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Novas famílias nas camadas médias urbanas Em janeiro de 1998 iniciei uma pesquisa com o objetivo de analisar as representações de gênero, presentes nos discursos de homens e mulheres das camadas médias urbanas do Rio de Janeiro. Busquei analisar, comparativamente, as expectativas, os desejos, as dificuldades, os arranjos conjugais e comportamentos sexuais de homens e mulheres deste segmento social. Desde 1987 venho desenvolvendo pesquisas que têm como foco a questão de gênero, família, conjugalidades, sexualidade, infidelidade e desvio. Na minha pesquisa atual procuro retomar os temas sobre os quais tenho refletido ao longo desses anos através de um novo caminho metodológico e com novas questões que surgiram a partir das transformações nos papéis de gênero ocorridas na sociedade brasileira, particularmente nas décadas de 1980 e 1990. Com a preocupação de ampliar o espectro de meus estudos sobre gênero desenvolvidos anteriormente, por meio de entrevistas em profundidade e observação participante, elaborei dois questionários focalizando as representações sobre ser homem e ser mulher, os modelos ideais de casamento, as diferentes experiências de relacionamentos afetivo-sexuais, entre outras. Um total de 1279 indivíduos responderam aos dois questionários, sendo 444 homens e 835 mulheres, na faixa etária de 20 a 50 anos, moradores da cidade do Rio de Janeiro, com renda familiar mensal superior a R$ 2.000,00, estudantes universitários ou com o terceiro grau completo. Neste artigo trarei algumas reflexões iniciais em torno das respostas dos pesquisados às seguintes questões: Quais são as representações masculinas e femininas sobre o modelo ideal de família e de casal e sobre os principais problemas enfrentados em um relacionamento conjugal? Existe, para o grupo pesquisado, um modelo ideal de relacionamento? Quais são os conflitos e as contradições, nos discursos dos informantes, entre o desejado e o vivido? “Crise” da família ou “novas” famílias? Se tomarmos o conceito tradicional de família, verificaremos que ele não se enquadra nas novas representações presentes na sociedade brasileira. Poderíamos acrescentar, então, que a família perdeu muitas de suas funções e, talvez, tenha adquirido outras. Para Lévi-Strauss (1972), entende-se por família uma união mais ou menos duradoura, socialmente aprovada, entre um homem, uma mulher e seus filhos, 1 fenômeno que estaria presente em todo e qualquer tipo de sociedade. Como modelo ideal, a palavra família designa um grupo social possuidor de pelo menos três características: tem sua origem no casamento; é constituído pelo marido, esposa e filhos; os membros da família estão unidos entre si por laços legais, direitos e obrigações econômicas, religiosas ou de outra espécie, um entrelaçamento definido de direitos e proibições sexuais, divisão sexual do trabalho e uma quantidade variada e diversificada de sentimentos psicológicos (amor, afeto, respeito, medo). Ao se pensar sobre as mudanças nas famílias brasileiras é preciso reconhecer a importância do movimento feminista também em nosso país. As transformações dos papéis e comportamentos femininos, nas últimas três décadas, contribuiu enormemente para que as mulheres brasileiras assumissem novos espaços no mundo público, tanto no mundo profissional quanto no político, e questionassem seus relacionamentos afetivo- sexuais, o modelo tradicional de família e de casamento (Toscano e Goldenberg, 1992), provocando mudanças tão rápidas e radicais que criam, até hoje, conflitos e angústias em grande parte dos homens e mulheres em nossa sociedade. Papéis tradicionalmente masculinos, como, por exemplo, homem provedor, forte, chefe de família, e femininos, como mãe, esposa, dona-de-casa, que ainda aparecem nas respostas analisadas nesta pesquisa, são relativizados por novos atributos como homem sensível, vaidoso e frágil, e mulher livre, independente e autônoma. Este jogo permite observar, nitidamente, a coexistência de modelos “tradicionais” de ser homem e mulher e “novas” representações sobre o masculino e feminino, traduzindo-se em múltiplos padrões competindo com os modelos hegemônicos. Também, nas respostas dos pesquisados, percebe-se uma contradição com relação a um modelo hegemônico de casamento. De um lado, o desejo de um modelo de família nuclear vivendo sob o mesmo teto, de outro, a idealização do modelo “de cada um em casas separadas”, independentes economicamente e com total liberdade e privacidade (Vaitsman, 1994). O final da década de 60 e início da década de 70 são marcos fundamentais nas transformações dos papéis femininos e masculinos na sociedade brasileira. O movimento feminista, que estava sendo organizado na Europa e nos Estados Unidos, começou