru tos dessa conquista da m u lh e r advogada. Dos quinze trabalhos apresen tados, tem os INTRODUÇÃO a alegria de publicar, jun tam ente com as reflexões das com pa nhe iras M aria Bernadete C unha e M aria Regina Purri Arraes, os três vencedores: "M ulheres, u m a Vida de Lutas e C onqu is tas Profissionais", da es tudan te M ariana O liveira Pinto; "C i d a d an ia da M ulher, u m a Q uestão de Justiça", de M aria José de F igueiredo Cavalcanti, e "M ulher: Códigos Legais e C ód i gos Sociais - O Papel dos Direitos e os Direitos de Papel" , de O dila de M êlo M achado, am bos na categoria profissional. Tais trabalhos d iscu tem a c idadania da m ulher , não, a p e nas, com o u m direito fundam en ta l d isposto na O rd em C ons titucional, m as como o d ire ito da m ulher ser u m ser q u e tem von tade . V ontade não apenas de chorar, am ar, ser conqu is ta da, parir , receber rosas, cobrir-se, sedu to ram en te , com ren das, sedas e saias, longas, curtas ou rodadas, de ser feminina m as v o n tade de ser c idadã e ver reconhecido seu d ire ito de ser m u lher , na d im ensão do biológico, do social e d o político; de ver respe itado seu direito de gritar, de d izer não , de d izer sim, de pro testar, escolher e lutar; de partic ipar do processo de construção da h u m an id a d e e constru ir sua p róp ria h istó ria e iden tidade , de form a real, sem traum as e e spon tanea m ente. De ser m ulher, d e ser parceira, com panheira e cúm p li ce do p ró p rio hom em , partilhando com ele, po r inteiro, com respeito e in tegridade , um a vida de sonho e realidade. C om estas palavras, a C om issão N acional da M u lh e r A d vogada en trega à com un idade jurídica o livro C ID A D A N IA D A M U LH ER, U M A Q U E ST à O DE JUSTIÇA. Maria Avelina Imbiriba Hesketh Presidente da Comissão Nacional da M ulher Advogada 1 7 C ID A D A N IA D A MULHER, UM A QUESTÃO DE JUSTIÇA M aria José de F igue iredo C avalcanti INTRODUÇÃO O escorço em tem a dessa vastidão e p ro fu n d id a d e especu lativas levou-m e a percorrer u m cam inho que se b ifu rca em dois. O p rim eiro , se reveste d a análise filosófica d o con teúdo p lacentário d o Direito Positivo, form alista e dogm ático , que vige p o r u m de te rm inado espaço de tem po e em u m a d im e n são espacial. Ou, em ou tras palavras, ver-se-á o tem a incurso no Direito do d ev e r-se ra o qual se con trapõe o Direito d o ser e q ue p o r essa razão m esm a é suscetível de ser red iscu tido em nível de instância filosófica. D estarte, faz-se aqui u m exam e crítico desse preceituário positivo a oferecer n o rm as de condu ta aos p ro b lem as de con vivência e respostas à problem ática da m ulher , em várias e ta pas da H istória da H um anidade . Portanto, coteja-se o ideal de justiça, no pertinente, em épocas diferenciadas. E o procedimento aqui adotado é trazer à colação vários exemplos de m ulheres que rom peram com o status quo e decidiram viver o outro lado dessa rup tura , a despeito da contra partida que se lhes ofereceu em term os de punição ou até de transm utação de sua condição de integrante d o sexo feminino. 1 8 CIDAOAN/A OA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA Especular a essência da Justiça no que tange aos d ireitos d as m ulheres, n as m ais d iversas fases da H u m an id ad e , foi o núc leo d e nosso in tento ao realizar esta m onografia . As m u d an ças nessa seara são palpáveis, e isso vem se de sencadeando desde os clássicos pensadores até aos nossos dias. M etodologicam ente, a visão dogm ática d o Direito será con trastada pelo estofo filosófico da no rm a jurídica, este, cambi- an te e de e terna discussão, e aquela, fixada em critérios de perm anência . A "experiência" d o Direito conduz a cam inhos to rtuosos em face d e um a antítese constante en tre a dogm ática jurídica e a h isto ric idade d o ser hum ano. Q u a n to à se g u n d a tr i lha p e rc o rr id a - na v e rd a d e en tre - c ru z a n d o -se com a p r im e ira - d iz re sp e ito à p o lit ização do D ireito , em es tág io pos te r io r , p rocesso esse em q u e as m u lheres fazem H is tó r ia e assim c o n tr ib u em com conteú dos concretos p a ra a in serção de les n o n o v o con tex to d o D ire i to. O ferece-se , assim , u m a n ova a rg am assa p a ra q u e se efe tu e o D ireito d e n tro d as rea lid ad es sociais n a q u e le m o m e n to, g e ra n d o n ova ideação de D ireito-Justo, em m o m e n to s c ruc ia is da m a io r significação. E, e v id e n te m e n te , g i ra n d o o eixo da H istó ria . Caso assim não fosse, teríam os tão-som ente u m ideal u tó p ico , i r re a l izá v e l , u m a in ó cu a voeis, e n g e ss a n d o a valoração com o ideação, em choque com as cam biantes cir cunstâncias da vida. É só ana lisa r a cam inhada de conquista dos d ire itos da m u lher p a ra que se afira a consistência da afirm ação de que a V ida Humana objetivada desborda na p rem ência d a m u d a n ça dos valo res da v ida e, conseqüentem ente, daqueles referi dos à Axiologia Jurídica. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA É nessa d ispu ta en tre idealidade e rea lidade que o Direito recolhe os con teúdos concretos que revestem a aven tu ra h u m a n a n o c r i a r n o v o s v a lo r e s , n o v o s m o d e lo s , n o v o s parad igm as. CAPÍTULO 1 DIREITOS COMO JUSTIÇA - QUAL JUSTIÇA? A considerar toda a h istória de conquista dos d ire itos das m u lh e r e s e a te r c o m o p a n o d e fu n d o essa q u e s tã o na lobregu idão em que a m esm a se desenvo lveu len tam en te ao longo dos séculos, há que se considerar aqui u m corte episte- m ológico a fim de que se d istinga o conceito de justiça com o algo m ateria l e que vem se substancia lizando ao correr dos tem pos. Essa linha m etodológica certam ente é considerada em cotejo com o conceito de justiçaform al, que se desenvolveu igualm en te em pretérito m ais acum ulado no âm bito d o es tu do d o Direito e da Moral, com o estudos ideais, prospectivos, m as d istanciados de u m a realidade v ivenciada e experienciada no Ser (na realidade), em relação ao Dever-Ser do Direito e da filosofia da Moral. A ssim é que no processo histórico, n o q u e d iz respeito à posição da m u lher a ssum indo espaço público, existem m u i tas contradições, pois o p ensam en to h u m an o nessa seara p e r corre u m cam inho linear, po rém de lu tas en tre a cognoscibili- d a d e do dogm atism o, a pa r de um a estim ativa jurídica que p re s su p u n h a a m u lher com o sexus imhecilitater, e tão-som ente procriadora , sexo fraco e a priori sexo d e p e n d en te em face de u m a leitura patriarcal da sociedade, que in fu n d iu aos séculos subseqüen tes u m a invariável in terpre tação de códigos s im bólicos de tr im en tosos ao sexo feminino. 2 0 CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA N a v erdade , na lógica do Direito, apenas p a ra falarm os do sen tido juríd ico da justiça, como conceito filosófico traba lha do e h a u r id o pela Civilização H um ana , perm ito -m e d izer que a e iucubração do significado de justiça de term inou a priori um a idéia de u m direito den tro de u m a ótica dogm atista , ou seja, de u m d ogm atism o juríd ico vivenciado p o r séculos, e alicerce constru ído p a ra a recepção d o Direito Positivo. E não há q ue se desprezar, aqui, esse p rim eiro sen tir do ser hu m an o , na busca e apreensão desse valor, q ue é a igualdade , linha-m estra da especulação dos p rim eiros filósofos, p e n sa dores d a m atéria . E aqu i se recolhe a idéia do un iversa l q u a n do se investiga o conjunto d o m u n d o que nos cerca. É em to r no desse núcleo - un iverso e a sua variegada com plex idade - que o D ireito com o Ciência especulativa vai b uscar na Filoso fia os artefatos ideais para a construção de seus conceitos de ig u a ld a d e e de justiça , ou m elhor, da justiça , cuja essência se revela na ig ua ldade . 1.1 - A que região da filosofia do direito pertence a igualdade A história da idéia form al de justiça, com o valor juríd ico e de n a tu reza especulativa, veio, no am anhecer da filosofia, dos pitagóricos, com o, aliás, nos ensina RECASENS STCHES.' Segundo aqueles, o conceito de justiça está atrelado a um a relação de igualdade. E que aquela se traduz em m edida e em forma matemática, ou seja, "a justiça é um núm ero quadrado '\^ ’ o conce ito p itagórico de jus iiça está explanado em Luis Recasens Siches, in: Tratado G enera l de F ilosofia dei Derecho, 7. ed. M éxico/DF; Editoria l Porrua, 1981, p. 482. 2 Aqui Recasens S iches c ita Aristóte les, a tribu indo a frase a P itágoras. Ibidem, p. 482. CIDADANIA PA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA Portanto , estabelece-se, com a justiça, u m a relação de igual d a d e en tre as pessoas, sendo estas ú ltim as os term os da rela ção. E n tã o , d e n t r o d e u m a p e rs p e c t iv a p o r a s s im d iz e r cabalística, Pitágoras con tinua afirm ando que o n ú m ero q u a tro é u m esp lênd ido exem plo de ha rm on ia e que, portan to , este valor é regu lador de relações, que limita o ilim itado e igua la o desigual. D estarte, consideram os p itagóricos o q u a d ra d o geom étrico com o a im agem da justiça, p o rq u e tem ele quatro lados iguais. N a v e rdade , estabelecia-se, aí, um princíp io filosófico que seria re to m ad o em in terpre tação m ais ab rangen te e a p ro fu n d a d a p o r filósofos que v iriam em linha diacrônica d o s tem pos, quais sejam, sobre tudo , P latão e Aristóteles. Q ua is as contribuições adv indas desses p ensado res no to cante ao incansável desvelam ento d o conceito d e igualdade? E a que serve ele à m ulher? Sabe-se que Platão erigiu o conceito d e justiça com o sendo u m a v ir tu d e universal, da qual todas as dem ais v irtudes p ro vêm. Todavia, a diké é um valor, o qua l d iz respeito originari- am ente a u m a transgressão que m erecia com pensação . À m e d id a que o regim e político m u d a os seus característicos que envo lvem u m a sociedade aristocrática, d esb o rd a n d o na d e m ocracia, a justiça passa a ser inco rporada à sociedade, com o valo r un iversa l e trad u z id a na lei escrita, na nómos, a a ting ir a todos que e ram discip linados p o r essa lei. Por ou tro lado, tal va lo r não se inco rpora à to ta lidade d a quela sociedade, sab ido que a c idadan ia era restrita a alguns atenienses, excluídos vários segm entos, com o o das m u lh e res, o dos estrangeiros e o dos servos. O reg im e dem ocrático grego, assen tado n a dem ocracia dire ta , t inha as su as peculia r idades, pois a dem ocracia era p lena ou lim itada , o u com o no 2 2 CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA caso das m ulheres, não existia. H avia u m d iv iso r de águas e essa incapacidade relacionada à m u lher tinha a sua base ideo lógica, até m esm o em ARISTÓTELES, ele que tam b ém não era considerado c idadão ateniense po r ser meteco (estrangeiro).-^ A filosofia aristoteliana que v inda à pos te r id ad e calçou o s e n t id o d e ju s tiça n o D ire ito de n o sso s d ia s , co m o q u e d o g m atizo u os conceitos de justiça d is tr ibu tiva e justiça cor retiva, esta ú ltim a subd iv id ida em justiça com utativa e justiça judicial, o u judiciária. V ê-se, a s s im , q u e o co n c e i to d e ju s t iça , d e s d e o seu nascedouro , vem se m etam orfoseando em face d e avanços ci entíficos d e ou tras disciplinas, inclusive d o cam inhar da p ró p ria Teologia, esta, que em u m m o m en to d a h u m a n id a d e consubstanciava-se no p ró p rio Direito o u este se encontrava com aquela de form a inconfundível, pois o ram o d o pod e r civil achava-se um belicaim ente un id o ao p o d e r de d ize r as "verdades absolu tas" fora d o contexto da noção de DEUS. N a v e rdade , a l inguagem que e m pedern iu as m en ta lidades dizia respeito a calar a m ulher, pois se fazia coro d o verso d o poeta que, " u m m odesto silêncio é a honra da mulher".** Contextualizava-se a questão tem poral - social, econôm i ca, política - com as grandes indagações teológicas, a d espe i to de q ue a idéia central de justiça não im plicava em m u d a r a 3 Aristóteles era macedónio; em havendo fundado o seu Liceu, lucubrou as suas idéias filosóficas e políticas, máxime as contidas em A Política, na qual categoriza a condição de ser humano em an im a l c ív ico , o que mostra a aptidão natural do humano de viver no seio da Cidade. Sabe-se que o seu sucessor no Liceu foi Teofrasto, também não-cidadão ateniense. A posse do terreno onde se situava a Escola Peripatética só foi possível graças à influência de Demétrio, este, cidadão ateniense. Sobre essa sucessão e o fato aludido, ver Luciano Canfora, in: A B ib li oteca D esaparec ida- Histórias da Biblioteca de Alexandria, trad, de Federico Carotti, São Paulo; Companhia das Letras, 1989, pp. 29/32. A frase refere-se à citação feita por ARISTÓTELES e atribuída a Górgias. Ver Aristóteles, in: A Política, trad, de Roberto Leal Ferreira, 2, ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 36. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTiÇA cultura da m isogenia ou do antifem inism o (para u sa r de um a expressão m oderna), ou, em ou tras pa lavras, ten tava-se a p a gar qua lque r vestíg io de u m a era que p o rv e n tu ra possater existido em que a m ulher situava-se em u m p lano de poder po r a lguns considerado de era matriarcal; ou, em tem pos mais recentes, a adoração de deusas com o era o caso da veneração d o s egípcios antigos à Isis , deusa poderosa p o r h a v e r liberta do o seu filho H orus de toda a m aldade que lhe havia infligi do o irm ão Seth após haver m atado o seu pai, Osíris. O Direito rom ano ap ropriou-se da filosofia grega a fim de sis tem atizar e d a r epnstéme aos seus institutos. U m deles, o da justiça, referia-se ao ius simm cíiique tribuere, conceito formal q ue tra d u z u m a idéia de m edida , ou seja, d a r "a. cada u m o q ue lhe é de direito". O que significa seguir de volta o cam i n h o p a ra Aristóteles. A partir da í especula-se igualmente se esse direito é resultan te d e norm as jurídicas positivas ou de princípios jusnaturalistas, isto é, se esse conhecim ento está relacionado a u m a regra de d ire ito natu ra l, o u a u m a n o rm a de direito escrito. O brocardo jurídico antes enunciado, atribu ído a ULPI ANO, dá nova d ire triz ao cham ado direito na tu ra l que p assa a ser en ten d id o com o u m conjunto de leis d a na tu reza , q u e im pele os h om ens a de te rm inadas ações. E aqui estam os apenas d i an te de ações m ecânicas com o a procriação, p ropagação da espécie etc. Trata-se, antes, de um a d e tu rpação d o sen tido ou a inda da p rim itiv idade do conceito que veio a ser reform ulado po r Justin iano, ao ser im prim ido naquele u m cará ter clara m en te teológico, ou seja, tal espécie de d ire ito p rom ana de DEUS, po rtan to , con tem porâneo d o hom em desd e sem pre. N essa linha de raciocínio vê-se que a ig u a ld a d e de todos os h o m en s p e rm anece v incu lada à condição de direito. N o 2 4 CIOADANiA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA entre tan to , no tocante à m ulher, o d ire ito na tu ra l pe rm aneceu restrito à n a tu reza p rop riam en te dita , ou seja, a m u lh e r na sua m issão de rep rodução do gênero hum ano . CAPÍTULO 2 “CIDADANIA” PARA CERTAS FUNÇÕES; A MULHER VIRIL A cidadan ia sem pre esteve ligada à questão d o poder. Foi assim no Egito Antigo, na Grécia Clássica e em Rom a, sem falarm os n o p o d e r da Igreja Católica d u ra n te toda a Idade M édia. O domus e ra espaço quase sagrado na Rom a Antiga. Era den tro dele que se exercia o am plíssim o pod e r d o paterfamilias. O patria potestas era de um a grandeza absoluta. A brangia o pa trim ônio , os filhos, a m u lher casada ciim manu, pois o casa m en to sine manu deixava a esposa sob o p o d e r d o pater da família de que p rovinha . Portanto , a incapacidade civil e po lí tica da m u lher era absoluta. O fato curioso é que a m u lher para a d q u ir ir u m a certa li b e rd a d e - e aí nós consta tam os u m a "c idadan ia" incipiente - deveria ela dirigir-se às organizações religiosas para u m a vida conventual. Foi assim em Roma, foi assim d u ra n te toda a Ida d e M édia e inclusive em tem pos m ais recentes. A v ida consagrada à religião trouxe u m espaço público à m ulher , este que lhe era in te iram ente defeso. A m u lh e r ao abraçar o Sacerdócio passava a gozar de d e te rm inados p r iv i lég ios d a esfera m asculina, como o a p ren d e r a ler e a escrever e a d a r vazão à sua in te lectualidade etc. As Vestais em Roma, p o r exem plo, pod iam tes tem unhar em tribunais , fazer testa m ento , d isp o n d o livrem ente de seus bens, d ire itos esses ne g ados às m atronas. E mais: an d av am nas ruas p reced idas de CIDADftN'AOA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA lictor (oficial rom ano que acom panhava os magistrados).-" N o en tre tan to , para que assim fossem reconhecidas, o seu status sexual era com parado ao do hom em , po r tan to referida ao a r qué tipo viril.^ Afora as restrições que lhes e ram exigidas, to das d e n a tu reza fisiológica: não terem defeitos físicos, p e rm a necerem virgens etc. A m u lh e r qualificada para partic ipar do espaço público, u sa n d o o seu intelecto, deveria ser equ iparada ao hom em , o que se constitu ía u m "encôm io", p o r ser-lhe reconhecida essa capacidade. Foi assim que por interm édio de um am igo Cristina de Pisan (1364) foi reconhecida pela sua p reparação intelectual em co p ia r m anuscritos e em realizar escritos, inclusive po rtadores de reclam ações de m ulheres. O elogio pa rt iu de seu am igo Joào G erson ao afirm ar que Cristina era insígnis femína virilis femina (m ulher insigne, m u lher viril). Era necessário atingir essa condição e ser reconhecida com o tal a fim de que fosse possível 0 exercício de certas capacidades.^ Foram necessários alguns séculos p a ra que "o d ire ito da m u lh e r a ser va lo rizada e educada livre de p a d rõ es estereo ti p ad o s de com portam en to e costum es sociais e cu ltu rais base ados em conceitos de inferioridade ou subordinação"® fosse p roc lam ado e respe itado pelo Estado e pela Sociedade. ^ Do que se deduz que o seu status era comparado ao dos magistrados, A sua impodância era tamanha que a elas eram confiados os segredos dos particulares, e às vezes até mesmo os do Estado. ® Sobre as vestais, ver Santiago Montero. in: Deusas e Advinhas - Mulher e Adivi nhação na Roma Antiga, trad, de Nelson Canabarro, São Paulo: Musa Editora. 1998, pp. 86-88. ' Ver José Rivair Macedo, in: A mulher na Idade Média. 5, ed. (rev. e amp.). São Paulo: Editora Contexto, 2002, pp. 93-97. ® Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher - Art. 6®, "b". promulgada pelo Decreto n° 1.973. de 01/08/1996, publicado no DOU de 02/08/1996, pp. 14470-14473. 2 6 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA E obviam ente pelo conceito da igua ldade e da eqü idade, não se haverá de educar as m ulheres apenas para serem v ir tuosas, com o queria ARISTÓTELES; e, sim, tam bém p a ra se rem partic ipa tivas d o processo político, até p o rq u e a noção de justiça, hoje, é lida sob ou tro ângu lo a fim de ver a m u lher com o o O u tro da parcela da H u m an id ad e , ou seja, o tem a da im agem de DEUS, no ser hum ano , assum e h od iernam en te um ca rá te r antropológico , a se ve r aí a id en tid ad e h u m a n a da m u lh e r em sua relação de a lteridade com o hom em . D epreende-se que o caráter dogm ático de justiça se im p u n h a na Sociedade a ser v iv ido como ideal jurídico-político nas sociedades que nos antecederam . A p a r , e contrad itoriam ente , de u m elucubração b rilhante do con teúdo da justiça d istributiva,^ ARISTÓTELES exorta va que: "... a tem perança e a justiça diferem até en tre pessoas livres, das quais u m a é superio r e a ou tra inferior, po r exem plo, en tre h om em e m ulher. A coragem de u m h om em se ap ro xim aria da pus ilan im idade se fosse apenas igual à de u m a m ulher , e a m u lher passaria p o r a trev ida se não fosse m ais rese rvada d o que u m hom em em suas palavras C om isso se vê q u e o p ró p r io conceito de justiça sofre gradação e tonalidades, haja vista que, m esm o entre as pesso as livres, há desigualdades. A pus ilan im idade d iz respeito à m ulher; o a trev im ento , ao hom em . Ao hom em , a virtude; à m ulher, é conferida a honra. Esses dois vocábulos sofreram m udanças em sua sem ânti- ® Em Aristóteles, a idéia de justiça distributiva, a qual integrou o Direito e hoje é um ideal igualmente de natureza estruluralmente poUlica,aplica-se à divisão das hon ras e dos bens públicos e se direciona ao objetivo de que cada cidadão receba dessas honras e bens a porção adequada a seu mérito com o qual se afirma o princip io da igualdade. Ver Aristóteles, op. c i l , p. 51. O destaque na citação é meu. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA ca, pois na linguagem dos estereótipos existentes en tre os se xos, aqueles vocábulos de significados p assa ram a significan- tes, isto é, a v irtude é um a pa lavra que den o ta coragem , v a lentia, força, v igor m asculino, enquan to a h on ra passou a tra d u z ir o pape l que a m u lher deveria exercer com relação ao seu com portam en to p rivado e público. A hon ra é a tr ibu to da n a tu reza fem inina. A justiça form al descurou-se , pois o d ire i to escrito estabelecia a igualdade jurídica, m as n ã o hav ia um a p restação positiva no p receituário juríd ico-positivo no sen ti d o de d a r cum prim en to ao estabelecido dogm aticam ente . Isso q u e r d izer q ue a rea lidade que circundava a lei era outra. M esm o as m ulheres que escreviam sobre as pessoas d e seu sexo - mulher viril - eram em sua m aioria consideradas rigoro sas em suas prédicas e enunciados, ao se referirem à m ulher. A p rópria Cristina de Pisán, c itada linhas atrás, é vista por LEILA M EZA N ALGRANTI com o au to ra rigorosa em seus preceitos sobre a m ulher. Diz essa Autora: "O livro d e Christine de P izan, escrito no início d o século XV e d irig ido às m u lh e res de todas as origens e classes, reúne u m conjunto d e a d ver tências sobre a condu ta e a m oral fem ininas, e n a d a deixa a desejar frente à severidade dos conselhos m asculinos A hon ra é explicitam ente um substan tivo d u p lam e n te fe m inino: pela sua etim ologia e pela l inguagem constru ída so b re o im aginário social da época. E mais: v incu lado à sexuali d a d e da m ulher. Daí, o que não é de a d m ira r q ue na práxis da legislação pena l brasileira, "na legítim a defesa da h o n ra" , foi estabelecido um costum e em que esse conceito d iz respeito não a u m a v irtude pessoal, m as ao c o m portam en to sexual fe- " Sobre o conceito de honra da mulher colonial brasileira ver Leila Mezan Algranti, in: Honradas e Devolas: Mulheres da Colônia - Condição feminina nos conventos e recolhimentos do Sudeste do Brasil, 1750 - 1822. Rio de Janeiro: José Olympic, Brasília: Edunb, 1993, Capítulo 3, pp. 109-156. 2 8 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA m inino , que desborda pa ra o espaço público m asculino, sen d o rejeitado pelo que se considera u m desvio de co m porta m en to social, p o r es ta r l igado ao adu lté rio fem inino . Pelo m enos, esse conceito vigeu po r m uito tem po. Fala-se igualm ente d o rigor com que tra tou as m ulheres H ildegard Von Bingen, apontada como um a m ulher que foge aos padrões culturais da época em que viveu. Foi abadessa de u m mosteiro beneditino, no século XII, na Alemanha, e que exer ceu um a forte influência sobre as lideranças de seu tempo. Q u a n d o se levantou a questão de que H ildegard escrevia a len tados livros, livros q ue m arav ilhavam e q ue e ram p ro d u to de revelação divina, foi tal fato levado ao Papa, o qual d e s ignou u m a com issão que exam inaria o fato in locum. Consta que em pa lavra d irig ida ao Papa A nastácio IV, H ildegard te ria im precado que o Sum o Pontífice estava neg ligenciando a régia virtude da justiça.’^ '2 0 costume vem de muito longe em projeção de tempo passado. As Ordenações Filipinas concediam ao marido da adúltera o direito de a matar, havendo de ser a morte civil ou natural, a depender das circunstâncias. (Livro 5, Título XXV). Igual mente 0 marido podia matar o adúltero, desde que esteja certo que ambos cometem adultério. Na hipótese de flagrante delito ou em decorrência de decisão judicial que aplicasse a pena de morte à mulher adúltera, todos os bens dela revertiam a favor do marido. (Livro 5, Título XXV). Hildegard escreveu muito. Dizem que o Convento por ela fundado no monte Rupert, em Bingen, Alemanha, tornou-se a sa la de espera da E uropa e que pessoas pro eminentes da época vinham aconselhar-se com ela: papas, bispos e príncipes, Cfr Kurt Allgeier, In: Receitas Milagrosas de Médicos e Místicos - Remédios Naturais de Dois Milênios. Trad, de Célia Maria Würth Teixeira, [s. local]: Editora Tecnoprint, 1986, p, 61. Ainda sobre Hildegard Von Btngen, ver José Rivair Macedo. In: A M u lher na Idade Média, 5. ed. (rev. e amp,). São Paulo: Contexto, 2002, p. 87. Igual mente, com a informação de que Hildegard foi estigmatizada por criar problemas em função de sua inteligência e de suas idéias e em face disso haver sido-lhe nega dos os sacramentos por seis meses, retirando-lhe, também, o direito de ser musicista, ve r Peter Stanford, In: A Papisa ~ A Busca pela Verdade Atrás do Mistério da Papisa Joana. Trad, de Márcia Frazão, Rio de Janeiro: Gryphus, 2000, p. 131. E com a conotação de que Hildegard von Bingen adotou a doutrina de Agostinho quanto ao pecado original, e também fazendo alusão ao livro sobre medicina natural escrito por aquela Abadessa, no que tange à questão da contracepção, ver u ta Ranke- Heinemann, In: Eunucos Pelo Reino de Deus ■ Mulheres, Sexualidade e a Igreja Católica, 3. ed. Rio de Janeiro: Record - Rosa dos Ventos, 1996. pp. 199 e 216. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO OE JUSTIÇA O discurso da justiça im prim ia a d es ig u a ld ad e en tre os sexos, ao m esm o tem po que se deb la te rava sobre u m conceito p u ram e n te dogm ático e de justiça terrena. H ildegard v iveu en tre 1098 a 1179, m ais d e um século an te s d e T om ás de A quino , p o rém a Teologia, p ro d u to ra d o Direito d e então, v i via a florescência da Patrística, que exaltava o pecado origi nal, a q u e d a d o ho m em e com fortes acentos d o conceito m aniqueísta , do bem e d o mal. O ra , a c u ltu ra re lig iosa ag o s tin ian a im p re g n o u o D ireito e aí se seg u e u m esforço de t ra n sc e n d e n ta liz a r a d o u tr in a ju ríd ica , ao lado d e u m a concepção pessim is ta e d em eritó ria d a n a tu re z a h u m a n a , o q u e lev o u a es tabe lece r d e s ig u a ld a des e n tre os sexos, em v ir tu d e d o p e c a d o o rig ina l. A m u lher, re sp o n sá v e l pe la f raqueza no É den , lev o u o seu com p a n h e iro a pecar, e d a í a d eca ída d o ser h u m a n o em toda a su a descendênc ia . A filosofia da justiça passa a in tegrar a recolha da iusfilosofia do Bispo de H ipona. A questão da justiça d o s d ire itos da m ulher achava-se no continente do m aniqueísm o cu ltuado por Santo A gostinho d u ran te anos d e sua ju v en tu d e e presen te em suas obras, inclusive na autobiografia que e s c r e v e u .E r a a lu ta d o bem contra o mal. A n a tu reza contra o intelecto. A Biologia contra a C ultura . Restou à m ulher, a n a tu reza com a sua capac idade procriadora , p o rém frágil p e lo seu p ecado de ten ta r o hom em A dão no Paraíso. A idéia de igua ldade constru ída pelos filósofos gregos so fria injunção d e u m a exegese que partia d o m al e do bem - do u tr in a m anique ís ta resva lando pa ra a questão da subor- Os seus livros mais conhecidos são: De Civitate Dei (A Cidade de Deus), inicia do em 424 d.C., e Confissões, iniciado em 396 e completado em 399, com um Capitu lo sobre a sua v ida após a conversão. Trata-se, aqui, de sua autobiografia. C ID A D A N IA D A MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA dinação, da polarização d a existência de um ser superio r (sexom asculino), e de u m ser inferior (sexo fem inino).’^ A ques tão da m ate rn id ad e foi elevada à condição d e ser a fu n ç ã o e x c lu s iv a d a m u lh e r , p o is a r e p r o d u ç ã o n ã o se com patib ilizava com a p rodução , ou seja, era u m a p rodução p a ra trás - re-p rodução u m a função m eram en te biológica e socialm ente genealógica. Esse era o p red icam en to aceito pela C u ltu ra d a época e sed im entou-se com o tal. CAPÍTULO 3 A CIDADANIA: SUBSTANTIVO DUPLAMENTE FEMININO EM MEIO AOS MOVIMENTOS DE MASSA Os d ire itos da m ulher e em particu lar os seus d ire itos de c idadan ia p rovêm não d e valores sed im en tados na C u ltu ra da H u m a n id a d e , e, sim, de contravalores defen d idos em m o v im entos de m assa da Contracultura. N os anos sessenta do século XX, irrom pem m ovim en tos de g ru p o s que levan tam bandeiras com o as que tra d u z ia m a em ergência d o pacifismo, d o m ovim ento ecológico, e d o m o v im ento de igua ldade de d ireitos entre hom ens e m ulheres, d en tre outros. São os cham ados g rupos de pressão, o u seja, pessoas ag ru p a d a s em face de um a p a u ta de reivindicações 0 maniqueísmo é apontado como o último grande movimento reiigioso no O rien te. surgido após o Cristianismo e anterior ao Islamismo. Foi fundado por Mani, de origem persa, o qual se dizia ser o Espírito Santo prometido por Jesus Cristo. A sua doutrina considerava a procriaçào um ato diabólico, de vez que o homem era um ser gerado por uma partícula de luz presa em um corpo gestado por demônios. Por aí se deduz a forte influência dessa doutrina nos conceitos teológicos e filosó ficos desenvolvidos por Agostinho, o que levou a Cultura Religiosa a perpassar séculos com conceitos antinómicos sobre o que é bom e o que é mal. Essa con cepção, no que tange à exegese religiosa cristã, tem se modificado em função de enfoque antropológico, trabalhado por teólogas, que utilizam a noção de anthrópos. isto é, do masculino e do feminino como conceito universal de humanidade. Sobre Mani e a sua doutrina, ver Uta Ranke-Heinemann, in: op. cit., p. 93. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO OE JUSTIÇA. q ue têm u m a linguagem de substancialidade, q u an to ao d i reito à v ida e à d ignidade. N o bojo do expressar da C ontracultura, a m u lher reivindica direitos d e cidadania, vistos estes com o u m a gam a de direitos que incluem direitos civis - o de livre expressão, de reunião e de ser tratada com igualdade perante a lei; direitos políticos que abrangem um a ação positiva que, além de votar e ser votada, seja mais participante do processo político, com lideranças em comunidades, paróquias etc.; e direitos de natureza socioeconômi- ca, a ter em conta aqui o direito a produzir economicam ente, a ser m em bro ativo da sociedade p rodu tiva e de consum o etc., afora o direito a l idar com o seu corpo e a sua sexualidade. H á aqui um rom pim en to com a H istória C ontínua, com o d iz FOUCAULT, ou seja, há um a ru p tu ra com os conceitos de con tinu idade histórica. N asce aqui ou tra versão de po d e r, não m ais 0 que inculca estigm as ao corpo e à alm a, m as u m a supe ração d o patria protestas, po r m eio de u m a transform ação cu l tural, que v em a pag an d o a noção tradicional rom anística. Essa transform ação , na v e rdade , é pa rte do m ov im en to racionalista do Ilum inism o que detecta no sag rado - e aqui o vocábulo é extensivo a a tender várias form as d e m anifestação religiosa - a razão m aior de postu ras identificadas com n o ções alegóricas d e separação en tre hom ens e m ulheres , sobre tu d o q u a n d o essas ú ltim as utilizam form as racionais ou não de detenção d e poder. D oravante o p od e r é racionalizado , diz WEBER, a través d e condu tas racionais - legais. O direito político a ser estendido à m ulher é m edida m aior a ser conquistada, algo mais que o poder de votar e de ser votada. N as peg ad as d a H istória, com relação ao d ire ito de voto, há que se d izer que no Brasil, d esde an tes de sua in d ep e n d ê n cia form al, um d e p u ta d o baiano , rep re sen ta n te nas C ortes CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO OE JUSTIÇA G erais p o r tuguesas (1822), contribu iu com u m ad itam en to ao artigo 33 d o projeto da C onstituição que en tão se e laborava, no qua l p ro p u n h a que a m ulher que fosse m ãe d e seis filhos legítim os tivesse d ireito a votar nas eleições. A proposição foi d e rro tad a p o r um d e p u ta d o po rtuguês , ao afirm ar este em seu parecer que se tra tava d o exercício de u m d ire ito político e que as m ulheres n ã o o têm p o r serem incapazes.’ ^ E acrescenta em latim: "Mulier in ecclesia taceat" (a m u lher deve se calar nas reuniões).’^ Infere-se assim o estigm a social im p u tad o à m ulher, pois m esm o o critério biológico de ser m ãe de seis filhos n ão a u to rizou a concessão d o d ire ito de sufrágio, N ão consta o nom e desse d e p u ta d o ba iano nos anais da C onstitu in te brasile ira d e 1823, e o projeto desenvo lv ido p e los dez m em bros nom eados pelo Im perador, após a dissolvição d a A sse m b lé ia C o n s t i tu in te , a p a r d e a d o ta r o s u frá g io censitário, não a dm itiu o voto d a m ulher, d e form a a perm itir o d ireito d e participação no processo eleitoral. (Arts. 91 a 97 d a C onstitu ição brasileira de 1824). O I lum in ism o não h av ia d isp e rsad o a inda o es te reó tipo d a m u lh e r b iológica e a sua incapac idade p a ra o tra to d o es paço público. Este ú ltim o era an tôn im o d o espaço d o m és ti co e este um significante unívoco ap licado a p e n as às tarefas fem in inas m anuais . Tratava-se do Deputado Domingos Borges de Barres, representante da Provín cia da Bahia às Cortes Gerais portuguesas incumbidas de elaborar a primeira Cons tituição de Portugal. A informação colhida de João Batista Cascudo Rodrigues acres centa ser aquele deputado pai da futura Condessa de Barrai, a quem ajunto a informação de ter sido aquela por seu turno uma mulher do tipo “viril", pela sua participação intensa na vida social do Segundo Império, havendo trocado corres pondência com o Imperador Pedro II. A informação de Cascudo Rodrigues está contida em A M ulher Brasileira - Direitos Políticos e Civis, 3, ed. Brasília; Centro Gráfico do Senado Federal. 1993, pp. 43-44. A tradução é minha. CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA CAPÍTULO 4 A MULHER E A POLÍTICA DO PODER; A CAÇA ÀS BRUXAS O poder, pa lavra polissêmica e que foi t ra d u z id a em lin guagens variadas, subjaz às políticas de m ando , de obed iên cia ou, com o d iz MAX WEBER, às relações d e dominação.