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OAB ENSINO JURÍDICO – O FUTURO DA UNIVERSIDADE E OS CURSOS DE DIREITO: NOVOS CAMINHOS PARA A FORMAÇÃO PROFISSIONAL DIRETORIA Roberto Antonio Busato: Presidente Aristoteles Dutra de Araújo Atheniense: Vice-Presidente Raimundo Cezar Britto Aragão: Secretário-Geral Ercílio Bezerra de Castro Filho: Secretário-Geral Adjunto Vladimir Rossi Lourenço: Diretor Tesoureiro CONSELHEIROS FEDERAIS AC: Marcelo Lavocat Galvão, Roberto Ferreira Rosas, Sergio Ferraz; AL: João Tenório Cavalcante, Marcelo Henrique Brabo Magalhães, Marilma Torres Gouveia de Oliveira; AP: Adamor de Sousa Oliveira, Guaracy da Silva Freitas, Sebastião Cristovam Fortes Magalhães; AM: Alberto Simonetti Cabral Neto, João Thomas Luchsinger, José Paiva de Souza Filho; BA: Antônio Luiz Calmon Navarro Teixeira da Silva, Jeferson Malta de Andrade, Newton Cleyde Alves Peixoto; CE: Antônio Cézar Alves Ferreira, José de Albuquerque Rocha, Paulo Napoleão Gonçalves Quezado; DF: Amauri Serralvo, José Eduardo Rangel de Alckmin, Marcelo Henriques Ribeiro de Oliveira; ES: Antonio José Ferreira Abikair, Ímero Devens, Luiz Cláudio Silva Allemand; GO: Ana Maria Morais, Felicíssimo José de Sena, Thales José Jayme; MA: José Brito de Souza, Raimundo Ferreira Marques, Ulisses César Martins de Sousa; MT: Ana Lúcia Steffanello, Elarmin Miranda, Oclécio de Assis Garrucho; MS: Afeife Mohamad Hajj, Elenice Pereira Carille, Vladimir Rossi Lourenço; MG: Aristoteles Dutra de Araújo Atheniense, Gustavo de Azevedo Branco, Paulo Roberto de Gouvêa Medina; PA: Frederico Coelho de Souza, Maria Avelina Imbiriba Hesketh, Sérgio Alberto Frazão do Couto; PB: Delosmar Domingos de Mendonça Junior, José Edísio Simões Souto, Marcos Augusto Lyra Ferreira Caju PR: Edgard Luiz Cavalcanti de Albuquerque, José Hipólito Xavier da Silva, Lauro Fernando Zanetti; PE: Ademar Rigueira Neto, Aluísio José de Vasconcelos Xavier, Cláudio Soares de Oliveira Ferreira; PI: Fides Angélica de Castro Veloso Mendes Ommati, Marcelino Leal Barroso de Carvalho, Nelson Nery Costa; RJ: Alfredo José Bumachar Filho, Márcio Eduardo Tenório da Costa Fernandes, Ronald Cardoso Alexandrino; RN: Francisco Soares de Queiroz, Heriberto Escolástico Bezerra, Luiz Gomes; RS: Cezar Roberto Bitencourt, Reginald Delmar Hintz Felker, Roberto Sbravati RO: Celso Ceccato, Pedro Origa Neto, Romilton Marinho Vieira; RR: Dircinha Carreira Duarte, Ednaldo Gomes Vidal, Francisco das Chagas Batista; SC: Gisela Gondin Ramos, Jefferson Luis Kravchychyn, Marcus Antonio Luiz da Silva; SP: Alberto Zacharias Toron, Mauro Lúcio Alonso Carneiro, Orlando Maluf Haddad; SE: Edson Ulisses de Melo, Manuel Meneses Cruz, Raimundo Cezar Britto Aragão; TO: Dearley Kühn, Ercílio Bezerra de Castro Filho, Manoel Bonfim Furtado Correia. COMISSÃO DE ENSINO JURÍDICO – 2004/2007 Presidente: Paulo Roberto de Gouvêa Medina; Vice-Presidente: José Geraldo de Sousa Júnior; Secretário: Ademar Pereira; Membros Efetivos: Marilia Muricy Machado Pinto, Paulo Roberto Moglia Thompson Flores; Membros Consultores: João Maurício Leitão Adeodato, Milton Paulo de Carvalho, Paulo Roney Ávila Fagúndez, Robertônio Santos Pessoa. Ordem dos Advogados do Brasil Conselho Federal OAB ENSINO JURÍDICO O FUTURO DA UNIVERSIDADE E OS CURSOS DE DIREITO: NOVOS CAMINHOS PARA A FORMAÇÃO PROFISSIONAL Brasília, DF - 2006 CONSELHO FEDERAL © Ordem dos Advogados do Brasil Conselho Federal Distribuição: Biblioteca da OAB/CF Setor de Autarquias Sul - Q. 5 - Lote 2 - Bl. N - Sobreloja Brasília - DF CEP 70070-438 Fones: (061) 3316-9663 e 3316-9605 Fax: (061) 3316-9632 e-mail: biblioteca@oab.org.br Tiragem: 3.000 exemplares Capa: Susele Bezerra Miranda Diagramação: Rodrigo Dias Pereira Revisão: Dacio Luiz Osti FICHA CATALOGRÁFICA O65 OAB Ensino Jurídico - O futuro da universidade e os cursos de direito: novos caminhos para a formação profissional. Brasília, DF : OAB, Conselho Federal, 2006. 272 p. ISBN 85-87260-XX-X 1. Ensino jurídico - Brasil. 2. Direito - Brasil. I. Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Conselho Federal. Comissão de Ensino Jurídico. CDD: 341.41507 CDU: 34.378(81) SUMÁRIO APRESENTAÇÃO Roberto Antonio Busato ..................................................................................... 7 À GUISA DE PREFÁCIO Paulo Roberto de Gouvêa Medina .................................................................. 13 Parte I - Opinião RESPONSABILIDADE SOCIAL DAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR José Geraldo de Sousa Junior ........................................................................ 17 CRISE PARADIGMÁTICA NO ENSINO SUPERIOR: EM BUSCA DO COMPROMISSO COM A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO E A TRANSFORMAÇÃO SOCIAL Magda Chamon ............................................................................................... 39 APRENDENDO DIREITO O DIREITO Marília Muricy .................................................................................................. 57 O ENSINO JURÍDICO: REALIDADE E PERSPECTIVAS Paulo Roney Ávila Fagúndez .......................................................................... 65 O ESTADO ATUAL DO ENSINO JURÍDICO E O PAPEL DO EXAME DE ORDEM Paulo R. Thompson Flores .............................................................................. 87 ENSINAR DIREITO O DIREITO Regina Toledo Damião .................................................................................... 97 ABORDAGEM NEOCONSTITUCIONAL DO DIREITO – POR UMA PROPOSTA PEDAGÓGICA INTERDISCIPLINAR E PROBLEMATIZANTE Robertônio Santos Pessoa ............................................................................ 101 Parte II - Eventos DISCURSO DO PRESIDENTE DO CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, ROBERTO ANTONIO BUSATO, NO VIII SEMINÁRIO DE ENSINO JURÍDICO DO CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL .............................................. 121 RESENHA - VIII SEMINÁRIO DE ENSINO JURÍDICO DO CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL Ademar Pereira .............................................................................................. 127 VIII SEMINÁRIO DE ENSINO JURÍDICO DO CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL Paulo Roberto de Gouvêa Medina ................................................................ 139 SEMINÁRIO EDUCACIÓN Y FORMACIÓN PARA LA JUSTICIA (Costa Rica) Os desafios da problemática atual no sistema universitário ibero-americano; formação contínua e atualização profissional (o papel das Faculdades de Direito, Escolas Judiciais, entidades de classe) Paulo Roberto de Gouvêa Medina ................................................................ 145 Parte III - Documentos Relatório do Grupo de Trabalho - MEC/OAB (Portarias MEC nº 3381/2004 e 484/2005) .................................................................................................... 163 Programação do VIII Seminário de Belo Horizonte ...................................... 261 Programação do IX Seminário de Goiânia ................................................... 265 7 APRESENTAÇÃO Quero, antes de mais nada, sublinhar a importância que atri- buo a esta publicação, que expõe e analisa uma das questões cen- trais da vida institucional brasileira: o ensino jurídico. Considero- o fundamental, sobretudo num país como o nosso, que tem, aci- ma de todas as suas múltiplas carências, esta: a sede de justiça. Justiça no sentido mais amplo do termo, que implica inclu- são social de amplas camadas da população; e justiça no senti- do estrito, institucional, que diz respeito à qualidade da pres- tação jurisdicional em nosso país. Quanto a isso, a reforma do Judiciário está longe de ter chegado a seu objetivo. E não che- gará por si só. De que adianta clamar por reforma, conceber novos padrões administrativos, atualizar e racionalizar a legislação processu- al, modernizar equipamentos,se o básico, o fundamental, o essencial, que é a formação dos profissionais que irão atuar na área do Direito, e manejar todos esses instrumentos, permane- ce precária, para não dizer indigente? A verdadeira reforma do Judiciário começa pelo saneamento do ensino jurídico. Tra- ta-se de recompor os alicerces da profissão, corroídos pela ga- nância dos mercadores do ensino, comprometidos tão-somen- te com lucros fáceis, desconhecedores do sentido missionário da educação – e do Direito. 