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PSICANÁLISE, CIÊNCIA E PROFISSÃO AULA 1 Profª Ana Lizete Farias 2 CONVERSA INICIAL Nesta etapa, vamos explorar as raízes do pensamento psicanalítico, destacando os fundamentos que moldam esta disciplina singular. Começaremos com o inconsciente freudiano, contrapondo-o à consciência e demonstrando sua presença em lapsos, sonhos e sintomas. Abordaremos também a descoberta do inconsciente como uma ruptura epistemológica, bem como sua conexão com os métodos da livre associação e da interpretação dos sonhos. No segundo momento, discutiremos como trabalha um analista, explorando suas funções, como escuta, neutralidade, manejo da transferência e interpretação. A ética na prática analítica e o setting psicanalítico serão analisados como elementos fundamentais para o trabalho, diferenciando a psicanálise de outras abordagens terapêuticas. Também nos dedicaremos à diferenciação entre psicanálise, psicologia e psiquiatria, destacando a especificidade da psicanálise no tratamento do sofrimento psíquico e suas contribuições singulares. Além disso, refletiremos sobre a epistemologia da psicanálise, enfatizando sua singularidade como ciência e seu método interpretativo voltado à compreensão do inconsciente. Por fim, trataremos da concepção de mundo e de homem na psicanálise, revisitando a transição do homem universal ao sujeito, introduzindo conceitos como subjetividade, intersubjetividade e singularidade. Esta introdução nos guiará pelos principais eixos que fundamentam a prática psicanalítica, conectando teoria, ética e prática clínica. Bons estudos! TEMA 1 – O QUE É O INCONSCIENTE FREUDIANO? O inconsciente freudiano pode ser compreendido como o motor fundamental do psiquismo, que transformou profundamente a compreensão do ser humano, desafiando paradigmas científicos e filosóficos daquela época. Freud definiu o inconsciente como a instância psíquica que opera fora do alcance da consciência, mas que, ainda assim, manifesta-se em lapsos, sonhos, sintomas e atos falhos. No texto O inconsciente, escrito em 1915, ele descreve como inconsciente todas as representações que se encontram 3 presentes no aparelho psíquico, mas que não na consciência (Freud, 1915/2010). O pai da psicanálise considerava o inconsciente como uma “escrita” que demanda decifração, aspecto explorado na obra A interpretação dos sonhos (1900). Derrida reinterpretou essa concepção como um sistema de diferenças, no qual rastros e trilhamentos formam uma linguagem a ser lida e reinterpretada (Fuks, 2017, p. 126). Essa ideia está em consonância com a formulação lacaniana de que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”. Utilizando o chiste “Pergunte ao cavalo!” para ilustrar a dinâmica entre o consciente e o inconsciente, Freud metaforiza o inconsciente como o guia indomável das ações humanas – uma força que frequentemente escapa ao controle do cavaleiro (o Eu consciente). Essa metáfora, descrita no artigo de Fuks (2017), ilustra a relação entre energia pulsional e sentido, elementos que coexistem no inconsciente (Freud, 1898 apud Fuks, 2017, p. 124-125). A introdução do inconsciente como conceito significou uma ruptura epistemológica que desafiou o modelo cartesiano do sujeito como plenamente consciente de si ao propor que grande parte da vida psíquica é governada pelos processos inconscientes. Essa visão questionou o ideal racionalista de controle absoluto da mente sobre si mesma, posicionando a psicanálise como uma ciência inovadora, com métodos próprios de investigação e uma abordagem radical da subjetividade. Além disso, Freud desenvolveu a livre associação como um método privilegiado para acessar o inconsciente, incentivando os pacientes a verbalizarem pensamentos sem censura. De maneira análoga, descreveu a interpretação dos sonhos como "a via régia para o inconsciente", considerando os sonhos como rébus – sistemas de imagens que exigem decifração. Segundo Freud, o sonho é um espaço onde o desejo inconsciente transita entre opacidade e revelação (Freud, 1900/2019; Fuks, 2017, p. 126-127). Além de ser um espaço simbólico, portanto, o inconsciente é permeado por forças pulsionais que resistem à simbolização completa. Em sua célebre formulação, “Wo Es war, soll Ich werden” (“Onde o Isso estava, o Eu deve advir”), Freud sugere, de certa maneira, que o processo analítico busca reinscrever essas forças no campo da linguagem (Fuks, 2017, p. 125). 