^® Incursionando na H istória da Inquisição h á d e se verificar q ue literalm ente a caça às bruxas foi u m a form a de m arg inali zar as m ulheres que agiam na in form alidade do po d e r, no tra to das forças da natu reza, e po rtan to u m a espécie d e cercea m en to da voz fem inina d o não-d ito , com batido pelo Poder Oficial com o apostasia. A bruxa trabalhava às ca ladas e esse silêncio tinha voz a ltam ente incôm oda. U m a fo rm a d e não -dec lara r d ire ito s era a d e p e rseg u ir m ed ian te a abjuração, que tanto se revestiu d e estigm as soci ais q u an to d e condenação religiosa. E aqui o im aginário dos acusadores vai longe ao pon to de revelar que os dem ônios p o d em partic ipar da geração de hum anos, a través das b ruxas que em conluio carnal com íncubos e súcubos,'^ geram seres hum anos. São, assim , m ulheres d enominad as de b ruxas ou feiticeiras p o r causa d a " m agn itude de seus a tos m aléficos". E "enfeitiçam a m ente dos hom ens, levando-os à loucura, ao ódio insano e à lascívia desregrada". Para o esludo da Sociologia da Dominação, ver MAX W EBER, in: Economia y Sociedad- E.sbozo de ‘Sociologia Compreensiva’. Trad, de José Medina Echavaría et allii. México: Fondo de Cultura Econômica, 1992, pp. 695 a 889. íncubos e Súcubos são demônios masculinos e femininos que em conluio carnal com as bruxas faziam-nas procriadoras de seres monstruosos. Sobre a matéria, ver verbetes ín cu bo s e sú cu b o s in: Manfred Lurker, Dicionário de Dioses y Diosas, Diablos y Demônios. Barcelona/Buenos Aires/México; Ediciones Paidos Ibérica (s.d,], " Ver sobre o tema O Martelo das Feiticeiras - Malleus Maleficarum trad, de Paulo Fróes, 12, ed. Rio de Janeiro: Record/Rosa dos Tempos, 1997. Ver Introdução Histórica, de Rose Marie Muraro. Ibidem, pp. 5 a 17, CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA É m ister deixar claro que aqui é feita um a referência científi ca no sentido da História das M entalidades. Trata-se de ação situada no tem po histórico, que se apóia em saber teórico, como tam bém em regras imaginárias, os quais levaram à prática for m as d e agir que vistas a distância do tem po em que aquelas foram produzidas pode parecer - e parece, efetivam ente - em evento declaradam ente esdrúxulo e sem cabida nos dias de hoje. O poder, en tre tan to , secularizou-se e se agasalha no d o m í nio da Sociologia, da Ciência Política e do Direito. A seculari- zação é de a lgum a form a u m m odo de dessacralizar. E passa a ser u m valor no com plexo de valores da Era M oderna. O u d ito em ou tras palavras: com a secularização há um en tend im en to en tre religião e cultura, den tro de um processo de historicização e d e m undificação do sen tim ento religioso. Este é expu rgado d os elem entos q ue lhe in q u inavam p o r p e r pe tra r a titudes ortodoxas, ou fundam en ta lis tas e com apoio do p o d e r civil, es tando este a tre lado àquele, com o acontecia na Id ad e M édia, e, a inda, no início da Era M oderna. A questão do p o d e r em conexão com o tem a d as b ruxas há de ser vista p o r u m prism a "político" d o conceito u n o d o Es tado, ao m esm o tem po tem poral e espiritual, ancorado na Igre ja Católica que en tão se institucionalizava. É obra resu ltan te de vários fatores, inclusive na o rdem sincrônica e diacrônica dos fatos. H á um delineam ento p ro longado através dos tem pos, na configuração d o Estado. D esde a Bula d e Inocêncio VIII (1484), a qua l reforçou o apare lham en to d o Tribunal Inquisitório, ou d e antes, de vez qu e o T r ib u n a l d o S an to O fício foi in s t i tu íd o p e lo P a p a G regório IX (1170-1241)^^ com o instituição perm anen te , wrfe; Foi esse Papa quem instituiu a Inquisição sob a direção dos dominicanos. C on tudo, sabe-se que o Papa que aprovou o uso de tortura na Inquisição, a fim de CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA et orbi, e com vistas ao com bate das heresias. Esse T ribunal sed iado em T oulouse torna-se am pliado jurisd ic ionalm ente p a ra a ting ir a França, Espanha, A lem anha e, em m en o r esca la, Portugal. H avia, ev identem ente, o apoio d o b raço secular, pois sabe-se que os juizes eclesiásticos não p ro n unciavam pe nas capitais, d evendo os réus ser en tregues ao ju lgam en to do p o d e r civil. P raticam ente, este funcionava com o o aparelha- m en to ideológico daquele Tribunal, haja v ista q ue o substra to filosófico dos processos foi em basado em textos religiosos. M ais um a vez, a simbologia está fortem ente presente, pois aqui 0 religioso mescla-se com o m ágico, ou seja, a perseguição às b ruxas tem supedâneo no m u n d o do imaginário, em que se creu que o "poder" delas em certa m edida é objeto da im agina ção de quem tudo podia fazer, ou seja, ter o pod e r aliado ao Dem ônio, para tudo realizar, inclusive operações inacreditáveis, como, po r exemplo, criar seres por metamorfose. E, ainda, apoi ados os autores do Malleus Melleficaram em filósofos m uçu lm a nos, sugerem aqueles que o poder da imaginação é capaz de, na rea lidade ou na aparência, modificar os corpos de outras pes soas, desde que esse poder de imaginação não seja reprimido.^^ colher confissões de heresia, foi Inocèncio IV {1200-1254), Assim, o Papa Gregório IX é v is to com o um P ontífice v irtuoso , havendo sido um fo rte de fensor dos franciscanos. Foi ele quem canonizou Francisco de Assis, seu amigo pessoal, em 1228, Antonio de Pádua (ou de Lisboa), em 1232, e Domingos, em 1234. Ao criar a Inquisição, deliberou passar às mãos das autoridades civis a questão da pena de morte. Foi o mesmo Papa quem determinou a reabertura da Universidade de Pa ris, em 1231, modificando o interdito contra obras filosóficas de Aristóteles. Ver verbetes Gregório IX e Inocéncio IV, in: Richard P. McBrien, Os Papas - Os Pontí fices de São Pedro a João Paulo II, trad, de Bárbara Theoto Lambert. São Paulo: Edições Loyola, 2000, pp. 218-220 e 221-222, respectivamente aos dois verbetes. 22 Os filósofos muçulmanos citados são AL-GAZALI e AVICENA, o primeiro com uma form ação eclética, havendo sofrido várias influências do pensamento de sua época (1059/1111), tais como, da filosofia, teologia e do esoterism o e o segundo, na verdade, anterior a este. conhecido pelo nome de AVICENA, nascido em 980 da era cristã e famoso como o maior nome da filosofia neoplatônica islâmica, bem como da medicina medieval. 3 6 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA C o n tu d o , a ques tão da persegu ição no tocante às b ru x as é significativo de u m a época em que se com eçava a descobrir que o saber gera poder. Essa id en tid ad e com eça a se esboçar a p a r t i r d o m a rc o g a l i l e a n o , m a rc o q u e fo i c a p a z d e d e sco n s tru ir d o g m as fo rm ados e aceitos ao longo d o s sécu los. É com o d ito p o r H ILTO N JAPIASSU, q u e "... o sen tido d o conhecer se converte em ação, em ato d e apodera r-se , em d o m in ação o u apropriação".^^ N a v e rdade , a Ciência de tonou o saber com o fonte de p o der, conhecim ento universal, capaz d e m u d a r o conhecim en to estabelecido, na interferência da N a tu reza e no p o d e r da detenção desse conhecim ento. É o desafio d o ho m em do sa ber que altera a com posição das es tru tu ras d o poder. Torna-se " insuportáve l" ver a b ruxa m an ip u lan d o as for ças d a N atu reza , com o aquelas desenvolv idas po r benzede i ras, cu rande iras e p rinc ipalm ente po r parteiras. A inda que de um a form a não-científica. E era tão forte essa questão da crença nesses elem entos que todo 0 arcabouço da Justiça Civil se prestava a colaborar na ulti mação desses processos. O próprio Malleus Maleficariirn é um a peça jurídico-ideológica, d ifundida por toda a Europa, em sua prim eira versão latina e, após, em traduções, e um a peça essenci al para o estudo da m entalidade da época, na qual dois teólogos dominicanos - H enry Kramer e James Sprenger - eram professo res e delegatários para os fins de realização da "justiça", com plenos e irrestritos poderes para o exercício de seus misteres. C uriosam ente , em época m ais recente, ISAAC N EW TO N serve-se de conhecim entos esotéricos, a lquim istas, ocultistas, a po n to de Keynes, em 1946, haver declarado que N EW TON, Cfr. Hilton Japiassu, in: / is Paixões da Ciência - Estudos de História das C iênci as. São Paulo: Editora Letras & Letras, 1991, p, 300, CIDADANIA DAMULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA sendo o m aior filho d e C am bridge , foi n ã o o p r im eiro p e n sa d o r da era d a razão, po rém o ú ltim o dos mágicos/'^ A inda segundo JAPIASSU, foi relevante o trato da trad i ção m ágica ou herm ética no pensam en to de N EW TO N , inclu sive h a v e n d o este p recu rso r cientista d o M u n d o M oderno haver rea lizado um estudo transdisciplinar, em que são es tu dad o s P itágoras - o que com parou a Justiça à perfeição de um n ú m ero q u a d ra d o - , Virgílio, São Paulo, M oisés, Salom ão e ou tras f iguras de expressão no m u n d o do pensam en to filosó fico e religioso, inclusive afirm ado que P itágoras conhecera no seu tem po a lei da gravitação. São postu lações de novas épocas, nas quais falar de "p o d e res ocultos" já não d en o d av am processos de ex term inação de apostasias. E, por via d e conseqüência, já se via Galileu em ou tra ótica, e a justiça transfigura-se em n om e de um outro e lem ento cham ado razão, e que às vezes n ão confirm ava essa confluência em torno da perfeição d a igualdade da justiça do quadrado. H á um a segunda conciliação en tre a razão e a fé. E o Direi to abre cam inho pa ra que o ser h u m an o com plete a sua obra social e política. D issem os acima que se tra tava de u m a ru p tu ra, m ais ao sabor foucaultiano. C om efeito, há u m a m udança de ru m o den tro d o conceito de sexo, pois a d iscrim inação aí constru ída parece fazer parte de um a tessitura política e lin güística. E com o o Direito é tam bém política e l inguagem , é de se inferir que a m udança do rum o perm eie as regras do Direi to Positivo, com u m ingredien te novo: a justiça va lo rada pelo e lem ento m aterial. H á um a interação en tre a m u d an ç a social ** A frase atribuída a John Keynes acha-se citada em Hilton Japiassu, op. cit., pp. 123 0 segs-, dentro do Capítulo 4. O Contexto Mágico - Religioso - Político de Newton, 3 8 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA e o apare lho receptor do Direito q ue se im pressiona e percute an te os fenôm enos da v ida social. E a justiça m ateria l se inflete n a igua ldade ex ortada em to dos os prism as: n a construção de u m m u n d o m ais igual, nas relações p ro d u tiv as m ais equ ilibradas e eqüita tivas, n o en cu r t a m e n to d a s d e s ig u a l d a d e s so c ia is e r e g io n a i s {vide p ro g ra m á t ic a d a C o n s titu ição b ras ile ira de 1988, em seu exórdio , art. 3° e incisos) e na efetivação da ig u a ld ad e entre h o m em e m ulher, den tro do espírito da filosofia dos Direitos H um anos. Aí se inicia o processo de c idadan ia d a o u tra m eta de d a H um an idade . A c idadan ia é vista no contexto de um a justiça m aterial, esta, na concepção de ser a realizadora d a ig u a ld ad e jurídico- form al. É o constructo m aterial, isto é, a rea lidade c ircundan te d o Direito, q u e vem a ser tom ada em conta pa ra q u e haja um encontro efetivo do juspositiv ism o com a rea lidade histórica e social, já que n a p rópria tessitura d o Direito form al de há m uito se in seriu o elem ento subjacente d o ius e d a aequitas, v in d o a faltar, apenas, a concreção das rea lidades sociais na construção formalística da lei. H á, po r ou tro lado, u m crescim ento ou transição n a cons trução simbólica da cidadania, até, quem sabe, por u m acúm ulo d a m en te social coletiva ou pa ra usar da insuperável expres são d e JUNG, m ed ian te a rq u é tip o s ancestrais. Jung nos dá a idéia de arquétipos no seguinte exemplo: “Permitam-me a seguin te comparação: suponhamos que nos incumbiram de descrever e explicar um edi fício cujo andar mais alto foi construído no século XIX e cujo andar térreo data do século XVI. Investigações mais acuradas das paredes nos revelam ainda que esse edifício foi reconstruído a partir de uma torre do século XI, No porão descobrimos alicerces romanos e abaixo do porão encontra-se uma caverna soterrada. No fun do dela se encontram instrumentos de pedra na camada superior e restos da fauna da época na camada inferior. Essa construção se assemelha de certa form a à imagem de nossa estrutura psíquica: vivemos no andar mais alto e só vagamente sabem os que o andar térreo é relativam ente antigo. E sobre o que se encontra CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA A considerar essa revivescência há que se ver que os concei tos de cidadania e de justiça atribuídos à m ulher vêm de ser retom ados em pleno século XX, a inda que a princípio sob um a ótica de Direito N atura l a ser positivado - Declaração U niver sal dos Direitos H um anos da ONU, de 1948 e posteriores Acor dos e Convenções assinados com vistas à igualdade na política, no trabalho, na vida social, enfim, no espaço público. O u na ótica dos arquétipos, quiçá há u m a re tom ada d a p a r ticipação política da m ulher, igual ao ou tro gênero , cultura essa que seg u n d o estudiosos p ro sperou em civilizações e épo cas arcaicas, ou m ais antigas, não obstan te tal verten te não haver s ido versada pelo preclaro JUNG, a té p o rq u e d u ran te a sua época, o arqué tipo da m ulher se circunscrevia à m ãe, que é identificada ao yin chinês, enquan to o a rqué tipo d o pai, re lacionado ao yang, de te rm inava a relação com a lei e com o Estado, po rtan to , acrescento eu, com o poder. O ra, há es tudos arqueológicos que nos levam a asseverar que não é d e todo im proceden te tal possib ilidade. N ão se quer com isso criar nova tese, con tudo há que se ressaltar que os es tudos e pesqu isas sobre a v ida arcaica da H u m a n id a d e dão conta de que há u m im pulso inicial pa ra considerar u m a e ta pa da hum anidade que se assentava em um a igualdade entre hom ens e mulheres, ou até de desequilíbrio nessas relações em detrim ento do hom em . Tal assertiva nos vem de BACHOFEN,^^ abaixo da superfície não temos conhecimento algum” . Esse exemplo com a infor mação da complexidade da questão acha-se em CARL G. JUNG, in: Civilização em Transição. Trad, de Lúcia Mathilde Endiich Orth, 2. ed. Petrópolis: Editora Vo zes, 2000, pp. 35 e segs. " Bachofen é citado por Joseph Campbell et allii, in: Todos os nomes da Deusa. trad, de Beatriz Pena, Rio de Janeiro; Record - Rosa dos Tempos, 1997, p. 63. Ver, igualmente, Friedrich Engels, in: A Origem da Família da Propriedade Privada e do Estado, trad, de João Pedro Gomes, Lisboa-Moscou: Editorial “Avante!", 1985, O autor citado é Johann Jakob Bachofen (1815-1887), historiador e jurista suíço, autor de “0 Direito Materno” . CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA q ue considerava o m atriarcado com o a form a m ais prim itiva d a sociedade hum ana. Aliás, esse ú ltim o pesqu isado r é um dos au tores es tudados por ENGELS quan d o do desenvolv i m en to d e suas pesquisas que vieram em basar a sua obra so b re a Família e a P ropriedade. Por ou tro lado, há evidências de u m equilíbrio de direitos en tre hom em e m ulher no Egito Antigo. Prim eiro, pela rele vância de sua d eusa ISIS, que encarnava a p ró p ria im agem do Egito, seg u n d o a palavra au to rizada da eg iptóloga CHRISTI- AN E DESROCHES NOBLECOURT. Era o u to rgada liberdade à m u lher egípcia que não conhe cia a tutela, com o ocorreu com a m ulher rom ana; em m atéria d e d ire itos de sucessão, os quinhões eram iguais pa ra os h o m ens e pa ra as m ulheres e pod iam elas escolher o seu m ari do, o que não acontecia com as rom anas, e p o r a tav ism o cul tu ra l não existia tam bém tal l iberdade às m ulheres do m u n d o ocidental, particu la rm en te d a Península Ibérica. Por via de conseqüência, as m ulheres brasileiras d a época colonial não gozavam dessa liberdade, havendo tal fato se es tend ido até a lgum as décadas atrás. Dá-nos conta NOBLECOURT que a m ulher egípcia gozava de am pla capacidade jurídica - referindo-se à m ulher não-es- crava - e o que é m ais curioso é que a m ulher casada, no início da XIII dinastia - cerca de 1785 a.C. - era detentora d e um a am pliada capacidade legal, p odendo até convocar o seu pai em Juízo, a fim de proteger os seus próprios interesses p r iv a d o s / ' Ao revés, até 1962, em nosso país, à m u lher casada era im p u ta d a um a incapacidade relativa, em face d o C ódigo Civil q ue assim o de te rm inava em seu artigo 6° . Era a m arca pro- 2’’ Sobre a mulher no Egito Antigo, ver Christiane Desroches Noblecourt, in: A Mulher no Tempo dos Faraós, trad, de Tânia Pellegrini. Campinas, SP: Papirus, 1994, Sobre as informações acima, ver pp. 207 a 216, passim. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA 4 1 funda d o Direito Rom ano, trazida até nós via Código Civil N apoleònico, este, desprestig iador do direito das m ulheres por força d a velha tese da incapacidade do sexo fem inino. Foi essa verten te que se d ifund iu no Direito O cidental, fo rm ulado ao longo dos séculos e d e forte laivo religioso em face das d o u tr i nas desenvo lv idas d u ran te a Idade M édia, e que no fenôm e no da aculturação p e rm eou os vários o rdenam en tos jurídicos dos países eu ropeus ocidentais. Em resum o do C apítulo, im pende d izer que há u m a lin guagem reducionista constru ída em face d e excluir a m ulher da usufru ição de d e te rm inados estados, sob re tudo q u an d o se trata d e estados d e "graça intelectual", forjadora do poder, a p o n ta n d o -s e aq u i u m a p ró p r ia r u p tu r a com o d isc u rso heurístico sobre o qual a Justiça em sua origem está assen ta da. N a v e rd ad e , h á u m a lu ta im plícita e silenciosa d e n tro da qual se o peram interesses com o os desenvolv idos pelo T ribu nal Inquisitório , o qual operava com a apriorização de certos conceitos com o os expendidos em Bulas e no fam oso Malleus Malleficarum, qu an d o "dogm as" eram estabelecidos p o r vári os p rocessos intelectivos e, p o r via de conseqüência, pelos processos judiciais de na tu reza nâo-dialética. Ao sabor dos séculos, ver-se-á um a ru p tu ra epistem ológi- ca no d iscurso jurídico e p articu larm ente no tem a d o poder. CAPÍTULO 5 O CONVENTO: LOCUS DE CIDADANIA DAS MULHERES? Tem os v isto ao longo deste trabalho que a c idadan ia é h is to ricam ente expressão de um gênero - m ascu lino - e de um a elite econôm ica e cultural d u ran te o processo de conquista daqueles direitos. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA Foi assim em A tenas e em Roma. Foi assim d u ran te a Idade M édia, cujos estam entos senhoriais, ao lado do Clero, de ti n h a m a pa lavra e o pod e r decisório. Foi igualm ente assim por ocasião do Ilum inism o, pois afora a m arginalização da m u lher no processo político, com o vim os, po r exem plo, na C ons titu ição francesa d e 1793, esta e a p rópria Revolução Francesa priv ileg ia ram o princípio censitário, afora o h aver excluído o d ire ito de voto às mulheres. O que se verifica em verdade é a prevalência da lei d o p ro cesso legal form al, vale dizer, que os d ire itos e facu ldades le gais estão garantidos, sem que haja qua lq u e r ten ta tiva de se assistir o ind iv íduo , no uso desses poderes. Sobretudo , q u a n do esse in d iv íduo tem papéis sociais femininos. Por ou tra parte , os critérios pohticos desenvo lv idos d u ra n te e após a crescente vaga d o Ilum inism o esbarravam -se na face d a justiça form al, po is o sufrágio era exercido o u pelo reg im e censitário o u pelo princípio capacitário. Pelo p rim eiro , os negócios d a com un idade nacional devem esta r afetos àqueles que detêm interesses reais ou p o r p o ssu í rem bens ou po r terem rendas que justifiquem o d ire ito ao voto e à participação no negócio público. M ediante o segundo princípio, esse d ireito seria conferido n ã o a p en as àque les que cap itu lavam na s ituação an terio r, p o rém era baseado tam bém na capacidade, no d iscern im en to, no ter títulos acadêm icos e no ter independência suficien te, p ressupostos , seg undo a teoria, de que só esses c idadãos têm tirocínio pa ra a decisão das políticas a serem ado tad as pelos governos.^® Houve um critério de voto plural existente no sistema belga de votação, em 1893, O sufrágio masculino universal foi aí adotado, porém com características no m ínimo curiosas. Tratava-se dos votos extras concedidos a pères de famille. que houvessem atingido a idade de 35 anos. Essa informação está contida em Reinhard CIDADANIA DA MULHER, LIMA QUESTÃO DE JUSTIÇA, C om o incluir aí as m ulheres, que não sab iam ler ou escre ver na m aior pa rte delas? Ora, o saber nas m ulheres sem pre foi es tigm atizado em função de a rgum en tos que jam ais sub sistiriam no m u n d o atual. A saída pa ra o acesso à instrução e à cu ltura era a v ida religiosa, sem, en tre tan to , h aver com o ex p a n d ir d e te rm inadas vocações literárias ou ap tidões intelec tuais m ais conspícuas. Ao contrário, ten tava-se obstaculizar ou a té p u n ir essas m anifestações ou "desvarios" d a m ente fe m in ina m erg u lh ad a na escuridão das letras. A Inquisição e spanhola levantou suspeitas sobre Santa Te resa D 'Á vila , que, segundo ARTHUR STANLEY TURBEVIL- LE, é a m aior e m ais am ável de todos os m ísticos espanhóis. M e sm o a s u a a u to b io g ra f ia e s p ir i tu a l foi d e n u n c ia d a à Inquisição, a qual levou dez anos pa ra decid ir se a leitura era o u não conveniente pa ra os cristãos. U m destino assem elhado ocorreu com Juana Ines de la Cruz. Im pelida pela v o n tad e de desenvolver a le itu ra e h avendo descoberto que não era perm itido às m ulheres dedicar-se a estudos, tom ou a decisão de en trar em u m convento , o n d e leu um a im ensidão de livros de Ciências, de H istória e de poesi as, afora ser levada a um m isticism o p ró p rio d a época. Fez p ro fu n d a s m editações e escreveu bastante. E considerada a p rim eira voz fem inina d as A m éricas que teve a coragem de d izer que todas as pessoas tinham o m es m o d ireito à educação. N ão foi, en tre tan to , com preend ida pela sua com unidade , Bendix, in: Construção Nacional e Cidadania, trad, de Mary Amazonas Leite de Barros. São Paulo: Editora da Universidade de Brasília, 1996, p. 133. A expressão em francês é do original. ^ Ver Arthur Stanley Turbeville, La Inquísicion EspaHola. México/DF: Fondo de Cultura Econômica, 1985, p. 96. 4 4 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA h av en d o sido p ro ib ida de continuar a escrever sob p ena de ser expulsa do convento. M uitos são os casos ocorridos em q ue m ulheres d 'a n ta n h o v iram na v ida religiosa e conventual a form a m ais viável de exercer u m a cidadania, a inda que lim itada. NATALIE ZEM ON DA VIS pesquisou a história de M arie de rincam ation , que emigrou para a América, im pulsionada pela v ida religiosa, indo ao Canadá onde se dedicou à instrução dos autóctones. A princípio, escreveu em língua francesa e, após, nas línguas am eríndias locais. Corria o início do século XVII.^’ Só o C onven to p ropiciava o direito básico d e c idadan ia , ou seja, o saber ler e o escrever. Eem escalada g igante , ver p u b li cados os seus escritos. N as palavras de M Ô N IC A RECTOR: "As religiosas ocupam uma posição ambígua dentro da socieda de patriarcal. A representação das freiras, até o século XX, sem pre ofereceu ao leitor estereótipos que variam desde criaturas impotentes, até seres perversos e até mesmo imorais. Apesar de o convento ser considerado abrigo para mulheres, tornar-se freira muitas vezes significava uma rebelião contra o sistema patriar cal Quando as religiosas puderam escrever, passaram a es crever sobre elas mesmas e a desconstruir os estereótipos, desafi ando 0 conceito tradicional associado às freiras" 30 Juana Ines de Ia Cruz era mexicana e desenvolveu os seus doles de poetisa no âmbito do Convento para o qual entrara, “Convidada” a renunciar à literatura religi osa, abandona os seus escritos, vende a sua biblioteca em favor dos pobres. Para mais detalhes, ver Cadernos de Mulheres da Europa, n° 37, 1492: P resenças de M ulheres, Comissão das Comunidades Européias, Bruxelas, [s.d.]. Ver Natalie Zemon Davis, A/as M a rg e n s -T rê s Mulheres do século XVII, Trad, de Hitdegard Feist, São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 65-131. = Ver Mônica Rector, in: Mulher Objeto e Sujeito da Literatura Portuguesa, Porto- Porluga!: Edições Universidade Fernando Pessoa, 1999, p. 112. A Autora relaciona várias religiosas que usaram de sua aptidão intelectual para escrever poesias (Sóror Violante do Céu); autos, comédias e hagiograíias (Sóror Maria do Céu): novelas (Sóror Madalena da Glória). E Sóror Mariana Alcoforado, que a Autora considera em lugar de realce. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA 4 5 O ra, a Idade M édia, longa com o foi, pois d u ro u quase 11 (onze) séculos, é u m a e tapa da h u m an id a d e bastan te com ple xa p a ra um a análise ráp ida no que tange ao tem a que aqui é desenvolv ido . De qua lquer ângulo , há que se ratificar q ue a relig iosidade e tu d o que lhe foi inerente - a criação de várias o rdens religi osas, a sacralidade d o Direito, o m isticism o etc. - a lavancou um estilo d e v ida p róprio , sobre tudo no que d iz respeito à condição da m ulher, esta que se desenvo lveu in te lec tualm en te no recinto dessas instituições. Portanto , a "cidadan ia" , que tim idam en te d a í em ergia se c ircunscrevia no âm bito dos con ventos e d a v ida religiosa. Ora, é p recisam ente nos conventos e m osteiros o local em que se encon travam bibliotecas, pelo m enos den tro de u m m arco tem poral po r volta do século oita vo (VIII) em diante. O Direito escrito era lim itado a de te rm i nad as regiões em função das U niversidades, c riadas a partir da de B o lonha e circunscritas ao m u n d o conven tual, o que de u à Igreja u m a função de vang u a rd a q u an to ao aspecto in telectual e de p ropagação da Teologia. M as, p o r ou tro lado, às m ulheres não cabia e não lhes era perm itid o ingressar nessas Escolas, as quais só adm itiam hom ens que p u d e ra m se n o ta bilizar, com o ocorreu com Santo A lberto M agno, São Tom ás de A quino, Santo Ivo, A belardo e outros tantos. Por ou tro tu rno , sabe-se que nove m ulheres freiras desen vo lveram a tiv idade de copista; tal fato é conhecido em do cu m en to religioso existente, o qual foi cop iado pa ra o A rcebispo de Colônia, em p leno século IX, sab ido que essa era um a ati v id ad e in telectual de m uita relevância exercida nos scriptoria dos conven tos e m osteiros. A posteridade tomou conhecimento dessas mulheres pelos seus nomes, assina dos no próprio documento. São elas: Girbalda, Gisliidis, Agleberta, Aduhic, Altildes, 4 6 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA Portan to , o saber e os livros não e ram de acesso público. O saber estava p raticam ente concentrado no recinto das O rdens Religiosas e, após, já na Baixa Idade M édia, nas U n ivers ida des criadas no âm bito das g randes Catedrais, e.g., de Oxford, Paris, Salam anca, Pádua etc. M esm o assim , a lguns dos regu lam entos das bibliotecas da Idade M édia eram rigorosos, quan to ao uso das m esm as, com o o regu lam en to d a Biblioteca da U nivers idade de Oxford, onde foi estabelecido que só os g rad u ad o s ou religiosos, após oito anos de es tudo da filosofia, poderiam utilizá-la. Ao lado de que só poderiam u sa r os livros com o zelo necessário pa ra que n e n h u m dan o ou prejuízo pudesse adv ir d o m anuseio , com o rasu ras e estragos nos cadernos ou fólios. A propósito , RÉGINE PERNO UD noticia que o status da m u lh e r n a Igreja da Idade M édia é o m esm o que o v iv ido na sociedade civil e o que conferia au tonom ia, independência e instrução, foi aos poucos sendo retirado da m u lh e r após a Ida de M édia. E cita aquela A utora a degradação ocorrida em tem pos m odernos q u a n d o o convento da O rdem d e Fontevrault, 0 qual nos p rim eiros anos d o século XII, Robert D 'A rbrissel houvera ali fu n d ad o dois conventos, u m m ascu lino e ou tro d e m ulheres. Tal m osteiro foi posto sob a au to r id ad e de um a abadessa, Petronila d e Chem illé, a sua p rim eira d ire to ra , que estava en tão com 22 anos. N o século XVI, o rei da França, tom ando a si a com petência Gisledrudis, Eusebia, Vera e Agnés. Essa informação acha-se contida no prefácio de autoria de Marina Colasanti, na obra Lais de Maria de França, trad, de Antonio L. Furtado, Petrópolis, RJ: Vozes. 2001, p. 12, Há documento intitulado Monumenta Acadêmica or Documents llustrative o f Academ ical Life and Studies a t Oxford, transcrito por Maria Guadalupe Pedrero - Sanchez, in: História da Idade t^édia - Textos e Testemunhas. São Paulo; Editora UNESP, 2000, pp. 187-188. CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTiÇA de nom ear abadessas e abades, fez de Fon trev rau lt um asilo pa ra as suas velhas am antes. Do que se infere ser a monja um a pessoa g ozando de " re ga lias” q u e d e o rd inário n ã o era com um ter na casa dos pais^ a m enos que se tra tasse d e m ulheres nobres, sendo educadas nos conven tos e a elas era destinada u m a educação esm erada. De qua lquer sorte, nos conventos aprend ia-se a ler, a escre ver, a cantar. A lgum as ap rend iam o latim e h á casos d e m o n jas que sab iam o grego e o hebraico. É o caso d a princesa Isa bel, irm ã d e São Luís, fundadora d a A badia de Longcham p, que, seg u n d o relato de GENEVIEVE D 'H A U C O U R T, conhe cia o latim tão b em ou m elhor que os seus capelães.^^ A cidadan ia relacionada à m ulher, em sua acepção m ais am pla , não era apanág io da v ida civil, pois o lócus on d e era possível vivê-la den tro dos pad rões da época, s ituava-se na v ida c laustral, pois aqui as tarefas fem ininas não e ram apenas as essencialm ente de feitio privado , com o cu ida r d as a tiv ida des dom ésticas, o u ou tras tarefas que se d irec ionavam ao p a pel fem inino: saber ler os livros de H oras, q u a n d o se tra tava d e castelãs ou b u rguesas env iadas aos conven tos p a ra bu r ila rem a educação , b o rd a r pa ra si e pa ra as igrejas etc. O s papéis d ito s "m ascu lin o s" tam b ém eram ali execu tados , com o já m ostram os antes. Falam os atrás que a A badessa H ildegard Von Bingen foi u m a cientista, m usicista, com posito ra e escri tora de livros sobre M edicina, além de h aver escrito vários trabalhos místicos. PERN O U D nos revela, igualm ente , q u e foi u m a m ulher, D 'hueda , quem elaborou u m prim eiro tra tado Dados colhidos em Régine Pernoud, in: Idade Média: o que não nos ensinaram, trad, de Maurício Brett Menezes,2. ed. (rev.). Rio de Janeiro: Agir, 1994, pp. 112- 114. " Ver Genevieve D’Haucourt, in: A Vida na Idade Média, trad, de O linda Fernandes, Lisboa: Edição Livros do Brasil, [s.d.J, p. 112. 4 8 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA sobre educação, aliás, escrito em latim e esse fato se d á em torno d e 841-843."" E tu d o isso ocorria enquan to do lado de fora dos claustros, em am bien te fechado das U niversidades, especulava-se so bre tem as p ro fundos da Teologia, da Justiça e d a Moral. Pois, na Baixa Idade M édia, renascia o interesse p o r ARISTÓTELES, rev iv ido p o r seu com entador árabe AVERRÓIS (1126-1198),^® cabendo a este a ingente tarefa de ten tar institu ir u m diálogo en tre a tradição m uçulm ana, o pensam en to de sua contem po- rane idade com a cu ltura grega clássica. A lógica aristotélica era traz ida à tona pelas traduções realizadas p o r esse filósofo m uçu lm ano , tendo com o fio condu to r a h isto ric idade e a u n i versa lidade d o conhecim ento, levando a Europa a ser d eposi tária d o saber racional, após a apreensão d a tradução dos tex tos clássicos po r A lberto M agno e Tom ás d e A quino , du ran te a Escolástica, e, após, ser rev iv ido pelo Ilum in ism o ao sabor das idéias dos enciclopedistas e dos cientistas cartesianos. Assim, a categoria do racional foi apropriada pelo m ovim en to iluminista, separando o religioso do laico, o poder espiritual do temporal, v indo a atropelar a própria Igreja, acusando-a de paralisia, de imobilismo, de usufruidora de privilégios, acarre tando um a m udança abrupta de rum o no M undo Ocidental, após e a partir da Revolução Francesa. A cidadania continuou sendo privilégio d o gênero masculino, nas relações mais contraditórias de um m ovim ento de m assas que deslocou o eixo da História para frente e pa ra trás, com m archas e recuos, em m eio a um processo quase irracional e incongruente pelos métodos adotados. Ver Règine Pernoud, op. cit., p. 117. Averróis considerava ARISTÓTELES o mais sábio dos gregos. Dizia o filósofo muçulmano que todos os que até então sucederam o insigne filósofo grego não haviam sido capazes de acrescentar nada aos seus escritos. Ver AVERRÓIS, trans crito em Pedrero-Sánchez, op. cit., p. 65. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA CAPÍTULO 6 RAZÃO l/ERSUS DESRAZÃO: A REVOLUÇÃO FRANCESA N ada foi m ais real que a Revolução Francesa. N ada foi mais sim bólico que a m esm a Revolução Francesa. N esta, a Razão foi erigida a u m nicho d e adoração. Por ela, criaram -se e destru íram -se m itos que ro laram ao m esm o tem p o em que rolavam as cabeças na guilhotina. O liberalism o aconchegado nas idéias ilum inistas trouxe o positiv ism o em suas m ais am plas concepções, e nos m ais d i versos dom ínios. A concepção do m onum ento jurídico, form ado e form ador da lei como expressão da justiça, destronca-se daquela junção aca dêmica do }us e do Fas, quando leis e cânones se fundiram para a formação do Direito Comum. Em outras palavras, do In utroque iure, com vistas a obter o jurisconsulto completo, aquele que fos se versado tanto no Direito Canônico como no Direito Civil. Esta é um a fase que se inicia a inda no século XII, qu an d o Direito R om ano e Direito Canônico e ram braços d iferen tes da realização d a Justiça, para , após, se encon tra rem na form ação do Direito C om um . A p artir da separação do cânone da v e rd ad e científica, com GALILEU, e da divisão do especulativo do em pirism o , com N EW TO N , m u d a o contexto e a face do m u n d o , em que quase com o u m m ovim ento pendular, sai de cena o e lem ento m ág i co e en tra no proscênio a Razão e o Positivism o q ue se anunc i ará em seguida. P r im e iro , A U G U S T O C O M T E , n a e s te i r a d a s id é ia s ilum inistas, traçando os passos da Sociologia; depois , o en con tro desta com a Biologia (SPENCER). O Direito não ficaria infenso a essa vaga retum bante do império d a razão, pois desde 5 0 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA JO H N LOCKE, 0 princípio su p rem o da justiça é o de q u e a todos é lícito fazer o q ue lhes apeteça, na m ed ida que n ã o le sem com isso a l iberdade igual dos outros. É a p ro v a de q ue o d ire ito de u m é lim itado pelo direito d o outro. P ostu lado p e r feito d o racionalismo. As idéias fervilhavam e a questão d a liberdade-igua ldade foi posta na p a u ta das discussões, na m ed id a que se conferiu um p r im a d o p a ra a Razão. A Razão foi u m a teorética e um a experiência das m ais d e vastadoras, já na Idade M oderna. A via po r in term édio d a qual o fluxo e refluxo dessas idéias tom ou corpo foi n o p ró p rio de senro lar da Revolução Francesa. E em operação m uito reflexi va. po is as ações ou o objeto do M ovim ento recaem no p ró p rio sujeito da Revolução. N u n ca se falou tan to de cidadania. E nunca ela foi tão ne gada em term os de um a ação de reflexividade. A pa lavra li b e rd ad e foi en toada a todos os pulm ões, ao m esm o tem po em que a Revolução d e u um sentido unívoco aos seus símbolos. As m ulheres abriram o seu espaço na trajetória d o M ovi m ento Revolucionário e, o que é curioso, não p ensavam elas defender apenas as suas v idas, o seu sexo, o seu destino ind i v idual. A p ren d e ram nos tum ultos, nas de rr ibadas d e prisões, nas reun iões da Assembléia, nas passeatas pa ra Versailles, a ag irem de form a coletiva, não com o bando , m as com o grupo , a exigir u m a agenda de reivindicações. D esvelar a Revolução Francesa é m exer n u m m u n d o s im bólico, sibilino, aliás, "tarefa difícil, pois os m itos e as im a gens recobrem essa h istória com u m a espessa m orta lha tecida pelo desejo e pe lo m edo dos hom ens". Ver Michelle Parrot, in: Os Excluídos da História - Operários, Mulheres e Prisio neiros. Trad, de Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 187. CIDADANIA Oft MULHER, UMA QUESTÃO D£ JUSTIÇA A m ulher se e rgueu d ian te daqueles fatos e foi-lhes p e rm i tido criar associações em to rno de seus interesses: associações essas que v iriam a ser fechadas em novem bro de 1793, q u a n do foram disso lv idos todos os clubes de m ulheres. Levada a questão à Convenção, foram postas três in d ag a ções aos d e p u ta d o s dos Estados-Gerais, d u ra n te o processo revolucionário: T’) podem as m ulheres exercer d ire itos políti cos e tom ar parte ativa nos assuntos do G overno?; 2^) a reu nião de m ulheres em Paris deve ser perm itida?; e 3‘") p o d em elas deliberar, reun idas em associações políticas ou socieda des populares? D iante dessas questões, resp o n d e ram os con vencionais um categórico “não", estabelecendo a pa rtir da í a morte política das m ulheres, já que pouco depo is o Código Civil N apoleônico p reparava a sua morte civil. E nquan to isso acontecia, paradoxalm ente , a figura fem ini na to rnou-se sím bolo da Nação, pois foi a d o tad a com o em ble m a d a República a d eusa rom ana d a L iberdade, a qua l passou a ser c u n h a d a nos sinetes oficiais, n a s es tá tuas e n as vinhetas. A presen tava a efígie o ar de u m a jovem ou d e m ãe, de aspecto fam ilia r e q u e p a s so u a se r c a r in h o sa m e n te c h a m a d a de M ARIANNE. O que deno ta a forte carga de sim bolism o em q ue a m u lher e a m ãe, não-de ten to ras d e capacidade política, foram , en tre tanto , convertidas em em blem as da jovem República q ue nas cia dos escom bros da M onarquia A bsolutae decadente . E nesse contexto em ergem as figuras d e O lym pe de Gouges, de M adam e Roland e de tan tas ou tras , que assom aram um lugar de p roa jun to aos hom ens e a despeito das restrições que d e form a ve lada ou ostensiva sen tiam na pele. M esm o assim , nos debates da Convenção, foi tem atizada a questão d o vestuário fem inino, pois a lgum as m ulheres u sa ram touca 5 2 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA verm elha e assim obrigaram as outras a imitá-las. Tal não foi v isto com a g rado pelos d epu tados , po is tem iam que a m u lher se m asculin izasse, a pa rtir d o barre te verm elho e p o deriam tam bém v ir a exigir o cinto com pistolas. Era a velha questão d a m ulher viril da Idade M édia e que aparecia sob ou tra ótica e em ou tro contexto, aqui m ais explicitam ente político. De qua lq u e r ângulo , no discurso oficial da Revolução, o lugar d a m u lh e r era o lar, o espaço p rivado e a sua rep resen ta ção nos am bientes públicos foi cerceada de form a bastan te cru el. Para as m ais ativistas o u recalcitrantes, res tou o cadafalso. H avia , é certo, elem entos que se poderia cham ar hoje de avançados p a ra a época. U savam a sua verve pa ra denunciar 0 e s tado sob o qual eram subm etidas as m ulheres. Foi o caso de T hom as Paine, o qual, participante d o m ov im en to revo lu cionário, d iz em u m de seus ensaios, que teve p o r títu lo "C ar ta d e circunstância sobre o sexo fem inino", pa lav ras de um a análise sobre a situação d a m ulher: "Em todas as eras e todos os climas, o homem foi para [as mulheres] um marido insensível ou um opressor, mas elas também suportaram ora a opressão fria e deliberada do orgu lho, ora a tirania violenta e temível do ciúme Têm quase tanto a temer da indiferença quanto do amor. Em três quar tos do globo, a natureza as colocou entre o desprezo e o desvaUmento” N ão foi a natureza responsável por esse desvalimento; foram os hom ens em sociedade. As m ulheres foram desprezadas por Bernard Vincenti, in: Thomas P a in e - revolucionário da liberdade. Trad, de Sieni Maria Campos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p. 41. Diz Bernard Vincent que Paine escapou da guilhotina e que dele muitos se afastaram em virtude de seu “igualitarismo social” e de seus ataques impiedosos contra o cristianismo, Ibidem, p. 13. Sempre a questão da política e da justiça esteve presente nos momentos de maior tensão e de decisão da História. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA não terem a força física que passou a estabelecer os estereótipos sociais, inclusive o de sexo frágil, Era o "valor" da época. E não obstan te o cutelo, já era ta rde p a ra rep rim ir no p ro cesso histórico a m archa do m ovim ento das m ulheres. A liberdade era um lema; foi tam bém u m a aven ida aberta na em ancipação da v ida dom éstica e - o m ais re levante - foi o cam inho pa ra a libertação de m aus casam entos. C om a Lei do Divórcio, d e 20 de setem bro de 1792, e com a institu ição dos tribunais de família, em agosto de 1790, foi a senda aberta p a ra a solução de con tendas familiares. A Lei d e 1792 tinha um viés acen tuadam en te liberal, pois prev ia sete m otivos pa ra justificar o p e d id o d e divórcio. Eram eles: 1) a insan idade; 2) a condenação d e u m d o s cônjuges a penas aflitivas ou infam antes; 3) os crimes, sevícias ou in júri as g raves de um cônjuge contra o outro; 4) o desreg ram en to público de costum es: 5) o abandono do lar p o r do is anos, no m ínim o; 6) a ausência d e u m deles, sem notícias, d u ra n te cin co anos, no m ínim o; e, finalmente, 7) a em igração. Ideologizou-se do ravan te a questão dos d ire itos d o c ida dão , po is d e d ire ito s n a tu ra is passam a d ire ito s h u m an o s , positivados, den tro a inda de u m a ótica religiosa cu n h ad a em de tr im en to d a m ulher. A Declaração dos Direitos do H om em e d o C idadão , vo ta da em 26 d e agosto de 1789, faz a inserção de p rinc íp ios de atuação ind iv idua l, de es tru tu ra do Estado, d a etiologia do poder, a través d a lei e do institu to da representação; de ques tões d e n a tu reza público-tributária e de fo rm a relevante tra tou-se d e erigir a p ro p ried ad e com o d ire ito inviolável e sa grado , o que era questão recorrente desde o Direito Romano. E aqui reside o paradoxo: o m ovim ento revolucionário tra ta o público de form a dire ta e con tunden te , devassando , in- 5 4 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA elusive, 0 m u n d o privado; m as, por ou tro lado, a p ro fu n d an d o os lim ites d o público e do p rivado , d iferenciou os papé is soci ais, já há séculos diferenciados; o território público pa ra os hom ens, o p r iv ad o pa ra as m ulheres. O m ov im en to das m ulheres n o sen tido de sua participação política n os destinos de seu país foi a bortado em u m prim eiro m om ento , com a radicalização d o regim e e a sua conversão no Terror, na con tram archa d o m ovim ento revolucionário. E o passo seguinte foi a m udança do p oder pa ra as m ãos de N apoleão, q u an d o em sua obra de codificação do Direito Civil francês, estabeleceu um a condição ancilar pa ra a m u lher cau sando inveja até para a instituição familiar d o Direito Romano. E aqui se inicia o século da técnica jurídica, d o positivism o, dos Códigos, d o form alism o jurídico, das sistem atizaçòes e das classificações abstra tas e genéricas. D e n t r o d e s s a a b s t r a ç ã o e g e n e r a l iz a ç ã o h á q u e se rem em orar que se o artigo 1° d a referida Declaração afirm a que "O s h om ens nascem e pe rm anecem livres e iguais em d i reitos", esse postu lado é fruto de discussões v igorosas hav idas na A ssem bléia e p ro d u to d e cadernos de queixas a p resen ta dos ao ensejo dos Estados-Gerais, m om ento n o qual as m u lheres tam bém relacionaram em cerca de trin ta cadernos as suas queixas e reclam ações d a condição v ivenciada p o r elas. Em nom e d a abstração e da im pessoalidade d a lei, to rnou- se aquela ig u a ld ad e inoperante , já que se v isualizava apenas a rac ionalidade, sem qua lquer atenção às condições subjeti vas d aque la m inoria social. Perderam -se no tem po aquelas reivindicações; a bem da verdade, p o r u m lapso de tem po, po is a arena social dos g randes em bates e debates ideológicos substitu irá a arena d a guerra revolucionária d a qua l partic i p a ra m igualm en te as m ulheres. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA N o front, m u itas m ulheres acom panharam os m aridos; o u tras, d isfarçadas com vestuário m asculino, acorriam na d ire ção do perigo dos combates. Foi e le trizante o cham ado da Revolução. Assim , é que o C o m andan te D ubois com bateu ao lado de sua m u lh e r no 7° Batalhão d e Paris. A m bos envergando un ifo rm es m ilitares. O espaço público com eçava a ser invad ido pelos a to res h istori cam ente relegados ao espaço privado. O utra francesa d e nom e M adeleine Peittjean foi ao encon tro do m arido , so ldado cavador de trincheiras, que se achava em com bate contra os rebeldes da Vendéia.'^' A s irm ãs M arie e M aglom ar Tenasson estiveram ao lado de irm ãos com o granadeiros, fazendo as c am p an h as de 1792 a 1794, com os federados de 83 departam entos. A lgum as m ulheres com batentes foram agraciadas com o títu lo de alferes. Foi o caso de A ngélique D uchem in , p e rte n cente ao 42"^ R egim ento de Linha; o m esm o aconteceu comC a th e rin e Pochelat, p a rtic ip an te da to m a d a d as T ulheries, u san d o u m canhão e que em v irtude d e sua coragem , foi-lhe deferida a pa ten te de alferes. N a bata lha de Jem m apes, M arie Schellink saiu ferida, ha v e n d o s ido a ela concedido, pelo G eneral Rosières, a igual pa ten te d e alferes. D is s im u la n d o o seu p ró p r io sexo, a v iú v a d o caçado r Sou tem anna, lu tara ao lado d o m arido e h av en d o sido este m orto e sa indo ela ferida na coxa, na Batalha de M arengo, retirou-se d o regim ento. N ão fazia sentido, portan to , o desm erecim ento a que fo- A Vendéia se insurgiu contrarevolucionariamente, em 1793, e para enfrentar essa dissidência foi convocado um exército de 300.000 homens. Essa convocação foi decidida pela Convenção e a Vendéia esteve inflamada até 1796. 5 6 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA ram relegadas as m ulheres, nem o refream ento d e seus d ire i tos, havendo-lhes sido indicado o caminho de volta ao território doméstico. N a contramarcha da Revolução, foram pisados os ideais de liberdade, esta, que era o norte e a razão de ser do p ró prio m ovim ento sedicioso. Aliás, o hiato que se seguiu foi longo, pois as m ulheres francesas e certamente as de todo o m undo oci dental só retom ariam o elo perdido no século XX, quando m ani festações de rebeldia ocorreram no enfrentam ento de forças con servadoras, para não dizer misógenas e antifeministas. É o caso d a explosão de m ulheres ocorrida em 29 d e o u tu b ro d e 1904, na qual, em pro testo contra o reg im e da m ulher casada institu ído no Direito Civil francês, d ec id iram que im ar em praça pública - Quartier Latin - o C ódigo Civil.'*^ N o entre tan to , o Código Civil francês t inha a m arca reg is trad a d e N apoleão Bonaparte, o qual fez questão d e fazer dela a sua obra m ajestosa, p restig iando as sessões do C onselho de Estado, encarregado da feitura d o anteprojeto de redação do Código, p res id in d o ele p róprio 57 sessões das 140 efe tuadas pelo Conselho, nas quais decid iu im por as suas opiniões p es soais n a elaboração dos capítulos concernentes ao casam ento e ao divórcio. Ele que dizia: "Será que não vão fazer p rom eter a obediência das m ulheres? ... Ela (m ulher) tem que saber que ao sair da tu tela da família, passa pa ra a do m arido . O bed iên cia! Esta pa lav ra aplica-se sobre tudo em Paris, on d e as m u lheres pensam ter o d ireito d e fazer tu d o o que querem .. o mesmo Código que serviu de paradigma ao nosso Código Civil de 1917, o qual em seu artigo 6°, inciso II, considerava as mulheres casadas relativamenie incapazes, enquanto subsistisse a sociedade conjugal. Essa condição civil restritiva de direitos só foi alterada por ocasião do Estatuto da Mulher Casada, votado em 1962, pela Lei n° 4.121, de 27 de agosto, chamada Lei Nelson Carneiro. Na verda de, a fonte primeira é do Direito Romano que considerava as Feminae (ou mulieres) relativamente incapazes. •*^0 parên tese é meu. Frase c itada em C adernos de M ulheres da Europa, As CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA Com efeito, o Código Civil N apoleônico foi um m arco no escopo da restritiv idade do direito das m ulheres, o que de for m a dire ta im plicou no re ta rdam en to da conquista da c id ad a nia. Assim, o p ró p rio Estado reduzia e p rocrastinava a liber d a d e e a capacidade de ação daquelas. A ntes do C ódigo a lud ido , a inda no século XVI, foi a lterada a m aio ridade d e m eninos e m eninas que era aos quato rze anos p a ra os jovens m ascu linos e d e d o ze p a ra as m en inas; foi transferida pa ra os vinte e cinco anos, exatam ente a idade da conquista da m aio ridade no Direito Rom ano. E com a caracte rística d e que o pai exercia um p od e r d e p roprie tá rio sobre os filhos, p rec isam ente com o ocorria na Rom a A ntiga, onde o pater familias tinha e gozava do status de ãominus sobre toda a família. D etinha o chefe da família a potestas e a maniis. O C ódigo Civil trouxe sérias restrições à capac idade da m u lh e r quan to aos d ireitos civis - esses m ais ab rangen tes - e quan to à c idadania. A própria Lei d o Divórcio, an tes referida, que foi considerada p o r LYNN H U N T, a lei m ais liberal do m u n d o à época,"*^ foi m odificada pelo C ap ítu lo VI d o C ódigo Civil, r eduz indo-se as causas pa ra o p e d id o em apenas três: a) p o r condenação; b) po r sevícias; e 3) po r adultério . N o caso dessa ú ltim a razão, o m arido podia solicitar o d ivórcio, sob a alegação do adu lté rio da m ulher, enquan to que esta só pode- Mulheres na Fievolução Francesa. Comissão das Comunidades Européias, Bruxe las: n° 33, p. 24. É sintomático aferir que Napoíeão tinha internalizado os valores familiais do Direito Romano que punha as mulheres sob tutela, qualquer que fosse a sua idade, ou estado civil - solteiras, casadas ou viúvas. A tutela era perpétua, pois as mulheres se achavam sempre sob o poder do homem. Se solteira, do próprio pater; se casada cum manu, dependia do marido ou do pater íamiíias des te. Se casada sine manu, a tutela recaía em seu próprio pater. As solteiras sem pater e as viúvas, achavam-se sob a proleção do tutor. Sobre a matéria, ver José Cretella Júnior, in: Direito Romano t^oderno. 4, ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986. Cfr. Lynn Hunt, Revolução Francesa e Vida Privada in: História da Vida Privada - Da Revolução Francesa à Primeira Guerra, trad, de Denise Bottmann (partes 1 e 2) e Bernardo Joffily (partes 3 e 4), São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p, 39. 5 8 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA ria fazê-lo na h ipótese de o m arido m an ter "sua concubina na casa em com um ". (Art. 230). N a questão da punib ilidade , reconhecida a culpa da m u lher, esta estaria sujeita a dois anos de prisão, en q u an to ao m arido n a d a acontecia em hipótese sem elhante. O liberalism o acentuou, pois, a noção do público e do p r i vad o e dos papé is m asculinos e femininos. E o E stado pod ia d ispo r d e tudo: regu lam entava a v ida nacional, a v ida fam ili ar; a lterou o calendário , institu indo o d a Revolução; decid ia o nom e dos filhos, a escolha das ro u p as etc. E o racionalism o criou a M ARIENNE que se consubstanciava n o em blem a da República, a deusa rom ana da L iberdade, a qual era m ostrada es tam pada com face d a m ulher e da m ãe, estas "tão d esp rov i das d e q u a lq u e r d ire ito político", na expressão da m esm a LYNN HUNT.^5 É inquestionável que o simbólico se im pregnou n o modus vivendi d o p ró p rio corpo social da Revolução, m itificando esse social e o Direito e fazendo com que toda a H istória dessa C om oção seja m arcada pelo rac ionalism o e, tam bém , pelo irracionalism o, de form a bastan te contraditória . O irracionalism o era visível e fazia pa rte da m ecânica do M ovim ento Revolucionário e de seus paroxism os. Enquan to o artigo 1° d a Declaração dos Direitos do H om em e d o C ida d ã o p roclam ava a igua ldade de direitos en tre os h om ens e o artigo 7° exortava que "N e n h u m ho m em p o d e ser acusado, p reso nem de tido fora dos casos de te rm inados po r lei e se g u n d o as form as p o r ela prescritas....", a gu ilhotina n ã o p a ra va de contabilizar o núm ero de sacrificados. A m u lh e r a través de seus espíritos m ais v igorosos foi alvo d a R evolução, p o r razões a paren tem en te d istintas. U m a, pela Ibidem, p. 31. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA ousad ia de falar nas Assem bléias e deh a v e r red ig ido a sua 'Declaração dos D ireitos da M ulher e da Cidadã" - O lym pe de G ouges; ou tra , M adam e Roland, po r ser u m a m u lh e r le tra da e participante, havendo se tornado egéria, isto é, conselheira do G rupo Girondino,**^ foi igualm ente sacrificada. A penas para d a r exem plos m ais relevantes. Foram am bas gu ilho tinadas em novem bro de 1793 / ' C uriosam ente , d ian te da abstração e genera lidade do arti go 1° da Declaração dos Direitos do H om em e d o C idadão , su rge desse M ovim ento , e até de form a p aradoxal, u m conhe c im ento d o Outro, com o um sem elhante, com o aquele que p o d e ocupar o lugar do eu, aquele com quem o eu se identifi ca e que, p o r isso, é tam bém d e ten to r de d ire itos e obrigações. D en tro d essa ca tegoria d o O u tro , a m u lh e r em u m a esca la d a a sce n s io n a l v e m a o c u p a r o s e u e sp aç o , com o u m a d ire tiva vo ltada a p len ificar o conceito d e Justiça, este que está se m p re em m ov im en to dinâm ico , isto é, o "d ire ito " é conferido p a ra d es ig n a r o bem d ev id o p o r injustiça, ou em u m a re le itu ra m o d ern a e m ais justa do p e n sam e n to d e Santo Tom ás d e A qu ino , é d ire ito o q ue é d e v id o a o u trem , s e g u n do u m a ig u a ldade . A qui, a Justiça se c o n fu n d e com a ig u a l dade , ou a ela é eq u ip a rad a de form a concreta e rea lizada , p o r a n tô n im o d a injustiça. Os girondinos constituíam uma facção dissidente de grupos radicais que passa ram a predominar entre os jacobinos. Na Assembléia Constituinte, eles perfaziam a ala de centro-direita e tinham esse nome em função da origem de deputados que vinham da província da Gironde. Durante o mês de junho de 1794, 2.000 pessoas foram executadas em Paris e consta que a guilhotina chegou a funcionar até seis horas por dia. Cfr. Frédéric Bluche et allii, in: A Revolução Francesa, trad, de Lucy Magalhães, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989, p. 130. 6 0 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA CAPÍTULO 7 DIREITO - JUSTO ENTRE A RATIO E A DIGNIDADE HUMANA O s estud iosos d a Filosofia do Direito têm em m en te q u e o conceito d e "d ire ito" é passível d e significações. N o sentido nuclear, acha-se acrisolada a perspectiva d e u m direito in te i ram en te jungido ao conceito de justiça. É o d ire i to - ju s to , aque le que p o r excelência form a e inform a as regras d a norm ativ i- d a d e jurídico-legal. A justiça está en cas to ad a no círculo de v a lo re s d as n o r m a s ju r íd ic a s . O s v a lo re s são , n o d iz e r c o n s p íc u o de RECASENS SICHES, se res idea is ou objetos idea is com o q u e re m o u tro s jusfilósofos. S egu n d o RECASENS, p o d e m o s desco b rir os va lo res nas coisas o u em c o n d u ta s q u e c o n s i d e ra m o s va liosas, m as que n ã o c o n s ti tu em u m "pedazo de la realidad de esas cosas o conductas", e, sim , são u m a q u a lid a d e q ue e las n o s a p re se n ta m n a m e d id a q u e co inc idem com as essências idea is d e valor.^*® Assim, a realização d e um valor, com o a justiça, constitui um a qua lidade relativa da coisa que se tem com o parâm etro , ou seja, estabelece-se u m a relação entre essa coisa e com a idéia de valor, a inda segundo o respeitável es tudioso citado. Daí, leva-se à investigação a questão da independência entre a categoria da rea lidade e a categoria do valor, sobretudo na perspectiva de que os valores, ou alguns valores, não se acham realizados na vida, pois constatamos o contraste en tre aquilo que deveria ser e aquilo que é. E, a inda nos d iz RECASENS, q u e a justiça perfeita é algo inalcançável, m as nem po r isso deixarem os de reconhecer que a justiça é u m valor, m esm o que com m uita freqüência trope- ■‘® Cfr, Luís Recasens Siches, /n: op. cil., p. 58. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO D£ JUSTIÇA cem os d ian te das injustiças, as quais nos suscitam a sua não- aceitação, por injustificadas em face do valor. E em rem a te diz: "O reconhec im ento de u m va lo r com o tal va lo r n ão im plica que esse va lo r se ache e fe tivam en te re a l izad o " /^ C om o pon to d e p artida dessa d iscussão, h averem os de co locar esse raciocínio entre os term os d a questão deste tem a: os direitos de cidadania da m ulher e a sua questão de justiça. Ser ou não ser, a d ú v id a secular do ser h u m an o em face de suas circunstâncias. Ora, é cristalino que a justiça se coloca em m eio às ações e exigências d e m ais d e u m sujeito, com "a função específica d e m arcar en tre elas u m limite e u m a proporção harm ôn ica" , daí a justiça ser essencialm ente de n a tu reza social.^*^ N o Capítulo 1 desta monografia, fez-se alusão à m ais rem ota e conhecida teoria d a justiça, lucubrada por Pitágoras e po r seus discípulos. Esta Escola de forma genial tratou de expressar a jus tiça relacionada à igualdade ou correspondência de term os con trapostos. Tenta-se idealmente conseguir a síntese dessa antítese através d o núm ero quadrado, ou seja, aquele núm ero que m ulti plicado por si m esm o, devolve o m esm o pelo m esm o, com o dito por DEL VECCHIO. É um a equivalência perfeita. Portan to , den tro dessa idealidade, a justiça é ig u a ld ad e e reciprocidade. O s term os dessa com posição são exatam ente iguais: 2 4-2 = 4. M esm o assim , a filosofia da igualdade , na Id ad e Clássica, n ã o alcançou as m ulheres , com o parcela igual à parcela m as- Cfr, autor citado, in op. cit., pp. 58-65. A frase em aspas foi por mim traduzida. 0 raciocínio é de DEL VECCHIO ín; A Jusí/pa, Saraiva, 1960, p, 40, apud André Franco Montoro, Introdução à Ciência do Direito. 25. ed. (2- tiragem, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 168. O destaque é meu. 6 2 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA culina. O p ró p rio ARISTÓTELES não vê assim , pois segundo inform a DEL VECCHIO, não existe p a ra o Peripatético um a igua ldade m ateria l e sim um a correspondência d e valores. Então d a í decorre que a certeza da igua ldade d o q u a d ra d o torna-se dú v id a , ou, quem sabe, houve u m a ap ropriação da teoria com desv irtuam ento , pois com o d iz DEL VECCHIO, o pensam en to dos pitagóricos po d e ter sido m ais vasto e m ais p ro fu n d o do que se conhece hoje, ou que houvesse sido co nhecido p o r Aristóteles, d e form a já alterada. De q ua lq u e r sorte, infere-se que a Justiça C om utativa trata de a tr ibu ir encargos e d ire itos d iscrepantes en tre os dois gê neros, estabelecendo um a inflexão no fiel d a balança, n o qual um dos p ra to s tem m ais peso que o outro. O s term os con tra postos não são vistos aqui com o relação de ig u a ld ad e e d e reciprocidade. Na sucessão dos tem pos, vê-se que o gênero h o m e m /h u m an id ad e nem sem pre se justapôs à categoria pessoa. É o que acontecia com a categoria m u lh e r , com a categoria escravo, com o exem plos de m aior m agn itude , espécies essas fora do raio descritivo do gênero. A m u lh e r p rec isou en trar em u m cad inho secular de lutas a fim de conquistar a sua condição de pessoa. Aliás, MAX SCHELLER adm ite haver u m a conexão indiscutível en tre a essência da m onogam ia e o reconhecim ento da m u lher com o pessoa. E acrescenta que no O riente M édio a poligam ia é um a institu ição aceita em função de existir estreita conexão com a crença de que a m u lher não possu i alm a, o u seja, de n ã o se efetivarnaquela a condição de pessoa, segundo o Corão. Apud Gerson de Britto Mello Bóson, in: Filosofia do Direito - Interpretação Antro pológica, 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 183. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA Parece não ter sido diferente o pensam ento de a lguns rep re sentantes d a Igreja Católica, no tocante à condição feminina. RÉGINE PERN O U D nos inform a que G regório de Tours, em sua "H istória dos Francos" relata que no S inodo de Mâcon, d e 486, um dos p re lados fez observar que não se devia com p ree n d e r as m ulheres sob o nom e dos hom ens, e que a p a la v ra homo deveria ser in te rp re tada no sen tido latino d e vir.^^ N a essência d a justiça, sem pre se v iu a questão da alterida- de em sua realização. N ão existe justiça sem a existência de pessoas, ou de pelo m enos d uas pessoas. D aí o afirm ar-se que cabe à justiça a função de d irig ir "a soc iedade dos hom ens". O u, se g u n d o DANTE, a justiça é u m a relação p roporc ional de hom em a hom em . Só que a concepção de hom em era d irig ida apenas ao vir, ou seja, ao hom em como oposição à femina - m u lher enfim, a idéia do hom em , sob o pon to de vista das qualidades másculas, viris, vale d izer, sob o ângu lo de um este reó tipo q u e veio a ser v in cado p ro fu n d a m en te n o inconscien te coletivo. N o entre tan to , a justiça com o valor de co n teúdo d o D ireito sofre m udanças , em conseqüência até d e p rob lem as d e ap li cação prática da idéia da p rópria justiça, pelas m ais á rd u as controvérsias teóricas e pelas m ais sangren tas lu tas políticas, nas pa lav ras au to rizadas do insigne RECASENS SICHES. Pois a idéia de h a rm o n ia o u d e p roporc ionalidade , n ã o m in is tra o critério pa ra p rom over a dita harm onia ou p ropo rc iona lida de. De vez que aí se está d ian te de um d ireito m eram en te for m al ou, com o dito po r aquele e s tudioso d a Filosofia d o Direi- Régine Pernoud. op, o f., pp. 108-109. " Citação feita por André Franco Montoro, op. c/f., p. 131. referindo a sua autoria a Cicero. Idem, ibidem. 6 4 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA to, há que se p ressupo r m edidas m ateriais de valor a fim de que aquela justiça seja im plem entada. A Teoria dos Valores ou a Estim ativa Jurídica com o cha m ada p o r ele, pa rte de outros valores, a fim de d a r substância à idéia do d ire ito form al e positivado. A questão d a dign ida de humana entra com o m atriz desses princípios e, não obstante ser estofo de filosofias ou de condu tas seculares, só recente m en te aparece n o Direito com o valor a ter efetividade. A p ró p ria Igreja Católica, em seu N ovo Testam ento , a p re goa a v ida d e Cristo, este com o um vivenciador dessa igual d a d e em nom e d a pessoa nascida com o Filho de Deus, p o r tanto , com a m esm a na tu reza e com a m esm a essência espiri tual de criatura ligada à imagem do Criador. N a exortação de São Paulo: "nem judeus, nem gregos, nem escravos, nem livres, nem homens, nem mulheres",^^ pois todos são identificados com o Filho de Deus, através da d ignidade hum ana. Descabido dis cutir aí discriminações ou exclusões dentro desse espírito. Essa idéia universal da h u m an id ad e v em dos cristãos e da filosofia estóica, isto é, a d ign idade é pan o de fundo d a p re sença do hom em no orbe e que o d istingue dos ou tros an i m ais, sob o po n to d e v ista da ontologia. C on tudo , m u ito s sé culos desfila ram para q ue se iniciasse a d iscussão d os ch am a dos Direitos H um anos , estribados nessa d ign idade. E nessa acepção, d iz RECASENS SICHES, a do u tr in a dos d ireitos h u m an o s apon ta pa ra critérios estimativos, em juízos d e valor, a fim de que a o rdem jurídica positiva im prim a con ceitos que venham ao encontro dessas exigências, na conse cução d o Direito Justo, em sua expressão vivenciada. N o m u n d o contem porâneo , o p rim eiro passo foi d a d o com A exortaçao está contida na Epístola aos Gálatas, 3. 28, in: A Bíblia de Jerusa lém. 9. ed. (rev.). São Paulo; Paulus, p. 2192. 0 destaque é meu. CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA a DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM, de 1948, m edian te a qual se erigiu a condição d a d ign idade dos hom ens livres e iguais em direitos. (Art. 1°). E aí se trata de conceituar seres hum anos, em sua indefectível div isão en tre hom ens e m ulheres. Ocorre que o racionalismo do século XVIII não resolveu os problem as concernentes à política da cidadania. De certo ângu lo, inicia-se um desprestígio do logos no tocante ao problem a e u m deslocamento do topos para se centrar a questão da dignida de em m eio aos Direitos Hum anos. M esmo considerando que a lei tão sacralizada desde os prim órdios do Direito Romano, assu m a um a politização dentro de um a realidade e concretude, sob u m enfoque de direitos hum anos, ou direitos da hum anidade como um todo, sem a cisão do hom em e da m ulher. Mas, ao in verso, um direito m enos convencional, m enos abstrato, m enos dever-ser e mais ser, m enos absolutista, sem o fosso dos direitos do hom em , como categoria de virilidade e d e masculinidade. Talvez o "código"' do Direito se tenha politizado ou ideo- logizado, ou m enos ligado a "interesses'" casuísticos, pois afi nal o Direito é Ciência C ultural, po rtan to , constru ída sobre regras, usos, costum es, conhecim entos e cond ic ionam entos sociais e acim a de tu d o tem um a linguagem q ue ten ta supera r as en trop ias sociais, no sen tido da harm on ização e da igual dade , esta, referencial m aior da justiça. A interação d o texto legal com o contexto social e püblico- fem inino dá um a v irada na leitura d o texto form al, inclusive ape trechando a noção de justiça com o algo a ser rea lm ente v ivenciado. É com o afirm ado po r BENJAM IN CARDOZO: "N o direito , assim com o em o u tras ciências, m u ita s coisas devem ser ap ren d id as com o fatos". 56 A pud Aoóré Franco Montoro, op. c/f., p. 287. 6 6 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA C om o dito algures, se o positiv ism o trouxe p a ra a teoria do Direito um a espécie de consciência a to rm en tada p o r antíteses in ternas, há d e certa form a u m abandono dessa posição, a fim de garan tir ou tro estado-de-coisas que dê à lei in terpre tação desp rov ida de contextos clássicos de divisão dos a tores soci ais com o sujeitos de direitos, rasgando o véu sacralizante d e s sa leitura a fim d e alcochoar o novo estrato d e justiça e da nova ideologia dos direitos políticos. Agora, sim , os dois se encon tram em u m p a ta m a r em que d a r u m novo significado à linguagem da igualdade e da justiça, se faz mister. Por o u tro lado, o Estado, já n ão m ais separado d a Socieda de, é ele p ró p rio o p res tado r positivo dos d ire itos e garantias fundam enta is . N a leitura, v.g., da C onstitu ição brasile ira de 1988, em seu artigo 5°, e inciso I, há que se ver que já não é a m esm a le itu ra dos preceitos p recedentes da C onstitu ição de 1946 (art. 141, § 1°), ou, m ais rem otam ente , d a C onstitu ição Im peria l de 1824, qu an d o se tra tava da inv io lab ilidade dos d ire itos civis e políticos dos c idadãos brasileiros, a considerar q u e nessa categoria n ã o se incluíam as m u lh e res (art. 179, caput). A igualdade , aí, era m eram ente formalística. A p ró p r ia O rg an ização das N ações U n id a s (O N U ), em q u a se consenso n a fe itu ra da D EC LA R A Ç Ã O UNIVERSAL DOSDIREITOS H U M A N O S, de 10 d e d e z e m b ro de 1948, a s s u m e u m a p o s iç ã o c la ra , d e s e n t id o r ig o r o s a m e n te un iversaU sta , com o u m idea l a ser a tin g id o p o r to d o s os p o v o s e p o r to d a s as nações. E n esse d o c u m e n to h á u m a base ideo lóg ica - a de q u e todos os se re s hu m an os nascem livres e igua is em direitos rec h a ç a n d o o re d u c io n ism o , as d isc r im in a ç õ e s e d a n d o e n s a n c h a s a n o v o s m é to d o s exegéticos d a le itu ra d o tex to dec la rac iona l. Q u a se d e fo r m a u n â n im e foi a D eclaração aceita p e la A ssem b lé ia G eral CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA da O N U /^ d a n d o origem inclusive a vários textos posteriores de repúd io àquelas discriminações, com o aconteceu na passa gem do dom ínio da DECLARAÇÃO para o das Convenções. N o tocante às m ulheres, den tre outras, salienta-se a Con venção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discrim i nação Contra as M u lh e re s , q u a n d o em s e u a r t ig o 1° é ve rb a lizad o ex p ressam en te que a discrim inação contra as m ulheres importa em "qualquer distinção, exclusão ou res trição baseada no sexo, que tenha com o efeito ou com o obje tivo com prom eter ou d es tru ir o reconhecim ento , o gozo o u o exercício pelas m ulheres, seja qual for o seu es tado civil, com base na igualdade dos hom ens e das m ulheres, d o s direitos d o h o m em e d as liberdades fundam en ta is n o s d om ín io s po lí tico, econôm ico, social, cu ltural e civil ou em q u a lq u e r ou tro dom ín io". (Os destaques são meus). A avoenga teoria d a in fe rio ridade da m u lh e r , pe lo sexo, cai assim em função de u m a "crise" do d o g m a fo rm alis ta do Direito. Pois, com relação ao ângu lo d a justiça, in fo rm ad o ra da lei, p resencia-se novo sopro axiológico a co lm ata r com n o v o s va lo res o cerne da cidadania da m ulher com o q ues tão de justiça. CONCLUSÃO N o terreno da especulação filosófica da Justiça, com o se viu, há u m a relação dialética den tro d e u m a d inâm ica d o cos m os, reca indo sobre a N a tu reza e sobre a poiesis das regras form ais e dogm áticas, no m u n d o d a criação d o Direito. Em Resolução de 10 de dezembro de 1948, a Assembléia Geral da ONU votou o texto da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM. Não houve voto contrário. Quarenta e oito membros votaram a favor e oito abstiveram-se. Dentre estes, alguns países do bloco soviético; a Arábia Saudita e a África do Sul. CIOADANíA DA MULHER, UMA Q U E S T à O DE JUSTIÇA Já se disse a lgures que a sociedade é o cosm os cu ltu ral do ser h um ano . E den tro dessa relação cultural, v ivenciam -se os v a lo r e s , e s te s a ç a m b a r c a d o s n o c o n t in e n te d a T e o r ia Axiológica, ou, em outros d izeres, na r iqueza e p ro fu n d id ad e da Estim ativa Jurídica. N o conceito d e justiça cabem valorações, conteúdos m ateri ais que inform am a v ida e a realização do Direito. N ad a é defi nitivo, pois as finalidades da ordenação jurídica cambiam, como m u d a m as folhas secas de um a árvore que caem para d a r lugar a novas e h íg idas folhas, as quais retiram dessa árvore a seiva necessária para d a r nova roupagem a essa m esm a árvore. É quase um ciclo autopoiético, de auto-reprodução, quando se teoriza sobre novos valores e sobre novas v irtudes. É n o íopos da Justiça que se refugia o Direito. Direito é Jus tiça, ou o seu b em maior. Ao longo dos tem pos, o conceito de Direito e d e Justiça vem se in teg ran d o em várias visões desd e o M u n d o Antigo, a travessando a Era Clássica, inclu indo aqui o desenvolver do D ireito R om ano, p assando p o r um a cosm ovisão cultural-reli- g io sa - p e la P a t r í s t ic a e E sc o lá s tic a . D o n d e , o D ire i to c ris tian izado desenvolv ia o conceito d e justiça não obstan te no m érito se acachapar a u m a sociedade restrita em q ue a v i r tu d e era p roven ien te d o vir, ou seja, d o varão, confund indo- se o a tr ibu to com o sexo m asculino. O Direito foi restrito pa ra ãèfeminae. M esm o assim , não se desm ancha aí a id en tid ad e essencial d o D ire ito com a Justiça. N o co rre r dos tem p o s , a C iência q u e d e ssa c ra l izo u o conhec im en to t ra to u d e d a r n o v o se n t ido às b a ses d a C iência Ju ríd ica a fim de a la rg a r o seu cam p o d e e s tu d o s , p o l i t iz a n d o esse saber e faz e n d o d e s te u m a fon te d e po d e r. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA O racionalism o d a Revolução Francesa trouxe à luz d o dia a questão d as m ulheres, as quais en fren ta ram o m aio r jogo dialético d o poder. A m u lher da í adv in d a m u d a a sua n a tu re za. O u será que a na tu reza das coisas m u d o u ? Talvez. Se a N a tu reza dos p rim eiros filósofos gregos era m atem ática , foi preciso m u d a r a n a tu reza dessa N a tu reza a fim de que se p u desse com preender m elhor o Direito-Justo. Com a racionalidade, inicia-se um novo projeto d e in ter p retação d as Ciências C ulturais, com o o Direito, e se desm em bra 0 Direito Religioso do Direito Laico, acabando , p o r fim, estereótipos gra vosos, com o o das bruxas ou o da m ulher como ser inferior. Inaugura-se a era d o Anthrópos, ou seja, d o m as c u lin o / fem inino, d a igualdade e da rec ip rocidade v istas ago ra sob u m ângu lo de vivência da substancia lidade do ser h u m ano, m ed ida pela d ign idade, sob o pálio de nova valoração d o bem m aior cham ado Justiça. É um a nova sim bologia, um novo signo e u m a nova lin g u agem que trata d o d ire ito de c idadan ia d a m u lher , com o de outros, den tro d o d iapasão de u m a igua ld ad e v a lo rada na "experiência" de novas m etodologias da Ciência do Direito e que fazem o Direito realizar a sua idealidade , ha rm on izando - se com a concreção da realidade. BIBLIOGRAFIA A BÍBLIA DE JERUSALÉM. 9. ed. (rev.). São Paulo: Paulus, 1995. ALGRANTI, Leila M ezan. Honradas e Devotas: Mulheres da Co lônia - Condição fem inina nos conventos e recolh im entos do Sudeste d o Brasil, 1750 - 1822. Rio d e Janeiro: José Olym pio. Brasília: E dunb , 1993. CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA ALLGEIER, Kurt. Receitas Milagrosas de Médicos e Místicos - Rem édios N a tu ra is d e Dois Milênios. Trad, de Célia M aria N ü r th Teixeira, [s.local]: Ediouro, [s.d.J. ARISTÓTELES. Á Política. Trad, de Roberto Leal Ferreira. 2. ed. São Paulo; M artins Fontes, 1998. BENDIX, R einhard . Construção Nacional e Cidadania. T rad , de M ary A m azonas Leite de Barros. São Paulo: E d itora da U n i v e rs idade d e São Paulo, 1996. BLUCHE, Frédéric et allii. A Revolução Francesa. T rad, de Lucy M agalhães. Rio de Janeiro; Jorge Z ahar Editor, 1989. BOSON, G erson d e Britto Mello. Filosofia do Direito - In te rp re tação A ntropológica. 2. ed. Belo H orizonte: Del Rey, 1996. CADERNOS d e M ulheres da Europa, n° 37.1492; Presenças de Mulheres. C om issão das C om un idades Européias, Bruxelas, [s.d.]. CAMPBELL, Joseph et allii. Todos os Nomes da Deusa. Trad, de Beatriz Pena. Rio d e Janeiro; Record - Rosa dos Tem pos, 1997. CA NFO RA , Luciano. A Biblioteca Desaparecida - H istórias da Biblioteca de A lexandria. Trad, de Federico Carotti. São P au lo: C om panh ia das Letras, 1989. CRETELLA JÚNIOR, José. Direito Romano Moderno. 4. ed. (rev. e aum.). Rio de Janeiro: Forense, 1986.D 'H A U C O U R T, Genevieve. A Vida na Idade Média. Trad, de O linda Fernandes. Lisboa: Edição Livros d o Brasil, Is.d]. D A VIS, N atalie Zem on. Nas Margens - Três M ulheres d o sé culo XVII. Trad, d e H ildegard Feist. São Paulo: C om panh ia das Letras, 1997. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA DECRETO n° 1.973, de 01/08 /1996 . Convenção Interam erica- na pa ra P revenir, P un ir e Erradicar a Violência C on tra a M u lher, pub licado no DOU de 02 /08 /1996 , pp . 14470-14473. ENGELS, Friedrich. A Origem da Famãia da Propriedade Privada e do Estado. Trad, de João Pedro Gomes. Lisboa-M oscou: Edi torial "A vante!", 1986. FR A N Ç A , M aria de. Lais. T rad , d e A n to n io L. F u r ta d o . Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. GUIMARÃES, Ylves José de M iranda. Direito Natural - Visão M etafísica & Antropológica. Rio de Janeiro: Forense U niver sitária, 1991. H U N T, Lynn. Revolução Francesa e Vida Privada. In: História da Vida Privada - Da Revolução Francesa à Prim eira Guerra. Trad, de Denise B ottm ann (partes 1 e 2) e B ernardo Joffily (par tes 3 e 4). São Paulo: C om panh ia das Letras, 1991. JAPIASSU, M ilton. As Paixões da Ciência - E studos de H istória das Ciências. São Paulo: Editora Letras & Letras, 1991. JUNG, Carl G. Civilização em Transição. Trad, de Lúcia M athilde Endlich Orth. 2. ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2000. KRAMER, H einrich e SPRENGER, James. O Martelo das Feiti' ceiras - Malleus Maleficarum. Trad, de Paulo Fróes. 12. ed. Rio de Janeiro: Record - Rosa dos Ventos, 1997. LURKER, M anfred. Dicionário de Dioses y Diosas, Diablos y De mônios. B arcelona /B uenos A ires/M éxico: Ediciones Paidos Ibérica, [s.d.]