a repercutir no Brasil. Os jornais, as revistas, o cinema, o teatro e a televisão passaram a dar espaço para as reivindicações das mulheres. O denominador comum das lutas feministas foi o questionamento da divisão tradicional dos papéis sociais, com a recusa da visão da mulher como o “segundo sexo” ou o “sexo frágil”, cujo principal papel é o de “esposa-mãe”. As feministas reivindicavam a condição de sujeito de seu próprio corpo, 2 buscando um espaço próprio de atuação profissional e política (Toscano e Goldenberg, 1992) . A difusão da psicanálise contribuiu fortemente para a rejeição das práticas que eram percebidas como autoritárias e repressivas e para o questionamento da obrigatoriedade de exercer a sexualidade dentro dos limites do casamento legítimo. O tom da mudança social foi dado pela reivindicação de igualdade na esfera pública e privada e pela recusa de morais sexuais diferentes para homens e mulheres. Neste período, as mulheres viveram com intensidade o dilema de “mudar” ou “permanecer”, coexistindo um padrão tradicional de ser mulher (a “virgem” e “esposa-mãe”), voltado para o mundo doméstico, e um novo modelo de mulher que trabalha, que atua politicamente, que busca o prazer sexual. Estavam em disputa diferentes modelos de “ser mulher”: o religioso, que exige da mulher a negação de sua sexualidade (virgindade) ou a contenção de seu exercício nos limites do casamento (tendo como fim a procriação), e outro, que pode ser pensado como o mais próximo do difundido pela psicanálise e pelas lutas feministas, que busca a igualdade entre homens e mulheres, defendendo o controle sobre sua própria vida. Já em 1930, Sapir destacava que o fato importante do casamento, diante do qual todo o resto era simplesmente acessório, inclusive os filhos, era que ele proporcionava intimidade entre marido e mulher. Este “companheirismo íntimo” garantia a sobrevivência da família, que já não se centrava na criança. Segundo este raciocínio, reafirmado por outros autores do mesmo período, a sociedade moderna originou uma maior necessidade de afeto intenso e romance e a família converteu-se no meio mais importante para a expressão emocional. Desde então, como afirma Lasch (1991), temos a idéia de que o casamento moderno reflete uma ênfase crescente na relação pessoal entre marido e mulher e um interesse decrescente em ter filhos. Teóricos das décadas de 1960 e 1970 resgataram o papel de refúgio emocional desempenhado pela família, como um espaço de intimidade em um mundo de relações frouxas e despersonalizadas A década de 1970 foi considerada por Goldani (1994) como uma “década devoradora de padrões”, com a emergência de novas formas de relações entre os sexos e de expressões da afetividade. Houve uma dissolução das fronteiras rígidas do “duplo padrão de moralidade”, e surgiram os modelos alternativos de relações entre os sexos, que alimentaram a discussãoda chamada “nova” família. A partir dos anos 70, ainda que permaneça dominante o modelo da família nuclear, surgem versões inéditas de conjugalidade, sendo os indivíduos das camadas 3 médias urbanas os que primeiro buscaram alternativas fora dos padrões institucionalizados. Apesar do predomínio do modelo nuclear conjugal, entre as famílias das camadas médias, aumentam as experiências de vínculos afetivo-sexuais variados e o contingente de mulheres optando pela maternidade fora da união formalizada. Castells (1999) assinala que há um crescimento do número de pessoas vivendo sós e um crescimento expressivo das famílias chefiadas por mulheres (em função da elevação das taxas de separações e divórcios; da expectativa de vida maior para as mulheres gerando mais viuvez feminina e da crescente proporção de mulheres solteiras com filhos, não apenas por abandono de seus parceiros mas como opção feminina). A coabitação sem vínculos legais ou união consensual como alternativa ao casamento se torna cada vez mais expressiva numericamente, e aceita legal e socialmente (e a duração destas uniões informais tendem a ser cada vez menores). O tamanho das unidades domésticas tendem a diminuir ainda mais, com o decréscimo do número de filhos. Crescem os recasamentos e as famílias recombinadas. Portanto, ao falar-se de família, o plural impõe-se. “Já não há um ‘modelo ocidental’ mas vários”, como afirma Segalen (1999). O divórcio, a união livre, as recomposições familiares abalam o que se chamava, até há pouco tempo, de “modelo de família ocidental”. Este modelo será ainda mais abalado com as novas técnicas de procriação. A doação de óvulos, a fecundação por inseminação artificial ou in vitro, a possibilidade de clonagem de seres humanos, levam a que se ponha em causa os princípios fundamentais sobre os quais se assenta o nosso sistema de parentesco: sexualidade