8 Essa tem sido uma preocupação sistemática, quase obsessi- va da OAB ao longo de sua existência. Não é casual que conste de nosso Estatuto, artigo 44, como uma de nossas finalidades institucionais precípuas – ao lado da defesa da Constituição e da ordem jurídica do Estado democrático de Direito –, a luta pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas. E a principal dessas instituições, fundamento e matriz de todas as outras, é a academia, sem a qual não há advogados, magistrados, procuradores, promotores, delegados etc. Essa é uma preocupação que mobilizou a mim e a meus antecessores na OAB – e há de continuar mobilizando nossos sucessores. Por competência legal, a OAB é chamada a se manifestar nos processos de abertura de novos cursos, mas cabe ao Con- selho Nacional de Educação – órgão do MEC – a última pala- vra, independentemente do que opine a Ordem a respeito. Quando tomei posse na presidência do Conselho Federal, em fevereiro de 2004, os números do triênio anterior eram es- tes: a OAB havia sido favorável à criação de 19 cursos jurídi- cos, mas o Conselho Nacional de Educação autorizara, no mes- mo período, apesar de nossas recomendações, nada menos que a criação de 222 cursos – mais de dez vezes o que havíamos recomendado. Em 2004, das 53 autorizações do MEC, a OAB foi favorável a quatro; em 2005, das 46 autorizações ministeriais, chancela- mos apenas sete; e este ano, 2006, de 77 autorizações, fomos favoráveis a apenas duas. Qual a razão de tamanha disparida- de? Simples: a concessão de licença para a abertura desses cur- sos, não obstante algum freio já estabelecido, continua sendo 9 moeda de troca, para atender a políticos e empresários da área do ensino. Trata-se de um escândalo, que levamos, no início de nossa gestão, ao conhecimento do então ministro da Educação, Tarso Genro, que, registre-se, mostrou-se sensível à causa – e tomou algumas providências, colocando, como já disse, o pé no freio. Não, porém, o suficiente para reverter o processo. Em 1960, tínhamos no Brasil 69 faculdades de Direito. Nos anos 90, esse número passou para 400. Hoje, funcionam regu- larmente no País nada menos que 1 mil e 15 instituições de ensino jurídico superior. A maioria, não hesito em afirmar, nos termos em que mencionei. Segundo o IBGE, 70 mil bacharéis de Direito ingressam no mercado a cada ano. Como a maioria dos novos cursos iniciou as atividades a partir da segunda metade dos anos 90, é fácil imaginar que a população de bacharéis vai dobrar, ou redo- brar, nos próximos anos. Tudo isso seria ótimo se estivesse dentro de um padrão de qualidade mínimo, que permitisse efetiva universalização dos serviços judiciários, tão reclamados no país, sobretudo pela população mais carente. Não é o caso. Quantidade sem quali- dade gera apenas tumulto e resulta em descrédito. É o que te- mos sustentado ao longo do tempo. As transformações geopolíticas em curso em nosso planeta, decorrentes do processo de globalização econômica e de avan- ço nas telecomunicações, geram novos e complexos desafios, no horizonte de nossa profissão. Há em torno de nós um mun- do novo, nem sempre admirável, mas de qualquer forma con- 10 creto e incontornável, a exigir reciclagem profissional constan- te, absorção de novos conhecimentos e de novas tecnologias. Quem não se renova, não tem vez. Há muitas e muitas contradições neste momento tão delica- do e decisivo para nosso país. Mais que nunca, é preciso estar vigilante. Mais que nunca, é preciso aprimorar-se profissional- mente, ajustar-se aos desafios impostos pela globalização. O Brasil não tem sido tão zeloso quanto a isso, sobretudo no campo do Direito. Não é por outro motivo que a OAB insiste em cobrar qualidade dos cursos de Direito, opondo-se à sua proliferação indiscriminada. O processo de globalização, que interconectou mercados e acirrou a competitividade profissional, deu relevo ainda mai- or à precariedade dos cursos superiores brasileiros, sobretudo de Direito. A abertura dos mercados, colocando nossos profis- sionais em concorrência direta com profissionais formados em faculdades do Primeiro Mundo, aumenta a exigência de apuro e especialização. O mínimo que se espera é que o Poder Público imponha maior rigor qualitativo aos estabelecimentos de ensino superi- or. Mais que quantidade, deve exigir-se qualidade. Que adian- ta aumentar o número de faculdades sem garantia de padrão mínimo de qualidade? Que sentido tem despejar anualmente no mercado de traba- lho batalhões de bacharéis despreparados para os desafios cada vez mais sofisticados da economia global? O resultado é de- sastroso, quer para o mercado, quer para os recém-formados. No campo do Direito, por exemplo, a carência de especiali- 11 zação de nossos profissionais, fruto da má qualidade de gran- de parte dos estabelecimentos especializados de ensino supe- rior, além de deteriorar a qualidade (já de si sofrível) dos servi- ços da Justiça, favorece a invasão dos escritórios internacio- nais de advocacia. E isso é ruim para o país, cujas demandas no campo dos negócios multilaterais acabam sendo conduzidas segundo a óptica dos interesses externos. O Governo Fernando Henrique Cardoso, ao criar o chama- do Provão – o Exame Nacional de Cursos, do MEC –, mostrou- se consciente da necessidade de impor um padrão mínimo de qualidade aos cursos superiores. Mas – e aí já se tem uma con- fissão de culpa –, o Provão foi, desde o início, rejeitado por quase todas essas instituições de ensino superior. E recebeu tantas pressões, desde então, que, até hoje, não obstante cons- tatada a insuficiência de numerosos cursos, nenhum teve suas portas fechadas. A OAB, que há anos defende a necessidade desse padrão mínimo para o ensino superior de Direito no país, apoiou des- de o início o Provão. Dispôs-se inclusive a tornar-se parceiro informal do Estado (e da sociedade) nessa fiscalização. Institu- ímos um ranking para os cursos de Direito, onde os interessa- dos podem se informar a respeito da qualidade dos diversos estabelecimentos, antes de cair nas malhas das arapucas de ensino espalhadas pelo país. É preciso garantir o interesse público. A má qualidade dos serviços jurídicos está diretamente relacionada à má qualida- de dos cursos de Direito, que formam não apenas advogados, mas, como já disse, todo o elenco que atua na cena judiciária. 12 A elevação da qualidade do ensino, além de melhorar o aten- dimento ao público, aumenta a consciência e o zelo ético de nosso meio, uma das bandeiras mais obstinadas da OAB ao longo de sua história. Não há dúvida de que, acima dos de- mais fatores que possam ser relacionados pelos especialistas para que o país possa avançar e superar suas limitações políti- cas e socioeconômicas, sobrepõe-se este: universalização e melhoria do padrão educacional. Por isso, nós, da OAB, estamos empenhados em fortalecer nossa entidade e consolidá-la cada vez mais como um instru- mento a serviço do povo brasileiro. Cito, a propósito, e para finalizar, o que disse, a respeito do ensino, Ruy Barbosa na cam- panha presidencial de 1910 – portanto, lá se vão 96 anos: “O ensino, como a justiça, como a administração, prospera e vive mais realmente da verdade e moralidade com que se pratica do que das grandes inovações e belas reformas que se lhe consagram.” E, ainda, numa afirmação de grande atualidade: “Entrenós, todos os governos reformam o mecanismo, e nenhum busca reformar os costumes.” O nosso empenho é de que, no que diz respeito ao ensino jurídico, sejam reformados os costumes. Os maus costumes, naturalmente. Considero este um desafio permanente da OAB – e da sociedade brasileira. Roberto Busato Presidente do Conselho Federal da OAB 13 À GUISA DE PREFÁCIO Vem a lume a sétima coletânea de textos editados sob o títu- lo OAB ENSINO JURÍDICO. Dá-se seqüência, assim, à divul- gação do material produzido pela Comissão de Ensino Jurídi- co-CEJU ou que se acha diretamente ligado ao seu trabalho. O presente volume está dividido em três partes. Na primei- ra – Opinião –, apresentam-se artigos e exposições relaciona- dos ao tema ensino jurídico, dizendo respeito as últimas ao VIII Seminário Nacional de Ensino Jurídico, promovido pela CEJU, em Belo Horizonte, no mês de novembro de 2004. Cir- cunstanciado relato do que foi aquele Seminário, seguido de dois discursos proferidos na respectiva solenidade de instala- ção, abre a parte seguinte – Eventos. Nesta se inclui, ainda, pa- lestra proferida no Seminário Internacional Educación y Formación para la Justicia, realizado em San José da Costa Rica, em julho de 2005, onde coube ao Presidente da CEJU represen- tar o Conselho Federal da OAB. Por fim, na última parte – Do- cumentos –, faz-se registro da programação do Seminário de Belo Horizonte, bem como da que foi preparada para o IX Se- minário, a realizar-se em Goiânia, de 3 a 5 de dezembro de 2006, além de reproduzir-se o texto do relatório final do Gru- po de Trabalho MEC/OAB constituído por meio da Portaria nº 3.381/2004. 14 Correspondendo, pois, ao escopo da série OAB ENSINO JU- RÍDICO, este sétimo volume cumpre dois objetivos: expressa o pensamento dos membros da CEJU sobre a problemática do ensino jurídico e relata o que tem sido o trabalho da Comissão, nos últimos tempos. Em sua gestão como Presidente Nacional da OAB, o Dr. Roberto Antônio Busato elegeu a contribuição da Ordem ao aprimoramento do ensino jurídico no país como uma de suas prioridades. E a Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal, composta de professores de Direito de dife- rentes Universidades, procurou corresponder a essa orienta- ção, dedicando-se com denodo ao trabalho sob sua responsabi- lidade. O volume que ora se oferece à leitura dos interessados revela um pouco do que foram, ao longo do último triênio, as atividades da CEJU. E mostra que a OAB já tem uma tradição firmada no campo do ensino jurídico, como um dos principais protagonistas das ações que se vêm desenvolvendo, com vis- tas à preservação dos seus padrões de qualidade. Paulo Roberto de Gouvêa Medina Presidente da Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil 15 PARTE I Opinião 17 RESPONSABILIDADE SOCIAL DAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR José Geraldo de Sousa Junior* A reforma universitária e o requisito de responsabilidade social Uma novidade do projeto de Reforma Universitária atualmente em discussão no Congresso Nacional é o requisito de responsabi- lidade social atribuído às Instituições de Ensino Superior. Nos fundamentos do projeto este requisito está inscrito na disposição de fazer a educação superior interagir com a socie- dade de tal forma que a qualidade acadêmica ganhe relevân- cia social. Isso significa, nos termos da justificativa expressa no anteprojeto de lei que trata da reforma da educação superior, romper os muros da torre de marfim da universidade prisioneira de si mesma por meio de um atributo essencial: a eqüidade, ou seja, a capacidade de transferir, efetivamente, aos setores mais amplos da sociedade, os frutos da atividade acadêmica. * Professor da Faculdade de Direito da UnB; Vice-Presidente da Comissão de Ensino Jurídico do Conse- lho Federal da OAB. 18 Em termos propositivos, o projeto insere, nas finalidades da universidade, o