. M ACEDO, José Rivair. A mulher na Idade Média. 5. ed. (rev. e airip.). São Paulo: Editora Contexto, 2002. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA MCBRIEN, R ichard P. Os Papas - De São Pedro a João Paulo II. T rad , d e B arbara T heo to L am bert. São Paulo: Edições Loyola/ 2000. M ON TORO, A n dré Franco. Introdução à Ciência do Direito. 25. ed. (2“ tiragem). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. M ONTERO, Santiago. Deusas e Adivinhas - M ulher e ad iv i nhação na Rom a Antiga. Trad, de N elson C anabarro . São P a u lo: M usa Editora, 1998. MURARO, Rose M arie e BOFF, Leonardo. Feminino e Masculi no - um a nova consciência pa ra o encontro das diferenças. Rio de Janeiro: Sextante, 2002. NOBLECOURT, C hristiane Desroches. A Mulher no Tempo dos Faraós. T rad, d e Tânia Pellegrini. C am pinas, SP: Papirus, 1994. O R D E N A Ç Õ E S F i l ip in a s . L isb o a : F u n d a ç ã o C a lo u s te G ulbenkian, 1985, Livros IV e V. PEDRERO-SÁNCHEZ, Maria Guadalupe. História da Idade Mé dia - Textos e Testemunhas. São Paulo: Editora UNESP, 2000. PERNOUD, RÉGINE. Idade Média: o que não nos ensinaram . Trad, de M aurício Brett M enezes. 2. ed. (rev.). Rio de Janeiro: Agir, 1994. PERROT, Michelle. Os Excluídos da História - O perários, M u lheres e Prisioneiros. Trad de Denise Bottmann. Rio de Janei ro: Paz e Terra, 1988. R A N K E-H EIN EM A N N , Uta. Eunucos pelo Reino de Deus - M ulheres, Sexualidade e a Igreja Católica. Trad, de Paulo Fróes. 3. ed. Rio de Janeiro: Record - Rosa dos Tem pos, 1996. RECTOR, Monica. Mulher Objeto e Sujeito da Literatura Portu- CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA 7 3 giiesa. Porto - Portugal: Edições U nivers idade Fernando Pes soa, 1999. RODRIGUES, João Batista Cascudo. A Mulher Brasileira - Di reitos Políticos e Civis. 3. ed. Brasília: C en tro Gráfico d o Sena do Federal, 1993. SA LD A N H A , Nelson. Da Teologia à Metodologia - Seculariza- ção e C rise d o Pensam ento Jurídico. Belo H orizonte: Del Rey, 1993. SICHES, Luis Recasens. Tratado General de Filosofia Del Derecho. 7. ed. M éxico/D F: Editorial Porrua, 1981. STANFORD, Peter. A Papisa - A Busca pela V erdade A través do M istério da Papisa Joana. Trad, de M árcia Frazão. Rio de Janeiro: G ryphus, 2000. TURBEVILLE, A rth u r Stanley. La Inqiiisición Espanola. Méxi co /D F : Fondo de C ultura Econômica, 1985. 7 5 MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIG OS SOCIAIS - O PAPEL DO S DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL O d ila d e M élo M achado INTRODUÇÃO Fruto de m uita inquietação, este trabalho é apresen tado com o objetivo de refletir a questão da m ulher à luz d o Direito - nossos rum os e possíveis necessidades de m u d an ças - com o p ropõe o 1" Concurso de M onografias Jurídicas p rom ovido pela OAB Nacional. Assim , o seu objeto p rim ord ia l configura-se a p a rtir da relação en tre gênero e Direito: o m o d o pelo qua l a o rdem jurídica responde aos necessários apelos d e igualdade , em u m contexto social que tem em si a cu ltura d a dom inação. O s conceitos aqui traba lhados têm com o su p o rte m e to d o lógico a pesqu isa bibliográfica e o seu desenvo lv im en to ap re senta-se constitu ído d e três partes. N a p rim eira de las consta a tra je tó ria h istórico-sociológica q u e en v o lve a p e rso n a g e m m u lher , o n d e se quer m ostra r que o D ireito n ã o p o d e ser d issociado desse contexto. O utra razão de ser dessa pa rte é a d e que a com preensão d o presente, ou a elaboração de um a solução fu tura , implica in te rp re tar o p assado . N essa incursão iniciada na A n tigü idade greco-rom ana e, em seqüência, es tend ida a té o século XX, procura-se dem o n s tra r que a H istó CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA ria sem pre relegou a m ulher a um p lano inferior. Sendo o h o m em o constru to r d a história, da sociedade, da civilização - po rtan to , o sujeito d as m esm as - de te rm inou os parâm etros d a u tilização da m ulher. N esse percurso , que se lim itou ao m u n d o ocidental, cada período histórico é abordado em seu estilo específico. E nquan to deusa, a m u lher era am ada pelos gregos m as, um a vez ser social, era a fastada das relações políticas e econôm icas, com o respa ldo d o pensam en to filosófico da época. Em Rom a era tra tad a pelo Direito - do qual o nosso é tribu tá rio - com o u m ser incapaz, pois assim dispunha o seu estatuto. A única função valorizada era a m aterna e isso não pelo fator inerente da repro dução, m as pela instituição casamento, entenda-se multiplica ção e conservação do patrimônio. Saliente-se que, nesse aspecto, Roma em nada se distinguiu das sociedades antigas e, de m odo geral, da totalidade das sociedades hum anas, anteriores à em an cipação da m ulher no m undo industrial contemporâneo. N a Idade M édia a m ulher sofreu o handicap d a perseguição às bruxas, condição que m uito pouco m elhorou com o a d v e n to do R enascim ento , d a Revolução Francesa e das G uerras M undiais. Assim , o m ito do m atriarcado aparece com o sendo apenas u m conceito da antropologia, na avaliação de Bachofen. A dom inação m asculina é aqui dem onstrada de d iversas for m as. N o en tan to , esse dom ín io não significa a ausência de p o d e r fem inino, m as m ostra a clara resistência d a articulação da suprem acia m asculina, pa ra que as m ulheres não se m an i festem. D essa form a, os escribas d o pod e r reg is tram tendenc i osam ente - segundo seleção feita p o r eles - o que as m ulheres dev em fazer o u dizer. Assim, a elas destinaram o espaço p r i vado , e nquan to os hom ens ocupam , com todo o respa ldo ide ológico, o âm bito público. MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÕDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL N a seg u n d a p arte é abordada a h istória da m u lh e r no Brasil - síntese do p eríodo colonial aos d ias a tu a is - onde se veri fica que a situação das m ulheres não difere da rea lidade a p re sen tada n a parte inicial deste trabalho. D estarte, em u m a soci ed ad e patriarcal, a família constituía-se no centro de toda a organização; econômica, religiosa e m esm o política. A v irg in d a d e d a m u lh e r era considerada fator da m ais alta relevância, refletindo-se em questões do Direito. N esse contexto, a m u lher enquan to m ãe, po r influência das tradições judaico-cris- tãs, era associada à V irgem M aria e glorificada p o r essa fu n ção vocacional. Isso a v inculava ao espaço p rivado , enquan to era oficializada sua inferioridade jurídica e social. N o Brasil, som ente a p a rtir d a década de 1960, fru to de m uita luta, a m u lher está - m as d e form a m u ito lenta - conse g u in d o ex trair de si a condição d e in ferio ridade q u e a socie dade , reg ida pelas leis da classe dom inan te , lhe a tribu iu . De form a incipiente a m ulher - v ítim a de séculos de opressão - está criando voz, abrindo espaços de conquistas. As m ulheres estão, a tualmente, se inserindo n u m quadro social mais amplo. A História não se escreve de forma linear e está longe de ser estática: em intervalos de tem po cada vez m enores sucedem-se as alterações. Dizemos, neste início de milênio, que o ritmo da História acelerou. E a legislação está acom panhando a acelera ção histórica? Todas as lutas e conquistas das m ulheres foram importantes, pois estabeleceram um novo pa tam ar de direitos hum anos para elas. O usufruto desses direitos, lam entavelm en te, é m arcado pelas desigualdades sociais e étnicas, que caracte rizam a nossa sociedade. Recentemente - já n o século XXI - foi aprovado o novo texto do Código Civil, que acaba - entre outras discrepâncias - com a possibilidade de anulação do casamento por perda da v irgindade da m ulher an tes do m atrim ônio . 7 8 CIDADANIA OA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA N a terceira p a rte deste trabalho são trazidas à colação ques tões específicas da área do Direito enfocando-se os dip lom as legais de abrangência internacional; Convenções, T ra tados e Congressos p rom ov idos pela ONU. Tais d ispositivos se d es tinam a alertar ou criar v ínculo obrigacional - com os países m em bros dessa organização - na oferta de tra tam en to iguali tário a hom ens e m ulheres em suas legislações. N as considerações finais procura-se sintetizar as colocações traba lhadas nesta m onografia , acrescentando-se a lgum as re flexões que se som am ao enfoque selecionado ao tem a "C ida dan ia d a M ulher, u m a questão de Justiça". Por ú ltim o, vale a firm ar que tudo o que tem sido historica m ente constru ído n ão necessariam ente deverá reproduzir-se , cabendo sem pre espaço pa ra ações transform adoras. 1 - SÍNTESE HISTÓRICA DA MULHER NO OCIDENTE 1.1 - Na Antigüidade Greco-Romana "Na sua dupla relação com o saber, a mulher Grega é uma figura curiosa. É um objeto apaixonante e um sujeito muito discreto, mas teoricamente exemplar. Enquanto objeto, a m u lher surge em primeiro lugar, como essa coisa viva cuja apari ção no mundo o mitólogo teve de imaginar antes de se tornar, para os médicos um corpo a dissecar e, para o filósofo, uma figura social a instituir. Como sujeito aparece, esporadicamen te, mas sempre às margens do exercício filosófico, médico ou literário, vindo a exceção confirmar a regra de exclusividade masculina no domínio intelectual...” Giulia Sissa MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL Filosofias do Gênero: Platão, Aristóteles e diferença dos sexos Os deuses ao criarem Pandora, a p rim eira m u lh e r segundo a m itologia, do taram -na de voz h u m ana , e o m u n d o antigo v iveu sob esse m urm ú rio de vozes fem ininas, que tagarela vam em seu un iverso dom éstico: u n iverso p rivado , cujas p o r tas e ram fechadas e constan tem ente vigiadas. A única p a la v ra v e rd ad e iram en te reconhecida - a pa lav ra política - es te ve, p o r m uitos séculos, fora d o alcance das m ulheres. A lguns h isto riadores afirm am que a sociedade sem pre foi m asculina, d e on d e decorre a centralização política nas m ãos dos hom ens. STRAUSS, nesse sentido, afirm a que "a au to r id ad e pública ou s im plesm ente social pertence sem pre aos h o m en s" .’ Embora a historiografia não nos permita ver claramente em seus horizontes um direito materno, um a ginecocracia, MURARO usa e expressão "no princípio era a mãe"^ e ENGELS, p o r seu tu r no, disse que "...a reversão do direito m aterno foi a grande derrota histórica do sexo feminino".^ Colocações, nessa linha de pensa mento, nos sugerem que houve um período d a história na qual a m ulher exercia algum a supremacia, não no espaço privado - que lhe foi lugar comum em todas as épocas - m as no espaço público. Entre tan to , esse período quase p e rd id o através dos tem pos, q ue c o rrespondeu a um estágio original d a hum an id ad e , m ereceu a a tenção de BACHOFEN^ em Das Mutterrecht ou o 'A pud BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. 2. ed. RJ: Nova Fronteira, 1982, V. 1, p . 91 / MURARO, Rose Marie. A Mulher no Terceiro Milênio: Uma história da mulher através dos tem pos e suas perspectivas para o futuro. RJ: Rosa dos Tempos, 1992, p. 7. ^A Origem da família, da propriedade privada e do Estado. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich; LENIN, Vladimir. Sobre a Mulher. 3. ed. SP: Global. 1981, p. 15. ^GEORGOUDI, Stella. Bachofen, o Matriarcado e a Antigüidade; relações so bre a criação de um mito. In: DUBY. Georges e PERROT, Michelle. A História das Mulheres: A antigüidade. Porto: Edições Afrontamento, 1990, v, 1, p. 569. 8 0 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA direito m aterno . De acordo com a teoria desse jurista , "os p o vos são sem elhantes aos ind ivíduos. Para 'g e rm in arem ', para chegarem à m atu rid ade , têm necessidade de serem guiados p o r um a m ão firme, d irigente, que não p o d e ser senão a m ão tranqü ilizado ra e au to ritá ria de mãe. Assim , as o rigens da h u m an id a d e são colocadas sob o signo e a suprem acia d e um a única força: a m ulher, ou antes, o corpo m ate rno que gera, im itando a ação da M ãe O riginal, a Terra".^ R ecorrendo a inda à m itologia grega, encon tram os que o su rg im ento do nom e de A tenas dá-se após o confronto d o re g im e m atriarcal com o patriarcal; "Foi no tempo de Cécrope, o rei fundador de Ática que, segun do 0 mito, estalou uma querela entre Atena e Posídon pela denominação e posse do país. Após consulta ao oráculo de Delfos, 0 rei resolveu o assunto, convocou uma assembléia em que faziam parte 'os cidadãos dos dois sexos’ porque nesse país era então costume que as próprias mulheres tomassem parte nos escrutínios públicos".^ Assim , as m ulheres que apoiaram A tena foram as vence doras, o que ge rou a revolta dos hom ens, que se investiram d o p o d e r e de te rm inaram às m ulheres a p e rd a d e todos os direitos: d e votar, d o uso d e nom e pelos filhos e o da c id a d a nia ateniense. Assim sendo, esse en trecruzam ento de m itologia e história quer rep resen ta r a vitória de u m sistem a patriarca l in su rgen te sobre um a sociedade m atriarcal em declínio. E ntretanto , a H istória n ão p o d e relegar esse poder, que as m ulheres teriam exercido, p a ra u m período pré-histórico - d an d o o seu tem po 5 Idem, ibidem, p. 571. ® Idem, ibidem, p. 582. MULHER-, CÓDIGOS LEGWS E CÓDIGOS SOCIWS - 0 PAPEL DOS DIREITOSE OS DIREITOS DE PAPEL 8 1 po r acabado - pois seria um a form a de excluí-las da história grega e da p rópria História. O m o d o com o os gregos criaram a figura da m u lher é, no m ínim o, curiosa. Ela surge, inicialm ente, com o u m a deusa, u m ente mitológico; depois, é ap resen tada pela m edicina como u m corpo a ser dissecado. Mais adiante, no p lano filosófico, torna-se a m ulher u m a figura social a ser institu ída. Q u a n d o a to rnam sujeito, colocam-na à m argem de qua lquer prática, com raras exceções, à m argem da construção d e qua lque r história. O dom ín io m asculino no p lano intelectual, n a sociedade grega e, com o verem os m ais adiante, na rom ana, é m uito acen tu ad o e bem d em onstrado nessa passagem em que Platão, d i rig indo-se a Gláucon, assim se expressa: "Conheces alguma profissão humana em que o gênero mascu lino não seja superior, em todos os aspectos, ao gênero fem ini no? Não percamos o nosso tempo a falar de tecelagem e de confecção de bolos e guizados, trabalhos em que as mulheres parecem ter algum talento e em que seria totalmente ridícido que fossem batidas"/ Desse m odo, os "savoir-faire" que exigissem competência e habilidade raram ente eram atribuídos às m ulheres. A função destas era a gestão da casa, fazer tecelagem e cuidar dos filhos. N o pensam en to dos poetas, filósofos e m édicos da A nti g ü id ad e há u m den o m in ad o r com um ao descrever-se a m u lher com o u m ser passivo e inferior ao h om em em todos os aspectos. Platão, em República, concebeu u m a c idade onde as m ulheres deveriam ser educadas com o os hom ens, pois para ^ SISSA, Giulia. Filosofias de Gênero: Piatão, Aristóteles e a diferença dos sexos. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle, op. cit. p. 95. 8 2 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA 0 filósofo: "façam elas o que fizerem, e p o d em ten ta r fazer tudo , fa-lo-ão m enos bem".® N e ssa l in h a de rac iocín io , os m éd ic o s , s e g u id o re s de H ipocrates, reconheciam que todo ind iv íduo sexuado - seja ele m acho ou fêmea - era p o rtado r de u m a sem ente idêntica e andrógina . N o entanto , descaracterizavam qualquer isonom ia de gênero ao afirm arem "que a parte fem inina desta su b s tân cia é, em si, po r um a qua lidade intrínseca, m enos forte q u e a parte masculina".^ Reflexões com o estas - com uns en tre os p e n sad o re s da A n tigü id ade - são consideradas o que de m elhor se p ro d u z iu e se disse a respeito d o gênero m ulher, na tradição ocidental. P itágoras via na m u lher u m ser voltado ao m al q u a n d o assim explicou a sua origem: "H á um princípio bom que criou a o r dem , a luz, o hom em ; e um princípio m au q ue criou o caos, as trevas, a m ulher".'" Assim, nesse sistem a dicotômico, a m u lher ocupava o lu ga r do negativo, do defeito, e que precisava ser in teg rada à sociedade, o que queria dizer, subm etê-la à o rdem m asculina estabelecida. Verifica-se, desse m odo, que nas narra tivas das l ite ra tu ras antigas as m ulheres eram ap resen tadas com o um sup lem ento , u m a peça acrescida ao g ru p o social. Q u a n d o se tra tava d o saber e d o p oder, as m u lheres não e ram nunca m encionadas. O un iverso fam iliar na A n tigü idade tam bém era d u a l - m achos e fêm eas - e a solução para os conflitos apresentava- se da m esm a form a defin ida pela m edicina e pela filosofia, isto é, com a p redom inância de u m sexo sobre o ou tro , com o ® Idem, ibidem, p. 85-86. ® Idem, ibidem, p. 86. BEAUVOIR, Simone de, op. cit. p. 101. MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL era fortem ente expresso nas leis de M anu: "U m a m ulher , m e d ian te u m casam ento legítimo, adqu ire as m esm as qua lid a des de seu esposo, como o rio que se p e rd e n o oceano, e é adm itida depo is da m orte no m esm o para íso celeste".’^ N essa linha, todas as religiões e Códigos tra tavam a m u lher com m uita hostilidade .’ ^ Em u m a época em que o patri- a rcado estava estabelecido, foram red ig idos Códigos que, n a tu ra lm ente , ofereciam à m ulher um a condição subord inada , p ass iv a e in ferior ao hom em . A ssim , as in ca p ac id ad es da m u lh e r rom ana e ram a tradução institucional d a situação in ferior a que ela se encontrava relegada, em u m a sociedade de dom inânc ia m asculina. Então vejamos: “A s leis de M anu definem-na como um ser servi! que convém manter escravizado. O heretício assimila-a aos animais de car ga cjue 0 patriarca possui. As leis de Sólon não lhe conferem nenhum direito. O Código Romano coloca-a sob tutela e pro clama-lhe a ‘imbecilidade'. O direito canônico considera-na a 'porta do diabo'". Desse m odo, as m ulheres da A n tigü idade e ram excluídas de u m m u n d o que as fazia estranhas, po r ser ele to ta lm ente declinado no m asculino. O papel social da m u lh e r se restrin gia ao seu confinam ento às esferas dom ésticas, en q u an to aos c idadãos rom anos cabia o m onopólio das relações públicas e da política. As m ulheres eram , conseqüen tem ente , excluídas ” Ibidem. Nesse sentido, ver ENGELS, op. cit. p, 15, que assevera “essa condição humi lhante da mulher, tal qual como aparece notadamente, entre os gregos dos tempos heróicos e mais ainda dos tempos clássicos, foi gradualmente camuflada e dissi mulada e também, em certos lugares revestida de formas mais amenas, mas não foi absolutamente suprim ida” . BEAUVOIR, Simone de. op. cit. p. 101. 8 4 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA da cidadania. Podia-se considerar a c idade antiga - tan to a grega com o a rom ana - como c idade de hom ens. N esse contexto antitético a união conjugal reduzia-se à re núnc ia da esposa a tudo o que de pessoal lhe pertencia: am i gos, deuses , ocupações, bens, tendo em vista a adap tação à v ida religiosa, social e econômica do esposo. O casam ento - am álgam a que devia un ir o h om em e a m u lher - significava, então, o desaparecim ento da m ulher em todos os aspectos da v ida, especialm ente o econômico, com o bem foi defin ido por SISSA: "Isto surge particularmente esmagador no respeito aos bens, em cjue a avaliação quantitativa da ‘mistura’ se manifesta mais claramente. O pôr em comum os respectivos haveres deve, com efeito, ter a aparência de um patrimônio único e indiviso, mas pertencente ao marido, mesmo que a mulher tenha trazido parte maior que a deste... Mais precisamente: a in d iv isã o é apenas o meio de fa ze r desaparecer a especificidade e, neste caso, a real contribuição feminina em benefício do marido, verdadeira parte do todo''.^^ O casam ento , no Direito Rom ano, es tru tu rava-se sobre a n a tu reza jurídica d o h om em ou "paterfam ilias" e sobre a da m ulher , ' 'm aterfam ilias" o u "m atrona". Dessa união - hom em e m u lh e r - se p ro d u z ia e p ro longava a descendência po r vá ri as gerações. N a posição dos juristas d o Im pério Rom ano, "o encontro dos sexos comandava todo o encadeamento insti tucional; nele, o direito civil reunia-se ao direito natural, dado que - assim como o declararam no século 111 O s In s t i tu ta s de Ulpiano, retomado nos mesmos termos pelos In s t i tu ta s SISSA, Giulia, op. cit. p, 119, MULHER; CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS OE PAPEL 8 5 de Justiniano - da existência das espécies vivas deriva a união do macho e da fêmea a que nós, os juristas, chamamos de casa mento."^^ A sucessão dos d ependen tes só existia em R oma p o r linha m asculina, sendo as m ães pro ib idas desse direito. A Lei das XII Tábuas constitui-se no alicerce de todo o sistem a de suces sões sem testam ento ou "intestatas". Assim , som ente os des cenden tes p o r via m asculina - filhas e filhos d o pai, ne tas e netos nascidos do filho do pai... h e rd av am em p rim eira linha. Em segunda linha h e rdavam os colaterais do lado paterno. Assim sendo, o direito sucessório rom ano excluía todos os parentes da linha materna: os filhos não sucediam à mãe, nem os sobrinhos aos irmãos ou irmãs da mãe. Estas não possuíam a "patriapotestas" e, portanto, não podiam escolher u m herdeiro po r adoção, porque até m esm o os seus descendentes naturais essa exclusão atingia. Era o critério de prevalência d o gênero masculino sobre o feminino presente no Direito Romano. C om 0 adven to do Cristianism o os pad res da Igreja eram h om ens que, ten d o p res tado voto de castidade , rejeitavam, em seus serm ões, tudo aquilo que se relacionasse com o corpo e os desejos sexuais. A Virgem Maria tornou-se o m odelo a p re goado a todas as m ulheres que deveriam , a seu exem plo, m a n ter-se castas. Esta m esm a Igreja que, em seus p rim órd ios , p re gava a libertação das classes oprim idas - onde a m u lher esta va incluída - era agora a força m ais im portan te e p ro fu n d a p a ra fortificar a sua subm issão. A ideologia’ ^ cristã exerceu acen tuada influência no Direi- THOMAS, Yan. A Divisão do Sexo no Direito Romano. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle, op. cit. p. 130. Ver POULANTZAS, Nicos. O Estado, 0 Poder e o Socialismo. 3. ed. RJ; Graal, 1985, p. 33: "A ideologia não consiste somente ou simplesmente num sistema de CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA to R om ano, contribu indo , desse m odo, para que aum en tasse a opressão da m ulher. Assim, a Igreja veio reforçar o estereó tipo d a m ulher-esposa-m ãe; to ta lm ente subo rd in ad a ao m ar i do , on d e São Paulo - m an tendo a tradição judaica anti-femi- n ista - assim p rega em sua Epístola: "O h o m em não foi tirado da m u lh e r e sim a m u lher do hom em , e o h om em não foi cri ado p a ra a m u lh e r e sim esta para o hom em ". Enfim , foram as in terp re tações dos filósofos g regos rea li za d as pelos clérigos - hom ens de religião e da Igreja’® - que governavam o escrito e transm itiam o conhecim ento , que p ro po rc io n a ram as bases teóricas para , na Id ad e M édia , e a lém des tes séculos, se a tr ibu ir à m u lh e r a h istórica subm issão ao hom em . 1.2 - Na Idade Média A sociedade da Idade M édia con tinuou sendo acen tuada- m en te m arcada pela hegem onia m asculina, o nde as m anifes tações cu lturais possu íam o registro das lu tas pe lo p o d e r e dos preconceitos masculinos. A m ulher encontrava-se, a inda, em absolu ta dependênc ia do pai e do m arido , com o bem defi n e OPITZ; idéias ou de representações. Compreende também uma série de práticas materi ais extensivas aos hábitos, aos costumes, ao modo de vida dos agentes, e assim se molda como cimento no conjunto das práticas sociais, aí compreendidas as práticas políticas e econômicas". BEAUVOIR, Simone de, op. cit. p. 118. '®Ver LECLERCQ, Paulette LHerm ite • A Ordem Feudal. In\ DUBY, Georges e PERROT, Michelle. História das Mulheres: A Idade Média, v. 2, p. 281, onde foi dito que “Ter-se-á verificado que a igreja, que trabalha para a eternidade, está particularmente atenta ao tempo e, portanto, às mulheres, que têm com ela uma relação particular. E antes de mais, pela sua programação genética (...) Elas estão na intersecção do tempo cíclico - o relógio das regas, a concepção - e do tem po linear” . MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL "Os seiis desejos e idéias só podem freqüentem ente ser descortinados por trás do véu da tutela e da regulamentação imposta pelos seus pais, maridos e confessores, sendo os seus atos ainda limitados pelas normas da sociedade e pelo con trole social" N essa trajetória a família, a Igreja e as n o rm as jurídicas vi g ia v a m e e x a l ta v a m a v i rg in d a d e d a m u lh e r , q u e e ra guarnec ida pelo pai e assim transm itida ao m arido. A rep res são, nesse sentido, era m uito forte, tanto que a m ulta para quem deflorasse u m a m u lher era o dobro da m ulta aplicada àquele que m atasse u m guerreiro. Conform e LECLERCQ: “as recompensas celestes são muito maiores para as virgens. E 0 Evangelho fornece às mulheres o arquétipo de Maria. Isto não é novo, mas nunca tanto nos séculos XI e X II a Igreja exaltou a excelência desse estado. Tudo levava a isso: o medo do fim dos tempos, a irradiação espiritual dos monges, a refor ma do clero e a promoção do culto mariano” Assim, a v ida quotid iana das m ulheres se m ovim entava em u m enquad ram en to jurídico que lhes era desfavorável, isto p o rq u e a d icotom ia público e p rivado era m uito acen tuada nessa fase e, ao gênero feminino, era des tinado o espaço d o méstico. Dessa m aneira as m ulheres perm aneciam fechadas nas suas tradicionais funções, serv indo à expansão da espécie ou a Deus. Por seu tu rno , os hom ens p ossu íam o m u n d o para desvendar, todas as aventuras a v iver e toda a experiência a acum ular. Segundo MURARO, "Em geral as mulheres fiavam, teciam, cuidavam dos animais 0 Quotidiano da Mulher no Fina! da Idade Média. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle, p. 354. A Ordem Feudal. In; DUBY, Georges e PERROT, Michelle. Idem, p. 284. CIDADANIA OA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA e das hortas, enquanto os homens faziam o trabalho mais pe sado e as guerras. A s senhoras da alta estirpe, contudo, na ausência dos maridos, eram obrigadas a gerir suas vastas pro priedades. Assim, 0 papel econômico das mulheres expandia- se ou se contraía com a presença ou ausência dos homens, e a ausência era mais comum". N essa concepção, com as restrições de d ire ito à m ulher, p rev istas nos Códigos, a capacidade jurídica da m esm a era ex trem am ente lim itada, sendo a m ais f lagrante fixação de sua in ferioridade a instituição da tutela d o sexo m asculino sobre o feminino. C onsoante OPITZ: "Os direitos gentílicos excluíam a mulher livre de todos os acontecimentos públicos. Não podia aparecer em pessoa pe rante um tribunal tendo de se fazer substituir por um ho mem, o seu tutor (muntivalt). Entre as mulheres solteiras esta era por norma o pai, entre as casadas, o marido. Por morte destes, a tutela recaía no parente masculino mais próximo, pertencente à família do pai. Além do direito de representar o pupilo em tribunal, o tutor tinha o direito de dispor e de usu fru ir da fortuna desta, o direito de castigar - que em casos extremos podia incluir a morte - o direito de dar em casamen to como entendesse e mesmo o direito de vender". N esse período os discursos dirigidos às m ulheres eram p ro feridos pelos pais, clérigos, mestres... e o tem a era a castidade, a h u m ild ad e , o silêncio, o trabalho etc. D u ran te séculos as m ulheres ouv iram a repetição desses princípios, acen tuando a sua subm issão. Eram os hom ens que u savam a pa lavra pe- 2' Op. cit., p. 101. Quotidiano da Mulher no Final da Idade Média. In; DUBY, Georges e PERROT, Michelle. História das Mulheres: A Idade Média, v. 2, p. 356. MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÕDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL 8 9 Ias m ulheres , fortificando a ideologia da Igreja, re inan te na sociedade e que dete rm inava as relações familiares. De acor do com OPITZ: "A doutrinado casamento por consenso defendida pela Igreja não podia opor-se às relações de poder vigentes na sociedade - e no fim do também não o queria: a relação entre marido e mulher não podia doravante ser de amizade e pressupor a igual dade de direitos: 'Sêde submissos uns aos outros no temor a Cristo, as mulheres aos homens como ao Senhor...’ (Efésios, 5:21)... Um bom casamento era a comunhão entre o homem e a mulher mas, segundo os ensinamentos morais da Igreja, ele só era realmente bom quando o homem 'governava' e a m u lher obedecia incondicionalmente".-^ N essa época a integração Igreja-Estado era m uito acen tua da, o que explica a criação dos Tribunais Oficiais - instância judicial episcopal - que se ocupava de questões familiares. Esses tr ibunais cu idavam dos casos de litígios m ais freqüen tes, o que correspondia à violência com etida pelos m aridos, possu ido res de u m pod e r absoluto de castigo, am p a ra d o no Direito, sobre a m ulher. Nesses tribunais as m ulheres eram, m uitas vezes, advertidas sobre a obediência que dev iam aos seus m aridos. Desse m o d o a ideologia de te rm inava limites repressivos extrem os, onde se m odelava o co tid iano fem ini no, consoante ensina OPITZ: "Os maridos constituíam a primeira instância de controle social das suas mulheres, e isso não era apenas determinado pelas disposições legais redigidas a partir do século XII; os decretos canônicos que converteu o marido em chefe de sua mídher reforçam também a responsabilidade e as possibilida- 23 Idem, ibidem, p. 366. 9 0 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA des de controle por parte do 'senhor e mestre'. Este monopólio de poder encontra a sua expressão mais nítida no direito que o marido tinha de castigar a mulher, que as autoridades locais e eclesiásticas fixavam, e no privilégio masculino de ser infiel sem conseqüências".^'* Assim sendo, as norm as para a infidelidade conjugal eram aplicadas com m aior rigor às m ulheres do que aos hom ens. Elas pod iam ser p un idas até com a m orte, porém , enquan to traídas, nos m esm os tribunais, não possuíam meio a lgum de agir con tra seu m arido. Recorrendo outra vez a OPITZ, encontramos: um grande número de processos do tribunal episcopal de Paris diz respeito a casos de infidelidade conjugal, 6 foram sentenciados contra o homem e 13 contra a esposa infiel. Isto não demonstra necessariamente que as mulheres transgredis sem mais as leis conjugais do que os homens, mas parece reve lar que a norma de infidelidade conjugal se aplicava com mais rigor às mulheres do que aos homens, uma idéia que se tira também dos direitos consuetudinários e regionais”. N esse contexto, desafiando os pad rões estabelecidos, su r g iu n a França u m novo m odelo de relação en tre o h om em e a m ulher , o amor cortês que, segundo DUBY^^, teria im plicado Idem, ibidem, p. 368. 2® Idem, ibidem, p. 371. Ver a respeito, 0 Amor Cortês. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle. História das Mulheres: A Idade Média, p. 332, que sustenta “Com efeito, peça fundamental como o xadrez, a dama, no entanto, por ser mulher - eis onde pára o seu poder - não poderia dispor livremente do seu corpo. Este pertencia ao seu pai, pertence agora ao marido. Contém, em depósito, a honra deste esposo, assim como a de todos os machos adultos da casa. solidários. Este corpo é, portanto, atentamente vigiado. Nas residências nobres (...) ela não pode escapar por muito tempo dos que a espiam e conjecturam que esta mulher é enganadora, fraca como são todas as mulheres. Surpreendem com sua conduta o menor indício de afronta, e logo a dizem culpada. Ela é então passível dos piores castigos, os quais ameaçam igual mente o homem que se crê seu cúmplice". MULHER CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL 9 1 u m a sensível m elhora na condição de v ida da m u lher das clas ses sociais altas. O s en tre ten im entos nos castelos perm itia a elas criarem ao seu redo r as descontrações da poesia, d as con versações, para o nde os poetas eram atra ídos, ga ran tin d o o p róprio sustento. Assim, enquanto os costumes oficiais susten tavam a tirania do esposo feudal, a m ulher tentava um a com pensação m ediante atenções de am ante fora do casamento. Tinha-se assim , nessa form a de revestim ento d o am or, a possib ilidade de perpe tuação do casam ento en q u an to insti tuição, nos possib ilitando afirm ar que, mutatis mutandis, esse m odelo de relação propagou-se até os d ias atuais. A esse res peito DUBY discorreu: "Assim, as relações entre o masculino e o fem inino toma vam, na sociedade Ocidental, um rumo singular. Ainda hoje, apesar da revolução das relações entre os sexos, os traços que derivam das práticas do amor cortês, são aque las pelas quais a nossa civilização se distingue mais abrup tamente das outras".-^ A fase d o am or cortês, que suav izou u m p ouco a sorte das m ulheres , n ão a m odificou na sua essência, isso p o rq u e não é o tipo d a relação em si ou o encantam ento que possa envolvê- la que de te rm inam a em ancipação da m ulher. A sua v e rd a d e i r a l ib e r ta ç ã o d a s a m a r ra s c r ia d a s p e la s o c ie d a d e e ratificadas pelo Direito, em um a o rdem estabelecida, só ocor rerá efetivam ente qu an d o ela partic ipar ind iscrim inadam ente das decisões políticas, exercendo a cidadania. N esse sentido, já no século XX, LENIN ensinou: "Enquanto as mulheres não forem chamadas a participar li- Idem, ibidem, p. 350. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA vremente da vida pública em geral, cumprindo também as obrigações de um serviço cívico permanente e universal, não pode haver socialismo, nem sequer democracia integral e du rável. As funções de polícia como as de assistência a doentes e crianças abandonadas, o controle da alimentação etc., não po dem em geral, ter uma execução satisfatória enquanto as m u lheres não hajam obtido a igualdade perante os homens, não só nominal, mas efetiva".-^ Por ou tro lado, um a ou tra form a de em ancipação da m u lher é p o r interm édio do conhecimento. Entretanto, foi somente no final da Idade M édia que as m ulheres tiveram acesso aos pergam inhos, às U niversidades, partic ipando d o un iverso do estudo. Isso represen tou um a grande conquista d o gênero fe m inino, apesar de frágil e vulnerável, pois os es tudos de cu nho oficial con tinuavam a ser m onopólio m asculino. Assim, c ircundada de d ificu ldades destacou-se, nessa fase, n o cam po das letras, a escritora franco-italiana Cristina de Pisano. É indispensável ressaltar que, nesse período, teve início um dos m aiores genocídios da h istória da h u m an id a d e - o a p o geu da d iscrim inação da m ulher - ou seja, o período de caça às bruxas. O correu aí o com pulsório afastam ento das m u lh e res das U nivers idades e a proibição das m esm as de exerce rem qua lque r prática atinente à m edicina - com o a realização " 0 êxito de um revolução depende do grau de participação das mulheres. In: MARX, KarI et alii, op. cit. p. 101. propósito, ver BOHLER, Régnier Danielle. Vozes Literárias, Vozes Místicas. In: DUBY, Georges e PERROT, M iclie lle . História das Mulheres: A Idade M é dia, p. 529, que diz "Na história da literatura francesa, entre 1395 a 1405, Cristina de Pisano im põe-se como uma figura im pressionante... Mas a sua identidade de m ulher devia in fa live lmente criar problem as quando, o fic ia lm ente, e em seu próprio nome, ela fa la no quadro de um contexto socia l e cu ltura l. E la foi a prim eira a a firm ar a identidade de autora, a marcar solenemente a sua entrada no campodas letras". MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DÓS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL de partos, abortos e curas em geral - m ed ian te dom ín io da m ilenar quím ica na utilização das plantas. N ão é dem ais frisar que o poder da época era centralizador e os Papas possu íam u m a força absolu ta para criar e des tro na r im peradores. Assim, os e lem entos que não estivessem sob o controle da Igreja sofreriam extermínio. E isso foi o que ocor reu às m ulheres - consideradas subversivas - que desafiaram a corporação m asculina, isto é, o pod e r dos m édicos e, por extensão, de todos os hom ens, Desse m odo, m ilhares de m u lheres m orre ram em quatro séculos de perseguição.^' Nesse d iapasão destaca-se Joana D 'Arc, a m ais fam osa fei ticeira, executada po r lu tar em favor de um ideal de justiça, com petindo en tre os hom ens e, assim , desestab ilizando as re gras de condu ta p o r estes estatuídas. Afinal, o h om em , sendo considerado o senhor de todas as iniciativas e de toda a cria ção, im p u n h a às m ulheres - valendo-se do ex term ínio - o silêncio, a im obilidade e a submissão. ^ Nesse sentido, FRUGONI, Ctiíara. A Mulher nas Imagens, A Mulher Imagina da. In: DUBY. Georges e PERROT, Michelle, idem, p. 488, “a acusação de fabrica rem ungüentos mágicos e malefícios remete para o conhecimento, transmitido zelosamente de mãe para filha, das ervas e das propriedades, precisamente por que as mulheres, fechadas em casa e destinadas a criar os filhos e a cuidar da família, estavam ‘funcionalmente’ obrigadas a conhecer remédios e poções. Na perseguição das bruxas conflui também o ressentimento da medicina douta e mas culina contra uma medicina popular, feminina e rival". A respeito, ver FRENCH, Marily, apud MURARO, Rose Marie, op. cit., p, 111. "Esses dados nos fornecem um idéia da dimensão desse holocausto: “O epicentro das execuções das bruxas foi o Santo Império (...) 