e parentesco são dissociados, paternidades e maternidades são multiplicadas (genética e socialmente), o nascimento de um filho não provém necessariamente de um casal. Dois fenômenos recentes, de acordo com Shorter (1975), enfraqueceram a força da união permanente na chamada “família pós-moderna”. O primeiro, a intensificação da vida erótica do casal, uma vez que o apego sexual é notoriamente instável e os casais que se apoiam em tal base sujeitam-se a ser facilmente fragmentados. Na medida em que a gratificação erótica se torna um elemento essencial na existência do casal, o risco de dissolução matrimonial aumenta. O segundo, as mulheres tornaram-se mais independentes economicamente e podem romper com uniões indesejadas. As mulheres trabalhadoras, diz Shorter (1975), têm consideravelmente mais poder – e um maior sentido de autonomia pessoal – do que as não trabalhadoras. Com a capacidade das mulheres se sustentarem veio a capacidade de serem livres. 4 Na inexistência de novos modelos estáveis, o estabelecimento de padrões de divisão do trabalho na família fica na dependência do confronto interpessoal entre os cônjuges. Como se valorizam e se exigem, simultaneamente, o apoio emocional e o prazer sexual recíprocos, a relação conjugal recebe uma sobrecarga de exigências. Durham (1983) acredita que a impossibilidade de satisfazer todas as condições colocadas como necessárias à manutenção da parceria conjugal igualitária encontra solução na crescente aceitação social do divórcio, que acarreta a fragmentação da família original e a constituição de outra, através de novo casamento. Essas tendências colocam em xeque a estrutura e os valores da família tradicional. Não se trata do fim da família, uma vez que outras estruturas familiares estão sendo testadas e poderemos, no fim, reconstruir a maneira como vivemos uns com os outros, como procriamos e como educamos de formas diferentes e, quem sabe, talvez melhores. Mas as tendências indicam o fim da família como a conhecemos até agora. Não apenas a família nuclear, mas a família baseada no domínio patriarcal, que tem predominado há séculos. Na maioria dos países desenvolvidos a família patriarcal está se tornando um estilo de vida adotado por uma minoria. Castells (1999) aponta que nos Estados Unidos, por exemplo, na década de 90, apenas um quarto dos lares se enquadrava no modelo de casal legítimo com filhos. O resultado deste quadro de diversificação dos relacionamentos afetivo-sexuais é que um número cada vez maior de crianças está sendo criada em tipos de famílias que há apenas três décadas eram tidas como marginais e até mesmo inconcebíveis. Não está emergindo nenhum tipo prevalecente de família, sendo a regra a diversidade e a criatividade. Assim, não existe uma crise de família mas uma crise da família patriarcal. Não é o fim da família, mas o surgimento de uma família nova e mais complexa, em que papéis, regras e responsabilidades não serão garantidos pela autoridade patriarcal e terão que ser permanentemente negociados. Isso inclui a necessidade de dividir o trabalho doméstico, parceria econômica e responsabilidade pelos filhos compartilhada. A dificuldade em ter de lidar com todos esses papéis ao mesmo tempo, quando não mais se encontram fixados em uma estrutura formal institucionalizada como a família patriarcal, explica a dificuldade em manter-se relacionamentos sociais estáveis. O que está em jogo não é o desaparecimento da família mas sua profunda diversificação e a mudança do seu sistema de poder: 90% dos norte-americanos casam- se ao longo de suas vidas. Quando se divorciam, 50% das mulheres e 75% dos homens tornam a se casar, em média dentro de três anos. Gays e lésbicas lutam pelo direito de casarem-se legalmente. No entanto, casamentos posteriores, freqüência dos casos de 5 coabitação e alto nível de divórcios e de separação são fatores que se combinam para criar um perfil cada vez mais diverso de vidas em família e fora da família (Castells, 1999). Pode-se sugerir, como acredita Durham (1983), que a própria intensidade dos conflitos gerados em torno e dentro da família constitui, de certo modo, confirmação de sua importância e vitalidade. O que está acontecendo com o casamento e com a família brasileira? Existe alguma evidência de “crise” da família? Pretendo argumentar que o que está ocorrendo é, na verdade, a multiplicidade e flexibilidade dos atuais arranjos conjugais. Assim, o que estaria em crise é um determinado modelo de família e de casamento. Como o modelo hegemônico permanece como um valor enraizado em cada um, fortalecido pela socialização e educação e pela Igreja, muitos dos que vivem outras formas de relacionamento conjugal sentem-se, ainda hoje, desviantes. A pluralidade de formas de casamentos e famílias