4 Freud também reconheceu que o inconsciente não é apenas individual, mas coletivo, refletindo dinâmicas culturais e civilizatórias. Ele observou que os sintomas individuais frequentemente ecoam conflitos culturais mais amplos, como o mal-estar inerente às sociedades modernas. Nesse contexto, o analista é convocado a decifrar forças inconscientes que moldam o mal-estar coletivo e agir como crítico da cultura (Fuks, 2017, p. 131). No conto de Kafka, O cavaleiro do balde, citado por Fuks, o vazio do balde que o protagonista cavalga simboliza a busca incessante de preenchimento do desejo. Essa narrativa ilustra não apenas os limites impostos pela pulsionalidade e pela cultura, mas também a inevitabilidade do vazio como motor do desejo humano (Fuks, 2017, p. 134). O inconsciente freudiano é uma contribuição fundamental ao pensamento humano. Sua compreensão como um “saber insabido”, a ligação com a linguagem e a pulsionalidade, e suas implicações culturais e sociais não só fundam a psicanálise, mas também influenciam outras áreas do saber. Como um “cavaleiro errante”, a psicanálise é constantemente desafiada a revisitar suas origens, reinterpretar suas descobertas e enfrentar os dilemas do sujeito contemporâneo, sustentando a transmissão da descoberta freudiana como um trabalho em perpétuo movimento. TEMA 2 – COMO TRABALHA UM ANALISTA O trabalho do analista é singular, fundamentado em princípios éticos, técnicos e clínicos que englobam a escuta, o manejo da transferência e a construção de um setting analítico adequado. Diferentemente de práticas terapêuticas que priorizam a cura sintomática, a psicanálise busca a transformação subjetiva do analisando, proporcionando uma reorganização psíquica que possibilite uma nova relação com o desejo e o inconsciente. Nesse contexto, a ética é o alicerce da psicanálise e se entrelaça com a posição que o analista ocupa no tratamento. Uma posição, de certa maneira, enigmática, caracterizada pelo lugar do objeto para o analisando, sem assumir o papel de mestre ou detentor de saber absoluto. Nasio (2010) destaca que o analista deve evitar reduzir seu trabalho a interpretações previsíveis, ressaltando a necessidade de ultrapassar preconceitos que limitam a prática a uma abordagem técnica ou diretiva. Ele argumenta que o analista precisa questionar o impossível e criar condições 5 para que o analisando encontre suas próprias respostas. A interpretação é uma função central no trabalho do analista. Ela consiste em decifrar os conteúdos inconscientes que emergem do discurso do analisando, das manifestações transferenciais ou dos sonhos, oferecendo-lhes um sentido que possa ser integrado à consciência. Freud definiu a interpretação como o método pelo qual o inconsciente se torna acessível, enquanto Lacan a concebeu como a introdução de um corte que permite ao sujeito confrontar-se com seu desejo. Por exemplo, ao escutar o relato de um sonho ou ato falho, o analista busca compreender seus significados subjacentes, relacionados a pulsões e conflitos inconscientes do analisando. Em Inibição, sintoma e angústia, Freud descreve o papel do analista como aquele que cria as condições para o inconsciente do analisando manifestar-se, respeitando o ritmo do processo. Ou seja, o tratamento não deve forçar uma solução, mas sim ser conduzido de modo que ela surja no ritmo própriodo analisando. Essa perspectiva reforça a necessidade de neutralidade do analista, que deve resistir à tentação de satisfazer as demandas de amor ou respostas imediatas do analisando. Nesse processo, é fundamental lidar com a contratransferência, destacada por Nasio (2010) como uma questão ética central. O analista deve reconhecer suas próprias reações e manter um trabalho constante de supervisão e autoanálise, condições essenciais para que permaneça em seu lugar de analista. Na mesma direção, Nasio sublinha a importância do "silêncio-em-si", não apenas como ausência de palavras, mas também como um espaço simbólico em que o inconsciente do analisando pode emergir e encontrar expressão. Esse silêncio corrobora a atitude ética, privilegiando a escuta ativa e a abertura para o desejo do outro. O setting psicanalítico, ou seja, o ambiente onde se instaura o trabalho do analista e do analisando, é o espaço simbólico da análise, estruturado por elementos