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FUKUMITSU, K.O. Não quero mais usar sapatos apertados: reflexões sobre as escolhas.... Plural- Psicologia em Revista, São Paulo, ano 1, n.1, novembro-dezembro de 2009, p.40-42. www.pluralpsicologia.com.br NÃO QUERO MAIS USAR SAPATOS APERTADOS: REFLEXÕES SOBRE AS ESCOLHAS... Karina Okajima Fukumitsu Somos as nossas escolhas. O destino não existe; tampouco o acaso – frases que menciono frequentemente em minhas aulas sobre existencialismo. Admito acreditar que somos escolhas não no sentido de termos o controle das situações, mas, sim, de sermos autônomos e, independentemente do que nos aconteça, ainda podemos escolher. Escolhemos a maneira que percebemos nossa existência, principalmente ao nos conscientizarmos das nossas bases, do nosso caminhar e do caminho percorrido. Por isso optei por falar sobre os sapatos, que se tornaram meus companheiros de vivências. Percebo que, quando mais jovem, a maioria de minhas opções pendia pura e exclusivamente ao externo, ou seja, dependiam do que pertencia ao meio. Por exemplo, em situações formais elas apresentavam-se com salto alto; no dia a dia precisavam ser saltos baixos, sem salto e, sobretudo, confortáveis. Além disso, eram também movidas pela vaidade. Era ótimo perceber que tinha, disponíveis em meu armário, sapatos de vários tipos, cores ou formas; sentia- me segura apenas em vê-los: mesmo não os usando, eles estavam lá. Quantas opções não fazemos movidos pela vaidade ou pela necessidade fantasiosa de garantir a segurança? Atualmente quero mais liberdade e conforto; menos sensações de aperto e restrição. Concordo com Rita Lee quando canta: "Não quero luxo nem lixo." Quero um sapato da minha medida, e minha medida é, acima de tudo, conforto e satisfação de minhas necessidades. Percebi que os sapatos representam para mim mais do que simples sapatos e sei que o sentido pertence àquele que sente. Sapatos são objetos que me sustentam e acolhem meus pés, são representantes da minha sustentação e do meu caminhar. Não; não se trata de uma manifestação volúvel contra os sapatos, até porque os adoro. No entanto, tenho me conscientizado sobre a relação que estabeleço com meu armário de calçados. Digo armário, pois eles eram inúmeros; uma quantidade tão absurda que às vezes me indagava: “Para que tantos sapatos se tenho apenas dois pés? ”. A quantidade, aliás, tinha uma vantagem: era importante trocar de sapatos para evitar o mau cheiro. Outra: cuidado para comigo e para com os outros. Como lido com o tema da morte, realizo constantemente a seguinte questão: “Com quem deixaria meus pertences? ” Deixarei meus livros para minhas melhores amigas e meus supervisionandos, mais precisamente, os gestalt-terapeutas – amigos de pertencimento do território do conhecimento. No entanto, quando fiz a mesma indagação considerando meus sapatos fui surpreendida, ao perceber que ficaria envergonhada em deixar meus sapatos para qualquer pessoa conhecida. O que mais me surpreendeu foi a percepção de que não gostaria que meus sapatos fossem repassados para ninguém, pelo receio de passar “meu mau cheiro”, o famoso chulé, que já melhorou muito com tratamentos, mas – confesso – já foi um dia insuportável. Digo isso até porque, ao escolhermos, almejamos o “final certo” e, desse modo, o que fazemos é esconder aquilo que não é bonito, não nobre e não aceitável pela sociedade. Ao deixar meus sapatos confirmaria minha não perfeição e aquilo que é mais meu – algo que já foi horrível. Ficava realmente brava quando comprava um sapato caro, bonito e desconfortável, que me fazia bolhas. O grande problema é que a direção da minha braveza era para o “inocente” calçado, que não poderia obviamente responder à culpa que depositava nele. Percebi então que eu, somente eu, sou responsável pelos sapatos que compro e, sobretudo, quando e como usá-los. A regra é: “não quero mais usar sapatos apertados”. Sendo assim, desejo enfatizar que “o não querer” é o segredo das escolhas. Eu é o princípio da identidade, singularidade, e querer representa a obrigação de satisfazer de minhas necessidades. Dessa maneira, querer ou não querer refletem quem somos e como nos apoderamos da nossa singularidade, ou seja, o querer significa escolha – essência da liberdade. Já utilizei também o valor dos sapatos como parâmetro para me certificar da qualidade – quanto mais caros mais qualidade teriam. Ledo engano! Pior ainda se comparar o preço de um sapato com meu ideal e fantasioso desejo de acreditar que, quanto mais títulos e diplomas tiver, mais valorizada serei como profissional. Meia verdade, pois ser psicóloga, mestre, doutoranda, professora universitária, supervisora não garante meu valor; é o conhecimento e o processo de tudo o que invisto que certifica minhas credenciais – profissional e principalmente pessoal. Melhor. De nada adianta ter certificados e diplomas, se não me preocupar com meu ser, com aquilo que é importante para mim. Talvez por viver um momento em que sinto “meus pés no chão”, reflito sobre o motivo pelo qual não devo orientar minhas escolhas somente por aquilo que o contexto solicita. Por que não usar chinelos, quando os pés estão machucados? Os sapatos favorecem o mau cheiro e, pensemos também, são rígidos, fechados resistentes. Prendem-nos. Então, é preciso nos livrar das amarras que nos prendem. Recordo-me de uma situação em que me percebia tão rígida, que congelava minha vaidade, ostentada pela função de supervisora de uma clínica-escola. Quando essa instituição desativou a clínica, senti que perdera meu chão. Fiquei enlutada, pois a necessidade