objetivo de promover articulação com a socieda- de, visando contribuir por meio de suas atividades de ensino, pesqui- sa e extensão para o desenvolvimento educacional, socioeconômico e ambiental sustentável de sua região. Ao mesmo tempo, estabele- cendo que as instituições de ensino superior devem elaborar seus Planos de Desenvovimento Institucional, especifica que estes devem conter, a demonstração da relação entre o projeto pe- dagógico, a finalidade da educação superior e o compromisso social da instituição. A noção de compromisso social da instituição remete ao requi- sito de responsabilidade social. Tanto é assim que, antecipan- do o processo próprio de reforma universitária, a Lei nº 10.861, de 14 de abril de 2004, que institui o Sistema Nacional de Ava- liação da Educação Superior – SINAES, ao fixar o objetivo da avaliação das instituições de educação superior, especifica como dimensão institucional, obrigatoriamente (art. 3º, III), a respon- sabilidade social da instituição, considerada especialmente no que se refere à sua contribuição em relação à inclusão social, ao desenvolvi- mento econômico e social, à defesa do meio ambiente, da memória cultural, da produção artística e do patrimônio cultural. Curiosamente, desloca-se, para o campo cultural e acadê- mico, uma notação que surgira no espaço do mercado, quando tomou forma a incorporação dos sentimentos morais, aludindo a essa expressão de Adam Smith, para trazer a ética ao centro da economia. Ainda que a forma capitalista do desenvolvimento econô- mico tenha entrado em contradição com a dimensão política 19 da economia, revelando a impossibilidade de realização plena de valores, particularmente de valores democráticos, pelo mer- cado, a ilusão de consumo acabou por trazer a ética para a aferi- ção da qualidade social dos negócios, ao menos como produto, atribuindo a esse processo o nome de responsabilidade social. Numa espécie de metonímia que toma o consumidor como cidadão, as relações de consumo começaram a assumir esta di- mensão ética como guia dos negócios e começaram a se multi- plicar as experiências de interação produtor-consumidor pauta- das por expectativas de atuação vinculada a princípios de trans- parência e responsabilidade social, buscando comprometimento com a ética e a qualidade de vida dos empregados, de suas famílias, da comu- nidade e da sociedade (Portal de uma grande corporação brasileira). A noção de balanço social das empresas, a idéia de comér- cio justo (que não opere a base de trabalho escravo, trabalho infantil, trabalho feminino em condições insalubres etc.), a cons- tituição de fundações, campanhas, programas, institutos e ou- tras formas de organização para o desenvolvimento de proje- tos e para a capacitação empreendedorista, orientada por prin- cípios éticos, passou a ser a expressão qualificada da atividade econômica até como fator de competição na disputa por mer- cados e por clientes. O eixo dessa nova forma de atuação, para aludir a uma in- dicação divulgada em publicidade de avião (meio de locomo- ção dos empreendedores) é formar liderança responsável, por- que líderes devem ter participação ativa na construção de um futuro melhor, mais digno, mais transparente e mais justo. Assim é que a própria ONU, em 1985 (Resolução nº 39/248), 20 veio a estabelecer diretrizes para a relação entre produtores e consumidores, especificando recomendações aos governos no sentido de que estes desenvolvessem esforços para o estabele- cimento de normas protetoras do consumidor (O Código do Consumidor, no Brasil, surge dessas recomendações), de modo a incentivar altos níveis de conduta ética, para aqueles envolvidos na produção e distribuição de bens e serviços para os consumidores. Não é de espantar, pois, que a mais recente concessão do Prêmio Nobel da Paz, tenha sido atribuída a um banqueiro, sob o fundamento de que a sua ação creditícia está caracteriza-da pela inserção da ética no processo de financiamento a gru- pos comunitários e a pequenos produtores, vinculados por um compromisso moral quanto à responsabilidade solidária pela dívida assumida. A reivindicação da responsabilidade social da universida- de, afirma Boaventura de Sousa Santos (Da Idéia de Universi- dade à Universidade de Idéias, Pela Mão de Alice. O Social e o Político na Pós-Modernidade, Porto, Edições Afrontamento, 1994), assumiu tonalidades distintas: Se para alguns se tratava de criticar o isolamento da universidade e de a pôr ao serviço da socieda- de em geral, para outros tratava-se de denunciar que o isolamento fora tão-só aparente e que o envolvimento que ele ocultara, em favor dos interesses e das classes dominantes, era social e politicamente condenável. Para o autor português, por outro lado, Se para alguns a universidade devia comprometer-se com os problemas mundiais em geral e onde quer que ocorressem (a fome no terceiro mundo, o desastre ecológico, o armamentismo, 21 o apartheid, etc.), para outros, o compromisso era com os pro- blemas nacionais (a criminalidade, o desemprego, a degrada- ção das cidades, o problema da habitação, etc.) ou mesmo com os problemas regionais ou locais da comunidade imediatamen- te envolvente (a deficiente assistência jurídica e assistência médica, a falta de técnicos de planejamento regional e urbano, a necessidade de educação de adultos, de programas de cultu- ra geral e de formação profissional, etc.). O mesmo autor sustenta ter sido o movimento estudantil dos anos 1960, o porta-voz das reivindicações mais radicais no sentido da intervenção social da universidade e foram eles os responsáveis por imprimir no imaginário simbólico de muitas universidades e de muitos universitários a concepção mais ampla de responsabilidade social (op. cit.). Nos itens a seguir, tratarei de uma dessas dimensões mais simbólicas, constituídas a partir do imaginário estudantil, espe- cificando o exemplo dos estudantes de Direito que desenvolve- ram a idéia de assessoria jurídica popular, como a expressão mais avançada de suas expectativas de responsabilidade social para o curso jurídico e como esse simbólico foi encampado pe- las diretrizes curriculares da área, na configuração do instituto da prática jurídica, em Núcleo de Prática Jurídica. Núcleos de Prática Jurídica, Assessoria Jurídica Comunitária e Responsabilidade Social dos Estudantes de Direito O Núcleo de Prática Jurídica - NPJ, como é sabido, acabou recebendo o influxo da mobilização dos estudantes para im- 22 primir, à sua formação, a dimensão de realidade que, num pri- meiro momento, motivada pela capacidade de intervenção dos antigos escritórios modelos de advocacia, logo se qualificou com a condição política do processo de assessoria jurídica vivenciado pelos serviços de assessoria jurídica (SAJUs) que as organizações estudantis procuravam imprimir ao modelo de prática reivindicado curricularmente (Santos, Boaventura de Sousa, Da Idéia de Universidade à Universidade de Idéias, op. cit.). Nas Faculdades de Direito esse processo surgiu dentro do movimento que procurava integrar a extensão comunitária com a reivindicação de responsabilidade social para as universida- des, com nuances diversas e intencionalidades, mas em cujo âmbito pode se aferir, lembra Boaventura de Sousa Santos (op. cit.), outras formas de conhecimento surgidas da prática de pensar e de agir de inúmeros segmentos da sociedade ao longo de gerações, entre elas, de salientar, tomando como exemplo a Universida- de de Brasília, o projeto do Direito Achado na Rua, que visa reco- lher e valorizar todos os direitos comunitários, locais, populares, e mobilizá-los em favor das lutas das classes populares, confrontadas, tanto no meio rural como no meio urbano, com um direito oficial hostil ou ineficaz. A referência provinda de Boaventura de Sousa Santos a um projeto que dirijo e que tem por objetivo a capacitação de as- sessorias jurídicas de movimentos populares não é trazida aqui com o propósito de abrir relevo para uma articulação que me envolve pessoal e diretamente. Mas, antes, porque ela permite refletir sobre uma ação que procura exatamente conjugar a dupla face da prática jurídica na sua dimensão de orientação 23 política para o exercício profissional e de formação acadêmica preparatória para esse exercício. Com efeito, as assessorias jurídicas dos movimentos sociais surgiram, no Brasil, a partir dos anos 60, em parte como decor- rência dos limites políticos contidos num sistema político au- toritário e, em parte, como reação a uma formação jurídica, centrada num positivismo estiolante, que impedia a percep- ção do direito como estratégia de superação de uma realidade injusta e de exclusão social, fazendo do formalismo legal um obstáculo à emergência de novos direitos. Em todo caso, elas foram ajustando o seu perfil de atuação para concretizar objetivos emancipatórios e de concretização de Direitos Humanos, mediante, salientam Adriana Andrade Miranda e Luciana Silva Garcia (Assessoria Jurídica em Tem- pos de AIDS, in Mendes, Soraia da Rosa (Org.), Aids e Direitos Fundamentais. Estratégias Jurídicas de Efetivação dos Direi- tos Fundamentais das Pessoas que (con)vivem com HIV, Porto Alegre, GAPA/RS, 2005), a co-relação entre educação, auto-orga- nização, mobilização social e ocupação dos espaços para criação e im- plementação de políticas públicas. Novos projetos de intervenção, numa contínua reconceitu- ação da assessoria jurídica na perspectiva do uso emancipatório do Direito são elaborados, deles transparecendo a percepção de que a emancipação das pessoas envolvidas no trabalho (de assessoria jurídica), promovendo o acesso à informação e reflexão sobre o Direi- to, leva a que as comunidades possam, se assim quiserem, desen- volver ações políticas e jurídicas necessárias à satisfação dos anseios por um novo direito (Rocha, José