como o divã, o manejo do tempo e do dinheiro. Freud destacou o papel do divã ao criar uma situação em que o analisando possa falar livremente, sem a interferência do olhar do analista. Nasio complementa essa visão ao enfatizar que o divã permite que o analisando mergulhe em sua própria fala, enquanto a ausência visual 6 intensifica a transferência. A regra fundamental – falar sem censura – funciona como um convite direto para que o inconsciente se manifeste, e a regularidade das sessões estabelece um ritmo que sustenta o trabalho analítico. Nesse sentido, a psicanálise distingue-se de outras abordagens terapêuticas tanto em seus objetivos quanto em sua metodologia. Enquanto as terapias focadas em técnicas comportamentais buscam aliviar sintomas ou adaptar o sujeito à realidade, a psicanálise promove uma transformação subjetiva profunda, tomando o inconsciente e a transferência como centrais no processo. O analista deve intensificar os conflitos psíquicos por meio da neurose de transferência, ajudando o analisando a revisitar e ressignificar seus padrões inconscientes (Nasio, 2010). O trabalho do analista exige rigor ético, técnica apurada e sensibilidade à singularidade de cada caso. O analista atua como um suporte enigmático, que favorece o acesso ao inconsciente e possibilita a reorganização subjetiva do analisando. Mais do que uma prática terapêutica, a psicanálise é uma travessia em direção a novas relações consigo mesmo, com o outro e com o desejo. TEMA 3 – PSICANÁLISE, PSICOLOGIA, PSIQUIATRIA A diferenciação entre Psicanálise, Psicologia e Psiquiatria é um tema de grande relevância, tanto para quem busca formas de atendimento ao sofrimento psíquico quanto para quem deseja entender as especificidades de cada área. Cada uma dessas disciplinas possui características epistemológicas e metodológicas próprias que definem sua singularidade e repercutem em práticas distintas. Vamos iniciar pela Psiquiatria, especialidade médica voltada à saúde mental cuja formação ocorre por meio de programas de residência médica regulamentados, envolvendo tanto estudo teórico quanto prática clínica. O psiquiatra é habilitado a realizar psicoterapia, prescrever medicamentos e desenvolver ações de reabilitação e promoção da saúde. Historicamente, a Psiquiatria desenvolveu-se na interface entre os cuidados à loucura e sua contenção social. Duas linhas marcaram sua constituição: o reducionismo biológico, que busca explicar as psicopatologias por meio do funcionamento cerebral, e as práticas psicoterapêuticas 7 associadas ao internato, influenciadas por figuras como Pinel, Charcot e Binswanger. Nos anos 1950 e 1990, revoluções psicofarmacológicas e avanços das neurociências consolidaram a psicofarmacologia como eixo central da prática psiquiátrica. No entanto, como aponta Schwartzman (1997), a Psiquiatria contemporânea frequentemente reduz o tratamento do sofrimento psíquico à prescrição de medicamentos, negligenciando o objetivo inaugural da investigação psicopatológica: compreender a origem, a natureza e as diferenciações das doenças mentais. Essa abordagem biológica e dualista, ao separar mente e corpo, exclui aspectos subjetivos fundamentais para uma compreensão mais ampla do sofrimento humano. “A reação da Psiquiatria deve ter para a comunidade dos psicanalistas o valor de uma boa caricatura”, reflete Schwartzman, evidenciando a tensão que emerge da abordagem reducionista frente à complexidade da subjetividade humana. A Psicologia, por sua vez, é uma ciência ampla, marcada por diversas teorias e práticas. Surge como disciplina científica com autores como Wilhelm Wundt e Gustav Fechner, sendo atualmente regulamentada como profissão no Brasil (CFP, 1962). A formação em Psicologia abrange cinco anos de graduação e estágios supervisionados, organizando-se em linhas teóricas (como Behaviorismo, Gestalt, Psicologia Cognitivo-Comportamental) e territórios de atuação (Psicologia Clínica, Hospitalar, Social, entre outras). Tal diversidade reflete a pluralidade de objetos e métodos que a Psicologia adota em sua relação com o sofrimento humano. Diferentemente das anteriores, a Psicanálise não é regulamentada como profissão. Sua formação baseia-se no tripé freudiano – análise pessoal, supervisão de casos e estudo teórico –, e as instituições de Psicanálise possuem autonomia para definir critérios éticos e formativos. Como