de me assegurar em um papel me aprisionou de tal maneira que me impediu durante muito tempo de perceber que já era supervisora em meu consultório e que abrir mão de uma função conhecida foi necessário, inclusive, para poder viver meu papel de mãe. Explico: estava tão absorvida por minha vida profissional que minha vida pessoal havia ficado para segundo plano. E foi justamente esse luto que me abriu espaços para ser mãe e, com certeza, meus filhos não se importam – ainda nem sabem – se sou psicóloga, supervisora ou o que quer que seja. O que eles realmente querem é ter uma mãe. Daí minha pergunta: por que usar saltos quando se está cansada? Lembro-me de que depois do meu segundo parto e sabendo que não teria mais filhos, “subi no salto”, pois me vi de novo usando sapatos altos. Moral da história: saudade também faz parte das nossas opções. Queria me sentir novamente bonita, mulher e liberar a famosa vaidade, mas, agora, mais apropriada e ressignificada, pois meu orgulho no momento era o de ser mãe e não apenas ter filhos. Mesmo assim a vaidade ainda me aprisionava na questão dos benefícios: “Se for com essa roupa combinando com aquele sapato, talvez passe mais credibilidade...” – essa era a maneira como pensava em alguns momentos, como se credibilidade vivesse de aparências... Por outro lado, recordo-me também que, ao ficar grávida, preferia sapatos sem salto, macios, que proporcionavam conforto a meus pés inchados e me ajudavam na sustentação de minha barriga, que carregava um ser em gestação. Ou seja, alguém estava me ajudando a encontrar aquilo que era melhor para mim e, desse modo, realizei que a escolha não era só minha, mas também voltada aos cuidados com o outro. Com o passar dos anos notei que meus pés cresceram e, ingenuamente, cheguei até a pensar que meus sapatos haviam encolhido. Desfiz-me de alguns pares antigos e refleti sobre os que continuariam comigo.... Foi aí que deparei com meus botões: “Não são as coisas externas que se modificam, mas nós que crescemos e nos transformamos. Será que ao envelhecermosprecisamos de menos coisas para nos definir? ”. Outra coisa: não se anda com os sapatos dos outros. Não só pelo chulé, mas, sobretudo, porque ninguém pode andar por ninguém. Só eu posso andar por mim; só saberei o que significa desconforto ou conforto se eu mesma praticar o que escolhi. Ilustrando: certa vez fui invadida por um sentimento de inveja em relação a uma pessoa que admiro e que me encanta. Cativam-me sua maneira de falar e se comportar, mais precisamente em público; sua energia, assertividade, confiabilidade, segurança. Seu porte, seu corpo – ela é linda, vistosa –, o protótipo de mulher bonita, inteligente e, claro, só calça sapatos baixos por ser alta. Sua sabedoria intelectual e organísmica me envolvem e, ao mesmo tempo, acionam meus pontos cegos, fazendo-me entender que o que mais almejo nas relações humanas é o reconhecimento que sinto que as pessoas têm por ela. Alguns dizem: “Ela é tudo, é top, é o must”. Comentários que desejaria muito ouvir sobre mim. Apesar de ser professora universitária e enfrentar diariamente a dúvida de agradar ou não meus alunos, confesso que estar à frente de um público sempre provoca inúmeros questionamentos quanto à minha capacidade e potencialidade. Além disso, como estou no meio de pessoas, percebo-me acionando minha velha e permanente necessidade de ser aceita e de pertencer – o que acaba gerando mais insegurança. Lembro-me de que queria ser como ela: brasileira, magra, linda, inteligente e, lá no fundo, ser reconhecida como ela. Uma Cinderela e seu sapato. Como gostaria de encontrar antes dela o sapatinho perdido e calçá-lo um minutinho só, para obter um pouco que fosse de tudo aquilo que ela inspirava! Ser outra pessoa que não eu – era esse meu desejo. Mas – ainda bem que existem os mas – acabei descobrindo que nem sapatinho nem varinhas mágicas me ajudariam. A única coisa a ser feita era especializar-me em mim mesma: japonesa, baixinha, cheinha, aceitando ser reconhecida não pela unanimidade, mas por alguns. Só assim conseguiria lidar com a inveja que me inundava. Eu precisava calçar meus próprios sapatos e reconhecer meus pés como as bases da minha existência. Quais são os sapatos que você deseja usar daqui por diante? Quais são os objetos que representarão seu caminhar e seu caminho? Como você quer usar seus sapatos? Essas reflexões são convites para que todos se apoderem de suas escolhas. O ser humano é um vir-a-ser e é aquilo que viverá no lá- depois, desde que viva seu aqui-agora. Antecipei minhas saídas com minha filha, de apenas dois anos de idade, e o curioso é perceber que talvez a única situação que me vem à mente é a de que a levarei comigo, algum dia, para minha loja de sapatos preferida, mas isso já é outra história... KARINA OKAJIMA FUKUMITSU Psicóloga e psicoterapeuta. Pós-doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade São Paulo (USP) e bolsista PNPD/CAPES. Mestre em Psicologia Clínica pela Michigan School of Professional Psychology (EUA), especialista em Psicopedagogia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e em Gestalt-terapia pelo Instituto Sedes Sapientiae. Autora dos livros: Suicídio e Luto: história de filhos sobreviventes (2013); Suicídio e Gestalt-terapia (2012) e Perdas no desenvolvimento humano: um estudo fenomenológico (2012). Organizadora da Coleção Gestalt-terapia: Fundamentos e Práticas (juntamente com Lilian Meyer Frazão) e editora da Revista de Gestalt-terapia do Instituto Sedes Sapientiae (juntamente com Rosana Zanella).
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