0 Sudeste da Alemanha e a Baviera foram responsáveis por mais de 3.500 execuções cada, Na Polônia, a segunda área mais afligida por esse flagelo, grande número de ‘fe iticeiras’ foi quei mado entre 1675 e 1720, mesmo depois que a caça às bruxas havia terminado no resto da Europa, Em algumas cidades alemãs, 600 bruxas eram executadas em apenas um ano; na Itália 1000; em Toulouse (França), 400 foram queimadas em um único dia. Na diocese de Trier, 1585, duas aldeias foram deixadas apenas com uma moradora mulher cada uma. Mesmo crianças eram acusadas e queimadas na fogueira. Em Londres, um escocês confessa que ele sozinho havia sido responsá vel pela morte de 229 mulheres (...) Estimativa do número de pessoas mortas na fogueira vai de pouco mais de cem mil a nove milhões", CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA A ssim sendo, estas foram as bases que susten taram os acon tecim entos dos períodos históricos seguintes. 1.3 - No Renascimento e Idade Moderna O Renascim ento trouxe consigo novas regras de conduta para as m ulheres: o culto à dom estic idade, a criação d o am or m ate rno e d o am or romântico. Entretanto, o m ov im en to de caça às bruxas, iniciado na Idade M édia, teve con tinu idade no Renascim ento. A repressão às feiticeiras au m e n to u consi deravelm ente e as m ulheres foram responsabilizadas por tudo o que de ru im acontecesse: m á colheita, ep idem ias, m ortes inexplicáveis. A caça às b ruxas prejud icou seriam ente as m u lheres em sua im agem social. E, m esm o após o térm ino desse revoltante m ovim ento de perseguição, o esta tu to social das m esm as não é revalorizado. Daí pode-se aduz ir que o crim e de feitiçaria foi desqualificado de direito m as não de fato. N esse sentido, SA LLM A N N diz: "Q u an d o era feiticeira a forca ou a fogueira m anifestavam , na sua crueldade, a sua responsab ilidade pe nal. Vítima da sua imaginação ou tom ada de loucura, ela trans form a-se n u m ser ju rid icam ente d im inu ído , com responsab i l idade pessoal lim itada". Parale lam ente à caça às bruxas, que a ting iu as m ulheres das classes baixas, surg iu , nessa fase, u m m ovim en to d irig ido ao am or p latônico, que exaltava as m u lheres - a lcançando aquelas d as classes m ais e levadas - p reparando -as p a ra a era industria l. Desse m odo, as prim eiras seriam as operárias d ó ceis d o século em questão e as segundas, cu ltivando extrem a fem inilidade, seriam as consum idoras. Feiticeira. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle. História das Mulheres: Do Renascimento à Idade Moderna, v. 3, p. 533. MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL 9 5 Para a construção dessa fem inilidade ideal novam en te os filósofos, sociólogos e m édicos en tram em cena, e laborando u m m olde, à m argem do qual elas seriam infelizes. E n tre tan to, nele enquad radas , seriam bem suced idas e m erecedoras de louvores com o m ãe de família e guard iã das v irtudes e v a lores eternos. Assim, a m ulher v irtuosa é a " ra in h a d o lar", frágil e d esp re p a ra d a para a vida pública, com o asseverou ROUSSEAU. "A mulher m antém se perpetuamente na infância; ela é in capaz de ver tudo o que é exterior ao mundo fechado da do mesticidade, que a natureza lhe legou, e daí resulta que ela não pode praticar 'ciências exatas'. A única ciência, para além da dos seus deveres (os quais ela conhece, aliás, intuitiva mente), que ela deve conhecer é a dos homens que a rodeiam e, essencialmente, a do seu marido, e que é baseado no senti mento".^^ N o Século das Luzes, portanto , o d iscurso dom inan te , que dissertava sobre a na tu reza do hom em , p rov inha de reflexões m asculinas que estabeleciam estreita relação desta com a n a tu reza em geral. Foi nessa linha de pensam en to denom inada "se lvagem " p o r STRAUSS,^^ que a m aior parte dos filósofos assenta seus raciocínios: a m u lher pertence à n a tu reza e o h o m em à cultura. Por ou tro lado, o es ta tu to dos esposos apresen tava-se d ife rente do da m ulher. O m arido era o chefe da família, senhor da sua m ulher , dos seus filhos e m esm o de seus criados se os tivesse. A propósito , em Émile de Rousseau, Sophie, a esposa Apud CASNABET, Michèlle Crampe, A mulher no Pensam ento Filosófico do Século XVIII. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle. Idem, p. 386. CASNABET, Michèle Crampe, op. cit. p, 381. 9 6 CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA perfeita, p rep a ra d a desde a infância para aquele, ouvia os con selhos d e seu preceptor: "Ao tornar-se vosso esposo, Emile tornou-se vosso chefe, a vós pertence obedecer-lhe, assim o quis a na tu reza" . N esse contexto o casam ento não era com patível com a idéia de dem ocracia ratificada pela Revolução Francesa. Este era u m con tra to que subm etia a m ulher ao seu senhor, conform e p ode ser consta tado em KANT na "A ntropologia": "No progresso da civilização, a superioridade de um elemento deve estabelecer-se de forma homogênea: o homem deve ser superior à mulher pela força física e pela coragem, a mulher pela faculdade natural de se submeter à inclinação que o ho mem tem por ela: pelo contrário, num estado que não é ainda 0 de civilização, a superioridade encontra-se apenas do lado do homem" D estarte, adm itir a igualdade entre os sexos e a necessida de de u m a educação com um implicaria que fosse reconheci do às m ulheres o direito igualitário de participação na vida política, seria reconhecer o seu direito à c idadania. N esse sen tido , BODIN, refletindo sobre os g raus de c idadãos de um a república, assim posicionou as m ulheres: "Quantoà ordem e o grau das mulheres, não quero introme ter-me nisso. Penso simplesmente que devem ser mantidas longe de todas as magistraturas, posições de comando, tribu nais, assembléias públicas e conselhos, deforma a que possam dedicar toda a sua atenção às tarefas femininas e domésticas" ROUSSEAU, Jean-Jacques apud CASNABET, Michèle Crampe, op. cit. p. 389. “ / Ip u d CASNABET, Michèle Crampe. op. cit. p. 390. ^M pudDAVIS, Natalie Zemon. A mulher na "política" In: DÜBY, Georges e PERROT, Michelle. História das Mulheres: Do Renascimento à Idade Moderna, p. 229. MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL 9 7 A pesar de todo esse contexto desfavorável, houve m u lhe res que se destacaram , por força de nascim ento ou exercendo de te rm inada força política, p o dendo registrar-se, entre outras, M aria T udor, M aria Stuart e C atarina de Médicis.^® A Revolução Francesa, que poderia ter transfo rm ado o des tino d as m ulheres, não o fez, m uito ao contrário , ela m ostrou- se respeitosa às instituições e aos valores burgueses. Assim, as m ulheres que lu ta ram ao lado dos hom ens, na tom ada da Bastilha, re iv ind icaram os seus d ireitos de vencedoras que tam bém o foram , m as tiveram os m esm os negados com a res posta: " A Revolução Francesa é um a revolução de hom ens. N ão po d em o s conceder o Direito da M ulher p o rq u e hoje foi o dia em que nasceram os d ireitos do h o m e m " . O l y m p e de Gouges,'*® autora de Declaração dos Direitos da Mulher - p o r suas idéias de igua ldade en tre os gêneros - foi decapitada.^ ' As m ulheres tiveram participação decisiva em todas as fa ses de g randes m udanças reg istradas pela história. E n tre tan to, à m ed ida que os novos sistem as e ram im plan tados, elas eram devo lv idas ã condição m arginal. Isso foi o que ocorreu após a R evolução Francesa, com os efeitos d o C ód igo de N apoleão , que fixou por séculos o destino das m ulheres , a tra sando a inda m ais a sua em ancipação, ao assim d ispor: Nesse sentido DAVIS, Natalie Zamon, idem, p. 230. " Conforme MURARO, Rose Marie, op. c/f, p. 128. Em. BEAUVOIR, op. cit. p. 142 encontramos: "Olympe de Gouges propôs em 1789 uma 'Declaração de Direitos da Mulher’, simétrica a dos Direitos do Homem, na qual pedia que todos os privilégios masculinos fossem abolidos. Em 1790, en contram-se as mesmas idéias em 'Motion de Ia pauvre Jacotte’ e outros libelos análogos". SLEDZIEW SKI, E lisabe lh G. Revolução Francesa, A Viragem , /n: DUBY. Georges e PERROT, Michelle. História das Mulheres: O Século XIX, v. 4, p. 54. Assevera Olympe de Gouges no ari. 10 da Declaração que “A mulher tem direito de subir ao cadafalso; deve igualmente ter o direito de subir à tribuna” . 9 8 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA "A mulher deve obediência a seu marido; ele pode fazer que seja condenada à reclusão em caso de adultério e conseguir o divórcio contra ela; se mata a culpada em flagrante, é des culpável aos olhos da lei; ao passo que o marido só é sujeito a uma multa se trouxer uma concubina ao domicílio conjugal e é, neste caso somente, que a mulher pode obter o divórcio contra ele".^^ 1 .4 - No século XIX O século XIX iniciou sob os reflexos da Revolução France sa que, como dito, não possibilitou às m ulheres o reconheci m en to de seus d ireitos como cidadãs, pelo contrário , os ali cerces das bastilhas perm aneceram indestru tíveis, m an tendo o princíp io de hegem onia m asculina. Entretanto, esse século é m arcado pelo nascim ento do fem inism o que de te rm ina im portan tes m u d an ças estru turais, em que as perspectivas de v ida das m ulheres se altera. N esse período o d iscurso dos filósofos, psicólogos, soció logos e ou tros pensadores é vo ltado para as e ternas questões relativas à partilha entre na tu reza e civilização, público e p r i vado , corpo e espírito, já evidenciados nos séculos anteriores. Dessa form a, HECEL d ispensou sua a tenção à dicotom ia p ú b lic o /p r iv a d o , re lacionando o prim eiro com o trabalho, à ciência e o Estado, e o segundo - onde s ituou a m u lher - vin- culou-o à família, à form ação de valores m orais, assim sen tenciando; “A mulher pode ser uma filha, esposa, mãe e irmã; só esta última relação com o homem é portadora de uma relação de BEAUVOIR, op. at. p. 143. MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÕDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL 9 9 igualdade. Na partilha entre a família e a cidade, só o homem árcida entre as duas. Ele pode assim dissociar em si mesmo a universalidade de sua cidadania da singularidade de seu dese jo, e beneficiar-se, desse modo, da realização das duas; aí se encontra uma liberdade, um reconhecimento em si mesmo a que a mulher não tem acesso".*^ N essa linha de inferioridade de tra tam en to d ispensado à m ulher , DARWIN^*^ disse que a seleção n a tu ra l, que acom pa nha a seleção sexual, privilegiou o hom em , to rnando-o su p e rior à m ulher. Frisou ele que a des igua ldade não p o d e rá ser rev e r tid a com o d esenvo lv im en to da h u m a n id a d e . D iante dessa sentença, a m u lher teria sem pre u m a traso em relação ao h om em , pe rpe tuando-se a desigualdade . N a segunda m etade do século XIX, NIETZSCHE e FREUD'*^ centra lizaram suas discussões na questão da d iferença entre os sexos. O prim eiro tra ta dos aspectos inteligência e beleza, estabelecendo aí parâm etros para d istinguir h o m em e m ulher. O pensam en to de Freud, por sua vez, teve g ran d e repercus são, em basando teorias com portam enta is às m u lheres no sé culo XX, com o verem os adiante. N esse contexto, o d ire ito-regulador d o convívio social não poderia ficar im une às influências dos pensado res da época. Assim, teoricam ente ele estava assen tado n o livre-arbítrio do ind iv íduo m as, na prática, foi o au to ritarism o que m arcou a legislação. Exemplificando: o princípio d a au tonom ia da von tade transm itia a idéia de adesão da m u lh e r ao seu es ta tu to /4puc/FRAISSE, Geneviére. Da Destinação do Destino. História Füosófica da Diferença entre os Sexos. In: DUBY, Georges e PERROT, Michelle. História das Mulheres: O Século XIX, p. 63. Apud FRAISSE, Genevieve, Idem, p. 88. 4 p u d FRAISSE, Genevieve. Idem, p. 88-90. 100 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA que, no entanto , a tra tava com o u m ser re la tivam ente capaz. N esse esta tu to a m u lher existia apenas com o filha, esposa e m ãe, enquan to o hom em era o único sujeito de direitos. Desse m o d o os juristas do século XIX leg itim aram a desi gua ld ad e de tra tam ento com relação ao sexo feminino. N o cam po do Direito Penal, até 1870, na Inglaterra, o m arido era o responsável pelos delitos da m ulher, onde MICHELET^^ afir m o u que a m ulher, po r ser dem asiadam en te frágil, deveria ser considerada pena lm en te irresponsável. Assim, o p o d e r d o m arido era justificado pelo estereótipo de inferioridade da mulher^®. N a prática, a superio ridade a tri b u ída ao h o m e m tinha com o objetivo garan tir- lhe a a d m in is tração da sociedade conjugal, d irig indo a esposa e os filhos. Isso ratificava a já consagrada distribuição do pape l dos gêne ros nessa es tru tu ra de sociedade do tipo patriarcal. Por seu tu rno , o Código Civil Francês, n o art. 213, prev ia que "o m arido deve proteção à sua m ulher, a m u lher deve obediência ao seu marido".'*^ Esse dispositivo legal investia o h om em n o p o d e r de vigiar o com portam ento da m ulher , em nom e do exercíciod o dever de proteção, que o Direito lhe con feria. N esse sentido, DUC expressou: "O m ag is trado dom és- propósito , DUC, Nicole Arnaud. As Contradições do Direito. In: DUBY, G eorges e PERROT, Michefle, História das Mulheres; O Século XIX, p. 117. “ ... São m áxim as romanas revisadas pelos ju ristas do século XVIII e m áximas costum eiras de inspiração germ ânica que preparam a dependência da m ulher e sua incapacidade". Apud DUC, Nicole Arnaud. Idem, p. 112. 8^ Nesse sentido, MARX, Karl. A decomposição da família burguesa. In: MARX, KarI et alli, op. d l p. 44. “A humilhação do sexo é um traço essencial e caracterís tico também da civilização e da barbárie, com a diferença que o vício é praticado na barbárie sem requintes, ao passo que é elevado pela civilização a um grau de existência complexa, equívoca, inconveniente e hipócrita... Ninguém humilha o homem pelo crime de tratar a mulher como escrava". Ver DUC, Nicole Arnaud, op. cit. p. 118. MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL 101 tico - deve p od e r - com m oderação, aliar a força à au to ridade para se fazer respeitar. E não se podem condenar sem pre os a tos de correção ou de v ivacidade marital... A a u to r id ad e que a n a tu reza e a lei concedeu ao m arido tem p o r fim d irig ir a m u lher no seu comportamento".^^ O C ódigo Penai francês era tam bém bastan te r igoroso para com as m ulheres, prescrevendo, no art. 337, p ena d e 3 m eses a 2 anos de prisão, sem adm itir a tenuantes, p a ra o adultério. Esse delito, considerado ultrajante à lei, à m oral pública e à religião, assum ia ou tra conotação quan d o p ra ticado po r um hom em , pois a pena, a que este estava sujeito, e ra u m a m ulta de 100 a 2.000 francos, conform e o que p rev ia o art. 339 do m esm o C ódigo citado por DUC.^^ A essas desigua ldades jurídicas acrescenta-se ou tra a inda m ais gritante, fu n d ad a no art. 324 do Código em pau ta . Esse d ispos itivo legal considera descu lpável o assassinato , pelo m arido, da esposa ou seu cúmplice, su rp reend idos em flagran te no dom icílio conjugal. O país dos Direitos H u m an o s m an teve até 1975, em seus Códigos, essas contradições, conform e ensina DUC.^^ O Direito tam bém foi contraditório na Inglaterra onde, até 1870, os m aridos gozavam de plena impunidade,^^ o que a g ra vava a im potência da m ulher casada. Assim, eles p o d iam in terceptar correspondência pessoal da esposa ou p ro ib ir a en trega pelos correios - tal ato lhes conferia o g rau de astu tos - p o d e n d o utilizá-la para ped ido de divórcio . E n tre tan to , às m ulheres não era perm itido o uso do m esm o direito. ^ Ibidem. Op. cit. p. 122. Ibidem. ^^DUC, Nicole Arnaud, op. cit. p. 119. 1 0 2 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA O s m aridos possu íam , ainda, poderes que a lei lhes confe ria, p a ra obrigar as m ulheres a residir no dom icílio p o r eles escolhido. Ao m arido era facultado o uso da força p a ra coa gir a esposa que se afastasse, a retornar ao dom icílio conjugal, conform e leciona DUC: "Numerosos julgamentos ordenam que ela seja reconduzida m a n u militari, acompanhada por um oficial de diligências, que pode recorrer à força armada, a f im de não tornar depen dente dos caprichos e mesmo do crime da esposa, um novo gênero de separação de pessoas, subversivo dos direitos gerais do corpo social".^"* A dem ais, em outros países eu ropeus e m esm o am ericanos a m u lher sem pre estava em condição subalterna ao hom em na sociedade e, por ação reflexa, nas legislações. A inda na Fran ça, a té 1965, a m u lh e r precisava de perm issão expressa do m arido p ara exercer u m a profissão. N ão p o ssu indo essa au to rização, a esposa não pod ia inscrever-se em un ivers idades , abrir conta bancária , req u e re r p a ssa p o r te e hab ili tação de m otorista en tre outros atos civis. Essa dependênc ia da m u lher to rn o u -se ex trem am en te incoeren te no aspec to legal, q u a n d o previa ser ind ispensável a perm issão d o m arido caso ela p re tendesse anu la r o casamento.^^ Esses preceitos jurídicos, carregados de antíteses, são in com patíveis com um a época na qual a m u lher partic ipava em postos m enos qualificados de todos os setores de p rodução . O Direito, desse m odo , vem ratificar o estereótipo, consagrado pelo im aginário social, d a m ulher com plem ento d o hom em . Op. cit. p. 120. MARIAS, Javier. Abstrações sem significado: Mulher como Gênero Absolu to carece de realidade. Folha de São Paulo, 04.02.96, fis. 5-9. MULHER; CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SÓCIAlS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL u m apêndice que deve ser m antido excluído d o setor público. Em nom e de u m a necessária especificidade de papé is sociais d o hom em e da m ulher criou-se um a des igua ldade jurídica, que bem m ostra a inclinação do Direito a p ro teger o seu cria dor. N ão p o r acaso escreveu BARRE: " tu d o o q ue os hom ens escreveram sobre as m ulheres deve ser suspeito , pois eles são, a u m tem po, juiz e parte". Ao final do século XIX vam os encon tra r LENIN de nunc ian d o as contradições do Direito com este ensinam ento: "N ão po d e haver, não há, nem haverá Ig u a ld a d e ' entre op rim idos e opressores, explorados e exploradores. N ão pode haver, não há, nem haverá 'l iberdade ' verdade ira , enquan to a m u lher não for libertada dos privilégios q ue a lei sanciona em favor d o hom em .. 1.5 - No século XX e XXI A história d as m ulheres sem pre foi d itad a pelos hom ens, com o já foi citado, pois estes têm a seu favor a força física, o prestíg io m oral e o controle econômico. Se as m ulheres conse g u iram algum espaço foi porque os hom ens es tavam d ispos tos a fazer-lhes essa concessão. Segundo BEAUVOIR: "A mulher sempre foi, senão a escrava do homem, ao menos a sna vassala; os dois sexos nunca partilham o mundo em condições; e ainda hoje, embora sun condição esteja evoluin do, a mulher arca com um pesado 'handicap'. Em quase ne nhum país 0 seu estatuto legal é idêntico ao do homem e, muitas vezes, este último a prejudica consideravelmente. Mesmo quando os direitos lhes são abstratamente reconhe- BEAUVOIR, Simone, op. cit. p. 16. 0 poder soviético e a situação da mulher. In: MARX, KarI etalii. op. cit. p. 120, 104 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA cidos, iim longo hábito impede que encontrem nos costumes sua expressão concreta". A classe de m ulheres trabalhadoras era a que gozava de certa au tonom ia econômica mas, em con trapartida , carregava o fardo da discrim inação no trabalho. Entretanto, nas classes d om inan tes elas eram , e a inda o são, parasitas, sujeitando-se às leis m asculinas, para não p e rder posição, r iqueza ou poder. N esse sistem a engenhoso, a v ida das m ulheres sem pre foi controlada. As alavancas de com ando do m u n d o nunca esti veram nas m ãos das m ulheres: não lhes perm itiram partici p a r nas áreas técnicas e econômicas, nem constru ir Estados ou descobrir m undos. A propósito , BEAUVOIR disse: "O êxi to de a lgum as priv ilegiadas não com pensam , nem descu lpam o rebaixam ento sistemático coletivo; e o fato de serem esses êxitos raros e lim itados, p rova precisam ente que as circuns tâncias lhes são desfavoráveis".^'^ A m u lher profissional que trabalha fora de casa carrega o ônus d a d up la jo rnada de trabalho. Conciliar a a tuação n o es paço público, com a vida familiar: cu idado dos filhos e da casa, não lhesobra m om ento a lgum de lazer, consagrando-se o cír culo vicioso, conform e bem adverte STUDART: " A d o m in a ção p ro d u z deb ilidade m ental e a debilidade m enta l facilita a dominação."^^ N essa m esm a linha, LENIN ensina: "Fazer a mulher participar do trabalho produtivo social li bertando-a do jugo bruto e humilhante, eterno e exclusivo, da cozinha e do quarto dos filhos, eis a tarefa principal. Esta Op.Cit. p. 21. cit. p. 171. " STUDART, Heloneida. Mulher, objeto de cama e mesa. 4. ed. RJ: Vozes, 1974, p. 20. MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÕDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E 0 8 DIREITOS DE PAPEL luta será longa. E exige uma trnnsformação radical da técni ca social e dos costumes".^'' N ão é dem ais frisar que foi Freud quem em basou as teori as científicas para que, neste século, fosse assegurada a d o m estic idade da m ulher. Segundo M URARO/^ esse psicana lista estabeleceu com portam entos sexuais e m ostrou às m u lheres que 0 seu espaço de dom ínio a inda era o p rivado . Des se m odo, elas não pod iam com petir com o h o m em no m erca d o de trabalho, pois que, sendo com panheira , significava ser- Ihe subm issa. Afinal, form ou-se no im aginário social o p re conceito contra a m ulher que exercesse trabalho fora do lar: era considerada masculina. N o entanto , contrariando os preceitos freudianos, surg iram - no final d o século XIX e início do século XX - os prim eiros m ovim entos de m ulheres, reiv indicando d ire ito ao voto, m e lhor am biente de trabalho e salários m ais dignos. Foi na luta po r seus d ireitos que em oito de m arço de 1908, n o s Estados Unidos, cento e c inqüenta operárias foram q ue im adas vivas no in terior de um a fábrica, trancadas p o r seus patrões. Esse dia ficou consagrado com o o Dia Internacional da M ulher. N os Estados U nidos, no início do século XX, cerca de oito m ilhões de m ulheres que trabalhavam fora de casa recebiam a terça parte do salário pago aos hom ens, re iterando a discri m inação da m u lher no cam po profissional, d e acordo com MURARO.^^ N o m esm o sentido, BEAUVOIR disse: a mulher que busca a sua independência no trabalho tem 0 êxito de uma revolução depende do grau de participação das mulheres. In: MARX, KarI et alii. op. c/f. p. 129. Op. cit. p. 137. MURARO. Idem, p. 138. Idem, ibidem, p. 136. 106 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA muito menos possibilidades do que seus concorrentes mascu linos. Em muitos ofícios, seu salário é inferior aos dos homens; suas tarefas são menos especializadas e, portanto, menos bem pagas que as de um operário qualificado e, em igualdade de condições, ela é menos bem remunerada" A G rande D epressão A m ericana (1930) e d u ran te a Segun da G uerra M und ia l as m ulheres foram sucessivam ente cha m adas para as linhas de produção para logo em seguida, q uan d o so lucionados os grandes espaços econôm icos e logísticos, serem devo lv idas ao espaço privado , sem conseguirem im por um pape l definitivo para as m ulheres no espaço público. A esses acon tec im entos históricos que g u in d am a m u lh e r do espaço público para o p rivado e vice-versa GA DO L denom i na de "m udança progressista"; "... 0 momento em que se presume que as mulheres são parte da humanidade no sentido mais pleno - o período ou conjunto de eventos com os quais lidamos assume um caráter ou signi ficado inteiramente diverso do normalmente aceito. De fato, o que surge é um padrão perfeitamente regular de relativa per da de s ta tus para as mulheres, precisamente naqueles perío dos da chamada mudança progressista..."^^ Por ou tro lado, nas sociedades dos países subdesenvo lv i dos, o pape l de cada gênero difere conform e o interesse do sistem a dom inan te , sofrendo as m ulheres m uita opressão em u m a família que é a u n idade de p rodução e reprodução . N es se sentido, BENHABIB ensina; "a família nuclear moderna, não é um abrigo do mundo Op. c/f. p. 174. " Apud BENHABIB, Seyla e CORNELL, Drucilla. Feminismo como Crítica da Modernidade. RJ: Rosa dos Tempos, 1987, p, 171. MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL 107 impiedoso, mas um lugar dc cálculo instrumental, egocêntrico e estratégico assim como lugar de trocas geralmente explora doras de serviço, trabalho, dinheiro e sexo, para não mencio nar lugar, freqüentemente, de coerção e violência" N esse tipo de sociedade a classe m éd ia é fo rm ada p o r p e quenos p roprie tá rios e funcionários m enos g rad u a d o s d o sis tem a p rod u tiv o e d o governo, em que as m ulheres revestem - se, exclusivam ente, do pape l de m ães e de donas de casa, pois, para v iverem , não precisam executar trabalho fora de casa. Em regra , são estas m ulheres as defensoras de tradicionais valores m orais, políticos e religiosos, cum prindo o pape l a elas h isto ricam ente reservado, no acom odam ento d a e s tru tu ra so cial. N o d izer de STUDART: "Se participasse efetivamente da produção, a mulher abando naria a sua atitude conservadora. Mas prosseguindo em sua situação atual de reserva de mão-de-obra, nao participa das lutas do trabalho e, em conseqüência, dos avanços sociais". E m bora no final do século XX encontrem os as m ulheres in teg radas de form a m ais efetiva no m ercado de trabalho, a d iscrim inação econômica, rep resen tada p o r salários d iferen ciados para tarefas idênticas, perdura . Isso ocorre especialm en te nas profissões de salário m ais baixo. "Para um a m ulher, esse salário basta", é um a cara m áxim a patronal. N o alvorecer d o atual século, os antigos estereó tipos co m eçam - len tam ente - a desfazer-se: A m u lh e r está, em blo co, ing ressando no setor público e, de form a incipiente, pa rti lhando o setor p rivado com o hom em : envo lvendo-o nos t ra balhos da casa e na criação dos filhos, esboçando-se, assim. Op. cit. p. 53. Op. cit. p. 20. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA u m a m aior in tegração hom em -m ulher. C ada u m dos lados rep resen ta hoje, em todo o m undo , ap rox im adam en te 50% da força de trabalho. O Direito, po rém , a inda não incorporou as novas tendênci as, m antendo-se um rígido pro tetor das classes dom inantes, nelas a inda incluído o hom em , fazendo conhecer aos excluí dos, en tre eles a m ulher, apenas o lado coercitivo da lei. Deve o corpo de leis agilizar seu passo, acom panhando a acelera ção histórica, a m obilidade social, sob p en a de m an te r ju r id i cam ente acen tuadas antigas desigua ldades entre classes soci ais e en tre os gêneros, corroborando o que observa WARAT: "é na lei e no saber d o Direito que encontram os o m ito de um a sociedade sem fraturas".^^ 2 - SÍNTESE HtSTÓRICA DA MULHER NO BRASÍL: DO PERÍODO COLONIAL AOS DIAS ATUAIS M odelagem /M ulher Assim foi m odelado o objeto: para sobrevivência. Tem olhos de ver e apenas entrevê. N ão vai longe seu pensam en to cortado ao m eio pela ferrugem das tesouras. É u m m ito sem asas, condicionado às fainas d a lareira. Seria u m escândalo de barro afeito a m ovim entos incipientes, sob tutela. Ergue a cabeça por instantes e logo esm orece po r força " WARAT, Luís Alberto apud STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do Júri: Símbolos e Rituais, 2. ed. POA; Livraria do Advogado, 1994, p. 42. MULHER; CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL 109 de séculos pendentes. Ao rem over entulhos pa ra que de justiça tenha v ida integral pois o m odelo deve ser, indefectível, segundo as leis da p rópriam odelagem . H enrique Lisboa Pousada do Ser Q u an d o o Brasil foi descoberto, os hom ens que aqu i che garam vieram sozinhos. T ranscorreram décadas p a ra que as m ulheres os seguissem , o po rtun izando - nesse espaço de tem po - que ocorresse um a m istu ra de raças: brancos, m estiços de po rtugueses com índios e, m ais tarde , com negras. Essa m estiçagem foi fundam en ta l pa ra a de te rm inação da situação social d a m ulher. N esse contexto a un ião legalizada era quase inexistente. S egundo a h istoriografia, é a p a rtir d o século XVII que a p a rece docum entação a respeito d a situação juríd ica da m ulher no Brasil, on d e ela era tra tada pela legislação c o m o imbecilüus sexus”, eq u ipa rada às crianças, aos doen tes e aos incapazes. N o en tan to , apesar da considerada incapacidade , ela podia h e rd a r e m esm o adm in istrar p rop riedades q u a n d o houvesse o in te resse ou p o r n ecess id ad e d a fam ília . N e sse sen tid o FREIRE afirma: "(...) m atriarcas houve no Brasil patriarcal, apenas com o equivalente de patriarcas, isto é, considerando- se m atriarcas aquelas m ulheres que, p o r ausência ou fraqueza d o pai ou do m arido , e d an d o expansão a pred isposições, ou características masculinóides de persona lidade foram , às vezes, os h om ens da casa".^ ™ A p u d COUTINHO. Maria Lúcia Rocha. Tecendo por trás dos Panos: A mulher brasileira nas relações familiares. RJ: Rocco, 1994, p. 68. 110 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA N o século XVIII a família, de organização patriarcal, cons tituía-se no centro econômico e político d a sociedade e, com o tal, u m a força que se an tepunha ao Estado. A Igreja, p o r seu tu rno , exercia u m a posição in term ediária en tre a família e o Estado, u sando com o canal pa ra estabelecer esta relação as m ulheres que m ilitavam na religião. Essa era tam bém um a form a d e com pensar as m ulheres po r sua situação d e inferio r idade social. A m u lh e r b ranca - no período colonial d o Brasil e m esm o n a República - casava p o r conveniência econôm ica, quase sem pre com parentes, para reforçar os laços fam iliares, m as especialm ente pa ra p reservar o patrim ônio d a família. Assim sendo, aquelas m ulheres que não desejassem p artic ipar desse pacto fam iliar e ram enviadas pa ra os conventos, pa ra evitar casam entos inter-raciais. Por ou tro lado, a v irg indade da m u lher era considerada um a v irtude , u m fator de alta im portância e, com o tal, era g u a rd a d a pelo pa triarca e po r ou tros m em bros da família. A dem ais, a família hon rad a era aquela q ue m an tinha a cond i ção d e subserviência d a m ulher e sua total dedicação aos afa zeres dom ésticos, com o bem define EXPILLY: "A desconfiança, a inveja e a opressão resultantes, prejudica vam todos os direitos e toda a graça da mulher que não era, para dizer a verdade senão a escrava do seu lar. Os bordados, os doces, a conversa com as negras, o cafuné, o manejo do chicote, e aos domingos uma visita à igreja, eram todas as distrações que o despotismo paternal e a política conjugal per mitiam às inquietas esposas''/^ A m ulher neg ra e a m ulata, por sua vez, sofriam g randes ^M pudC O U TIN H O , Maria Lúcia Rocha, op. d l. p. 66. MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E ÓS DIREITOS DE PAPEL 1 1 1 privações, desde a instrução básica, que n ão lhes era possib i litado receber. A l iberdade de deslocam ento dessas m ulheres, em preg ad as dom ésticas em sua m aioria, era contro lada, as sim com o o seu m odo d e vestir. A propósito , LISPECTOR des c reve a m ono ton ia e a falta de perspectiva d a v id a dessas m ulheres: “Sua preocupação reduzia-se a tomar cuidado na hora peri gosa da tarde, quando a casa estava vazia, sem precisar dela, 0 sol alto, cada membro da família distribuído em suas fu n ções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto - ela o abafava com a mesma habilidade que as lides da casa lhe haviam transmiti do... De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscu ramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E ali mentava anonimamente a vida. Estava bom assim"7^ Nesse d iapasão a função da m ãe - aqui se inclui a neg ra e a m ula ta - era glorificada. A figura da m ãe - a exem plo do que foi exposto na p rim eira parte deste trabalho - era associada à Igreja, à V irgem M aria, à im agem da devoção e d o sacrifício. Ela sim bolizava a h onra familiar, a so lidariedade e a m oral da família. Destarte, ela era a figura-m odelo d a família, perpe tu - ando-se essa mistificação até os d ias atuais, onde m uitos m a ridos cham am a esposa de ''m ãezinha", n u m a associação com sua p ró p ria mãe. N esse sen tido W IN N ICO TT assevera: "A saúde do adulto forma-se durante toda a infância, mas as funções dessa saúde, são as mães que estabelecem durante as Laços de Família. 4. ed. RJ: Sabiá, 1970. p. 19. 112 CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA primeiras semanas e os primeiros meses da existência de seu filho... Alegrem-se de que tal importância lhes seja concedida. Alegrem-se de deixar a outros o cuidado de conduzir o mundo enquanto põe no mundo um novo membro da sociedade" Enquanto a m ulher-m ãe era exaltada devia, como reconheci m ento e gratidão a esse tributo que a sociedade lhe conferia, per m anecer em seu espaço privado. Ela era mão-de-obra gratuita - no período colonial e, não tão raramente, ainda hoje - perm itin do a auto-suficiência das residências. A m ulher era o agente pas sivo da m ultiplicação da riqueza do m arido, em basando o fun cionam ento do sistema econômico que é exterior às famílias e m ais am plo que estas. FRASER, a esse respeito, ensina: "O papel do cidadão no capitalismo clássico, de dominação masculina é, portanto, um papel masculino. Ele vincula o Estado e a esfera pública, como afirma Habermas. Mas tam bém vincula estes com a economia oficial e a família. E em todas as circunstâncias, os vínculos são forjados na esfera da identidade do gênero masculino..."^'* A autoridade do patriarca, com um no Brasil Colônia, prosse guiu no período do Império, da República e, em m uitos casos, até os dias atuais, conforme diz COUTINHO: "As circunstâncias do regime econômico-social no Brasil, portanto, m uito contribu íram para forçar a opressão da m ulher pelo homem: limitando sua atividade à esfera doméstica ou ao plano da prática religiosa, o hom em melhor pôde exercer o seu dom ínio sobre ela. O abso- lutismo do paterfamilias, em nossa terra só começou a se dissol ver à m edida que outras instituições e figuras cresceram. Apud COUTINHO, Maria Lúcia Rocha, op. cit. p. 93. Apud BENHABIB, Seyía e CORNELL, Drucilia, op. cit. p. 53. Op. cit. p. 75. MULHER; CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL 1 1 3 Foi som ente no século XIX, com o processo d e industria li zação e com as imigrações, que a u n idade fam iliar sofreu al gum as alterações, tais como: declínio da au to r id ad e paterna , m aio r participação das m ulheres nas a tiv idades lucrativas, a lgum as form as de controle da m ate rn idad e etc. N esse período em ergiu um a nova classe social fo rm ada por profissionais liberais; m édicos, a dvogados e outros. E ntretan to, apesar dos m uitos avanços socioculturais, não se m odifi caram a lgum ascaracterísticas feudais que d izem respeito à m u lh e r com o a intolerância ao adu lté rio com etido po r ela, enquan to que pa ra o hom em , o m esm o com portam en to era aceito; e o tabu con tra a p e rd a da v irg in d a d e d a m ulher. M URARO, nesse sen tido , assim define: "...o adu lté rio era cham ado d e crime, m as apenas para as m ulheres. A v irg inda de era aquilo que d istinguia as m ulheres que iriam ter um a v ida m á de um a v ida boa"/^ N o século XIX foram in troduzidas no Brasil teorias cientí ficas p a ra justificar a na tu reza d o h om em com predisposição à in te lectualidade, enquan to a m ulher era v incu lada à n a tu re za afetiva. Com base nessas teorias e ram justificadas as a titu des racionais, au toritárias e altivas do hom em , enquan to às m ulheres eram atribuídas as variações d e fraqueza, sensibili dade, doçura e a conseqüente submissão. A ciência, desse m odo, estava reforçando os estereótipos m asculinos e femininos, jus tificando o papel que cada gênero exercia na sociedade. A Escola era um a das instituições sociais que ratificava o tra tam en to diferenciado oferecido aos m eninos e às m eninas. Enquan to àqueles era ensinado Línguas, Aritm ética, G eogra fia etc., a estas o currículo oferecido com preend ia Letras, M ú sica, Dança e P rendas Domésticas. Saliente-se, tam bém , que o Op. cit. p. 35. 