vimos anteriormente e em consonância com o que descreve Ravanello (2023), a Psicanálise tem como fundamento o inconsciente, um saber desconhecido e determinante que "insiste em atuar em nossas vidas sem um consentimento prévio ou consciente, revelando que, em certo sentido, 'não somos senhores em nossa própria casa', como alertava Freud". Sua metodologia se ancora na associação livre e na interpretação do analista na transferência. Assim, a Psicanálise não se limita a técnicas específicas, e sim 8 oferece um método que estrutura a prática clínica com base em critérios epistemológicos próprios. Conforme Schwartzman (1997), a Psicanálise, ao postular a historicidade do corpo e sustentar uma abordagem que considera a subjetividade, representa uma oposição ao reducionismo biológico da Psiquiatria. A reação da Psiquiatria à Psicanálise, frequentemente expressa em críticas como "a Psicanálise está morta", reflete, segundo a autora, resistências às implicações desconcertantes da descoberta do inconsciente. Contudo, a Psicanálise resiste, com sua ênfase na tensão entre polos opostos e na articulação mente-corpo, explorando os meandros do sofrimento psíquico e de uma lógica binária e dualista. Cada uma dessas áreas oferece caminhos distintos para a compreensão e o tratamento do sofrimento psíquico. A escolha entre elas deve considerar a natureza do problema, os objetivos de quem busca atendimento e sua abertura para explorar dimensões conscientes ou inconscientes. Enquanto a Psiquiatria se ancora em intervenções biológicas, e a Psicologia, em práticas científicas diversificadas, a Psicanálise se destaca por sua profundidade no campo do inconsciente, propondo um saber-fazer com aquilo que nos determina de forma singular. Assim, essas disciplinas, em sua diversidade, contribuem de maneira complementar para enfrentar os desafios da saúde mental. TEMA 4 – EPISTEMOLOGIA DA PSICANÁLISE A epistemologia da psicanálise refere-se ao estudo dos fundamentos, limites e critérios de validade do conhecimento produzido por essa disciplina. Esse campo busca compreender como a psicanálise constrói seu saber, quais são suas bases teóricas e metodológicas e como ela se posiciona em relação às ciências tradicionais. Diferentemente das ciências naturais, a psicanálise lida com o inconsciente, um objeto que não é diretamente observável, mas acessado por meio de formações como sonhos, atos falhos e sintomas (Garcia- Roza, 1985). Desdesua fundação por Sigmund Freud, a psicanálise posiciona-se como uma ciência singular. Seu estatuto epistemológico refere-se ao conjunto de fundamentos que define como ela constrói e valida seu saber, diferenciando-se das ciências tradicionais. Freud desafiou os critérios clássicos de cientificidade, sobretudo pelo método que emprega e pelo objeto que 9 investiga: o inconsciente. Essa singularidade gerou intensos debates e críticas ao longo do século XX, permanecendo uma questão central na filosofia da ciência e nas ciências humanas. Freud, em textos como A questão da análise leiga (1926) e A história do movimento psicanalítico (1914), defendeu a psicanálise como uma ciência empírica, mas peculiar. Ou seja, em vez de operar com experimentação controlada, como as ciências naturais, a psicanálise baseia-se na observação clínica e na reconstrução de processos psíquicos a partir da fala do sujeito. Freud comparou sua abordagem à arqueologia, em que se interpretam vestígios para reconstruir uma totalidade invisível. A singularidade epistemológica da psicanálise também reside no fato de que seu objeto – o inconsciente – não é diretamente observável, mas inferido por meio de formações como sonhos, atos falhos e sintomas. Essa abordagem entrelaça teoria e prática clínica, mas tem sido criticada por não cumprir os critérios de verificabilidade ou falsificabilidade defendidos por teóricos como Karl Popper. Contudo, essa especificidade aponta para a natureza singular da psicanálise, que não busca previsibilidade exata, mas compreensão e transformação do sofrimento humano. As críticas à psicanálise frequentemente recaem sobre aspectos como a subjetividade de suas interpretações e a ausência de verificabilidade empírica. Segundo Dunker e Iannini (2023), enquanto as ciências naturais privilegiam experimentos controlados, a psicanálise adota uma abordagem que investiga fenômenos subjetivos e relacionais inapreensíveis pelos métodos tradicionais. Esses autores destacam que a psicanálise desafia os paradigmas tradicionais ao propor • uma ciência do singular: em vez de buscar generalizações, a psicanálise foca na história e linguagem de cada sujeito; • ênfase na linguagem: a linguagem não é apenas meio de comunicação, mas também constitui o sujeito e suas formações inconscientes; • ciência e crítica da ciência: posiciona-se como uma "anomalia epistemológica", transcendendo os limites da ciência tradicional. 