Cláudio, Projeto de Assessoria 24 Jurídica Popular às Organizações e Movimentos Populares na Bahia – AATR – 2004 a 2007, Revista da AATR – Associação de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia, ano III, nº 3 – de- zembro de 2005). Por isso, como lembra Eduardo Guimarães de Carvalho (Ci- dadania em Horário Integral, Ciência Hoje, v. 12, nº 71, março de 1991), as assessorias jurídicas dos movimentos sociais tive- ram muita importância na construção de uma prática que sus- tentou a crítica ao autoritarismo, devendo ser consideradas, sobretudo porque atuaram, em primeiro lugar, na esfera da defesa dos direitos civis e políticos, envolvendo-se, então, com a arbitrariedade das prisões políticas e dos inquéritos milita- res; em segundo lugar, porque estenderam sua atuação para o campo dos direitos sociais e econômicos; abrindo, assim, o en- sejo para a difusão de um direito, verdadeiramente, insurgente (Pressburger, Miguel, Direito Insurgente, Instituto de Apoio Jurídico Popular, IAJUP, Rio de Janeiro, 1988). O mesmo autor, na linha traçada por outros estudiosos (Lopes, José Reinaldo de Lima, Direito, Justiça e Utopia, IAJUP, Rio de Janeiro, 1988; Campilongo, Celso Fernandes, Assistên- cia Jurídica e Realidade Social: Apontamentos para uma Tipologia dos Serviços Legais, IAJUP, Coleção Seminários, Rio de Janeiro, v. 15, 1991; idem, Acesso à Justiça e Formas Alterna- tivas de Resolução de Conflitos em São Bernardo do Campo, Revista Forense, v. 315, 1991; Alfonsin, Jacques Távora, Asses- soria Jurídica Popular. Breves Apontamentos sobre sua Neces- sidade, Limites e Perspectivas, Revista do SAJU – Para uma Visão Crítica e Interdisciplinar do Direito, v. 1, Porto Alegre, UFRGS, Faculdade de Direito, dez.-1998), sem embargo das 25 contradições que identifica, acaba propondo algumas caracte- rísticas que designam a sua atuação: criatividade, advento de novas relações entre advogados e clientes, descrença no Judi- ciário,respeito às práticas populares, conscientização, partici- pação e crítica às práticas paternalistas. Não cabe aqui o exame em pormenor desse modelo de atu- ação profissional, senão para indicar que, na mesma conjuntu- ra e num contexto de crítica teórica à formação jurídica (Lyra Filho, Roberto, Para um direito sem dogmas, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1980; O Direito que se ensina erra- do, Centro Acadêmico de Direito da UnB, Brasília, 1980; O que é Direito, Editora Brasiliense, São Paulo, 1982), o próprio mo- vimento estudantil de Direito, inspirado no processo de asses- soria jurídica popular, abriu em seus encontros nacionais de estudantes de Direito um espaço problematizador das práti- cas jurídicas estudantis, criando um fórum (ENAJU) para colo- car a questão da participação do estudante, futuro profissional do Direito, em trabalhos comunitários de assessoria no sentido da reali- zação da práxis social dos novos juristas (Relatório do Núcleo de Assessoria Jurídica em Direitos Humanos e Cidadania, Uni- versidade de Brasília, Decanato de Extensão, Cadernos de Ex- tensão, 2º semestre de 1993). O Relatório supra, resultado de um projeto de extensão de- senvolvido por estudantes de Direito da UnB, registra o acom- panhamento que deram a uma comunidade de moradores de área não regulamentada do Distrito Federal para assegurar o seu direito de morar e de como, nessa experiência, institucio- nalizaram como trabalho de parceria que envolveu a Secreta- ria de Estado de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, 26 um núcleo de prática jurídica e escritório de direitos humanos e cida- dania, antecipando um modelo que somente depois, no final de 1994 (Portaria MEC 1.886), seria universalizado em diretri- zes curriculares para os cursos de Direito. Nesse relatório os estudantes fazem a distinção entre assis- tência judiciária e assessoria jurídica, caracterizam a forma organizativa de escritório modelo que serviu de formato à pri- meira e distinguem desse modelo o núcleo de prática jurídica que serve de formato para a segunda. Tendo como fundamen- to teórico os pressupostos de O Direito Achado na Rua, os au- tores do Relatório especificam a distinção em termos que vale a pena reproduzir até por conta da circulação restrita do docu- mento (p. 3-4): É reconhecidamente importante este tipo de trabalho em nível estudantil, mas é necessário que façamos a distinção entre as- sessoria jurídica e assistência judiciária, os dois pilares da ati- vidade de extensão desenvolvida por estudantes de Direito. A assistência judiciária, geralmente prestada pelos escritórios modelo das faculdades, tem a função de dar um amparo legal gratuito às pessoas carentes que não podem pagar um advo- gado para resolver as suas demandas. Essa atividade visa tam- bém ministrar ensino jurídico prático aos alunos do curso de Direito. Como se vê, este tipo de assistência seria quase que estritamente profissional. Advocatícia, não fosse o seu caráter de extensão universitária, que proporciona o contato, ainda que superficialmente, com a realidade social. Ocorre que, não obstante a sua importância, a assistência judi- ciária desenvolve de fato um contato muito reduzido com a co- munidade devido à sua metodologia de trabalho individualizante, que se esgota com a prestação de um serviço legal imediato, 27 assumindo um caráter um tanto paternalista, pois, na maioria dos casos, não se procura educar as pessoas para o exercício de sua cidadania. Além do que, um trabalho individualizante tem uma abrangência muito limitada e incapaz de dar resposta às novas demandas sociais, quando se constata a emergência de novos sujeitos coletivos e grupos marginalizados do proces- so produtivo, impedidos de exercerem a sua cidadania e de verem seus direitos reconhecidos e respeitados. Sendo assim, é objetivo da assessoria jurídica suprir essa ca- rência deixada pela assistência judiciária, no que tange a esta- belecer uma relação de um diálogo mais intenso com a socie- dade, preferencialmente os grupos excluídos. Esse ponto é, a nosso entender, o que difere as duas atividades acima citadas. Pela sua própria natureza, portanto, a assessoria jurídica é um trabalho que dá condições efetivas ao estudante de Direito de- senvolver e exercitar a sua práxis social. E por práxis entende- mos, não apenas a face técnico-prática do Direito, mas, sobre- tudo, a capacidade criativa de reflexão do fenômeno jurídico a partir de um contato direto com a realidade social, fonte materi- al deste fenômeno. O sentido da práxis envolve, portanto, a in- serção nos contextos sociais e não somente um mero contato distante, a partir da prestação de um serviço profissional, técni- co a representantes individualizados desses contextos. O trabalho de assessoria jurídica é mais abrangente, uma vez que o apoio prestado visa em última instância à emancipação e à autonomia dos grupos sociais oprimidos por meio da educa- ção para a cidadania. Pretende-se instrumentalizar as necessi- dades da sociedade, mas busca-se também estimular a sua organização e o seu fortalecimento para que ela possa, de ma- neira autônoma, desenvolver os meios para reivindicar seus direitos e sanar as suas carências do cotidiano, constituindo-se pois como sociedade civil. O mesmo poderia ser dito com rela- ção ao estudante de serviço social e de outros cursos de gradu- 28 ação, que pelas mesmas razões devem ter como objetivo prioritário esta práxis. Reforçando o sentido de práxis social, a assessoria jurídica tem o objetivo de desenvolver linhas de pesquisa a partir desse diá- logo com os grupos sociais, para identificar e fundamentar nes- sas novas demandas o seu Direito insurgente. Há de fato toda uma gama de direitos em processo de reivindicação, fundados na experiência social dos sujeitos, individuais ou coletivos, e na legitimidade de sua proposta, todavia, carentes do olhar esta- tal-legal que laconicamente os despreza com a assertiva de que fora da lei não há Direito. É pertinente, pois, que se desenvolva esse tipo de trabalho sobre uma realidade, a qual não pode escapar ao alcance do jurista, que procura realizar sua práxis, orientando sua formação profissional com um conhecimento mais aprofundado do fenômeno jurídico… Nas conclusões, os estudantes representam teoricamente a resultante substantiva de sua atuação enquanto reconhecimento de Direito, caracterizando a moradia como a materialidade ju- rídica realizada pela subjetividade coletiva que lhe dá origem. Tudo isso num contexto de pré-reconhecimento constitucional do direito de morar, só depois, de modo positivo, incorporado à Constituição (Sousa Junior, José Geraldo de, e Costa, Alexan- dre Bernardino, Introdução, Direito à Memória e à Moradia. Realização de Direitos Humanos pelo Protagonismo Social da Comunidade do Acampamento da Telebrasília, Faculdade de Direito da UnB/Secretaria de Estado de Direitos Humanos- MJ, Brasília, 1998; idem, Noleto, Mauro Almeida, Práticas Jurí- dicas – Uma Reflexão sobre Prática Jurídica e Extensão Uni- versitária). 