1 1 4 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA acesso à educação às m eninas som ente foi possível m uito tem p o depo is dos meninos. Dessa form a, pode-se d ed u z ir que o ensino m in is trado às m en inas v isava prepará-las pa ra a m issão de professora p r i m ária, ou seja, um segm ento das funções m aternais que lhes e ram próprias. N esse círculo herm ético e l im itado não era possível à m ulher a construção de m aiores sonhos, com o pode ser visto em M A C H A D O DE ASSIS: "!...] aprendera a ler, escrever e cantar, francês, doutrina e obras de agulha, não aprendeu, por exemplo, a fazer renda; por isso mesmo quis que prima Justina lhe ensinasse. Se não estudou Latim com o Padre Cabral, fo i porque o padre, de pois de lhe propor gracejos, acabou dizendo que Latim não era língua de meninas”/^ O conhecim ento de um a língua estrangeira, p referencial m ente 0 francês, era im prescindível às m ulheres das classes altas da época. Com o dom ínio dessa língua e a h ab ilidade no trato com as p ren d as dom ésticas, assim com o no m anejo do piano, to rnavam -se sim páticas e a traentes ao convívio social, fator de orgulho e valorização do m arido. Esse m odelo de m u lher ideal foi igualm ente descrito por M A CH A D O DE ASSIS: "Era doce, afável e inteligente. Não eram estes, contudo, nem ainda a beleza, os seus dotes por excelência eficazes. O que a tornava superior e lhe dava possibilidade de triunfar era a arte de acomodar-se às circunstâncias do momento e a toda casta de espíritos, arte preciosa que faz hábeis os homens e estimáveis as mulheres. Helena praticava de livros a alfinetes, de bailes ou de arranjos de casa... Era pianista, sabia desenho, falava corretamente a língua francesa, um pouco a inglesa e o Dom Casmurro. RJ: Editora Moderna Ltda., 1983, p. 51. MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL 1 1 5 italiano. Entendia de coshfrn e bordados e toda sorte de traba lhos femininos" A ssim sendo, o casam ento, para as m ulheres do século XIX, rep resen tava um a "carreira", um a d as poucas o p o rtu n id a d es de ascensão social, pois valendo-se do casam ento elas p o d e ri am ter su a p ró p r ia a tiv id ad e , em b o ra n ã o re m u n e ra d a e exercida em regim e d e dependência , no in terior d e u m a casa. A d u p la m o ra l com ponente de toda a história, estava aqui p resen te , p e rm itindo ao hom em toda espécie d e aven tu ra am orosa, e nquan to que da m ulher se esperava pu reza , recato e dedicação ao m arido , à casa e aos filhos. Assim , sem pre que a m u lh e r saía ao espaço público, devia estar acom p an h ad a de u m ho m em da família. A literatura da época é bem clara a esse respeito , com o podem os ver em JOSÉ DE ALENCAR: "C om preend i e corei de m inha s im plic idade p rovinciana , que confundia a m áscara hipócrita do vício com o m odesto recato de inocência. Só então notei que aquela m oça estava só e que a ausência de u m pai, de um m arido ou de u m irm ão, devia ter-m e feito suspeitar a verdade". Esse controle d ire to exercido sobre a m u lher a im pedia de um a relação extraconjugal e tam bém po rque a legislação cons p irava pa ra inibir qua lquer ação d a m ulher. O C ódigo Penal de 1890 p rev ia pun ição po r adultério , com prisão d e u m a três anos, m as som ente pa ra a m ulher. O hom em , pa ra ser consi d e r a d o a d ú l t e r o , p r e c is a v a c o m p r o v a d a m e n te m a n te r concubina. As teorias a respeito da na tu reza do hom em e da m ulher - já referidas an terio rm ente - eram assim iladas e se to rnavam com ponentes do im aginário social, ag indo , assim, Helena, 11, ed. SP: Ática, 1983, p. 24. Lucíola, 11. ed. SP: Ática, 1987, p, 13. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA sobre a aceitação d o tra tam en to d iferenciado aos gêneros. MENDES, a esse respeito, afirmou: “O instin to sexual na m u lher, pode-se d izer que não existe quase, de ordinário ; a m u lher se p resta , sacrifica-se às grosserias do hom em , m as é fun d am en ta lm en te pu ra ; a p u reza quase não custa esforço à m u lher, e é p o r isso que ela é tão severa quan to a este ponto , em relação ao seu sexo".®*^ Desse m odo, as teorias e d iscursos de en tão v in h am refor çar 0 que estava prescrito a respeito d a condu ta do hom em e da m ulher, e q ue dava àquele a certeza d e que o filho po r esta gerado era seu pela exclusão d a m ulher d a p rox im idade com ou tros hom ens. Essas colocações nos reportam à an tigü idade rom ana, onde se afirm ava que a m ate rn idade era u m a certe za, enquan to a p a te rn idade era um a questão d e fé. C om a industria lização teve início a participação da m u lher no m ercado de trabalho. N o entanto , o trabalho da m u lher n ão era visto com o realização profissional ou em ancipa ção econôm ica d a m esm a, m as apenas com o u m com plem en to financeiro à renda familiar. Por outro lado, a participação d a m u lh e r n o m ercado de trabalho não d im in u iu a carga de obrigações q ue ela suportava em casa, n o c u idado da família. C onsiderada atividade secundária, a mão-de-obra feminina for m ava um banco de reserva de serviço, que era acionado sem p re que houvesse necessidade, conforme assevera COUTINHO: "Desta forma, a política do Estado com relação à m u lher, foi sempre bastante contraditória; de um lado re forçava a permanência no lar a fim de garantir a tarefa reprodutiva e, de outro, guardava-a como exército in dustrial de reserva, a f im de que pudesse lançar mão de Apud COUTINHO, Maria Lúcia Rocha, op. cit. p. 88. MULHEfl: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL 1 1 7 seu trabalho sempre que necessário aos interesses da Nação".^^ N o período pós-guerra - décadas iniciais do século XX - houve u m a p ro funda transform ação nas sociedades eu ro p é i as e norte-am ericanas - conform e já exposto na p rim eira p a r te deste trabalho - que se refletiu na sociedade brasileira. As m ulheres, igualm ente , aqui, foram incentivadas a cederem o seu espaço n o m ercado de trabalhoaos hom ens, com fu n d a m en to na ideologia que enfatizava o papel de m ulher-m ãe e de sua função indispensável e insubstituível na educação dos filhos. A m a te rn id a d e era o eixo básico em to rno d o qua l a m u lher se m ov im en tava , c um p rin d o , assim , o seu d es tin o biológico. Dessa forma, form ou-se a imagem estereotipada da boa m ãe no lar e d a infelicidade que v itim ava as crianças que eram carentes da a tenção m aterna. Era toda u m a gam a de p rofissi o n a is l ig a d o s à psico log ia , m ed ic ina , soc io log ia etc. que avalizaram essa corrente ideológica, que bem delimitava a esfera pública e a privada para hom ens e m ulheres respectivamente. Edificou-se então, em torno da m ulher, toda u m a crença, onde ela seria a cu lpada pelos p roblem as q ue ocorressem aos filhos e, em extensão, à família em geral. Assim , era necessá rio esquecer-se a si m esm a para m elhor am ar e cu ida r dos que a c ircundavam . Esse foi o m odelo im p ortado de m u lher ideal que p e rd u ro u , m ais ou m enos, a té o ano d e 1960. O iso lam en to da m u lher no espaço p rivado a im possib ilitava de partici p a r de qua lq u e r m ovim ento coletivo em prol d a m elhoria de suas condições. Ao lado disso, era igualm ente considerado im próprio a um a m u lher ser superio r ao hom em in te lec tualm ente o u em força ®’ O p . c i t . p . 9 5 . CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JU S T IÇ A física. A m ulher, desse m odo, som ente poderia ad q u ir ir a lgu m a posição social a través das a tiv idades do m arido o u dos filhos, de onde se form ou o consagrado ditado: 'T o r trás de u m g ran d e hom em existe sem pre um a grande m ulher" . So m en te nos tem pos a tuais foi aceita a adap tação desse p opu lar d ita d o para : "ao lado de um g rande hom em ...". N o entan to , a responsabilidade da m u lher com relação à casa, ao bom relacionam ento com o m arido e à educação dos filhos foi p o r ela m uito bem in te rnalizada a po n to de, por m uitas décadas, a sua exclusiva dedicação ser vo ltada ao es paço p r iv a d o que lhe foi conferido. O d iscu rso d o enc lausu - ram en to da m u lh e r n o lar foi defin ido po r DICKINSON: "Eles me engrandecem em prosa tal quando uma menininha. Eles me mantêm no isolamento porque eles me gostam tranqüila. C om relação à m oral sexual, o d u p lo p ad rão p e rd u ra até o os d ias a tuais, com o reforço de teorias que a firm aram ser o ho m em d o tad o de im pulso biológico, justificando o com por tam en to deste ao interessar-se po r ou tras m ulheres, m esm o se casado fosse. Desse m odo, o hom em conta com o aval da sociedade que incentiva a sua atuação naqu ilo que, po r sua p ró p ria na tu reza , d izem ser inerente. Por ou tro lado, a esposa devia ser com placente e p reservar o casam ento , ignorando as ligações paralelas d o m arido . Para isso hav ia conselheiros, que iam desde sacerdotes a m édicos, que falavam à m u lh er de sua responsabilidade na p rese rva ção d o casam ento - e terno e indissolúvel. Esse tipo d e raciocí- /4pu tíC 0U T lN H 0 , Maria Lúcia Rocha, op. c/f. p, 41. No original da poetisa norte- americana: “They shut me up in prose/as when a little girl/ They put me in the closet/Because they liked me still” . MULHER. CÕDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL nio se faz presente, em m uitas regiões d o Brasil, a té os d ias de hoje, on d e hom ens e m ulheres, filhos e filhas etc, possuem posições bem defin idas no contexto fam iliar e social. O papel de cada sexo, in ternalizado desde a infância, era passado de geração a geração, conform e ensina COSTA: é informado por um código moral, que os sujeitos tam bém internalizam, que lhes permite distinguir o certo e o er rado, 0 que é permitido para os ocupantes de cada uma dessas posições e, a partir destas internalizações, os sujeitos se inse rem nesta sociedade e se representam, no futuro, ocupando posições análogas, com os mesmos contornos" N a década de 60, em âmbito m undia l, ocorreram m ovim en tos em oposição ao poder socialmente institucionalizado, como o que balançou a e s tru tu ra da França em 1968 e a m obilização em prol dos Direitos H um anos nos Estados U nidos. C om o reflexo desses m ovim entos gerais su rg iram m ovim en tos es pecíficos de fem inistas, que d iscu tiam a d istinção en tre sexu a lidade e procriação, requalificando o pape l sexual d a m ulher e a questão dos limites en tre espaço público e p rivado . O m ovim ento fem inista se im pôs, n egan do a o rdem pa tr i arcal que atribu ía à m ulher um a função secundária em rela ção ao hom em . Esses m ovim entos frutificaram , pois abriram espaço pa ra que hoje as m ulheres ocupem posições de des ta que no m ercado de trabalho e na sociedade com o u m todo. A tua lm en te as m ulheres se questionam sobre o que desejam na v ida e não m ais aceitam um destino ou to rgado , pelo sim ples fato de serem m ulheres. E ntretanto , apesar de todas as conquistas ob tidas, m uitas m ulheres d e hoje a inda continuam v incu ladas ao an tigo m o " /Apud COUTINHO, Maria Lúcia Rocha, op. cit. p. 109. 1 2 0 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA delo de m ulher, tentando equilibrar a profissão que exercem com as atividades da casa. Nesse sentido, COUTINHO adverte: “Enaltecida por uma florescente campanha que prometia o paraíso para quem quisesse trabalhar, ter filhos, cuidar da casa, ainda ser uma amante sempre disposta e disponível, a mulher passou a se desdobrar e, exausta com o peso de todas as responsabilidades, não conseguindo a excelência almeja da, começou a interiorizar uma sensação de fracasso. O pro blema passou a ser individualizado, como se a dificuldade em ser múltipla o tempo todo fosse pessoal". A ssim acontece com as m u lh e res d as zon as ru ra is que so frem m u ita o p ressão , exercendo d u p la o u tr ip la jo rn ad a de trab a lh o , a lém d e d a re m à luz m u ito s filhos e, n o p lano sexual, so frem as m ais r íg idas sanções d a soc iedade . Por desconfiança d e a d u lté r io , o m arid o p o d e até m atá -la , em n o m e d a " leg ítim a defesa d a h o n ra" , tese esta q u e a in d a é d e fe n d id a p o r m u ito s a d v o g a d o s nos tr ib u n a is d o jú ri de to d o país. N a s c id ad es , as m u lh e res que co n s ti tu em a classe u rb a n a tra b a lh a d o ra , de sa lários m ais baixos, tam b é m so frem d isc rim inações em relação ao h o m em , inc lusive n o salário , n o exercício d e função análoga. As p e sq u isa s d e m o n s tra m a pers is tênc ia d e a lg u m preconceito , q u e d ificu lta o p r o g resso n a ca rre ira e m an té m os h o le rite s fem in inos m ais m ag ro s q ue os m asculinos. As m u lh e res fave ladas , d e m o d o gera l, a p re se n ta m u m c o m p o rtam en to d ife ren te d a s m u lh e res das c lasses sociais m ais p riv ileg iadas . São elas q u e su s ten ta m a fam ília , q u e é m atr icên tr ica n a m aio ria d a s vezes. S e g u n d o M URARO: "... Isto m ostra que a fam ília nu c lea r «■' O p . c i t . p . 1 1 4 , MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL SÓ é possível em cam adas acima de um a certa renda e, po r tanto, é u m privilégio de classe".®^ N esse início de milênio, a m aior transform ação está se p ro cessando nas classes m édias m odernas, nas quais a m ulher avança n a conquistad e espaço nos tribunais superiores, nos m inistérios, no topo das g randes em presas transnacionais, em organizações de pesquisa de tecnologia de ponta . Pilotam ja tos, com andam tropas, ocupam cargos eletivos, não havendo um único espaço considerado, no passado , com o m asculino, que não seja o cupado por m ulheres, fortalecendo os apelos de igua ld ad e que estão expressos na C onstitu ição Federal b rasi leira de 1988, um a das m ais avançadas do m u n d o em relação à equ iparação dos d ireitos do hom em e d a m ulher. F inalm ente, é possível afirm ar que - considerando-se es ses vários estam entos sociais - os m ovim entos fem inistas não d e ram resposta a todas as d ú v idas e anseios fem ininos. N o en tan to , eles foram vitoriosos, po rque t iraram as m ulheres da som bra da H istória e m exeram com o m odelo patriarcal que sem pre v igorou no Brasil, lançando a sem ente da transfo rm a ção e m odificando a posição que a m ulher ocupa na socieda de: no cam po profissional e na política.®^ É necessário ressal tar, no en tan to , que um a nova rea lidade social - igualitária e progressista - a inda está longe de m ilhões de m ulheres. Não há, n em haverá desenvolv im ento social e econôm ico com jus- Op. at. p. 157. " BOCA-DE-URNA, Caderno da Eleição. Zero Hora, Porto Alegre, fl. 08,15.09.2002; "Apesar de corresponder a mais de 50% do eleitorado nacional, as mulheres estão muito mal representadas entre aqueles que buscam se eleger no dia 6 de outubro. Elas eqüivalem a apenas 13,96% do total de candidatos. São 2.637 representan tes do sexo feminino disputando uma vaga no Senado, na Câmara, nas Assem bléias Legislativas e nos governos estaduais. Ainda assim a taxa é recorde. Nas últimas eleições, em 1998, as mulheres eram 12,27% dos candidatos. Em 1994, ainda menos: 6%". 122 CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA tiça, se não h ouver igualdade de opo rtun idades p a ra hom ens e m ulheres, d ire itos e deveres pa ra todos, sem discrim inação. 3 - A CONDIÇÃO DA MULHER NOS DIPLOMAS INTERNACIONAIS: CONVENÇÕES,TRATADOS E CONGRESSOS "... seria hipocrisia ou ingenuidade acreditar que a lei é feita para todo mundo em nome de todo mundo; que é mais prudente reconhecer que ela éfeita para alguns e se aplica a outro; que em princípio ela obriga a todos os cidadãos, mas se dirige principalmente às classes mais numerosas e menos esclarecidas; que, ao contrá rio do que acontece com as leis políticas ou civis, sua aplicação não se refere a todos da mesma form a...” M ichel Foucault A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão d e 1789 as sim previa: "Art. 1"' Les hom m es naissent et d em eu ren t livres et égaux en droits. Les distinctions sociales, ne p e u v en t être p o n d e s que su r I' u tilité commune".®^ Essa D eclaração foi pub licada com o resu ltado da Revolução Francesa, m as n ada d isp u n h a em relação às mulheres. Em 1791, O lym pe de G ouges publicou a Declaração dos Di reitos da Mulher e da Cidadã, um a réplica à Declaração dos Di reitos d o hom em e que prescrevia; "A m u lher nasce livre e seus d ire itos são os m esm os dos homens..."®® N o ano d e 1910, aconteceu na D inam arca o C ongresso In- CUNHA, Roberto Salles. Os Novos Direitos da Mulher. SP: Atlas, S.A., 1990, p. 31. Ibidem. MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÕDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL ternacional da M ulher, que institu iu o d ia 8 d e m arço com o d ia co m em o ra tiv o , a n u a lm e n te , d a lu ta d a em an c ip ação da m u lh e r . Essa d a ta foi esco lh ida, com o h o m e n a g e m às o p e rá r ias q u e m o rre ra m q u e im a d a s q u a n d o o c u p a v a m a fáb ri ca C o tton , em East V illage, N ova Iorque, lu ta n d o p o r seus d ire ito s . Realizou-se em 2 de m aio de 1948, em Bogotá, Colôm bia, a IX Conferência Internacional sobre a concessão d o s Direitos Civis à M ulher. N essa convenção, 19 países e m ais o Brasil assinaram u m tra tado ' 'ou to rgando à m u lher os m esm os d i reitos civis de q ue goza o h o m e m " . N o entan to , esse tra tado som en te foi a p ro v ad o no Brasil, a través do D ecreto legislativo n° 74, em 22.12.1951, e o in strum ento d e ratificação foi deposi tado em W ashington , na sede da OEA em 19.03.1952. N o ano de 1952, em 23 de ou tubro , foi publicado D ecreto do Executi vo de n° 31.643, cientificando as repartições públicas d o con vênio e d e te rm inando o seu cum prim ento . E ntretanto , a nos sa legislação não foi a tualizada e o C ódigo Civil m an teve n o r m as obsoletas que feriam a referida convenção. Em seu texto inicial, esse T ratado assim d ispunha: "Considerando: Que a maioria das Repúblicas Americanas, inspirados em elevados princípios de justiça, tem concedido os direitos civis à mulher; Que tem sido uma inspiração da comunidade americana equiparar homem e mulher no gozo e exercício dos direitos civis; Que n Resolução X X da V il Conferência Internacional Americana expressamente declara: CUNHA, Roberto Salles, op. cit. p. 33. 1 2 4 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA Que a mulher da América, muito antes de reclamar os seus direitos, tinha sabido cumprir nobremente todas as suas responsabilidades como companheira do homem; Que 0 princípio de igualdade de direitos humanos entre homem e mulher está contido na Carta das Nações Unidas, Resolveram: Autorizar os seus respectivos representantes, cujos plenos poderes verificaram estar em boa e devida forma, para assinar os seguintes Artigos: Art. 1°. Os Estados Americanos convêm outorgar à mulher os mesmos direitos civis de que goza o homem. Art. 2". Em face d o exposto, constata-se que som ente qua tro anos após a C onvenção de Bogotá, no Brasil, ocorreu a d e te rm ina ção d o cum prim en to do acordo. N o entanto , essa m orosidade d o p rocesso legislativo gerou u m m ovim ento d e reação enca beçado po r u m g ru p o de juristas que cu lm inou, tem pos d e pois, com a elaboração do Estatuto da Mulher Casada, que cor rigiu a lgum as falhas básicas do Código Civil, conform e vere m os adiante. N esse d iapasão , em 1967, foi e laborada pela O N U a Decla ração sobre a Eliminação de todas as form as de D iscrim ina ção contra a M ulher. O p reparo dessa Declaração com eçou em 1963, m ed ian te um a Resolução em que se reconheceu a existência d e discrim inação contra a m ulher. Foi solicitado, então, à Comissão de Condição Jurídica e Social da M ulher a p re paração d e um projeto que recebeu sugestões, isso em 1966. Essa Declaração, considerada p ed ra basilar no trabalho da O N U pela igua ldade de direitos do hom em e da m ulher, foi Idem, ibidem, p. 35. MULHER: CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL 1 2 5 assinada pelo Brasil, em N ova Iorque, som ente em 31 de m ar ço de 1981, m as com reservas ao artigo 15, § 4 * e art. 16, § 1" alíneas "a", "c", "g", "h", que v inham d e encontro a d ispositi vos d o nosso antigo Código Civil que da tava d e 1916. O s artigos do Código Civil que d everiam ser e lim inados pa ra a tenderem aos princípios da referida C onvenção confe riam privilégios ao m arido , como chefe da sociedade conju gal. Do m esm o m odo, a diferença de idade m ín im a para o casam ento , que pa ra a m ulher é 16 anos e p a ra o hom em 18 anos, deveria ser suprim ida . O texto legal que o Brasil assinou com reservas 14 anos m ais tarde, p receituava no art. 15, § 4°: "O s Estados-Partes concederão ao hom em e à m u lher os m es m os direitos no que respeita à legislaçãorelativa ao direito das pessoas, à l iberdade d e m ovim ento e à l iberdade d e esco lha de residência e domicílio". Por ou tro lado, o art. 16, § 1”, assim estabelecia: "Os Estados-Partes adotarão todas as medidas adequadas para eliminar a discriminação contra a mulher em todos os aspec tos relativos ao casamento e às relações familiares e, em par ticular, com base na igualdade entre homem e mulher assegurarão: a) O mesmo direito de contrair matrimônio; b) Os mesmos direitos e responsabilidades durante o casamento e por ocasião de sua dissolução. g) Os mesmos direitos pessoais como marido e mulher, inclu sive 0 direito de escolher o sobrenome, profissão e ocupação; h) Os mesmos direitos a ambos os cônjuges em matéria de pro- priedade, aquisição, gestão, administração, gozo e disposição dos bens, tanto a título gratuito quanto a título oneroso". 9' Nesse sentido VERUCCI, Florista, A Mulher e o Direito. SP: Livraria Nobel S.A., 1987, p. 36. 1 2 6 CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA Por outro lado, em 1975 realizou-se, na c idade do México, a Primeira Conferência Internacional da Mulher p rom ov ida pela O NU. Esse ano foi considerado o A no Internacional da M u lher. Em prosseguim ento aos trabalhos iniciados nessa Confe rência, efetivou-se em 1980, em C openhague, nova Conferência Internacional da Mulher, onde ficou determ inado que os países participantes deveriam se em penhar para adequar suas legisla ções à realidade social da m ulher e sua necessária cidadania. Da m esm a form a, em setem bro de 1995, foi levada a efeito em Pequim a IV Conferência Mundial da Mulher - a m aior na h istória m u n d ia l - p rom ovida igualm ente pela ONU. A í foi apon tada , com o sendo o ú ltim o grande projeto do século XX, a igua ldade en tre os sexos, d e acordo com o que asseverou GHALI: "A ssegurar a igualdade entre hom ens e m ulheres, de d ireito e de fato, é um grande projeto político do século XX, m as a igua ldade na ve rd ad e continua um objeto ilusório em todos os países. A igualdade da desigua ldade está longe de ser alcançada com a discrim inação baseada no sexo".^ CONSIDERAÇÕES FINAIS N o decurso desse trabalho viu-se que a m u lher é ap resen tada, quase un iversalm ente , com o alguém ligado à na tu reza , à contingência biológica, enquan to o hom em é defin ido com o u m ser ligado à cultura, à técnica. A aproxim ação d a m ulher com a n a tu reza - a reprodução - vem justificar a sua ocupa ção d o espaço dom éstico, privado , jun to aos filhos, enquan to o h om em de tém as funções públicas. A ssim , p a ra p ro v ar a condição de subserviência d a m u lher, houve 0 respaldo da religião, da filosofia e da teologia. ®^ONU defende igualdade entre os Sexos. Porto Alegre, Zero Hora de 05.09,95, p, 34. MULHER. CÓOIGOS LEGAIS E CÒDlQOS SOClWS - 0 PAPEL DOS DiflElTOS E OS DIREITOS DE PAPEL 1 2 7 no m u n d o antigo, e, no m u n d o m oderno , recorreu-se à biolo gia, à psico logia e ao direito. É, en tão , nesse n ível que se es tru tu ram e se p ropagam os m itos, superstições, p reconcei tos, que se destinam a destru ir o espírito d e iniciativa da m u lher e reduzi-la à passiv idade. Isso porque, q u a n d o a lguém é m an tid o em posição d e inferioridade, torna-se inferior e, se as m u lheres - na concepção cultural - a inda são inferiores, por esse m esm o m odelo cultural são oferecidas a elas m enos opo r tu n id ad es d e livrar-se dele. N esse sentido, o escritor po rtuguês SA RAM A GO ressalta a posição de inferioridade da m ulher - presença com um na lite ra tu ra antiga - conferindo-lhe um "sta tus" de d e p e n d ên cia, respeito e subm issão ao hom em , assem elhando-a aos es cravos. N essa passagem , elas nem se a trevem a rezar, pois D eus, supostam en te , teria m ais o q ue fazer a ouvi-las. Assim, no "Evangelho", é descrita a seguinte cena: "No momento em que iam pôr o pé na estrada, os homens, em coro solene, alteram a voz para proferir as bênçãos próprias da circunstância, repetindo-as as mulheres discretamente, quase em surdina, como quem aprendeu que não ganha nada em chamar quem de ser ouvido poucas esperanças tenha... Por ou tro lado, m ostrou-se que a sociedade exp loradora fom enta a ideologia, a cu ltura, a educação que serve a seus interesses. Isso ela faz tam bém com a m ulher, com o o faz com o em p regado e, adem ais, com todos os dom inados. Estes são m an tidos de liberadam en te na ignorância, n o obscurantism o, com 0 objetivo de convencê-los a resignarem -se à sua situa- Campos, Tiny Machado de. Ser Mulher o Desafio, p. XIX. SP; Makron Books, 1992, 1 2 8 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA ção e, assim , inculcar-Ihes o espírito d a passiv idade e d o ser vilismo. A esse respeito, encontram os em POULANTZAS: "...a ideologia dominante invade os aparelhos de Esta do, os quais igualmente têm por função elaborar, apre goar e reproduzir esta ideologia, fato cjue é importante na constituição e reprodução da divisão social do traba lho, das classes sociais e do domínio de classe. Esse é por excelência o papel de certos aparelhos oriundos da esfera do Estado, designados aparelhos ideológicos de Estado (...) Igreja (aparelho religioso), aparelho esco lar, aparelho oficial de informações (rádio, TV), apare lho cultural, etc.".^* Desse m odo, a g rande dicotom ia n ão se form a en tre a m u lher e o hom em , m as en tre aquelas e a o rd em social, entre todos os explorados: m ulheres e hom ens e a o rd em social. Assim, é essa situação de explorada que explicava a ausência da m u lher de todas as tarefas que envolviam decisão no seio d a sociedade - que a excluiu d a elaboração das concepções q ue o rgan izam a v ida econômica, social, cu ltu ral e política - m esm o que seus interesses fossem afetados. Ao lado disso, apresentou-se tam bém que, no aspecto jurí dico, a evolução da condição da m ulher, com o sujeito de d i reitos, ocorreu d e form a m uito lenta, a través dos séculos que an tecederam o período contem porâneo. Foi som ente com a Revolução Francesa que teve início nova fase no Direito C ons titucional - que é substra to dos dem ais ram os d o d ire ito - com a declaração da ig u a ld ad e en tre os c idadãos, m as que não m u d o u a condição subalterna da m ulher. N o final d o século ^"POULANTZAS, Nicos. 0 Estado, o Poder e o Socialismo. 3. ed. RJ: Graal, 1985, p. 33-34. MULHER: CÕDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL 1 2 9 XIX os m ovim entos grevistas conquistaram as prim eiras leis trabalhistas, que aos poucos foram estend idas às m ulheres. N o Brasil, os m ovim entos fem inistas de d ire ito ao vo to com e çaram a m exer com as es tru tu ras sociais e jurídicas, em bora som ente em 1932 as m ulheres obtivessem essa conquista. A propósito , em term os ideais, as p rev isões legais da atual C onstitu ição brasileira são perfeitas. O art. 1° d iz q ue um dos fundam en tos d o Estado dem ocrático d e d ire ito é a d ign idade da pessoa de am bos os sexos. Estabelece, tam bém , a igualda d e genérica de todos peran te a lei no art. 5°, q ue é confirm ada no inciso prim eiro , ao d ispor que "hom ens e m ulheres são iguais em direitos e obrigações". Assim sendo, viu-se que a m u lher brasileira m ovim enta-se en tre dois pólos da legislação pátria: de um lado, lhe ofere cem condições perfeitas de igualdade e, de outro , lhe é acena d o com o lado coativo de um Código, que parece apenas lhe p rever sanções. De fato, a m u lher brasileira, p rinc ipalm ente a das cam adas sociaism enos favorecidas, tem sido, historica m ente, a v ítim a favorita do conjunto d e ofensas à v ida, à saú de, à l iberdade ind iv idual e à honra, sob o ró tu lo d e "violên cia dom éstica". Destarte, sob o regim e de escravism o colonial, as a lte rnati vas e ram duas: sendo livre, a m u lher era escrav izada po r um a tradição jurídica que lhe negava a condição d e sujeito de d i reito , o u to rg an d o ao m arido poderes d iscip linares. Porém , e n q u a n to "escrava" , a m u lher era l iv rem ente espancável e violentável, pois não havia um "Código N eg ro" e, assim , o d ire ito pena l dom éstico não possu ía lim ites legais, com o a H istória bem o dem onstra . Assim , com a evolução histórica, ocorreu a denom inada "libertação dos escravos", m as a posição d a m u lh e r em casa - 1 3 0 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA asilo inviolável - conform e dispõe a nossa Constituição, não se m odificou m uito. De que serve a lguém dizer ''M y hom e is m y caste]" se, ao pene tra r nela, encontra o seu a lgoz n o m es m o quarto: o "poderoso chefão" doméstico, com seu m achism o in ternalizado , d isposto a discip linar a sua parceira. Ao lado da violência física ou sexual h á a inda ou tras for m as d e agressão contra a m ulher, que se m anifestam cu ltu ra l m ente , d esde a d iscrim inação no cam po profissional, no aces so às carreiras, nas responsabilidades familiares, n a educação dos filhos, na representação política etc. Isso tu d o apesar da ressa ltada igualdade constitucional en tre os gêneros. Nesse sentido, FRAGOSO: “A administração da justiça criminal constitui o mais dra mático aspecto da desigualdade da justiça, sendo nela pura mente formal e inteiramente ilusório o princípio da igualdade de todos perante a lei, dogma dos regimes democráticos. De masiadamente lenta, abstrata e insensível aos problemas hu manos e sociais que surgem no processo penal, e exercida, na maioria dos casos, através de um judiciário conservador e tra dicional, aferrado à dogmática jurídica e alheio às realidades sociais que condicionam a criminalidade" N ão é dem ais lem brar que, devido à p rópria form ação, te m os u m a soc iedade ca rac te rizada pe la d iv isão de classes, em basada em extrem a desigua ldade n a d istribu ição de bens e de o p o rtun idades sociais. Nesse tipo de form ação social o Di reito Penal protege, de m odo especial, os bens juríd icos p ró prios da m inoria dom inante. Assim como o Estado fracassou na d istribu ição d a renda, e com o a m á distribuição d a m esm a ^^Apud BATISTA, Nilo. Punidos e Mal Pagos, violência, justiça, segurança pú blica e direitos humanos no Brasil hoje. RJ: Revan, 1990, p. 95. MULHER; CÓDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL 1 3 1 gera violência, esta se reflete nas relações dom ésticas. Então o Estado, que n ão resolve o m ínim o dessas questões d e Direito, afasta-se d a relação familiar, p ro p o n d o que a m esm a seja p r i v a d a . O q u e se fo rm a , d e s se m o d o , é u m a e s p é c ie de neoliberalism o. Destarte, som ente com um Estado que a ssegure os direitos h u m an o s dos c idadãos e c idadãs é q ue se to rna possível a tin gir-se a garantia de iguais condições a todos, com o devido reconhecim ento das d iferenças entre h om ens e m u lheres nas relações d e gênero. Finalm ente, o que se po d e afirm ar, seguram ente , é que as m u lheres passaram p o r u m m uito m a u bo cad o ao longo da história, e que u m a g rande percen tagem da popu lação m u n dial fem inina continua passando , da m esm a form a, pessim a m ente. H á u m a longa história d e preconceitos e d isc rim ina ções, que im pedem a m ulher do acesso às o p o rtu n id a d es de realização pessoal. M uito foi alcançado e deve ser com em ora do, m as resta m uito por fazer, pa ra que alterações juríd icas co rrespondam a m udanças de fato, sendo necessário que se registre o g ran d e descom passo en tre a n o rm a e a prática. Por ú ltim o, em um a sociedade que deseje ser justa , a igual d a d e en tre hom ens e m ulheres deve ser o seu fundam ento . Para tanto , é necessário que leis e rea lidade sejam com patí veis, sem preju ízo ao respeito às diferenças de gênero e dos d iferentes papéis que lhes cabe desem p en h a r em sociedade. Assim, som ente q u a n d o o Direito exercer a sua função de p ro teger, d e form a igualitária fortes e fracos, ricos e pobres, ho m ens e m ulheres - onde as norm as "favorecedoras" d a m ulher n ã o se ja m a p e n a s u m a fo rm a c o m p e n s a tó r i a p o r su a subaltern idade - é que se poderá d izer que o Direito cum priu a sua finalidade, deixando de ser apenas um Direito de papel. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALENCAR, José de. Lucíola. 11. ed. SP: Ática, 1987 ,128p. ASSIS, José M aria M achado de. Helena. 11. ed. SP: Ática, 1983, 130p. ASSIS, José M aria M achado de. Dom Casmurro. RJ: Editora M oderna Ltda., 1983, 160p. BARSTED, Leila de A n drade Linhares. Reflexões sobre a traje tória do movimento feminista contra a violência. Themis. Sem iná rio In ternacional Fem inino e M asculino: Igualdade e D iferen ça n a Justiça. POA - RS, julho, 1995. BATISTA, Nilo. Punidos e Mal Pagos: violência, justiça, seguran ça pública e direitos humanos no Brasil hoje. RJ: Revan, 1990,191p. BEAUVOIR, S im one de. O Segundo Sexo. 2. ed. RJ: N ova Fron teira, 1982, V . 1, 309p. BENHABIB, Seyla e CORNELL, Drucilla. Feminismo como Crí tica da Modernidade. RJ: Rosa dos Tem pos, 1987, 208p. CAM POS, Tiny M achado de. Ser Mulher: O Desafio. SP: M akron Books, 1992,149p. C U N H A , Roberto Salles. Os Novos Direitos da Mulher. SP: Atlas, S /A , 1990,258p. DELM ANTO, Celso. Código Penal. SP: Saraiva, 1980, 836p. DEL PRIORI, M ary. A Mulher na História do Brasil. SP: C ontex to, 1988, 64 p. DUBY G eorges e PERROT Michelle. História das Mulheres: A Antigüidade. Porto: Edições A frontam ento , 1990, v. 1, 631p. DUBY G eorges e PERROT Michelle. História das Mulheres: A MULHER: CÔDIGOS LEGAIS E CÓDIGOS SOCIAIS - 0 PAPEL DOS DIREITOS E OS DIREITOS DE PAPEL Idade Média. Porto: Edições A frontam ento , 1990, v. 2, 623p. DUBY G eorges e PERROT M ichelle. História das Mulheres: Do Renascimento à Idade Moderna. Porto: Edições A frontam ento , 1990, V . 3, 608p. DUBY G eorges e PERROT Michelle. História das Mulheres: O século X IX . Porto; Edições A frontam ento , 1990, v. 4, 640p. KARAM, M aria Lúcia. De Crimes, Penas e Fantasias. 1. ed. RJ: L uam E ditora Ltda., 1991, 207p. LISPECTOR, Clarisse. Laços de Famüia. 4. ed. RJ; Sabiá, 1970, 108p. MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal. 4. ed. SP: Atlas, 1989, v. 2, 493p. M URARO, Rose Marie. A mulher no Terceiro Milênio: Uma his tória da mulher através dos tempos e suas perspectivas para o f u tu ro. RJ. Rosa dos Tem pos, 1992, 205p. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich; LENIN, Vladim ir. Sobre a Mulher. 3. ed. SP: Global, 1981 ,139p. OLIVEIRA, Juarez de. Constituição da República Federativa do Brasil. 3. ed. SP: Saraiva, 1989, 168p. PIMENTEL, Silvia; DIGIORGI, Beatriz; PIOVESAN, Flavia. A Figiira/Personagem Mulher em Processos de Família, POA: Sergio A ntôn io Fabris Editor, 1993, 157p. RO CH A -CO U TIN H O , M aria Lúcia. Tecendo por trás dos panos: A Mídher Brasileira nas Relações Familiares. RJ: Rocco, 1994,249p. POULANTZAS, Nicos. O Estado, o Poder e o Socialismo. 3. ed. RJ: Graal, 1985, 307p. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA REED, Evelyn. Problemas de La Liberation deLa Mujer. Baires: Ed. P lum a, 1974, 67p. SEABRA^ Zelita e MUSZKAT M alvina. Identidade Feminina. 3. ed. RJ: Vozes, 1987, 83p. STRECK, Lenio Luiz. Tribuna! do Júri: Símbolos e Rituais. 2. ed. POA: Livraria d o A dvogado , 1994,173p. STUDART, H eloneida. Mulher Objeto de Cama e Mesa. 4. ed. RJ: Vozes, 1974, 53p. VERUCCI, Florisa. Á Mulher e o Direito. SP: L ivraria Nobel S / A, 1987, 211p. W ALD, A rnoldo . Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito de Família, 10. ed. SP: Re v. dos T ribunais, 1995,477p. 1 3 5 MULHERES: U M A V ID A DE LUTAS E C O N Q U ISTAS Mariana Oliveira Pinto Estudante do 4" ano de Direito da Universidade Federal de Uberlândia (MG) INTRODUÇÃO Em bora início de um novo século, com o bom bardeam en to d e tan tas nov idades tecnológicas, que facilitaram a com uni cação e o intercâm bio de cu ltu ras em nível m und ia l, que p e r m itiram g randes avanços nas ciências biológicas, particu la r m en te n o cam po genético e com a intensa p reocupação com os d ire itos hum anos, a cidadania e a justiça, persis tem ainda, paradoxalm ente , d iscursos arcaicos e a rra igados de d iscrim i nações contra as m ulheres, que vêm sendo repassados de ge ração em geração, há séculos. São exem plos as frases ouv idas no trânsito , q u a n d o d ian te de um acidente de veículos, se escuta "Só p o d ia ser m ulher"; ou nas vezes em que a m ulher é p rom ovida na em presa em que trabalha e logo se escutam com entários d e que ela com certeza deve ter d o rm ido com o pa trão pa ra ter conseguido essa p rom oção, pois não acreditam na sua capacidade intelec tual; ou ainda p iadas veiculadas na In ternet falando da p r i m eira m u lher no espaço e logo em segu ida m o stran d o a im a 1 3 6 CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA gem d a m ulher encerando a nave espacial. E encontram os tam bém falas de que o m u n d o é am aldiçoado p o rque Eva m o r d e u um pedaço d a maçã pro ib ida e a ofereceu, em seguida, a A dão, que a com eu igualm ente e foram, por isso, expulsos do para íso divino. Percebem os, então, nessas falas que na m u lh e r está a ori gem d a culpa, sendo-lhe im posta um a situação d e d e p e n d ên cia contínua e de subord inação ao hom em . Com o notou Vera Lúcia Vaccari (2001), ' 'u m dado interessan te é que hoje esse material, anteriormente veiculado até mesmo em pára-choques de caminhões, passa a ser repetido pela Internet, o que mostra que o desenvolvimento tecnológico não está neces sariamente em compasso com o avanço das idéias". M as antes d e falarm os sobre as lu tas e as conquistas das m ulheres em busca d e seus d ireitos e de justiça, é im portan te fazerm os um breve parêntese sobre os estudos d e gênero, ava liando as relações entre os sexos, não do p on to d e vista físico, m as sim sobre u m a óptica histórica, social e cultural. Gênero seria assim um elem ento constitutivo de relações sociais funda das sobre as diferenças percebidas entre os sexos; é um a forma prim ária de d a r significado às relações de poder, m as que en globa conceitos de raça, classe social, diferenças culturais... A pa rtir desse estudo , com preendem os m elhor q ue a d ife rença biológica entre os sexos não é capaz d e explicar os "p a péis" e com portam entos do m asculino e fem inino n a socieda de. Tais "p ap é is" são frutos de valores m orais, culturais, reli giosos e científicos de longos séculos que fizeram da assim etria entre os sexos um a relação de pod e r do m asculino sobre o fem inino, que p e rpe tua até hoje sob diversas form as, m esm o depois de assegurada pela Constituição a isonom ia en tre os sexos, quan to aos direitos e obrigações. MULHERES'. UMA VIDA DE LUTAS E CONQUISTAS Essa d iscussão sobre o gênero surge concom itan tem ente aos m ovim entos fem inistas que se desp o n ta ram no cenário politico-cultural, sob re tudo a partir da década de 70. Esses m ovim entos ev idenciavam o desejo a rden te po r d ire itos que legitim assem a c idadania das m ulheres. Para isso, elas d e n u n c iavam todas as form as de discrim inações e d e opressão cul tural constru ída sobre elas ao longo dos séculos. N a m ed ida q ue o rganizavam estas reivindicações e p ro cu rav a m d ivu lgar Lima nova im agem femirvina, livre dos trad i cionais estereótipos femininos, esses m ovim entos fem inistas tiveram u m a fundam en ta l im portância nas m u d an ças do p a pel social no país. D esta fo rm a, em m ead o s da d écad a d e 70, o fem in ism o ap a re c e u com o m o v im e n to social o rg an iz a d o , em m eio à d i ta d u ra m ilitar. Foi m arcad o p o r se co locar f ren te aos h o m ens, q u e s tio n a n d o a subva lo rização d e tem a s da esfera do m éstica em d e tr im e n to de u m a u to p ia d e tran sfo rm ação social e tam b é m pe la rejeição quase to ta l à fem in ilidade . A ssim , e ra o fem in ism o da ig u a ld ad e , q ue p reg a v a que p a ra se rem resp e ita d a s , p a ra d e m o n s tra re m a c a p ac id a d e p a ra o t ra b a lh o e p a ra a m ilitância política , as m u lh e re s dev e riam in c o rp o ra r va lo re s m ascu linos n o seu m o d o d e p e n sa r , de ag ir e d e traba lha r . N o s anos 80, la rgando a tim idez, as m u lheres em m eio a u m período de redem ocratização da sociedade, levam para a política assuntos dan tes considerados apenas pessoais, como a sexualidade, o corpo, a saúde e a violência contra a m ulher. R esgatam tam bém a fem inilidade, com toda a sua beleza e força, b uscando a valorização do fem inino com o diferente do m asculino, m as não com o inferior ou superio r a esse. O lema era lu tar, m as tam bém am ar e ser feliz. 138 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA N os anos 90, a igualdade formal - igua ldade de todos p e ran te a lei, g a ran tida pela Constituição de 1988 - n ão signifi cou a igua ld ad e m aterial. As m ulheres con tin uam até hoje re iv ind icando m elhorias nas relações sexistas, com o o fim das discrim inações salariais, do assédio sexual, d a violência con tra o sexo fem inino e m uitas ou tras questões. D estarte, a té hoje, em m eio a tantos debates sobre o gênero e a tan ta tecnologia e meios de inform ação, essa cu ltu ra d e h ierarquização dos gêneros com a subm issão e inferioridade d a m u lh e r é a inda rep roduz ida e m antida d e d iferentes for m as n a nossa sociedade, inclusive repassada e m an tida pelas p róp rias m ulheres. Chauí (227) arrisca as seguintes hipóteses para compreendê-la: "em primeiro lugar, a repetição, no interior da casa, do que se passa na sociedade e na política como um todo, isto é, a privatização e pessoalização das formas de autoridade; em se gundo lugar, também a reiteração do mecanismo sócio-políti- co de transformação da assimetria (no caso homem-mulher, pais -filhos, irmão-irmã) em hierarquia, a diferença sendo sim bolizada pelo mando e pela obediência; em terceiro lugar, a compensação pela falta de poder real no plano sócio-político, o machismo funcionando como racionalização, assim como a feminilidade ('atrás de todo homem, há uma grande mulher' indicando que há poder ou autoridade femininos que se exer cem sob a condição de serem dissimulados e ocultados pela obediência e pelo recato)”. P ortan to , tal d iscussão sobre o gênero e sobre os m o v im en tos fem inistas, ao verificar as experiências sociais das m u lh e res abriu possib ilidades pa ra resgatar a iden tidade fem inina, liberta do m u n d o m asculino, e pa ra p roporc ionar u ma visão MULHERES: UMA VIDA DE LUTAS E CONQUISTAS m ais clara d as questões das m ulheres, que ora trazem os para debate. A presen tarem os u m a ráp ida trajetória d a m u lher do sécu lo XIX até a d a a tualidade , colocando em debate as principais m u d an ças que envolveram as m ulheres nas três ú ltim as d é cadas: a educação, a sexualidade, o trabalho e a violência. EDUCAÇÃO E CRIAÇÃO DAS MULHERES A injustiça com as m ulheres v inha d o berço, q u a n d o as m eninas e ram ensinadas a perm anecerem no espaço dom és tico. A n a tu reza fazia-nos m asculinos ou fem ininos, e as cren ças e valores d e nossa cultura faziam -nos a espécie de hom ens e m ulheres que nos tornam os. A m u lher não nascia m ulher. M as tornava-se m ulher à m edida que ia inco rpo rando os va lores já criados por um a sociedade. Deste m odo , as m eninas eram criadas d esde cedo em um am bien te m achista e opressor a p ren d en d o a inda p eq u en as as tarefas d o lar, com o a rrum ar a casa, cozinhar, bo rd ar , p in ta r e costurar, pa ra posteriorm ente , qu an d o se casarem , saberem velar com zelo pela direção m aterial da casa. Percebemos essa preocupação até m esm o nas inocentes brin cadeiras de boneca e de "casinha", em que no tam os a intenção de se educar as m eninas para começarem ainda q uando peque nas a aprender a cuidar dos filhos e dos afazeres do lar. As m ulheres e ram o "sexo frágil" e dev iam ser carinhosas, am áveis, com preensivas e "boazinhas". Q uan to m ais tives sem esses dotes, m ais ráp ido conseguiriam um m arido , o que era de tam anha im portância, pois som ente a través do casa m ento e d a m atern idade tornar-se-iam pessoas realizadas. Aliás, an tigam ente , p rincipalm ente nas classes m ais ricas, o casam ento era arran jado pelos pais, en tre fam ílias de m es CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA m a classe, com o um a form a de p reservar o pa trim ôn io das famílias. À m u lher cabia som ente aceitar o que lhe era im pos to pelo pai, m esm o que contra a sua vontade. A única form a encon trada pa ra fugir do casam ento era ir pa ra um convento, e lá v iveriam d e acordo com os princípios religiosos. A questão da virgindade era acima de tudo um grande tabu. A moça que deixava de ser virgem antes do casamento era um a m ulher desonrada. N o livro O Cortiço, de Álvaro de Azevedo, que retratava as questões das massas urbanas proletárias do fi nal século XIX, m as que embora tivessem grandes diferenças de hábitos e de costumes das classes burguesas da época, percebe mos m uitos valores em com um quando se tratava das mulheres. N otam os m uito bem nesse rom ance a p redom inância de valores m achistas, que valorizavam a v irg indade d a m ulher até as núpcias, quan d o a personagem M arciana, ao descobrir que sua filha estava g rávida do caixeiro D om ingos disse ao p a trão do m oço "aproveitador": "Venho entregar-te esta perdida! Seu caixeiro a cobriu, deve tomar conta dela!” E então pe rg u n ta ao moço; "Se não que ria casar pra que fez mal?" Por esse diálogo, podem os no tar que a m u lher que deixava de ser v irgem antes do casam ento, perd ia , então, a sua honra, a sua inocência e pureza. Por ter dad o esse ' 'm a u p asso”, seria agora um a pe rd id a e arru inada. Por sua vez, aos hom ens era associada um a idéia totalm ente oposta q u an d o o assun to era v irg indade. A queles que p e rm a neciam virgens até se casarem, eram m otivo de chacotas por p arte de am igos, familiares e vizinhos. E ram rid icu larizados e censurados. Digam os, a inda, que a sua m ascu lin idade era co locada em dúvida. MULHERES: UMA VIDA DE LUTAS E CONQUISTAS C om relação ao adultério , verificam os tam bém u m grande ab ism o d e c o m p o rtam en to s con s id e rad o s n o rm a is e n tre h o m en s e m u lh e res . A os p r im eiro s era p e rm itid o exercer li v re m e n te a sua sex u a lid ad e , d e sd e q u e n ã o am eaçasse o pa tr im ô n io fam iliar, pois sua sexua lidade era excessivam en te exigente. A qu ad rin h a abaixo releva com g rande n itidez a diferença de c o n du ta sexual e as regras com portam enta is en tre hom ens e m ulheres: "Um homem com muitas mulheres é poligamia; uma mulher com muitos homens, é poliandria e um homem com apenas uma mulher é monotonia". Destarte, os hom ens desde bem jovens e ram incentivados ao sexo e com isso criavam um pon to paradoxal: deveria en tão h aver dois g rupos de m ulheres: um das "corretas" e o o u tro das "pervertidas" . O p rim eiro g rupo seria das m ulheres q ue seriam "santas", as m ães e esposas, as ideais, que deveriam perm anecer v ir gens até o casam ento e serem totalm ente fiéis aos hom ens. M as havia u m segundo g ru p o de m ulheres que seriam conde nad as ao "pecado". Eram as p rostitu tas e biscates, que servi r iam para a satisfação dos desejos d o hom em , levando-os ao m u n d o d o s prazeres. Esse ú ltim o g ru p o era necessário sob o a rgum en to d e que pa ra se ter virgens casadoiras, fu tu ras mães, era preciso c om prom eter u m certo n ú m ero de m ulheres. P ensam ento inclusive m uito com um na a tua lidade , qu an do ouv im os com entários de m eninos que classificam as m en i nas em "galinhas" , que são aquelas que "servem " apenas para "curtir", ap rove ita r e passar o tem po, ou em m eninas sérias, com quem querem nam orar e se casar. 1 4 2 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA A sociedade tam bém encarava diferen tem ente as relações extraconjugais pa ra hom ens e m ulheres: à m u lher q ue m an ti n ha u m a m an te e ram a tribu ídas palavras em sentido deprec i ativo e preconceituoso, com o "p iranhas" , "p u ta s" e "M aria Batalhão". Já aos h om ens que m an tinham essa conduta , u tilizavam - se expressões que valorizavam sua conduta de "m acho", como, po r exem plo, d e "desonesto", "m ulherengo" , ou "insatisfeito com o casam ento" e m uitas ou tras expressões. O u tro aspecto que levantam os den tro d as relações fora do casam ento é que os hom ens que eram questionados pelas suas m ulheres pe lo fato d e ter um a am ante, reagiam à pe rg u n ta com violência física e se as ferissem n ada sofreriam , pois eles seriam conside rados in im pu táve is , e s tando em "es tad o de com pleta p rivação de sentidos e de inteligência". E só reag i ram po rque as m ulheres não estavam en ten d en d o suas "fra quezas" da carne. Im portan te tam bém frisarm os que aos h om ens incum bia o espaço público e a v ida política. A eles são a tr ibu ídas as p a la vras p o d e r, força, coragem , agressiv idade, dom inação e viril, con trapondo-se aos adjetivos d itos fem ininos, quais sejam frá geis, invisíveis, passivas, inferiores e dependentes. Os hom ens dev iam estudar, dedicar-se às ciências, escre ver obras científicas e seguir carreira, pois u m dia seriam o chefe da família conjugal, necessitando adm in istrar o p a tr i m ônio e p ro v er a sustentação d a família. Seriam desta form a políticos, m édicos, engenheiros, advogado , juizes e hom ens de negócio, enquan to as m ulheres con tinuavam em casa. Todavia, o processo histórico, com o início d o questiona m ento das m ulheres sobre suas condições sociais, encarregou- se d e p rovocar a lgum as m udanças e as m ulheres p u d e ra m MULHERES: UMA VIDA DE LUTAS E CONQUISTAS sair do espaço dom éstico e conquistaram o d ire ito de freqüen tar as escolas, até en tão um direito exclusivo dos hom ens.N ão obstan te , percebem os que a Educação, que poderia ser um a a rm a p r iv ileg iada de libertação d a c u ltu ra m ach ista , conscien tizando as m ulheres da h ierarqu ia en tre os sexos e d a necessidade de se rom per com esses vínculos tradicionais, ap resen tou-se resistente à m u d an ça d a o rd em existente, aca b a n d o po r rep ro d u z ir os m esm os valores arcaicos. E fácil observarm os que a educação nos colégios fem ininos corroborava com esse en tend im ento q u a n d o trazia currículos d iferenciados das escolas m asculinas, lev ando às m ulheres au las d e religião, canto, m úsica, culinária, econom ia dom ésti ca, costura, etiqueta e similares, que reforçavam os a tribu tos ditos fem ininos, e p roduziam m ulheres "p rendadas" , que con tin u av am conferindo a m áxim a estim a social. E ncontram os facilm ente essa p reocupação em m an te r o m odelo v igente d e família quando analisam os u m a institu i ção educacional da c idade de Uberaba, no in terior m ineiro , o co lég io N o ssa S e n h o ra d a s D o res , f u n d a d o p e la s I rm ã s D om inicanas, em 1885, que se dedicou à educação exclusiva m en te fem inina, desde sua fundação, até 1973, q u a n d o p e r m itiu que m eninos freqüentassem o colégio. U m jornal local, a Gazeta de Uberaba, no ano d e 1901, trazia a segu in te reportagem sobre a instituição: "Tem por fim este coUegio a formação de boas mães de família, e de criadas ou servas que possão vantajosamente substituir as escravas. Receberá pois o coUegio meninas das famílias ri cas, orphã e ingênuas no internato e externato, em divisões bem distintas. Objecto de uma solicita e sempre maternal vigilancia, as educandas estarão constantemente sob as vistas 1 4 4 CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA de suas mestras, presidiado estas a seus trabalhos escolásticos e manuaes como as suas refeições, recreios, etc. A s professoras querendo dar a suas alumnas uma educação esmerada e com pleta terão particular cuidado de infundir-lhes o espirito de ordem e de economia tão necessário a uma senhora, seja qual for sua condição na sociedade. Para este fim , pede-se o apoio dos paes, que tão facilmente podem auxiliar as irmãs a comba ter 0 luxo desordenado, que tantos males causa as famílias." MULHERES OBJETO Aos poucos as m ulheres foram conquis tando m aior espa ço no ensino, não só m édio, m as tam bém superior. P rim eiram en te ing ressavam nas Letras e Pedagog ia , na Psicologia, nas C iências C ontáveis, na Enferm agem . Eram então a m inoria. C ontudo , hoje, no tam os que a m aioria das salas de aula, quer seja de ensino m édio ou das un iv ers id a des, estão rep letas de m ulheres, que se destacam não som ente n a q uan tidade , m as p rincipalm ente pela sua capacidade in te lectual e pela sua garra. Até m esm o em cursos superiores considerados t ip icam en te m asculinos, com o as engenharias e ciências da co m pu ta ção, encon tram os forte presença do sexo fem inino, em bora a inda é com um ouvirm os que elas estão lá à p rocura de um m arido ou que são u n s ''canhões", um as "m achas". A liás, a in d a é re in a n te o p reconce ito q u a n to às m u lh e res in te l ig en tes e d e d e s ta q u e n a po lítica e n a soc iedade . Existe u m falso im ag inário d e que essas m u lh e re s d e v a m ser feias, g o rd as e te r ve rru g as , po is o ta len to in te lec tua l p a ra as m u lh e re s é inv ersam en te p ro p o rc io n a l à boa a p a rência física. MULHERES: UMA VIDA DE LUTAS E CONQUISTAS Para com pensarem essa falta de a tributos físicos e o in su cesso de não arran jarem m arido, as "m ulheres-feias" conquis taram espaço pelo enorm e esforço intelectual. Já às m ulheres sensíveis, frágeis e "bu rrinhas" , é a tr ibu ído u m belo corpo, escu lp ido pelos deuses. A p ró p ria im agem da "loira bu rra" , tão típica em nossa sociedade, é o exato retrato dessa cultura, que p rega um a idéia d e m ulheres fúteis e superficiais. É im possível encontrarm os um ind iv íduo - e aqui frisam os que tra tam os p o r ind iv íduo am bos os sexos - que não tenha na p o n ta d a língua u m a p iada em referência a elas ou que n o m ín im o já tenha e scu tado cen tenas d e ironias nesse sentido. A nossa sociedade exige, dessa form a, u m a im agem da m u lh e r bela e e ternam ente jovem. Basta o lhar pa ra a televi são, pa ra as revistas e para os jornais. São im agens d e m u lh e res m agras, m alhadas, o u m elhor, ' 'b o azu d as" , m aquiladas, sem inuas, na flor da juven tude , que fazem p ro p ag a n d a s de carros, d e cigarros, de vestuário e cosméticos, associadas sem p re a idéias de objeto sexual. E visualizam os facilmente o preconceito descarado: as p ro pagandas d e veículo geralm ente apresentam cenas nas quais os hom ens que têm um determ inado carro, têm poder, e por isso conquistam e seduzem quaisquer mulheres. Dão essas im a gens a im pressão d e m ulheres "gasolinas" e interesseiras, que se arrastam pelos hom ens que detêm m aior p od e r econômico. D evem os frisar a inda que pa ra m an te r esse es tereó tipo exi g ido pela m ídia e pela sociedade, as m ulheres passam po r to r tu ra s d iárias de regim e para em agrecer, subm etem -se a c iru r gias plásticas, e à lipoaspiração, colocam silicones, aplicam botox p a ra reduz ir as rugas, tingem os cabelos b rancos e fa zem b ro n zeam en to artificial. 146 CIDADANIA DA MULHER. UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA T udo isso p o rque os m eios de com unicação p regam que a v ida só vale a pena q uan d o a m ulher é jovem e m agra. Assim, as m ulheres ao com pletarem 30 anos já se sen tem velhas d e m ais e com toda essa p reocupação em ficar e te rnam en te jo vem e em "se conservar", acabam não gozando e d e s fru tando da sua m atu ridade . C om o assinalou M ayra Corrêa e C astro (pág. 121): "Além da magreza, outra neurose da ciilfura de massas é a beleza feminina. A grande maioria dos produtos que sofrem publicidade são produtos de beleza ou vestuário”. A cultura de massas quer a mulher eternamente jovem e bela. Tal como as gordas e as velhas, as feias são eliminadas dos circuitos eletrônicos. Por isso, a indústria de produtos de beleza, a cosmetologia médica, a cirurgia plástica, perucas... Tudo isso tudo está tornando a beleza acessível às mulheres, ao menos da classe média”. O s hom ens, ao contrário, não buscam o elixir da e te rna ju ven tude , nem se p reocupam com a idade, com o as m u lheres e nem precisam cu idar d e seu corpo físico. Envelhecem com d ign idade . A "barr igu inha" é sinal de que sua esposa está cu idando m uito bem dele, ou, no m ínim o, devem ser os copos de cerveja. O s cabelos brancos são charm osos, as rugas sinal de m a tu r id ad e e até a careca é conquistadora. N otam os então que existe um a cultura da mulher-objeto, que preserva sua aparência física em detrimento da capacidade inte lectual. O corpo feminino é submetido pela mídia a um processo brutal de coisifícação e comercialização, consistente em exibir o corpo, com o forma d e vender os mais variados produtos. Vem en tão um a cultura da "b u n d a" e de u m belo rosto, que em certos m om entos parecem se confund ir com a p ró p ria MULHERES: UMA VIDA DE LUTAS E CONQUISTAS pessoa. Assim , enquan to os hom ens são u m rosto com um corpo, u m todo físico, as m ulheres, m uito pelo contrário , são u m corpo (e p rinc ipalm en te u m a n ádega bem saliente, m es m o que pa ra isso tenha que recorrer aosilicone) e u m rosto. Então, o que en tendem os é que o corpo da m u lh e r conti n u a escravizado. M as enquan to dan tes seu corpo era p e rte n cente ao m arido , agora essa escravidão se releva sob ou tra for ma: 0 corpo da m ulher com o escravo e subm isso aos p ad rões de beleza d itados pela mídia. 0 DIREITO À SEXUALIDADE U m g rande m arco d o século XIX e q ue con tribu iu im ensu- r a v e lm e n te p a r a a e m a n c ip a ç ã o d a s m u lh e r e s foi o s contraceptivos. A partir de então, elas p assa ram a p o d e r d o m inar seu p róprio corpo, separando assim a sexualidade da procriação. Ter ou não filhos e qu an d o ter, p assou a ser um a escolha que possibilitou a elas am ar sem m edo de um a grav i dez indesejada. C om isso elas passaram a ter d ire ito d e ter desejo e p raze- res, p assa ram a ser livres pa ra escolher seu parceiro e pa ra conhecerem seu corpo. N esse contexto da sexualidade, os m ov im en tos fem inistas tiveram um g ran d e destaque. Eles colocavam em debate o p la ne jam ento fam iliar e p rom oviam cam panhas sobre os m éto d o s contraceptivos, conscien tizando as m u lheres pa ra que, ju n ta m en te com seus com panhe iro s , p u d e s se m dec id ir de m aneira livre e consciente a opção de terem filhos o u qua l o m o m en to ad eq u ad o pa ra tê-los. C on tudo , a inda hoje, encontram os m u itas m u lheres com um a g rav idez indesejada, pois o sexo a inda é um tabu e não é 1 4 8 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO OE JUSüÇA falado abertam ente , apesar d e toda a exposição d a m ídia. Isso sem falar que, m u itas vezes, as m ulheres não têm acesso a serviços de qua lid ad e em contracepção, com o os an ticoncep cionais e os preservativos. Por ou tro lado, a saúde da m ulher tam bém passa a ser in tensam en te deba tida jun to com a sexualidade. Jun to com o Estado, o m ov im en to fem inista p rom ove avanços na saúde fem inina. N a década de 90, po r exem plo, intensificou-se a luta no com bate ao câncer d e m am a. D esde então, pessoas fam o sas e c o m u n s v ã o à m íd ia p re s ta re m seu d e p o im e n to e conscientizar as m ulheres de se fazer p rev en tiv am en te um exam e m édico, ao m enos um a vez p o r ano, e d e fazer m ensa l m en te o toque de m am a. Prom ovem tam bém cam panhas d e com bate e prevenção ao câncer no cólo d o ú tero (HPV) e ou tras doenças sexual m en te transm issíveis (DSTs), com o a AIDS, a sífilis e m uitas ou tras , p a ra assegurar a saúde das m ulheres. A cam isinha tor- na-se requ is ito obrigatório na lu ta contra essas doenças. A m íd ia tem nesse m om ento um im portan te papel p reg an d o que as m ulheres devem não apenas se p recaver contra a g ravidez, m as tam bém contra as DSTs. C ultivam a idéia de que as m ulheres, m esm o as casadas, devem exigir de seus com panheiros que u tilizem a cam isi nha, reve lando depo im en tos d e m ulheres casadas e fiéis que con tra íram AIDS de seus m aridos. Surge a inda no final d a década de 90 a cam isinha fem ini na, d a n d o m aior au tonom ia às m ulheres, que p o d e m agora se p recaver contra as DSTs, a través da utilização deste recurso q u a n d o seus com panheiros não qu iserem u sa r a m asculina. E ntre tan to , a cam isinha feminina, além de ser u m pouco m ais com plicada d e m anusear que a m asculina, é d ific ilm en MULHERES: UMA VIDA DE LUTAS E CONQUISTAS te encon trada no m ercado, e quan d o d isponível o preço é bem superio r à m asculina. A dem ais, em bora sejam am plos os p ro g ram as e as cam pa nhas de assistência à saúde da m ulher, as vagas e os a tendi m entos nos hospitais são lim itados e precários, to rnando-se urgente a construção de espaços nos quais a m ulher tenha acesso pa ra colocar as suas necessidades no tocante à sua saúde. 0 MERCADO DE TRABALHO T am anho era a resistência em se q uebrar os v ínculos tra d i cionais, q ue o trabalho das m ulheres fora d e casa era, a princí p io, v isto com o um m om ento transitório , a té a realização do casam ento , ou então, pa ra as m ulheres q ue ficassem solteiras ou viúvas. Reinava a inda a idéia d e que a função p rincipal da m ulher na sociedade é ser m ãe, esposa e educadora , d a n d o a im pres são d e ser essa função um privilégio, e que, po r isso, e s tu d a r e traba lha r eram desnecessários. M as aos poucos houve um su rp reenden te a u m en to d o n ú m ero de m ulheres que se dedicavam às a tiv idades fora d e casa. Esse fato foi resu ltado não apenas da em ancipação fem inina, m as tam bém conseqüência da crise econôm ica que as obriga ram a com ple ta r a ren d a salarial da família. C om isso, a m u lh e r infiltrou-se no territó rio m asculino , p assou a d esem penhar funções antes d itas d e m acho e hoje são u m a g ran d e m ão-de-obra no m ercado d e trabalho . Os hom ens deixaram assim d e ser os únicos p ro v ed o res finan ceiros d o lar e p assaram a contar com a a juda d as m ulheres. A dveio da í u m g rande p roblem a para a m aioria d as m u lheres; a d u p la jo rnada de trabalho, den tro e fora d e casa. A s 150 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA sim , m esm o ingressando n o m ercado de trabalho , as m u lh e res con tinuaram responsáveis pelo cu idado com a casa, com os filhos, levan tando cinco da m anhã pa ra deixar o alm oço p rep a ra d o p a ra a família, antes d e ir pa ra o trabalho e lavan do ro u p as até altas ho ras da m adrugada . T udo isso, p o rque não houve um a socialização do trabalho doméstico, de form a que hom ens e m ulheres partilhassem eqüi- tativam ente as ativ idades de casa e o cuidado com os filhos, ou seja, que passassem a arcar com as m esm as oportun idades e responsabilidades. É certo que alguns m aridos e filhos passa ram a a judar nas tarefas domésticas, m as isso ocorria na m ino ria das vezes ou em níveis nem u m pouco satisfatórios. D essa form a, o trabalho que seria a ''libertação" das m u lheres, na verdade, apenas as oprim iu mais, porque agora, além das exigências dom ésticas, a inda têm que contribu ir com o susten to da casa, ingressando no m ercado d e trabalho. N esse sen tido M argareth Rago (pág. 42) percebeu que "As mulheres têm denunciado o alto custo cjue elas pagam por competir no espaço dos homens: Enquanto estes contam, de certo modo, com uma infra-estrutura de apoio, seja finan ceira, seja apenas psicológica, para competir no mercado de trabalho, as mulheres devem provar duas vezes mais do que são capazes, além de continuar a desempenhar as funções de mãe e de rainha do lar, exigidas tanto pelos maridos, quanto pelos filhos e familiares". A lém d a d u p la jo rnada de trabalho, percebem os tam bém m u itas ou tras discrim inações contra as m ulheres no m ercado. Basta observar que na m aioria dos setores de a tiv idade , as m u lheres têm u m a presença o u m u ito acim a o u m uito abaixo d a sua taxa de participação na população ocupada. MULHERES'. UMA VIDA, OE LUTAS E CONQUISTAS Em ou tras palavras, em bora as m ulheres exerçam a tu a l m ente m uitas profissões que antes eram exclusivas de hom ens, a inda existe a crença de que alguns em pregos são de m u lh e res e ou tros de hom ens. Assim, p o r exem plo, encon tram os m ulheres carteiras e cobradoras de ônibus, m as é raro encon tra r a lgum a m u lher m otorista de ônibus ou de táxi, o u até m esm o engenheira. Ao m esm o tem po, é difícil encontrarmos hom ens recepcionistas o u secretários d e u m a em presa. O u tra g rande discrim inação que no tam os é a diferença sa larial en tre os sexos. As m ulheres ganham em m éd ia o equi valen te a 64% do salário dos hom ens no Brasil, p o r m esm as funções desem penhadas. Em geral, e nquan to m aior a escolaridade, m aior a d iferen ça salarial en tre hom ens e m ulheres na m esm a ocupação. Um d a d o im portan te é que as m ulheres estão em ocupações mais relacionadas à repetição de m ovim entos diários. Com isso, elas são as m aiores v ítim as de LER (lesão p o r esforços repetitivos). A lém disso, ap rox im adam ente 40% da força de trabalho fem inino no Brasil está no pólo m enos qualificado e d e m enor renda , com o faxineira, a judante de serviços gerais e similares. Isso, sem falar d o g rande n úm ero de m ulheres que, em v irtu de da escassez d e em pregos e da necessidade d e ob ter recur sos econôm icos pa ra a família, lançam -se p a ra a econom ia in form al, desem p en h an d o ativ idades de em p reg ad as dom ésti cas, lavadeiras, passadeiras, vendedo ras e fazedoras de d o ces, biscoitos, refeições e salgados. Todo esse esforço em troca de um a pequena rem uneração. Fora isso, um a das m aiores injustiças está no fato de que as em pregadas dom ésticas não têm garan tida a to ta lidade dos d ire itos trabalh istas e as dem ais traba lhadoras q ue com põem a econom ia inform al n ão têm qua lquer am p aro legal. CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA M uito pelo contrário, essas ú ltim as trabalhadoras, que são em p u rrad a s a essa form a de trabalho po r falta de políticas públicas que não geram em pregos, são tidas com o v e rd ad e i ras crim inosas, por serem sonegadoras de tribu to dev ido ao Estado. O utro grave problem a que as m ulheres encontram quando debatem os sobre o m ercado de trabalho é o local onde vão dei xar seus filhos enquanto trabalham . Sabemos que o núm ero de creches é bem reduz ido e nem sem pre as m ães encontram va gas nas escolas públicas para m atricularem seus filhos. D iante d a inércia d o Estado e d o preconceito das em presas que não oferecem creches, a solução encon trada é que os fi lhos m aiores cu idem dos m enores, enquan to as m ães vão à luta, o u en tão q ue as m ulheres que trabalham in form alm ente levem consigo os filhos para a judar na venda das quitu tes. Portan to , é indubitável que as m ulheres o cupam hoje um a g rande posição no m ercado de trabalho. M as essa conquista , n ão é a inda sinônim o de igualdade e há m uito pa ra ser feito pa ra se chegar à p len itude d e seus direitos. A VIDA POLÍTICA Em bora as m ulheres estejam com em orando setenta anos de conquista de d ireito ao voto, assistim os a in da a u m a p e r versa exclusão das m ulheres na esfera política. São até hoje poucas as m ulheres que ocupam cargos políticos, seja nos p a r tidos, seja no governo. N o Congresso N acional, p o r exem plo, a bancada fem inista representa apenas seis p o r cento d o total dos in tegran tes da Casa. C on tudo , apesar de serem em um n úm ero p equeno , são as m ulheres que ao colocarem em debate e rea lidade cotid iana em que v ivem , colocam em xeque os p rob lem as sócio-econô- MULHERES: UMA VIDA DE LUTAS E CONQUISTAS m icos do país, denunciando a falta d e creches, de escolas p ú blicas, das condições d e trabalho, a m á distribu ição de renda, o salário m enor q ue o dos hom ens, o au m en to da cesta básica e m u itas ou tras questões. D estarte, na esfera política, a crítica fem inina p rom oveu um a m u d an ça d o enfoque d a concepção política tradicional, inco rpo rando a esse m eio tem as antes não deba tidos pelos hom ens, po is pertenciam a um un iverso fem inino, que até aquele m om ento eram colocados à m argem do sistema. Entretanto , com o as m ulheres não estão a inda rep resen ta das em u m núm ero considerável nas instâncias, "as mulheres e os trabalhadores não podem ser senão cidadãos de segunda classe enqnanto estas instituições continuarem a definir e estruturar nossa política". Com a pequena represen tação, "na melhor das hipóteses, os cidadãos têm a opção de votar ou não, mas Inós mulheres] temos um papel pequeno na definição ou estruturação daquilo que será votado ou no con sentimento ao regime enquanto tal". (M artha Ackelsberg, pág. 255) N o âm bito político, devem os tam bém lem brar a g rande participação a tiva d e m ulheres nos m ov im en tos popu lares . A m aioria de seus com ponentes, em geral, é d o sexo fem inino, tendo n ão raras vezes líderes m ulheres. Esses m ovim entos assum em um pape l fu n dam en ta l na cri ação de novas form as de sociabilidade e m u d an ç a s n a esfera p rivada , a p a rtir d o m om ento em que as m ulheres partic ipan tes do m ovim ento quebram a rotina dom éstica e passam a se relacionar com ou tros ind iv íduos, ap ren d em a falar em p úb li co e lu tam pela qua lidade de v ida de seus filhos e d e toda a com unidade. 154 CIDADANIA OA MULHER, UMA QUESTÃO OE JUSTIÇA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES C o n tu d o , em b o ra ten h am o s a v a n çad o m u ito n o p lan o no rm ativo e no debate público, são m uitas a inda as barre iras que as m ulheres enfren tam e devem denunciar, p rinc ipalm en te q u an to à violência, quer seja estru tural, q uer seja decorren te d e sua condição d e gênero, que a inda sofrem. A violência contra a m ulher, fruto de u m a condição geral d e s u b o rd in a ç ã o , o u seja, de u m a o rd e m n o rm a t iv a q u e h iera rqu iza papéis e pad rões de com portam en to pa ra os se xos, vem sendo denunciada desde o início d a década de 1980, p o r g ru p o s fem inistas e vem sendo bastan te d iscu tida nessas ú ltim as décadas. O p ró p rio fato das m ulheres serem expressão da d o m in a ção m asculina, p o r serem seres q u e existiam p a ra os hom ens, contribu íam p a ra legitim ar a violência dos h om ens contra as m ulheres. M as os m ovim entos fem inistas v ieram destru ir esse pensam ento . C h au í (1985), ao pesquisar sobre o tem a d istingue os con ceitos d e violência e d e relações d e força e en tre estes e o con ceito de poder. Entende que a violência é u m a d as form as das relações de força e am bos im plicam o desejo de m an d o e a opressão d e u m segm ento social sobre outro. Entretanto , na relação de força, deseja-se an iquilar-se e n q uan to relação pela destru ição de um a das pa rtes e, na v io lência, m antém -se a relação d e m ando e a sujeição, m edian te u m processo de interiorização pela parte d o m in ad a das von tades e ações da parte dom inante. Por causa desse processo, m uitas vezes as m u lheres se sen tem coagidas a se subm eterem ao hom em , sendo u sa d as p e r versam en te pelo m arido com o objeto sexual, a servi-lo com seu corpo q u a n d o ele bem quiser. MULHERES: UMA VIDA DE LUTAS E CONQUISTAS M as as m ulheres passaram a contar com o S.O-S. MULHER, e n tidade de apoio e conscientização, que oferece orientação jurídica e psicológica às m ulheres vítim as da violência. Com isso au m en to u o n úm ero de denúncias de violência dom ésti ca, exp ressadas das m ais d iversas form as: espancam entos , to rtu ras e am eaças de morte. Esse tem a, an terio rm ente tido com o particu lar, ganha en tão u m a d im ensão pública e o Estado passa a p u n ir os que com etem violência contra a m u lher e isso é fundam en ta lpara a c o n s tru ç ã o d e u m a n o v a so c ie d a d e , p o is as m u lh e re s agredidas, ao apresentarem suas queixas colaboram para a sua constituição e sua iden tidade fem inina, q u eb ra n d o os papéis tradicionais, cheios de equívocos e preconceitos. U rge tam bém assinalar que o assédio sexual, p a ssan d o a ser considerado crim e no início deste século, p u n in d o hom ens e tu te lando inúm eras m ulheres constrangidas à prática de atos sexuais, m ed ian te g rave am eaça ou po r m eio d e pa lav ras ou gestos, é m ais u m a conquista na luta pelos d ire itos d a m ulher e m ais u m a expressão da sua cidadania. O ORDENAMENTO JURÍDICO A C onstitu ição d e 1988, ao garan tir a m esm a isonom ia em d ireitos e obrigações pa ra hom ens e m ulheres , apenas veio reg istrar todo o cenário de décadas d e lu tas pe las quais as m ulheres ba talhavam . O ho m em de ixou de ser considerado o chefe e represen tan te legal da família e o único responsável po r seu sustento. M as, com o já expom os, apesar das g randes conquistas que as m u lh e res a lçaram nas ú ltim as décadas , essa ig u a ld a d e no o rdenam en to juríd ico não se efetivou até hoje. 156 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA C ontudo , não podem os deixar de m encionar e festejar as princ ipais conquistas das m ulheres no ú ltim o século. C om o d issem os anteriorm ente , a existência da família es tava condicionada à leg itim idade que derivava apenas d o ca sam ento . A legislação constitucional de 1988 veio ten ta r rom p e r com o conservadorism o d o início d o século XX e adap tar- se à rea lidade fática brasileira, reconhecendo a un ião estável en tre o hom em e a m u lher com o en tidade familiar, a qual foi d ev idam en te incorporada ao N ovo Código Civil de 2003. Foram , en tão , tu te lad as as un iões estáveis p a r t in d o das m esm as reg ras d o casam ento . C om isso foram benefic iadas m ilhares d e concubinas, q ue v iúvas, d epo is d e v iverem m ais de v in te anos com seus m aridos, não t inham d ire ito aos bens s im p lesm en te p o rq u e fug iam à convenção d o in stitu to do casam ento . C onform e p ron u n c io u Ricardo P enteado d e Freitas Borges e C aetano Lagrasta N eto em artigo publicado na Revista da Associação dos M agistrados Brasileiros (ano I, fevereiro de 1990), '‘Dizem eles que uma nova feição da família fo i introduzida no nosso ordenamento jurídico pela Constituição de 1988. Com isto, casamento e concubinato devem ser tratados como iguais pelo Estado, padecendo de inconstitucionalidade o tra tamento diferenciado das duas últimas situações cujas dis soluções devem ser processadas nas mesmas condições, ou seja, no juízo de família". Aliás, o p róp rio term o concubina foi substitu ído p o r com p a n h e ira ou convivente , po is a pa lav ra concub ina t inha a conotação pejorativa d e m u lher desonesta e des tru id o ra de famílias legítimas. MULHERES: UMA VIDA DE LUTAS E CONQUISTAS D esapareceu tam bém a discrim inação dos filhos nascidos fora do casam ento , ou dos ado tados, que p assa ram a ter os m esm os d ire itos e qualificações daqueles p roven ien tes do ca sam ento , tendo em vista que foram v ed ad as qua isquer desig nações d iscrim inatórias relativas à filiação. O u tras m udanças p o d em ser n o tadas n o o rd en am en to ju rídico, que tenta se ad equar às transform ações ocorridas na sociedade, com o está ocorrendo com o N ovo C ódigo Civil, já em vigor, a com eçar pelas m udanças na p rópria linguagem . Expressões, p o r exemplo, que se referem aos d ireitos, em q ue an tes liam os "dire itos do hom em " para se referir a am bos os sexos, agora foram substitu ídas pela locução "'da pessoa". A nova legislação tam bém retirou dispositivos preconceituosos e d e u m a cultura m achista, que perm itiam ao m arido a a n u la ção d o casam ento e a sua devolução ao pai, q u a n d o desco brisse o deflo ram ento d a m ulher. O N ovo Código Civil re tirou a inda os d ispositivos da Lei de 1916 que colocava o hom em com o chefe e represen tan te legal d a família e a m ulher com o m era co laboradora d o m ari do nos encargos de família. A gora, pe lo casam ento , hom em e m u lher a ssum em m u tu am ente a condição de consortes e responsáveis pelos encar gos d e família, p odendo , qua lquer dos nuben tes, querendo , acrescer ao seu o sobrenom e d o outro. D iga-se a propósito , que a nosso ver, o u so d e n om e do m arid o p e la m ulher, tem u m a conotação sim bólica, não a p e nas ligada ao d ire ito d e personalidade , m as q u e significa d o m inação. Assim , o C ódigo Civil, em sua redação orig inal d is p u n h a q ue a m u lher era obrigada a acrescentar os apelidos do m arido , m as pod ia perder esse nom e ao ser condenada na ação de desquite. 