10 O método interpretativo do inconsciente é um dos pilares da singularidade da psicanálise. Freud descreveu o inconsciente como um sistema governado por leis específicas, diferentes das do pensamento consciente: • Condensação e deslocamento – mecanismos presentes nos sonhos e sintomas psíquicos que tornam os conteúdos do inconsciente codificados e simbólicos. • Ausência de contradição – o inconsciente não distingue entre opostos e não segue a lógica linear do pensamento consciente. • Representação simbólica – o inconsciente utiliza imagens, metáforas e associações para expressar conteúdos reprimidos. A tarefa do analista é decifrar essas manifestações e, por meio de intervenções pontuais, promover novas compreensões para o sujeito. A epistemologia da psicanálise, com sua articulação entre teoria e prática clínica, apresenta uma forma de conhecimento que desafia dicotomias como ciência e arte, objetividade e subjetividade. Apesar das críticas, a singularidade do método interpretativo e o foco na subjetividade tornam a psicanálise uma ferramenta valiosa para compreender a complexidade do ser humano. Em sua essência, ela continua a oferecer insights transformadores para o campo das ciências humanas e sociais. TEMA 5 – A CONCEPÇÃO DE MUNDO E DE HOMEM NA PSICANÁLISE Como atestam os textos anteriores, a psicanálise marca uma ruptura epistemológica com as concepções tradicionais de homem e mundo. Enquanto a filosofia e a ciência clássicas frequentemente buscaram universalizar o humano, construindo modelos abstratos e homogêneos, a psicanálise se volta para a singularidade e o caráter fragmentado do sujeito. A noção de “homem universal” é criticada como uma tentativa de apagar as diferenças e reduzir a complexidade humana a um sistema fechado de ideias (Dunker; Iannini, 2023). O sujeito psicanalítico, ao contrário, é descentrado, determinado pelo inconsciente, e se constitui em um campo de tensões entre corpo, linguagem, cultura e história. Essa abordagem não apenas desloca o foco da racionalidade plena, mas também redefine a relação entre o indivíduo e o outro, destacando o papel das forças inconscientes e das interações intersubjetivas na constituição da subjetividade. 11 A psicanálise não propõe uma visão de mundo unificada ou totalizante. Em vez disso, ela se apresenta como uma prática crítica e reflexiva, comprometida em compreender a complexidade humana em suas diversas manifestações. Freud, em Novas conferências introdutórias sobre psicanálise (1933), oferece-nos insights fundamentais ao discutir a relação entre ciência e visão de mundo, como explorado também por Loureiro (2000) em sua análise sobre a concepção freudiana de ciência e estilo romântico. 1. Não é uma visão de mundo fechada: a psicanálise rejeita a ideia de construir um sistema fechado de conhecimento. Reconhecendo a pluralidade e a incerteza, ela não busca uma verdade universal, e sim acolhe a multiplicidade de experiências e interpretações. 2. Crítica à visão científica tradicional: Freud ressalta que a ciência não oferece uma explicação una e total do universo e a encara como um horizonte regulador, um programa de futuro. Diferentemente das visões de mundo religiosas, filosóficas ou artísticas, a ciência fundamenta-se em observações comprovadas e na investigação sistemática, afastando- se de hipóteses dedutivas ou revelações intuitivas. 3. A ciência como uso crítico da razão: Freud posiciona a psicanálise no campo da ciência, mas sem subordinar-se a ela de forma acrítica. Para a psicanálise, a ciência deve ser um campo dinâmico, que se adapta ao objeto de estudo e reconhece suas limitações. 4. As visões de mundo como aspirações afetivas: Freud argumenta que as visões de mundo surgem de necessidades afetivas e ilusórias, representando tentativas humanas de satisfazer desejos e dar sentido ao desconhecido. Sistemas religiosos, artísticos e filosóficos compartilham a busca por significados, mas não podem reivindicar o mesmo estatuto de verdade que a ciência. 