29 Nova cultura nas Faculdades de Direito As diretrizes curriculares atualmente em vigor são decor- rentes desse movimento formidável de crítica teórica e política que trouxe à realidade pedagógica um desenho criativo para aquelas figuras de futuro mencionadas no início deste trabalho. Por mais desiguais que sejam as formas de implementação dos Núcleos de Prática Jurídica nas Faculdades de Direito, a expansão dos cursos, atualmente superando a casa de 1.000, acabou proporcionando um número significativo de experiên- cias exemplares que vêm balizando uma nova cultura de res- ponsabilidade social nas Faculdades de Direito. O próprio MEC deu-se conta do potencial emancipatório latente na prática jurídica das Instituições de Ensino Superior e tratou de organizar um seminário em Brasília para mapear e conhecer as experiênciasexistentes, identificar formas de atu- ação, as possibilidades de ação em redes interinstitucionais e as aberturas epistemológicas para exercitar a interdisciplinari- dade. O projeto Reconhecer lançado pelo MEC, após a realiza- ção do seminário teve, exatamente, a finalidade de estimular Núcleos de Prática Jurídica nos cursos de Direito, com a preo- cupação de incentivar essa nova cultura e de fomentar e promo- ver ações que venham a estabelecer caminhos para a formação cidadã dos estudantes, orientada pelos Direitos Humanos. Trata-se, pode-se ver, de um esforço considerável para inse- rir indicadores de qualidade no desenvolvimento de cursos jurídicos, ajustando-os à exigência de compromisso social con- tidas na proposta atualmente em curso de reforma da educa- 30 ção superior, segundo a qual, além de prever que a educação é bem público, estabelece também que ela cumpre função social, concretizada por meio daqueles compromissos. A reforma ainda é um projeto em debate no Congresso Na- cional, porém, como procede de fortes consensos já pactuados no plano político, esses valores emancipatórios orientam as atividades da educação superior e, em boa medida, já se fazem exigíveis por disposições que presidem o processo de credenciamento das instituições e de autorização, reconheci- mento e avaliação dos cursos superiores. No componente específico de aferição de desempenho dos cursos, o Exame Nacional de Desempenho Docente – ENADE, resgatando o que já se fazia no antigo Exame Nacional de Cur- sos (“Provão”), aprofunda a verificação do desenvolvimento das competências e habilidades que os alunos devem adquirir a partir dos eixos de formação fundamental, profissional e prá- tica, por meio de uma prova (Portaria INEP nº 125/06, área de Direito) que tomará como referência um perfil de graduando com sólida formação geral, humanística e axiológica, capacidade de análise, domínio de conceitos e da terminologia jurídica, adequada argumentação, interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais, aliada a uma postura reflexiva e de visão crítica que fomente a capacidade e a aptidão para a aprendizagem autônoma e dinâmica, indispensável ao exercício da Ciência do Direito, da prestação da Jus- tiça e do desenvolvimento da cidadania (art. 5º). São condições que armam o estudante para desenvolver competências e habilidades, não somente cognitivas, mas, igual- mente, atitudinais e afetivas, sem o que não poderá ele dar-se 31 conta das alterações paradigmáticas que movem continuamente o seu horizonte de referêncas sociais e epistemológicas. A prá- tica é, sem dúvida, o catalizador ressignificante dessas altera- ções e, no caso do Direito, é a assessoria jurídica o seu princi- pal instrumento mediador. Cloves dos Santos Araújo relata, com precisão, a partir da consideração de sua própria prática num exercício de assesso- ria, a intrasubjetivação desse processo, num depoimento que é, simultaneamente, analítico e existencial (Os Conflitos Agrá- rios e os Limites da Atuação do Judiciário, Observatório da Constituição e da Democracia, caderno mensal concebido, pre- parado e elaborado pelo Grupo de Pesquisa Sociedade, Tem- po e Direito – Faculdade de Direito da UnB – Brasília, nº 7, setembro de 2006, p. 20): A pesquisa está fundamentada teoricamente em reflexões de autores contemporâneos acerca da crise de paradigmas, na pers- pectiva de uma transição paradigmática e que nos apresentam os movimentos sociais como novos personagens que entraram em cena como alternativa ao modelo em crise que termina. Parti da observação de uma sociedade em crise, uma crise to- tal, global, que atinge todas as instituições modernas, tais como: a política, a cultura, a economia, a família, a escola, o mercado, a vida pública e privada. Crise da ciência moderna, crise do Direito e de seus fundamentos, notadamente a crise do Judici- ário que, de forma especial, é destacada na pesquisa. Estamos no limiar do século XXI com uma concentração fundiária que chega a envergonhar o País perante a comunidade inter- nacional. Dessa lógica de distribuição da terra, nasce o latifún- dio improdutivo, situação que é revelada pelo Cadastro Nacio- nal do INCRA, de 1996, ao demonstrar que a área improdutiva 32 dentro de latifúndios com mais de 1.000 hectares é equivalente à soma dos territórios da França, Alemanha, Espanha, Suíça e Áustria. O trabalho foi guiado por uma reflexão acerca da influência do moderno modelo científico de pensar e praticar o Direito. Refe- rido modelo é pautado basicamente pelo culto ao direito de pro- priedade na sua versão exclusivista. Busquei mostrar que es- sas práticas não constituem unanimidade no Judiciário, uma vez que não se trata de um poder monolítico. Nesse sentido notei, ao longo do trabalho, exemplos de mudança significativa da cultura jurídica que, influenciada pela pressão dos movimen- tos sociais, vem introduzindo formas interpretativas que bus- cam amoldar os dispositivos da legislação infraconstitucional à luz dos valores consagrados pelos ventos da democracia parti- cipativa e pelo novo constitucionalismo, numa perspectiva de efetividade do Estado Democrático de Direito. A disposição assumida pelo protagonismo profissional de- riva, tal como se vê deste depoimento, do despertar da visão crítica proporcionada pelos Núcleos de Prática Jurídica à me- dida que puderam assimilar em seu projeto pedagógico a con- dição, diz André Macedo de Oliveira, de espaço alternativo de construção de um direito crítico, que deve servir como instrumento de libertação e não de opressão (Ensino Jurídico. Diálogo entre Teoria e Prática, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 2004). E é exatamente a assessoria jurídica popular realizada atra- vés dos Núcleos de Prática Jurídica como forma de prestar à comuni- dade orientações sobre seus direitos, ele prossegue, que vai permi- tir, sobretudo em demandas coletivas, desenvolver um traba- lho cooperativo e solidário, que poderá despertar uma visão crítica do direito e da realidade social nos estudantes. 33 Presta-se o NPJ, assim, no seu modelo de articulação de teo- ria e prática, a sustentar um sistema permanente de ampliação do acesso à justiça (Sousa Junior, José Geraldo de; e Costa, Alexandre Bernardino, Introdução, in Machado, Maria Salete Kern e Sousa, Nair Heloisa Bicalho de, Ceilândia: Mapa da Cidadania. Em rede na defesa dos direitos humanos e na formação do novo profissio- nal do direito, Faculdade de Direito da UnB/Secretaria de Esta- do de Direitos Humanos/MJ, Brasília, 1998), abrindo-se a temas e problemas críticos da atualidade, dando-se conta, ao mesmo tempo, das possibilidades de aperfeiçoamento de novos institu- tos jurídicos para indicar novas alternativas para sua utilização. Vem daí a lição da realidade como aprendizado de respon- sabilidade social, numa nota de sensibilidade que permite re- conhecer o sofrimento e as esperanças das pessoas que nos cercam e saber o que é possível fazer para acabar com a crueldade das exclusões sociais (Dourado, Heloisa Helena Figueira, Considerações Pre- liminares sobre Voluntariado: pequeno relato da experiência com trabalhos voluntários no Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Direito da UnB (Ceilândia/DF), in Sousa Junior, José Geraldo de (Org.), Colaboradores Voluntários do Núcleo de Prática Jurídica, Coleção O que se pensa na colina, v. 2, Fa- culdade de Direito da UnB/CESPE, Brasília, 2002). O Direito Achado na Rua: uma experiência prospectiva carregada de compromisso social “O Direito Achado na Rua”, expressão criada por Roberto Lyra Filho, designa uma linha de pesquisa e um curso organi- zado na Universidade de Brasília, para capacitar assessorias 34 jurídicas de movimentos sociais e busca ser a expressão do pro- cesso que reconhece na atuação jurídica dos novos sujeitos co- letivos e das experiências por eles desenvolvidasde criação de direito, a possibilidade de: 1) determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos ainda que contra legem; 2) definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transforma- ção social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; 3) enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas cate- gorias jurídicas. O que o processo visa, é entender o direito como modelo de legítima organização social da liberdade. Isto é, perceber, con- forme indica Roberto Lyra Filho, que o direito se faz no processo histórico de libertação enquanto desvenda precisamente os impedimen- tos da liberdade não-lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos e sua filtragem nas normas costumeiras e legais tanto pode gerar produtos autênticos (isto é, atendendo ao ponto atual mais avançado de conscientização dos melhores padrões de liberdade em convivência) quanto produtos falsificados (isto é, a negação do di- reito do próprio veículo de sua efetivação, que assim se torna um orga- nismo canceroso, como as leis que ainda por aí representam a chancela da iniqüidade, a pretexto da consagração do direito) (Lyra Filho, Roberto, O que é Direito, Editora Brasiliense, São Paulo, 1982). A rua aí, evidentemente, uma metáfora do espaço público, do lugar do acontecimento, do protesto, da formação de novas sociabilidades e do estabelecimento de reconhecimentos recípro- cos na ação autônoma da cidadania (autônomos: que se dão a si mesmos o direito). É, como diz Marshall Berman (Tudo que é 35 sólido desmancha no ar, Editora Companhia das Letras, São Paulo, 1987), o espaço de vivência que, ao ser reivindicado para a vida humana transforma a multidão de solitários urbanos em povo. Por isso ela é um lugar simbólico, a impregnar o imaginário da antropologia e da literatura, em arranjos sutis de natureza explicativa dos acontecimentos. Assim, em Roberto da Matta (A casa e a rua, Editora Brasiliense, São Paulo, 1985), que faz a articulação dialética entre a “casa” e a “rua” para esclarecer comportamentos culturais. Ou, como na poesia, sempre em antecipação intuitiva de seu significado para a ação da cidada- nia e da realização dos direitos, como em Castro Alves (“O Povo ao Poder”) e em Cassiano Ricardo (“Sala de Espera”). Do primeiro, são conhecidos os versos: A praça! A praça é do povo/ Como o céu do condor/ É o antro onde a liberdade/ Cria águias em seu calor./ Senhor! pois quereis a praça?