1 5 8 CIOAQANiA DA MULHER, U M A Q U E S T à O DE JUS^ÇA C om a Lei do Divórcio, em 1977, o acréscim o d o n om e tor- nou-se facultativo. M as qu an d o da separação judicial, a facul d ade de con tinuar a u sa r o nom e do m arido som ente passou a ser faculdade se a m ulher fosse inocente, ou seja, a vencedora. Caso fosse a pa rte vencida, deveria voltar a u sa r o n om e de solteira, com o se lhe fosse im posta u m a apenação. O N ovo C ódigo Civil seguiu essa linha, p rev en d o que o cônjuge dec la rado cu lpado na ação de separação judiciai p e r de o d ireito de usar o sobrenom e do outro, m as im põe ressal vas: desde que expressam ente requerido pelo cônjuge inocente e se a a lteração não acarretar preju ízo para a sua identifica ção; h o u v e r m anifesta d istinção en tre o seu nom e de família e o dos filhos hav idos da união dissolvida ou de ou tro dano reconhecido na decisão judicial. Im possível tam bém falar do o rdenam en to juríd ico sem fa lar d as m ulheres na órbita do Judiciário: as advogadas, juízas, p rom oto ras e delegadas. É certo que a inda não tivem os n e n h u m a m u lher no Suprem o T ribunal Federal e recentem ente tivem os a prim eira m ulher no Superior T ribunal de Justiça, m as já começa a q u eb ra r o conservadorism o d o P o d e r Judici ário, que, aliás, já conta com um a notável participação d e juízas no p rim eiro g rau d e jurisdição, que e s tudaram e se ded ica ram aos es tudos jurídicos, a té que, com sua com petência e ca pac idade , ingressaram na m agistratura. A participação das m ulheres n a esfera jurídica é sem d ú v i d a u m a queb ra dos valores m achistas. Mas, conform e obser vou M aria Berenice Dias (2002), "indispensáz^eJ se faz perquirir se a inserção das mulheres nas carreiras jurídicas afetou o contexto das decisões judiciais, passando elas a exercer o papel de agentes modificadoras do conservador modelo vigorante". MULHERES: UMA VIDA DE LUTAS E CONQUISTAS A p rópria au tora constata que a resposta é negativa, pois em bora tenham consciência da necessidade de m udanças , elas não ro m p em com os códigos e p ad rões vigentes: "Ní?o basta o aumento do número de magistradas para cjue determinados comportamentos sejam alterados, com o estabe lecimento da igualdade, o fim da discriminação e a eliminação da violência contra a mulher. Necessário, em um primeiro momento, desmistificar a idéia sacralizada da família. Consi derada como a responsável pela organização social, em que se desenvolve o senso de justiça e cidadania, estrutura-se, no entanto, de forma hierarquizada, tão-só pela diferença dos se xos, restando à mulher sempreum pape! de subordinação". C on tudo , com o p róprio afirm a a autora , a voz diferente das m u lheres acaba po r alterar o contexto das decisões judiciais, p o d e n d o com isso trazer sentenças não m ascu lin izadas e que trazem um a visão fem inina do cotidiano. CONSIDERAÇÕES FINAIS C om o d em onstram os, não há com o n egar q ue nós, m u lh e res, p ro tagon izam os as g randes m udanças que aconteceram no m u n d o no ú ltim o século: no trabalho, na m úsica, na litera tu ra , na po lít ica , na c o m u n id a d e , n as u n iv e r s id a d e s , no o rd en am en to jurídico, na rua e em casa. Em tudo e em todos os lugares estamos reivindicando nossos direitos, em especial o direito à cidadania. E, com isso, estamos a cada m inuto fortalecendo nossa participação no espaço público. Desta form a, o sexo frágil e belo não parece m ais ser tão frágil assim , bem com o tam bém passou a lu ta r pelos m esm os d ire ito s q u e os h o m en s , sem a b a n d o n a r os p a râ m e tro s e referenciais fem ininos, p reservando a sua fem inilidade, a sua 1 6 0 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA beleza n a tu ra l, a sua m istic idade e sua sim patia. Salientam os que as vitórias realm ente foram m uitas, m as nem p o r isso nos acom odarem os. C ontinuarem os questionan d o as crenças e valores que m antêm os papéis tradicionais do hom em e da m ulher, revendo a organização fam iliar; e reiv in d icando d ire itos p a ra que as instituições es tim ulem os ind iv í du o s a se transform arem em sujeitos políticos. Enfim, enfatizam os que, nós, m ulheres, lu tam os sem pre em toda a h istória d a hum an id ad e , estivem os p resen tes em todos os acontecim entos, quer seja na política, na sociedade ou em casa, m as a glória sem pre foi a tr ibu ída ao hom em . C on tudo , estam os ro m pendo a nossa inv isib ilidade h istó rica e nos fortalecem os a cada m om ento com o cidadãs. E afir m am os com toda a von tade q u e con tinuarem os e n q u an to for preciso b a ta lh an d o po r respeito, po r d ign idade , queb rando b a rre ira s e preconceitos, e rran d o , a p re n d e n d o , acertando , d a n d o a volta p o r cima, a té conseguirm os o reconhecim ento da guerreira que som os e d a nossa capacidade. C ontinuarem os com nossa garra na busca pela efetiva igual d a d e de d ire itos na sociedade e pela verdade ira c idadania, que não é som ente um a questão de direitos, m as, acim a de tudo , de justiça. Persistiremos finalmente batalhando enquanto for preciso, incessantemente, por nosso espaço na sociedade, pois, afinal, o que nós queremos, não é sermos m elhores que os hom ens, nem dom inar a sociedade e quanto m enos ainda dem onstrar um a fal sa superioridade entre sexos, que na verdade não existe. N ão querem os ser sexos opostos. Q uerem os ser sexos com- p lem entares, com postos, na m ed ida que tem os d ire itos iguais. E, com isso, jun tos, constru irm os u m a sociedade m ais d e m o crática, sem violência e justa. MULHERES'. UMA VIDA DE LUTAS E CONQUISTAS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ACKELSBERG, M artha. Ampliando o estudo sobre a participação das mulheres. M ulheres, H istória e Fem inism o, 1996. DIAS, M aria Berenice. Uma ]ustiça feminina? Boletim NEGUEM N ° 1 8 - a n o 10 -2002. PUGA, Vera Lúcia. Boletim NEGUEM N° 18 - ano 10 - 2002. VACCARI, Vera Lucia. Projeto cidadania e gênero: superando a violência contra a mulher. Boletim NEGUEM N ° 18 - ano 10 - 2002 . VASCONCELLOS, Eliane Leitão. A mulher na língua do povo. Belo H orizonte: Itatiaia, 1988. 1 6 3 REGIME DE BENS N O CASAM ENTO À LUZ D O N O V O CÓDIGO CIVIL Maria Bernadeth G onçalves da Cunha Consa. Federal da OAB/BA Membro efetivo da CNM Á/O AB/CF Presidente do IBDFÁM /BA C om a in trodução da Lei 6 .515/77 no o rd en am en to ju ríd i co brasileiro , a cham ada Lei do Divórcio, a sistem ática d o re g im e d e bens no casam ento sofreu a lgum as m udanças . Antes v igorava o regim e da com unhão universal de bens, que era o legal, caso ou tro não fosse escolhido pelos nuben tes. D enom ina-se regime legal, aquele im posto pela lei. Será convenciona l o u con tra tua l, en tre tan to , q u a n d o e s tipu lado pelas pa rtes po r m eio de pacto antenupcial, que deverá ser feito exclusivam ente po r escritura pública, sob p e n a de su rtir n e n h u m efeito, sendo, portan to , nu lo de p leno direito. N o C ódigo Civil anterior, p rec isam ente n o d isposto no art. 258, caput, com a redação d o art. 50 d a Lei 6.515/77, ficou expressam ente estabelecido que o regim e legal era o da co m u n h ão parcial de bens. Já os incisos d o parág rafo único do citado a rtigo d iscorriam sobre os casos d e o b riga to riedade da separação d e bens no casam ento. Com o advento da Lei n" 10.406, de 10 de janeiro de 2002, novo 1 6 4 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA Código Civil brasileiro, em vigor, o regime de bens no casam ento sofreu novas m udanças, consoante se dem onstra rá adiante. O regime da com unhão parcial de bens continua a ser o regi m e legal, conforme disposto no art. 1.640, que assim se expressa: "Art. 2.640 - Não havendo convenção, ou sendo nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônju ges, 0 regime da comunhão parcial". Assim, p o d em as pessoas, antes d o casam ento , estipular, livrem ente, d en tre os qua tro regim es adm itidos pelo Direito pátrio , o que m elhor lhes aprouver, respeitadas , en tre tan to , as disposições legais constantes do art. 1.640. U m a d as n o v idades trazidas com o novo C ódigo é a que p erm ite que o regim e de bens seja m odificado após o casa m ento , o q ue era expressam ente pro ib ido no C ódigo anterior. C om efeito, d ispõe o novo Código (§ 2“, art. 1.639) que "é adm iss íve l alteração do regime de hens, m ed ian te a u to r iza ção jud ic ia l em pedido m o tiva d o de am bos os cônjuges, apu rada a procedência das razões invocadas e ressa lvados direi to s de terceiros". É de observar-se que a m udança do regim e só é adm itida em p ed id o m otivado ao m agistrado , ten tando a lei com essa p rov idência p reservar a estabilidade d a família tam bém no p lano patrim onia l, assim com o a segurança das even tua is re lações trav ad as com terceiros. O reg im e d e bens começa a v igorar desde a d a ta da cele bração d o casam ento. Pelo Código atual, os nuben tes p o d em o p ta r po r u m dos qua tro regim es postos à sua escolha, o u seja, o d a com unhão parcial, que continua sendo o reg im e legal, o da com u n h ão universal, o da participação final d o s aqüestos e o da separação d e bens. N ão h avendo pacto an tenupc ia l ou REGIME DE BENS NO CASAMENTO À LUZ DO NOVO CÓDIGO CIVIL 1 6 5 ob riga to riedade do regim e de separação de bens, p revalece rá, assim , o regim e da com unhão parcial. Deve-se a inda p o n d e ra r sobre a possib ilidade de m od ifi cação d o regim e d e bens para as pessoas casadas sob a égide d o C ódigo an terior, po rque a priori esta m u d an ç a estaria v e d a d a em razão d o p rincíp io da irre troa tiv idade d a lei. N ão é justo , en tre tan to , que as pessoas casadas na vigência d o C ódigo an terio r fiquem to lh idas de exercer o d ire ito de m u d a r o reg im e se o seu casam ento con tinua em vigor, razão po r que en tendem os que esse d ireito lhes assiste tan to quan to às pessoas casadas após a vigência do novo Código. Este, en tre tan to , é assun to polêm ico e p or isso m esm o d e m a n d a rá ac irradas discussões da dou trina e decisões d ivergen tes da ju risp rudência , cremos. Observa-se, em boa hora, a acertada exclusão d o regim e dotal. N esse regim e, era essencial a descrição dos bens, assim com o sua avaliação ind iv idua l na p rópria escritura e a decla ração expressa de que o dotal era o regim e escolhido. O C ódigo an terio r dedicava n ada m enos que trin ta e q u a tro artigos àquele regim e, que nunca teve a m en o r aceitação en tre nós, da í p o r q ue com m uita p ro p rie d ad e ele foi abolido pelo C ódigo atual. É im p o rta n te assina la r que o novo C ód igo Civil, a exem p lo d o an te rio r, lista os casos d e ob r ig a to ried ad e d a se p a ra ção d e bens , no art. 1.641, incisos I a III, v a le n d o des taca r a inovação d a id ad e d o s n u b e n te s p a ra esses casos, q u e ficou u n ifo rm izad a em 60 (sessenta) anos, tan to p a ra o hom em , q u a n to p a ra a m ulher. C onquan to se possa e n tender que h ouve u m avanço com a m ajoração d a id ad e d a m ulher, d e 50 pa ra 60 anos, constitui- se, a inda, n u m atraso a idéia de fixar-se idade lim ite p a ra ca- 1 6 6 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA sarnento com separação d e bens de pessoas m aiores e capazes n o uso e gozo d e seus direitos civis e políticos. A dm itiu-se com o compreensível que em 1916 tais limitações existissem, po rquan to a qualidade de v ida era d iferente e as pessoas envelheciam precocemente, p o dendo considerar-se se nil aos 60 (sessenta) anos, o que não é o caso dos tem pos atuais. Portanto, esse "cu idado" exagerado da lei não se justifica. As pessoas capazes com m ais de 60 (sessenta) anos sabem e p o d em escolher o regim e de bens que lhes aprouver, não n e cessitando desta absurda limitação im posta pelo novo Código. Feitas essas considerações iniciais, vejam os, agora , as sin gu la ridades de cada regime. REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL DE BENS N esse tipo de regime, os bens que cada u m dos cônjuges ad qu ir ir antes d o m atrim ônio , assim com o aqueles q ue forem do ad o s o u herdados , estarão excluídos d a com unhão , salvo se a doação ou herança for concedida em favor de ambos. Frise-se, p o r oportuno , que os bens adqu ir id os na constân cia d o casam ento , a título oneroso ou p o r fato eventual, afora aqueles casos acim a citados, com unicam -se, ou seja, p e rte n cem ao casal. Estes bens en tram na com unhão m esm o q ue te n h a m sido adqu ir idos em nom e de um só dos cônjuges. N essa espécie de regim e, a adm inistração dos bens com uns com pete a qua lquer dos cônjuges, d iferen tem ente d o esta tu ído n o C ódigo an terio r em que se observava a presença m ais forte da sociedade patriarcalista. O s bens com uns respondem pelas obrigações con tra ídas pe lo m arido o u p e la m ulher pa ra a tend im en to a encargos da família, às despesas de adm inistração e às decorren tes d e im posição legal. REGIME DE BENS NO CASAMENTO  LUZ DO NOVO CÓDIGO CIVIL 1 6 7 A adm in istração e a disposição dos bens constitu tivos do pa tr im ôn io particu la r com petem ao p roprie tário , salvo se h o u ver convenção d iversa em pacto antenupcial. As d ív idas con tra ídas p o r q ua lquer d os cônjuges n a a d m i n istração d o s seus bens particu lares, e em benefício destes, n ão obrigam os bens com uns. REGIME DA COMUNHÃO UNIVERSAL DE BENS. C onsiste na im ediata com unicação de todos os bens p re sen tes e fu turos, assim com o das d ív idas passivas, observa das as exceções expressas na legislação vigente. Escolhido este regim e, os cônjuges têm consciência d e que n in g u ém é titu lar de um a cota p rópria de que possa gozar e d ispor, m as am bos titu lares do todo. P o r isso, m esm o ocor ren d o a d isso lução da sociedade ou d o v ínculo conjugal, por m orte d e u m d os cônjuges, transm ite-se aos he rde iros apenas o pe rcen tua l q u e lhe toca da m eação do “àe cu]us", po rque a ou tra m etade, e m ais um a parcela da herança, pertence ao côn juge supérstite . Sendo este considerado um regim e convencional, p a ra que prevaleça necessário torna-se que os nubentes celebrem o pacto an tenupcial, sob p ena de n u lidade ou ineficácia. O C ó d ig o C ivil b ras ile iro , n o e n ta n to , es tabe lece qua is são os b e n s e xc lu ídos d a c o m u n h ã o , q u e es tão e n u m e ra d o s e x a u s t iv a m e n te n o s incisos I a V d o art. 1.668, q u e d e s ta c a m o s a seguir: "Art. 1.668. São excluídos da comunhão: I - os bens doados ou herdados com a cláusula de incomunicabilidade e os sub-rogados em seu lugar; II - os bens gravados defideicomisso e o direito do her- 1 6 8 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA deiro fideicomissário, antes de realizada a condição suspensiva; III - as dívidas anteriores ao casamento, salvo se provi erem de despesas com seus aprestos ou reverterem em proveito comum; IV - as doações antenupciais feitas por um dos cônju ges ao outro com a cláusula de incomunicabilidade; V - o s bens referidos nos incisos V a VII do art. 1.659.'' REGIME DA SEPARAÇÃO DE BENS A característica desse regim e cinge-se ao fato d e cada côn juge conservar o que é seu pa ra si, o u seja, os b ens pe rtencen tes a cada cônjuge, quer os adqu iridos an tes do casam ento , q u e r os aqüestos, são incom unicáveis. E stipu lada a separação de bens, estes perm anecerão sob a adm in istração exclusiva de cada u m dos cônjuges, q ue os p o de rá a lienar liv rem ente ou gravá-los de ônus real. Este regim e tan to po d e ser convencional q uan to legal. Será legal quan d o houver imposição da observância aos casos p re s critos no art. 1.641, incisos I a III. Em a lguns casos, esta exigência tem caráter pun itivo , em outros, absu rdam en te , com o pré-dito , funciona com o m ed ida acau te ladora de interesses particulares. N este tipo de regim e, se convencional, p revalecerá a co m u n h ão dos bens adqu iridos n a constância d o casam ento , se não h o u v e r c láusula expressa n o respectivo con tra to d isp o n do de m o d o diverso. Percebe-se, assim , que a com unicação dos aqüestos só é p resu m id a nos casos de silêncio do contrato, nunca , po rém , nos casos d e im posição legal. REGIME DE BENS NO CASAMENTO À LUZ DO NOVO CÓDIGO CIVIL O s cônjuges são obrigados a contribu ir p ro porc ionalm en te aos ren d im en to s d e seu traba lho e d e seus bens , p a ra as d e s pesas d o casal, se de m ane ira d iversa não tiver s ido con v en cionado. REGIME DA PARTICIPAÇÃO FINAL DOS AQÜESTOS. Este reg im e é a g rande n ov idade e substitu i em boa ho ra o reg im e dotal, que, com o dito, jam ais v ingou en tre nós. Assim, não há co rresponden te no Código anterior. Por este regim e, todos os bens que p ertenc iam a cada côn juge ao casar, assim com o aqueles p o r cada u m deles ad qu ir i dos, a qua lquer título, na constância d o casam ento , in tegram o pa tr im ôn io p róp rio de cada um. O s bens p róp rio s d e cada u m são de sua exclusiva adm i nistração, não se adm itindo nenhum a ingerência d o outro, nem m esm o p a ra aliená-los, se forem móveis. O s bens im óveis são de p ro p ried ad e d o cônjuge cujo nom e constar d o respectivo registro, en tre tan to , a t itu la r idade p o d e rá ser pe lo ou tro im pugnada . É im portan te assinalar que neste regim e o direito à m eação é irrenunciável, im penhorável, e não-cessível.Caso sobrevier a dissolução da sociedade conjugal, os aqüestos serão apurados, excluindo-se, evidentemente, do m onte, os bens próprios, sejam eles anteriores ou não ao casam ento , ad q u ir i dos p o r sub-rogação, liberalidade ou sucessão. A s d ív idas re lativas a esses bens tam bém serão excluídas, na tu ra lm ente . Vale ressaltar a inda que se um dos cônjuges fizer algum a alienação dos aqüestos sem a im prescindível autorização do outro, os valores serão apurados para partilha ou reivindicação pelo cônjuge ou herdeiro prejudicado na época da dissolução. 1 7 0 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA Entretanto , se os bens forem adqu ir idos p o r am bos, cada u m terá sua cota no condom ínio ou no crédito po r aquele m odo estabelecido. As d ív idas superven ien tes à m eação são da obrigação de quem as contraiu , se em benefício p róprio . Essas são as principais nov idades ap resen tadas pelo novo C ódigo Civil n o tocante ao regim e de bens, q ue na nossa ótica a figuram -se relevantes, pertinentes e a d eq u ad as ao m om ento histórico em que vivemos. 1 7 1 MULHER DE HOJE Maria Regina Purri Arraes Advogada, Membro da Comissão Nacional da Mulher Advogada do Conselho Federal da O A B ; Fundadora da Comissão Permanente da Mulher Advogada - OAB/RJ ; Fundadora do Colégio Brasileiro das Mulheres Advogadas. É inegável que as m ulheres se p repararam para estarem hoje ocupando os postos que vêm alcançando. N a verdade, em ter m os profissionais e intelectuais não existem m ais limitações para o sexo feminino. N o entanto, sob o aspecto político a situação se modifica, pois a inda estam os engatinhando no que d iz res peito à m aleabilidade, estratégias de ação e visão clara dos m ei os utilizáveis para a ocupação do espaço político. P or isso, a participação das m ulheres é m aio r e m ais visível no espaço público, on d e o sistem a constitucional d e concur sos pa ra os cargos não perm ite a escolha sob o critério da p o lítica, m as sim da com petência, funcionando a equivalência salarial daque les cargos com o m ais u m estím ulo às m ulheres que ingressam nas carreiras públicas. O Judiciário tem sentido o efeito desta rea lidade . Os ú lti m os concursos pa ra M agistra tura , M inistério Público, P rocu rado rias etc. m ostram u m a m aioria fem inina a p ro v ad a , quase sem pre nos p rim eiros lugares. 1 7 2 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA N os T ribunais Superiores som ente nos ú ltim os anos con seguim os fazer chegar a lgum as M inistras, que m uito an tes de o serem , e ram já consideradas, todas, com o brilhantes juris tas. N o en tan to foi necessário um im enso esforço e trabalho político p a ra que elas alcançassem as nom eações, f ru to d e p e r m anen te conscientização d a necessidade de adoção das es tra tégias d a igualdade , pelo p o d e r público. A propósito , existe p ro je to d e e m e n d a co nstituc iona l d e a u to r ia d o S e n a d o r Severino C avalcante d e te rm inando a inserção d o critério de a lternância obrigatória de sexos pa ra as nom eações dos fu tu ros M inistros dos T ribunais Superiores, p rerrogativa hoje ex clusiva d o P residente d a República. D entro d a OAB, ap esa r de não h aver um a dec la rada discri m inação, o núm ero de m ulheres em cargos d e destaque é m uito pequeno . Somos, as advogadas, m etade dos inscritos n a O r d e m e, po rtan to , responsáveis pela m etade do o rçam ento da Instituição. N o en tan to a participação fem inina n os cargos de Conselheiras Federais ou Seccionais, D iretoras etc. não a tinge 15% d o total. À evidência, a discrim inação ve lada tem to rn a d o m uito m ais difícil a superação d a questão , posto não h a v e rem oposições claras e po rtan to francam ente com batíveis, p e r p e tu a n d o o ciclo vicioso. De toda sorte, as m ulheres conheceram um a grande evolução nas últimas décadas que, apesar de m uito desejada, trouxe tam bém aspectos negativos e antes desconhecidos para todos nós. A s conseqüências desta evolução pe rm an en te são, en tre outras, o enorm e núm ero de m ulheres vítimas d e infarto, stress etCv a lém d e u m a dim inuição d a qua lidade da v ida familiar. C om o to d a revolução p ressupõe lu ta e adap tação aos novos tem pos, tam bém a nossa, fem inina, tem nos c obrado u m p re ço significativo. ÉTICA E PROFISSÃO N o en tan to , é im pensável qua lquer retrocesso p o rq u e nós nos acostum am os a tom ar decisões in d ep enden tes , e os h o m en s - p o r um a recusa sistem ática de ap re n d e r com o lidar com essa nova m ulher - estão am edron tados e am eaçados com um a rea lidade pa ra a qual não se p repara ram . N os resta , às m ulheres, cam inhar e ir ab rindo p o rtas e janelas que p e rm i tam ao o u tro a v isão do n ovo cam inho que se abre. É v e rd ad e que a subjetiv idade fem inina tem tido u m a rele vância p rim ord ia l nestes ú ltim os anos. A ssim , o o lhar fem ini no sobre os fatos conduz a u m raciocínio (e, m u ita s vezes, a u m a decisão) oposto àquele tom ado se ana lisado sob o p r is m a m asculino. M as afinal não som os, hom ens e m ulheres , tão d iferentes assim . Buscam os am bos, m e parece, a felicidade, a inda que ela tenha conotações d iferentes p a ra uns e outras. A g ran d e tarefa, qu an d o já tem os um a legislação igualitá ria é, sem dúv ida , tirar d o pape l esses novos d ire itos e colocá- los n o dia-a-d ia das m ulheres pa ra exercê-los, e, n o dia-a-dia d o s h om ens p a ra respeitá-los. U m a d as iniciativas de concretizar esses d ire itos acim a re feridos, foi o projeto de lei da en tão v ereadora, a m édica Ana Lipke, na c idade do Rio de Janeiro, q ue o b rigou os serv idores públicos a in fo rm ar às m ulheres v ítim as d a v iolência d o es tu p ro de que elas têm direito de fazer aborto legal e gratuito . Ora, a questão está tipificada no código pena l - o aborto legal - desde 1940. O projeto alcançou g rande repercussão den tro da p ró p ria C âm ara d e V ereadores e n a soc iedade em geral, m erecendo a tenção especial da m ídia e com bate ferrenho dos setores religiosos a té ser finalm ente ap rovado ; po rém , a inda hoje, encontra resistência em sua aplicação. Constata-se, então, que é preciso trazer à lum e a questão CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA da hipocrisia e a d u b iedade que ela gera. C om o é afinal? Exis te a lei há m ais d e 60 anos e não se p o d e inform ar à popu lação sobre os d ire ito s q u e ela lhe confere? Q ue ética é essa que p ro m u lg a um a lei m as tenta im ped ir que se d iga d a sua exis tência? A resposta im ediata é a form a d e fazer política p ra ti cada pelos hom ens, en q u an to gênero, bem diferen te d o senso com um das m ulheres. N esse aspecto, ético, parece-m e que as m ulheres são mais posic ionadas, funcionando com o p êndu lo s à busca do equilí b rio , com transparênc ia e firmeza, n u m jogo em que m uitas vezes são vencidas p o r terem explicitado c laram ente seus ob jetivos finais, com prom isso condu to r d e sua atuação. A diferença foi explicada pelo conhecido Joosteen G aardner’, qu an d o assinalou que "os hom ens estão p reocupados com a própria carreira e as m ulheres em desem penhar-se bem das ta refas que escolheram " - leia-se, ambição versus dedicação. Q u a n to à a dap tação do h om em à nova rea lidade , os m ov i m en to s neo-fem inistas se encam inham agora p ara u m a so lu ção q u e p arece m u ito lógica, sensível e realizável. A esse respeito , recentem ente, o psicanalista José Renato A vzarade l fez publicar artigo em q u e afirma: "são p oucos os h om ens que se pe rm item cam inhar pela sensibilidade, sem ter m ed o de que isso possa ser visto com o expressão d e ho m ossexualidade". Pena que, na seqüência d e seu raciocínio, e rroneam en te , tenha acusado as m u lheres em an c ip ad as de haverem " e m p u rra d o " o hom em para a situação crítica em q u e se e n c o n tr a m , c o n c lu in d o p e la n e c e s s id a d e d e se au toperm itirem - os hom ens ~ "a revelação d o universo afetivo m asculino". 'Joosteen Gaardner, sociólogo e escritor nõrdico, autor de “A Escolha de Sofia", sucesso mundial da literatura moderna. ÉTICA E PROFISSÃO T rabalham os m uito , nos ú ltim os anos, pa ra obter a nossa independênc ia e com eçam os já a colher os f ru tos deste traba lho, a inda que persis tam espinhos e asperezas. P o r isso, ago ra, concordo q ue os nossos esforços deverão ser parc ia lm ente d irig idos p a ra conscientizar e capacitar os h om ens a convive rem e u su fru írem o p raze r de partilhar a com panh ia de m u lheres que não são suas dependen tes , que não são subm issas a eles. M ulheres que além de com panheiras possam ser p a r ceiras com peten tes na construção da nova sociedade que se deseja. M ulheres q ue livres para voar escolham o n in h o com o hab ita t e o parceiro com o coadjuvante na p o n te en tre a luta e o sonho, o m asculino e o fem inino, enfim, m ulheres realiza d as e com p raz e r de terem nascido m ulheres. Afinal o m u n d o passou tan tos séculos se o rien tando pela ótica m asculina e os resu ltados foram conhecidam ente desas trosos: guerras , d ispu tas de p oder, destru ição, ganância, d ro gas, violências, u rg indo refletir sobre um a m u d an ç a m ais p ro fun d a e abrangen te , que inclua e valorize o fazer fem inino, com os benefícios que ele possa trazer à sociedade. N ão res tam d ú v id as que a pa lavra chave p a ra este novo m ilên io seja PARCERIA, aí incluído o respeito às diferenças e à solidariedade.^ ^Interferência proferida no Seminário "Mulher. Direito e Sociedade” promovido pelo Consulado dos Estados Unidos, em parceria com a Universidade Estadual do Es tado do Rio de Janeiro, por ocasião da visita de m agistradas americanas (atualiza do em 2003). 1 7 7 ÉTICA E PROFISSÃO Rosangela Maria Carvalho Viana Conselheira Federal da OAB}CE Membro da Comissão Nacional da Mulher Advogada Karinne Matos de Lima e M elo Presidente da OAB Mulher/CE 1. A ética A Ética tem inegável influência em nossas v idas, seja pela história pessoal de cada ind iv íduo , seja pela escala subjetiva de axiom as inerentes à índole de cada u m d e nós. Valores es tes a rra igados em nosso cotidiano que serão levados ao agir ind iv idua l, de lineando desta feita sua condu ta profissional. T ratar d a p rem issa ética é d ram a de inegável d ificu ldade já que pene tram os, tam bém , nos m eand ros d o subjetivism o, in d iv idualism o, da felicidade persegu ida p o r cada um d e nós, pois está relacionada com a m oral ind iv idual. Buscar um com po rtam en to ético m u itas vezes quer d izer a busca em basada em dire trizes de u m com portam en to cond izen te com os ide ais d e u m a sociedade livre, justa e igualitária. 2. A ética e a profissão U m dos pa rad ig m as da ética, e aqui v im os tra tar, po is acre d itam os ser de vital im portância pa ra a sociedade com o um 1 7 8 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA todo, é do com portam en to ético do profissional em todos os d o m ister que abraçou ou que p re tende abraçar. Portar-se de m aneira salutar, quer d izer, portar-se den tro de p a d rõ es valorativos, m orais, buscando a inda u m a reflexão lógica e o rien tadora d a conduta profissional. Torna-se fu n d a m enta l a abordagem deste tem a, pois hoje m ais do q ue outro- ra há u m a destinação pública das profissões, u m a vez que se d irigem à coletiv idade devendo ser respeitadas e cu ltivadas n o seio de todas as profissões. O ho m em em pós-acirrada bata lha p a ra sentar-se nos b a n cos da u n ivers idade e depo is de u m arcabouço d e qua tro , cin co, seis anos d e busca pelo conhecim ento específico e técnico de cada a tiv idade já chega lá com conceitos en ra izados e que os im prim irá e o guiará em seu m ister profissional. Caso em seu âm ago destaquem -se valores com o honestidade , fidelida de, paciência, tolerância, respeito e hum ildade , ele tam bém transm itirá a ou trem a sua experiência com o ind iv íduo , fa zendo prevalecer a ética em seu cotid iano profissional. Podem os destacar com o grave equívoco a n ão -abordagem d a disciplina ÉTICA PROFISSIONAL com o m atéria d e ensi n o obrigatório nas universidades, pois os profissionais m ais d o q u e n u n ca som en te estão v isando ao en g ran d ec im en to m onetário , m ercantilista; n o entanto , o g rau d e satisfação que o ganho m ateria l n os oferece está lim itada as nossas facu lda des intelectuais, e o im portan te é que nós sejam os seres h u m anos m ais aprim orados e nossos atos possam contribuir para o bem -estar d a sociedade. Q uan to m ais nos ded icarm os ao próx im o e reconhecerm os as nossas fraquezas, m ais ética será a nossa conduta , não esquecendo que todo arcabouço de co nhec im entos a d q u ir id o s d u ra n te a v id a in te ira te rão im p o r tânc ia e v a l id a d e q u a n d o a liados ao con h ec im en to e p r á t i ÉTICA E PROFISSÃO ca d a c o n d u ta é tica , p o is ho je as p ro f is sõ e s têm c a rá te r p u b lic iza n te e d e v e m co n tr ib u ir tam b é m p a ra o e n g ra n d e - c im en to m o ra l da soc iedade , fazendo a ss im crescer o ser h u m a n o d e n tro d e u m con jun to d e reg ra s q u e reg e m um a co m u n id a d e . Esse caráter public izante das profissões se explica pela im portânc ia d o trabalho p o r elas rea lizado e pela consciência daqueles que necessitam destes serviços profissionais, já que à m ed id a que o Estado hod ierno vem e n v e red an d o esforços no sen tido de dem ocratizar a sua fina lidade social passando , p o r conseguinte, a fornecer serviços básicos e ind ispensáveis à busca incessante pela Justiça e pela o rd em social. É necessário e p o rque não d izer im prescindível o dever de prevalecer en tre o profissional e o cliente u m relacionam ento d e seriedade, confiança, fidelidade e franqueza. O ra, cediço que o profissional não é obrigado a de te r m totum a im ensidão d e conhecim entos que rodeiam sua área profissional, en tre tanto , d eve conhecer s im seus limites, ter parc im ônia e hones tidade q u a n d o n ão p u d e r ou não souber so lucionar o prob le m a repassado pelo seu cliente, devendo , sem tem or, d em o n s tra r sua im possib ilidade d e buscar solução a d e q u ad a a difi culdades, dem onstrando assim relação obrigacional lógica com valores sem p re insertos em qua lquer profissão. 3. A ética e o advogado C abe ao advogado , aqui em especial, e assim o C ódigo de Ética preleciona que o m esm o não deve partic ipa r de form a subjetiva dos p rob lem as afetos aos seus clientes, deve repas sar p a ra o papel, ou m elhor, elaborar a peça com acu idade, destacando vocabulário claro, objetivo, e v itando a taques p es soais à parte adversae ao colega que pa troc ina os interesses 1 8 0 CIDADANIA DA MULHER, UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA opostos. É necessário o tra tam ento ético en tre todos, respeito, e consideração m útuos , sem m edo de desag rad a r o m ag is tra d o o u o rep resen tan te do M inistério Público, b u scan d o a ap li cação do Direito da m elhor forma. A presentar, q u a n d o neces sário, as form as d e insatisfação d en tro dos rigores legais con tra a decisão judicial de form a escorreita e p ruden te . A credito q ue o exercício d a advocacia com base no E sta tu to, no qua l estão regu lados cânones do bem proceder, ju n ta m en te com o C ódigo de Ética e a existência de u m Tribunal que, além d e regu lam entar condutas, fiscaliza os profissionais, ap licando q u a n d o necessário pun ições aos faltosos a té com advertência , suspensão e cassação do reg istro profissional, destaca-se de form a sa lu ta r para a publicização e valorização daquele profissional que alia seu conhecim ento técnico e ci entífico com a m ora lid ad e e a honestidade , desem bocando indub itavelm en te na valorização da profissão de advogado de carreira e a proteção da categoria, m uitas vezes a tacada de form a injusta. A cred itam os ser ind ispensável, p r inc ipalm en te nos tem pos hod iernos, a abordagem deste tem a tão p resen te em to dos os m om entos d e nossas vidas. As u n ivers idades devem p reocupar-se em ofertar condições físicas e in telectuais para busca não som ente do aprend izado técnico m as, p r inc ipalm en te, buscar a qualificação m oral e ética dos profissionais que ingressarão no m ercado de trabalho. N ecessário se faz com o d iscip lina obrigatória , o ap ren d izad o d a ética profissional, p r in c ipa lm en te n o tra tam en to profissional do o p e ra d o r do d ire ito com o constitu in te, com o ou tro colega, com o ind iv í d u o e com a p rópria sociedade. IMPRESSÃO: ÍGH Mana • RS • Fone/FsK: (55] 222 3050 vwAv.p#H@M eom.br Com himss hméckfos. " a força das mulheres não está nos músculos, mas no cérebro, na extre ma dedicação, na vontade de vencer. Essas são as armas utilizadas na ver dadeira guerra que vêm travando, pela justa conquista de espaço e pelo reco nhecimento de seus méritos por parte de toda a sociedade." Rubens Approbate Machado Presidente Nacional da OAB