5. As ciências humanas como elemento complementar: Freud inclui as ciências humanas como uma visão de mundo que se diferencia tanto da ciência empírica quanto das aspirações artísticas ou religiosas, enfatizando a relevância dessas ciências no entendimento do sujeito em sua complexidade. 12 A psicanálise, portanto, apresenta um conceito de sujeito que rompe com a tradição racionalista e individualista, trazendo uma visão complexa e relacional. Segundo Dunker e Iannini (2023), o sujeito não é um "eu" autônomo, mas um ser marcado pela divisão, pela linguagem e pela intersubjetividade. A subjetividade, de acordo com os autores, é constituída por forças inconscientes que escapam ao controle da consciência. O inconsciente não é um depósito de conteúdos reprimidos, mas, sim, uma dimensão ativa e estruturante, que se manifesta em formações como sonhos, atos falhos e sintomas. A psicanálise valoriza os detalhes aparentemente insignificantes, as "bobagens", pois eles revelam aspectos importantes da subjetividade. A subjetividade, portanto, forma-se na relação com o outro. O sujeito é, desde sempre, um ser de linguagem, cujas experiências e sofrimentos são moldados por laços intersubjetivos. A transferência, fenômeno central no tratamento psicanalítico, exemplifica como a subjetividade é moldada pela relação com o outro. O que podemosdizer disso, então, é que a psicanálise prioriza a singularidade de cada sujeito, não havendo um modelo universal aplicável; cada indivíduo estabelece uma relação única com seu desejo, sua forma de expressão e as maneiras como busca satisfação. Nesse sentido, o processo analítico busca compreender essa singularidade, respeitando as especificidades da experiência subjetiva e oferecendo um espaço para que o sujeito se aproprie de sua verdade. Dunker e Iannini (2023) apontam que a abordagem psicanalítica se destaca por • criticar a ideia de um sujeito racional e autônomo: o sujeito é compreendido como dividido e influenciado por forças inconscientes e pelas relações intersubjetivas. • priorizar a escuta do sujeito: em vez de buscar verdades universais, a psicanálise valoriza a verdade singular de cada indivíduo, construída no processo analítico. • valorizar o sofrimento: longe de patologizar o sofrimento, a psicanálise o considera uma via de acesso ao inconsciente e uma fonte de transformação. 13 • utilizar a linguagem como ferramenta de transformação: a linguagem é vista como constitutiva do sujeito e como um instrumento para ressignificar o sofrimento. A psicanálise oferece uma concepção de homem e mundo que se distingue por sua abertura, criticidade e ênfase na complexidade humana. Ela rejeita tanto a pretensão de universalidade das visões de mundo tradicionais quanto as certezas da ciência positivista. Ao deslocar o foco do homem universal para o sujeito singular, a psicanálise propõe uma forma de pensar o humano que leva em conta suas dimensões inconscientes, relacionais e históricas. Mais do que uma teoria fechada, a psicanálise é um convite à reflexão, respeitando a singularidade de cada história e a multiplicidade de sentidos que constituem a experiência humana. NA PRÁTICA Como vimos no início desta etapa, a psicanálise utiliza o inconsciente como fundamento de sua prática clínica, oferecendo um método que revela os conflitos e desejos reprimidos por meio de sonhos, atos falhos e associações livres. Vejamos um exemplo clínico ilustra como sintomas cotidianos podem ser compreendidos, sob o ponto de vista desse recorte da teoria freudiana. Um paciente com gagueira recorrente em situações sociais descobre, durante a análise, que o sintoma está relacionado a um desejo reprimido de expressar críticas aos pais. A gagueira simboliza o conflito entre o desejo de falar e o medo de retaliação, evidenciando a dinâmica inconsciente que sustenta o sintoma. Freud também demonstrou como lapsos e sonhos revelam o inconsciente. Ele relatou o caso de um paciente que esqueceu o nome de uma cidade italiana, reflexo de um desejo inconsciente de evitar lembrar uma experiência desconfortável. Já em sonhos, situações aparentemente banais podem ganhar significados profundos. Um sonho em que alguém encontra dinheiro perdido pode ser interpretado como a realização simbólica de um desejo inconsciente de segurança financeira, exemplificando como o inconsciente se manifesta por vias simbólicas. 