/ Desgraçada a populaça/ Só tem a rua de seu ... /. Do segundo, de forma não menos expressiva: ... Mas eu prefiro é a rua./ A rua em seu sentido usual de ‘lá fora’./ Em seu oceano que é ter bocas e pés para exigir e para caminhar/ A rua onde todos se reúnem num só ninguém coletivo./ Rua do homem como deve ser/ transeunte, republicano, universal./ onde cada um de nós é um pouco mais dos outros/ do que de si mesmo./ Rua da reivin- dicação social, onde mora/ o Acontecimento ... O que se vê aí, em última análise, é a recuperação, no dizer de J. J. Gomes Canotilho, de um impulso dialógico e crítico que hoje é fornecido pelas teorias políticas da justiça e pelas teorias críti- cas da sociedade, que vai permitir, num apelo à ampliação das possibilidades de compreensão e de explicação dos problemas fundamentais do direito o olhar vigilante das exigências do direito justo e amparadas num sistema de domínio político-democrático ma- 36 terialmente legitimado para abrir-se a outros modos de compreen- der as regras jurídicas, e que incluam, diz ele, as propostas de en- tendimento do direito como prática social e os compromissos com for- mas alternativas do direito oficial como a do chamado direito acha- do na rua, compreendendo, nesta última expressão, acrescen- ta, um importante movimento teórico-prático centrado no Brasil (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Editora Almedina, Coimbra, 1998). Aqui, não se trata de recuperar essa experiência, forte na transformation du sens même de l’enseignement du droit (Arnaud, André-Jean, Lê droit trouvé dans la rue, revue Droit et Société, nº 9, LGDJ, Paris, 1988; Paixão, Cristiano, Pour une topographie des savoirs dans l’enseignement du droit: chronique d’une expérience, revue Droit et Société, nº 60, LGDJ, Paris, 2005), de resto bem documentada (Sousa Junior, José Geraldo de (Org.), Introdução Crítica ao Direito, Série O Direito Achado na Rua, v. 1, Editora UnB, Brasília, 1987, 1ª edição). Cuida-se de exami- nar um de seus aspectos propositivos. Refiro-me a um projeto, assentado no Núcleo de Prática Ju- rídica da Faculdade de Direito da UnB, com fundamentação teórica em O Direito Achado na Rua, e que abre aos estagiários não só do NPJ, mas de diferentes programas, notadamente de extensão da Faculdade, a possibilidade de exercitar a assesso- ria jurídica, num projeto de consultoria que responde a ques- tões propostas por leitores de um jornal da cidade. Esse projeto está bem descrito na monografia de conclusão de curso de Tatiana Margareth Bueno (Projeto UnB/Tribuna do Brasil-Coluna O Direito Achado na Rua: Ensino, pesquisa e extensão pela hegemonia da Universidade, Brasília, 2006). No 37 momento em que escrevo, a coluna completa 1 ano e 7 meses, compreendendo uma página semanal de um jornal diário de Brasília. São, neste instante, 80 artigos, com mais de 100 auto- res, todos estudantes de graduação da Faculdade de Direito (admite-se a participação de alunos de outros cursos e até de outras instituições, desde que em co-autoria com um aluno da Faculdade de Direito). Na preparação dos textos, como dito, respondendo a perguntas de leitores, mas também derivadas de diferentes projetos de extensão da Faculdade, um coletivo organizado em listas de discussão e numa disciplina de con- teúdo variável (Prática e Atualização do Direito), neste caso, denominada O Direito Achado na Rua – Produção de Textos, leva à redação final dos artigos, depois de selecionadas as ques- tões, num trabalho com orientação docente e monitoramento de estudantes de pós-graduação. Têm sido importantes os impactos desse trabalho (está em preparado um livro – A Teoria na Prática – reunindo todos os textos do período e reflexões de professores e instrutores so- bre a prática jurídica), não poucas vezes chamando a atenção de parlamentares distritais, que comentam da tribuna da As- sembléia matérias da coluna e de outros comentaristas (uma autora recebeu mensagem do Reitor de congratulação em ra- zão de tema desenvolvido na coluna). A própria Faculdade foi recentemente agraciada com a Ordem do Mérito Judiciário do Trabalho (TST), tendo sido a comenda concedida, principal- mente, pela relevância do trabalho da coluna. As abordagens, aliás, têm proporcionado a tomada de posi- ção por parte dos alunos-autores em situações jurídicas no li- mite hermenêutico, por exemplo, quando os alunos, antes da 38 decisão do Supremo Tribunal Federal, viram a possibilidade constitucional de progressão de regime de pena de preso con- denado por crime hediondo, ao responderem à pergunta do presidiário neste sentido; ou, quando sustentaram a razoabili- dade jurídica, contra legem, da união estável entre pessoas de mesmo sexo. O que se depreende de posicionamentos assim descritos é a acentuada disposição dos alunos de não só irfor- marem os leitores, mas de atribuir aos comentários um sentido emancipatório à consideração dos problemas, dando ao Direi- to uma dimensão realizadora da cidadania. Presente nesta disposição, o sentido de engajamento comuni- tário que se busca atingir e que representa uma aposta na democra- cia como processo de participação, de organização social, de cidadania e, conseqüentemente, de inclusão social, pois, é no âmbito comunitá- rio que as pessoas constroem as suas relações sociais e participamde forma mais efetiva das decisões políticas (Miranda, Adriana; e Tokarski, Carolina, Projeto Promotoras Legais Populares, Ob- servatório da Constituição e da Democracia, Caderno mensal concebido, preparado e elaborado pelo Grupo de Pesquisa So- ciedade, Tempo e Direito, da Faculdade de Direito da UnB, nº 6, Brasília, agosto de 2006). Certamente, a prática jurídica nas Faculdades de Direito, no NPJ, não significa o abandono da tradicional assistência judici- ária dos antigos escritórios modelo de advocacia, mas, enquanto ela não se incorpore da experiência da assessoria jurídica po- pular, ela jamais será emancipatória, nem os seus operadores lograrão exercer o sentido pleno de responsabilidade social que dá significado às transformações em cursos no ensino superior brasileiro. 39 CRISE PARADIGMÁTICA NO ENSINO SUPERIOR: EM BUSCA DO COMPROMISSO COM A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO E A TRANSFORMAÇÃO SOCIAL Magda Chamon* Contextualização A crise de qualidade do ensino superior no Brasil, acentua- da nas últimas décadas do século XX, tem dado visibilidade às inconsistências e contradições que subjazem à formulação de políticas públicas nacionais dessa modalidade de ensino. A expansão do ensino superior, pouco articulada com os órgãos executivos ou normativos dos sistemas de ensino, vem ocor- rendo ao sabor de ênfases, oscilações e evoluções que refletem por um lado as reformas educacionais do país e, por outro, as demandas da realidade social. * Professora do Curso de Mestrado em Direito das Instituições Políticas da Universidade FUMEC, Pes- quisadora, Coordenadora do Projeto Veredas Universidade FUMEC/SEE/MG, consultora de currículo e projetos educacionais. ** Este artigo é originário da palestra proferida no VIII Seminário Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB, Belo Horizonte, 04/09/2004 na mesa-redonda “A Reforma Universitária e o Curso de Direito”, sob a presidência do professor Rosemiro Pereira Leal (Presidente da Comissão de Ensino Jurídico OAB Minas Gerais). 40 Esse cenário desarticulado e desagregador, em uma de suas faces, impõe-nos a necessidade do desenvolvimento de um processo permanente de questionamento e interpretação da realidade, em busca de sua compreensão. O exercício intelec- tual possibilita a todos os que militam em um dado campo do saber e, em nosso caso específico de professores do ensino su- perior, analisar, compreender e assumir a tarefa de conduzir os diferentes segmentos acadêmicos, estabelecendo relações alicerçadas nas razões históricas, de forma a propiciar um me- lhor entendimento do presente. Cada um, instrumentalizado por essa compreensão, poderá incorporar em sua concepção de mundo e de ciência, e em sua prática no mundo, a responsabilidade de transformá-lo. Visão paradigmática e organização do conhecimento Um dado ideário de educação contempla referências teóri- cas, conceitos, procedimentos e habilidades de diferentes cam- pos do conhecimento, e esses, por sua vez, dependem de uma determinada concepção de mundo que, por sua óptica, decidi- rá os métodos e as estratégias que considerar mais eficientes para atingir seus objetivos. Isso significa que não há um e sim vários ideários de educação e, portanto, várias formas de se entender e praticar a relação pedagógica. A prática pedagógica nada mais é que a materialização de relações sociais e isso significa que uma dada concepção de mundo e de ciência está estreitamente vinculada à dimensão instrumental e social desenvolvida numa sociedade concreta e 41 historicamente situada e que, portanto, não é neutra ou impar- cial, mas uma ação política a serviço de determinada visão de mundo ou paradigma, aqui entendido como “a constelação de crenças, valores e técnicas partilhada pelos membros de uma comunidade científica” (Kuhn, 1994, p. 225)1. Assim, a forma como o processo educativo é desenvolvido traduz a concepção de ciência e o conhecimento de teorias de aprendizagem implícitas e subjacentes às propostas utilizadas. Os limites e as insuficiências do pensamento reducionista e simplificador herdados dos desdobramentos do racionalismo iluminista geraram um saber fragmentado e um processo de especialização acentuado que se traduziu em compartimenta- lização dos bens culturais e em unidades estanques do saber. Dessa maneira, cada área do conhecimento, cada disciplina do currículo escolar passa a ser uma maneira de organizar e delimitar um território de trabalho e passa a oferecer uma ima- gem, também, reduzida e simplificada da realidade, isto é, da- quela parcela que faz parte de seu ângulo de percepção. A organização curricular que hoje conhecemos teve sua matriz a partir da Revolução Industrial, quando o processo de divisão técnica e social do trabalho referente tanto à produção como à distribuição de bens materiais e culturais passou a ser reproduzido no interior dos sistemas educacionais. Justificou-se, a partir de então, no mundo ocidental, um des- dobramento exacerbado dos objetos do saber científico. Pro- gressivamente, abriram-se caminhos para a especialização das 1 KUHN, T. S. As Estruturas das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva, 1994. 42 ciências. Isso culminaria na perda da visão de unidade e diver- sidade presentes na realidade e, portanto, na tentativa irres- ponsável de definição rígida e pulverizada das fronteiras da ciência. Essa parcelarização das fronteiras do saber tem produzido inúmeros descompassos na cultura escolar e no processo de construção do conhecimento dos aprendizes que passam a acu- mular, em suas mentes, um número infindável de fragmentos sem aprender a estabelecer relações entre eles e, mais, entre os fragmentos e a realidade viva e dinâmica. Dessa forma, gran- de número de docentes continua privilegiando a velha manei- ra como foram ensinados, reforçando a aprendizagem repeti- tiva e descontextualizada, distanciando o estudante do pro- cesso de construção do conhecimento e do desenvolvimento de aprendizagens significativas, enfim, propiciando a manu- tenção de um modelo de sociedade que produz sujeitos que priorizam o discurso da autoridade, despreparados para criar, pensar, construir e reconstruir dialeticamente os bens cultu- rais e o conhecimento. A reforma do ensino superior no Brasil: fechando o cerco para a produção do saber Em nosso caso específico, no entanto, não poderíamos dis- cutir a crise do ensino superior no País sem analisarmos al- guns efeitos da reforma de ensino de 1968, traçada sob a égide da ideologia da Segurança Nacional adotada pelo governo militar e realizada sob a proteção do Ato Institucional nº 5 e do Decreto nº 477, com o objetivo de resolver a “crise estudantil”. 43 Antes desconsiderado, o ensino superior converteu-se, mo- mentaneamente, em questão política e social de primeira gran- deza e precisava ser reformado para suprimir o movimento de contestação dos estudantes. A universidade, então, foi recriada sob a lógica da grande empresa, ou seja: criar técnicos distancia- dos dos problemas sociais e políticos, impedir a reflexão e o pen- samento crítico, bloquear o desenvolvimento da autonomia e da possibilidade de decisão, controle e participação, tanto no plano da produção material, quanto intelectual (cf. Chauí, 2001)2. Ao ensino superior reformado foi conferido o papel de reprodutor da ideologia e das relações de classe e de produtor de uma prática social e de um saber ainda mais parcelarizado. A fragmentação da universidade ocorre em todos os seus seg- mentos, tanto na carreira docente como na administrativa e nos cargos de direção. Os currículos dos cursos perdem a ênfase na formação hu- mana e ganham um caráter tecnicista, centrado em habilita- ções que sintetizavam uma formação aligeirada de profissio- nais que viriam a ser os especialistas, treinados para o desem- penho de funções técnicas, desvinculadas entre si. Os princípi-os do taylorismo são retomados de forma deliberada, produ- zindo, nos aprendizes em formação, a separação entre as tare- fas de decisão e execução e uma visão fragmentada e distorcida do saber e da realidade social. Essa cientifização e tecnificação do ensino, a organização burocrático-administrativa, a centralização e a tutela curricular 2 CHAUÍ, M. S. Escritos sobre a Universidade. São Paulo: UNESP, 2001, p. 47. 44 fundadas nos princípios do medo e da negação alicerçaram-se pela prática competitiva e alimentaram a construção de uma escola cada vez mais distanciada do mundo real e da vida. O ensino superior brasileiro, produzido a partir daquele projeto nacional, assumiu para si a tarefa de promover a distri- buição de um conhecimento patrulhado, dividindo-o, dosan- do-o e administrando-o em lugar de promover um saber con- sistente e instituinte de reflexões e significados sobre as ques- tões sociais, econômicas, políticas e culturais do País. Desvinculando educação e saber, a Reforma de 1968 reve- lou que o papel do ensino e da pesquisa não é produzir conhe- cimento e cultura, estimular o uso da curiosidade e da investi- gação como atitude de vida, propiciar o acolhimento ao novo, desenvolver formas de repensar e de refazer em face do ines- perado, mas sim espaço de adestramento de mão-de-obra para o mercado de trabalho e de criação de incompetentes sociais e políticos. Várias foram as diretrizes contidas no corpo da Reforma de 1968 (cf. Chauí, 2001)3, cujas linhas mestras pautavam-se na necessidade de aniquilamento da cultura “rebelde”, substitu- indo-a por uma “cultura do silêncio” com objetivos utilitaristas e pragmáticos que melhor conformassem os cidadãos para um novo estágio de internacionalização do capital, ávido pela ampliação da eficiência e da produtividade. Amordaçadas pela “cultura do silêncio”, oprimidas pelo autoritarismo e alimen- tadas pela cultura da competição e do lucro, as gerações de 3 Ibidem, p. 48-51. 45 estudantes pós-68 foram se tornando hospedeiros da consci- ência do dominador – seus valores, sua ideologia, seus interes- ses, suas práticas. Dessa forma, a organização do processo de trabalho no in- terior das instituições de ensino, a concepção de ciência, de educação e as estratégias de ensino e aprendizagem passaram a desconsiderar a relação como eixo articulador entre profes- sor e aluno, entre instituição de ensino e sociedade, criando nos vários segmentos da organização acadêmica o sentimento de guetos auto-referidos. O ensino superior no Brasil ratificou o corte entre ensino e saber e entre esses e a realidade. O saber envolve o pensamen- to e o confronto com a prática e essa, que é real, e, não raro, carrega consigo um estranhamento perante o desconhecido, exige trabalho de reflexão para a produção do novo. O pensar reflexivo, enfim, ensina os aprendizes a se ensinar. Já o conhe- cimento é a apropriação intelectual de um campo do saber já instituído, por isso ele pode ser quantificado, dosado e distri- buído. O conhecimento desvinculado da prática e do trabalho de reflexão pode ser comparado metaforicamente com a face envernizada de um objeto. Sendo superficial e apenas aparen- te, o verniz apenas permite brilho temporário, não constituin- do parte da essência do ser, e, em não integrando sua essência, é incapaz de transformá-lo. Gerenciada, então, por interesses econômicos e políticos, a universidade separou a teoria da prática, o conhecimento da realidade, o ensino da pesquisa, passando a configurar-se como uma realidade à margem da dinâmica social, deixando de cum- 46 prir a função social de “locus” de produção de bens culturais. De instituição com a finalidade de formar sujeitos históricos, comprometidos com as questões que ultrapassam os compro- missos terrenos imediatos, tornou-se uma instituição de plan- tão à espera da encomenda de “serviços”, centrando sua ação na preparação técnica e competitiva da força de trabalho da sociedade daqueles que a freqüentam. A análise precedente aponta para a compreensão do porquê o ensino superior modernizado desprezou a formação acadê- mica pelas ciências humanas e do ensino das humanidades (lite- ratura, filosofia e artes). Em uma proposta de ensino apressado e pragmático, esse campo do conhecimento foi declarado ana- crônico, irracional e improdutivo, portanto desnecessário. Nessa direção é que propomos um trabalho de reflexão sobre as representações sociais que vieram e ainda vêm (con)formando a educação acadêmica na sociedade brasileira. E essas represen- tações sociais constituidoras de uma dada cultura escolar vêm produzindo ritos e símbolos que muitas vezes fomentam discri- minações, assujeitamentos e normas que impõem padrões de condutas, tradutoras de concepções de mundo conservadoras que, ideologicamente, propiciam a manutenção e a permanên- cia de práticas culturais inibidoras de um saber emancipador. E sobre esse ponto é importante destacar que a dinâmica da ação educativa não pode ser entendida como síntese da intenção ou do desejo de sujeitos individuais, mas sim de sua interação com o contexto cultural, histórico e político ao qual pertencem. E são as experiências acumuladas ao longo da trajetória de um grupo ou de um segmento social ou profissional que produzem esque- mas de percepção, de pensamento e de ação que direcionam os 47 indivíduos para uma certa constância de práticas ao longo do tempo e constituem as “mentalidades”. E aqui podemos indagar: É possível mudar a concepção de ciência e de educação? Como devemos nos nortear para essa busca? Como desfocar o eixo das preocupações educativas con- temporâneas sobre o uso exacerbado de novas tecnologias (in- tegração de imagens, textos, sons, animação), entendidas como representações da boa qualidade pedagógica e de uma nova abordagem educacional, sem, contudo, avançar no processo de análise e na construção de habilidades para estabelecer relações entre o todo e as