14 A técnica da livre associação é outra ferramenta central no trabalho psicanalítico. Durante uma sessão, uma paciente compartilhou pensamentos aparentemente desconexos sobre um relógio quebrado e uma discussão com sua mãe. A análise revelou que o relógio simbolizava a sensação de que o tempo havia parado durante o conflito, conectando objetos externos aos conteúdos inconscientes. Esses exemplos práticos ilustram como a psicanálise articula teoria e prática para promover uma compreensão profunda do sofrimento humano e de seus significados inconscientes. FINALIZANDO Nesta etapa, exploramos as bases fundadoras do pensamento psicanalítico e sua relevância como ciência e prática clínica. Começamos desvendando o inconsciente freudiano, sua descoberta revolucionária e seu papel como motor do psiquismo. Observamos como Freud definiu o inconsciente em oposição à consciência, identificando sua manifestação em lapsos, sonhos e sintomas. Discutimos ainda como a ruptura epistemológica trazida pela psicanálise desafiou os paradigmas das ciências tradicionais, apresentando a livre associação e a interpretação dos sonhos como ferramentas fundamentais de acesso ao inconsciente. Passamos então a refletir sobre como trabalha um analista, analisando as funções centrais de escuta, manejo da transferência e interpretação. A ética, como alicerce da prática psicanalítica, foi destacada, assim como o setting analítico, que estrutura a relação entre analista e analisando. Diferenciamos também a psicanálise de outras abordagens terapêuticas, mostrando seu foco singular na transformação subjetiva e no diálogo com o inconsciente. Na sequência, abordamos a diferença entre Psicanálise, Psicologia e Psiquiatria, sublinhando a especificidade da Psicanálise no tratamento do sofrimento psíquico. Enquanto a Psiquiatria se ancora em intervenções biológicas e a Psicologia em práticas científicas diversificadas, a Psicanálise apresenta-se como uma prática centrada no inconsciente e na subjetividade. Adentramos ainda o campo da epistemologia da psicanálise, evidenciando sua singularidade como ciência. Discutimos como a psicanálise desafia os critérios clássicos de cientificidade e propõe um método interpretativo que privilegia a singularidade do sujeito e a complexidade do inconsciente. 15 Por fim, refletimos sobre a concepção de mundo e de homem na psicanálise, marcando a transição do homem universal ao sujeito singular. Introduzimos conceitos como subjetividade, intersubjetividade e a articulação entre inconsciente e singularidade, pilares que sustentam a visão psicanalítica do ser humano. Com essa síntese, concluímos esta etapa, que ofereceu um panorama dos principais eixos que estruturam a psicanálise como ciência, prática e crítica à compreensão do sujeito e do sofrimento humano. 16 REFERÊNCIAS CFP – Conselho Federal de Psicologia. Leis e normas. Disponível em: . Acesso em: 6 jan. 2025. DUNKER, C.; IANNINI, G. Ciência pouca é bobagem: por que psicanálise não é pseudociência. São Paulo: UBU, 2024. FREUD, S. A história do movimento psicanalítico e outros textos (1914- 1916). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. _____. A interpretação dos sonhos (1900). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. _____. Inibição, sintoma e angústia (1926). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. _____. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise (1933). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. _____. O inconsciente. In: _____. Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. v. 13. FUKS, B. B. “Pergunte ao cavalo!”: sobre o inconsciente freudiano. Tempo Psicanalítico, v. 49, n. 1, p. 123-138, 2017. GARCIA-ROZA, L. A. Introdução à metapsicologia freudiana. 3 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1995. NASIO, J.-D. Como trabalha um psicanalista? Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. (Transmissão da Psicanálise). RAVANELLO, T. Quais as diferenças entre a Psicanálise, a Psicologia e a Psiquiatria? Instituto ESPE, 24 jul. 2023. Disponível em: . Acesso em: 6 jan. 2025. SCHWARTZMAN, R. S. Psiquiatria, psicanálise e Psicopatologia. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 17, n. 2, 1997. Disponível em: . Acesso em: 6 jan. 2025.