partes? Como construir uma cultura que possi- bilite, também, aos estudantes o fortalecimento do conceito de nação? Como prepará-los para o sentimento de identidade soci- al e profissional e de pertencimento à sua comunidade e ao seu país? Como despertá-los para a preocupação de retribuir à co- munidade o que dela se recebe? Como desenvolver o compro- misso para a transformação de uma ordem político-cultural ge- radora de dominações e inibidora da ação criativa? Em busca de um novo paradigma A marcha desenfreada das sociedades e civilizações em busca do progresso e do desenvolvimento da ciência, da razão e da técnica, tem gerado uma grande crise planetária. Os paradig- mas que aparentemente davam consistência a certas doutrinas começaram a ser abalados a partir da segunda metade do sé- culo XX. Os modelos de causalidade simples, que procuravam explicar o mundo de forma linear e reducionista e que produ- ziram o desenvolvimento cego e descontrolado da tecnociência, 48 têm sido ineficazes em face das contradições e incertezas do presente e do futuro. A imprevisibilidade diante dos perigos que sofre a humanidade como, por exemplo, a fome que mata silenciosamente, os destratos ambientais e ao ecossistema, a produção e o uso de armas nucleares, a violência e os conflitos urbanos e rurais etc., constitui uma crise de múltiplas dimen- sões e está presente em todas as áreas do conhecimento e esfe- ras do saber, em todos os domínios da ciência. As incertezas perante o imprevisível têm gerado a necessidade de elabora- ção de modelos de causalidade complexa que requerem nova forma de pensar o mundo e de produzir conhecimento. Para Edgar Morin4 (2003), complexo é o que não pode resu- mir-se em uma palavra mestra, o que não pode reduzir-se a uma lei ou a uma idéia simples. A aspiração do pensamento complexo é antagônica à ambição do pensamento reducionista de controlar e dominar o real. Pretende, portanto,desenvolver uma forma de pensar o real, de dialogar, de negociar com ele, a partir das incertezas. Em sendo a realidade complexa, a compreensão da comple- xidade do real é animada por uma tensão permanente entre concretude e pensamento e, portanto, pela dialeticidade dian- te da incompletude do ser e do saber. Assim, o tradicional pressuposto de ciência como conjunto de verdades de natureza acumulativa vem sendo substituído por uma concepção mais dinâmica, segundo a qual os cientis- tas mais ousados e brilhantes do momento (Morin, Capra, 4 MORIN, E. Introdução ao Pensamento Complexo. 4. ed. Lisboa: Instituto Piaget, 2003. 49 Maturama, Prigogine e outros) defendem que as teorias cientí- ficas, que se sucedem ao longo da história, não passam de mo- delos explicativos provisórios da realidade em movimento. Impõe-se-nos, portanto, a necessidade de (re)situar o sa- ber, herança do século XIX, que buscava, como único cami- nho para o progresso, o desenvolvimento técnico e científico atrelado à lógica da produtividade e do lucro em detrimento da percepção da realidade e da ciência una e múltipla, simul- taneamente. Essa percepção pressupõe mudanças profundas, inclusive de natureza epistemológica, que têm sempre reper- cussão no campo da educação. A necessidade de articulação entre teoria e prática, quer pela epistemologia das ciências, quer pela investigação científica com foco na realidade viva e dinâmica, tem se constituído como fundamento para a busca da superação de vícios teóricos e das concepções de mundo sob os quais o paradigma do pensamento simplificador vem sendo desenvolvido. A aplicação ao ensino dessa nova forma de contemplar a ciência tem provocado questionamentos so- bre o que se entende por aprendizagem e sobre os conheci- mentos que constituem suas bases. Não mudam apenas os paradigmas e os conteúdos da ciência, mas, também, o ponto de vista sob o qual ela é contemplada e, sobretudo, as ativi- dades daqueles que a praticam. O modelo de ciência que ex- plica nossa relação com a natureza e com a vida, em todas as suas dimensões, fundamenta e explica, também, o modo como aprendemos e compreendemos o mundo e que o indivíduo e sua cultura ensinam, e constroem o conhecimento pautado naquele modelo. 50 Se hoje, por força das razões históricas e do modelo de ciên- cia hegemônico, organizamos o currículo escolar de forma mi- nimizada e parcelada, não oferecendo, em suas disciplinas, uma visão de totalidade do curso e do conhecimento nem favore- cendo a comunicação e o diálogo entre os saberes, temos, sim, dificultado a perspectiva de visão de conjunto e de totalidade que favorece a aprendizagem. A necessidade da conexão entre as partes que integralizam o todo se dá a partir da complexidade que traduz os múltiplos aspectos que interagem no processo de pensar. O pensamento não é estático, mas dinâmico e, em sendo dinâmico, caracteri- za-se por um ir e vir que permite a criação e a reflexão para elaboração do conhecimento. É sob esse prisma que devem ser ampliadas e refletidas as discussões sobre a importância das relações entre os conteúdos de uma e outra disciplina; entre as disciplinas e o curso; entre as disciplinas e a vida, e assim su- cessivamente. É importante ter clareza da necessidade de su- peração dos conhecimentos parcelados, disjuntos e lineares que vêm sendo construídos a partir de um círculo vicioso, em bus- ca da construção de um conhecimento mais globalizante e in- tegrador que privilegie a relação entre os homens, e entre es- ses e a natureza, a partir de um círculo virtuoso. Formação docente e compromisso com o processo educativo A crise de qualidade do ensino superior no Brasil nas últi- mas décadas do século passado produziu algumas necessida- des no interior das instituições de ensino. A flexibilização do 51 currículo escolar, alterações na organização do processo de gestão institucional, a eleição de dirigentes foram algumas das conquistas oriundas dos movimentos sociais mais progressis- tas do século XX. Outro legado oriundo da crise de qualidade da educação brasileira foi a elaboração de diretrizes mais con- sistentes sobre a formação docente. A esse respeito manifesta- se Guiomar Namo de Mello5, na apresentação da obra: Educa- ção Escolar Brasileira: o que trouxemos do século XX? ... trouxemos do séc. XX um consenso robusto sobre a impor- tância do preparo do professor na promoção da qualidade de ensino. Considerando o atraso histórico em que se encontrava o país em tal questão, este é um legado considerável. (Mello, 2004, p. VIII). Esse legado, no entanto, não acontece de forma descontex- tualizada. Ele emerge na esteira das necessidades impostas pela revitalização do próprio modo de produção capitalista, que passa a demandar maior flexibilidade de gerenciamento, des- centralização das empresas e maior autonomia nos processos de decisão. Por seu turno, passa a ser exigida e discutida a edu- cação permanente do trabalhador, com ênfase na formação de competências múltiplas, na solução de problemas, no trabalho em equipe, na capacidade de aprender a aprender. Esse movimento e as exigências do capital transnacional fa- zendo eco por um lado e, por outro, a insuficiência de respos- tas às questões e desafios apresentados têm gerado a crise pa- 5 MELLO, G. N. de. Educação Escolar Brasileira: o que trouxemos do século XX? Porto Alegre: Artmed, 2004. 52 radigmática que hoje vivemos. A percepção linear e dicotômica de mundo não mais se sustenta em sua busca de compreensão e explicação da realidade. Diante desse cenário, impõe-se a compreensão da interde- pendência entre as partes que integram o todo. O conhecimen- to está naturalmente ligado à vida, fazendo parte da existência humana. O ato de conhecer está presente, simultaneamente, nos processos históricos e nas ações que envolvem o biológico, o cultural, o social, o cognitivo, o lingüístico e o político Por isso, o ser interage e se modifica com o conhecer que, ao mes- mo tempo, interage e modifica o ser. Ora, educação é, antes de tudo, um processo de humaniza- ção. Em outras palavras, é por esse processo que os seres hu- manos se inserem numa dada cultura historicamente construída e em construção. A tarefa da educação é inserir os indivíduos tanto no avanço civilizatório, para que dele usufruam, como na problemática desse mundo, por intermédio da reflexão, do conhecimento, da análise, da compreensão, da contextualiza- ção, do desenvolvimento de habilidades e de atitudes (cf. Pi- menta e Anastasiou, 2002)6. A educação tem como tarefa, também, possibilitar apropria- ção do instrumental técnico-científico e tecnológico de uma cul- tura. No entanto, isso não deve acontecer como processo cego, encomendado e apropriado pelos poderes dominantes, que esca- pa à consciência e à vontade dos próprios cientistas, mas, sim, como processo de produção de saberes críticos no campo do pen- 6 PIMENTA S. G.; Anastasiou, L. Docência no Ensino Superior. São Paulo: Cortez, 2002, p. 97. 53 samento político, social, econômico e sobre a cultura, para que os seus sujeitos sejam capazes de pensar e produzir soluções. Educação, por constituir fenômeno e prática complexos, não se pode limitar à transmissão de conteúdos teóricos porque envolve processo de formação humana. O ser humano é um ser inacabado, incompleto, lacunar. A inconclusão do ser é própria da experiência vital. Quanto mais cultural é o ser, maior é sua infância, maior sua dependência de cuidados especiais. Quanto mais cultural é o ser, maior o tempo de aprendizagem (conhecimentos, habilidades, normas, valores) e de dependência dos adultos. A existência humana no proces- so cultural envolve possibilidade de inteligir o mundo, de criar linguagem, de assumir o direito de optar, decidir, de fazer polí- tica. Ao mesmo tempo, essas possibilidades fazem com que os seres humanos sejam,
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