existentes em nossa cultura, demonstra que homens e mulheres continuam querendo casar e constituir famílias, sem, no entanto, reproduzir o modelo tradicional de conjugalidade. Compromissos não-obrigatórios nas camadas médias urbanas Na pesquisa que venho realizando, “Mudanças nos papéis de gênero, sexualidade e conjugalidade: um estudo antropológico das representações sobre o masculino e feminino nas camadas médias urbanas”, para a questão Descreva como você imagina um modelo ideal de vida de um casal, 83% das mulheres e 76% dos homens responderam elementos associados aos ideais de amor-romântico, o que demonstra que as mulheres e os homens pesquisados compartilham estes ideais. Comportamentos e valores que fazem parte de uma relação que pode ser chamada de igualitária aparecem, depois dos românticos, como os principais componentes de uma relação percebida como ideal por mulheres (55%) e homens (52%). Em seguida, aparecem valores e comportamentos quepodem ser chamados de “simbióticos”, diretamente relacionados aos ideais românticos da “cara metade”, como companheirismo, cumplicidade e dedicação, com projetos e interesses comuns, interdependência ou complementaridade entre os cônjuges. Mas as mulheres (40%) mais do que os homens (31,5%) destacaram tais valores. Homens e mulheres valorizam a liberdade e a individualidade em seus relacionamentos (16%). Por último, cerca de 10% dos homens e mulheres fizeram menção à vida sexual no modelo 6 ideal. Os homens destacaram a quantidade e freqüência de relacionamentos sexuais e as mulheres enfatizaram o envolvimento afetivo com o parceiro. Por meio destas categorizações mais amplas, já podem ser percebidas diferenças significativas nas respostas de homens e mulheres. Apesar de ambos compartilharem os valores associados ao amor-romântico, se agruparmos estes aos valores e comportamentos simbióticos (que podem ser percebidos também como românticos), tem- se que as mulheres enfatizaram muito mais do que os homens seu peso em um relacionamento. Se, por outro lado, agruparmos os valores que enfatizam a liberdade, individualidade e sexualidade, temos que são os homens que mais os priorizam. Ao detalharmos ainda mais a análise das respostas, vemos que, nos ideais de amor-romântico, homens e mulheres querem um relacionamento com amor, sinceridade, honestidade, amizade e confiança. As mulheres dão maior destaque à fidelidade do que os homens, que destacam mais a felicidade em suas respostas. A rotina é uma queixa que aparece mais nas respostas femininas do que masculinas. A paixão é apontada por ambos, porém, comparativamente, é mais encontrada nas respostas masculinas. Somente nas respostas femininas aparecem intimidade, romantismo, admiração e segurança. É interessante destacar como o papel dos filhos é muito reduzido nas respostas. Poucos homens e mulheres responderam que um modelo ideal de casal deveria ser com filhos e alguns destacaram que o modelo ideal deveria ser sem filhos. Entre os valores igualitários, o mais citado, por homens e mulheres, é o respeito. Os homens ressaltam mais a compreensão do que as mulheres, enquanto estas apontam, mais do que eles, o diálogo como sendo fundamental. Homens e mulheres querem um relacionamento com harmonia, sem cobranças e sem brigas. Os homens parecem considerar mais importante do que as mulheres o fato de ambos trabalharem e estarem satisfeitos profissionalmente. No conjunto de respostas que enfatizam a liberdade e a individualidade na vida de um casal, aparecem valores que, confrontados com os que foram expostos anteriormente, são os que trazem os elementos mais “novos” e que, associados àqueles, geram os paradoxos e contradições existentes no modelo ideal descrito pelos pesquisados. Para homens e mulheres, num modelo ideal de vida de um casal deve haver independência financeira de ambas as partes, assim como a preservação da individualidade e o respeito à privacidade de cada um. Respostas como: com liberdade e em casas separadas que, comparativamente, aparecem mais entre os homens do que entre as mulheres, mostram 7 a maior ênfase dada à liberdade por parte dos homens. Nesse conjunto de respostas, é curioso verificar que algumas mulheres responderam que o modelo ideal é aquele em que cada um tenha seu espaço ou, ainda, na mesma casa mas com banheiros separados. Liberdade ou simbiose? Quando a questão é sobre os problemas que efetivamente vivem ou viveram em seus relacionamentos amorosos, os discursos de homens e mulheres parecem mais sintonizados. Nas respostas para a questão: Quais os principais problemas que você vive ou viveu em seus relacionamentos amorosos?, temos que o principal problema vivido por homens e mulheres em seus relacionamentos é o ciúme. A infidelidade aparece como o segundo maior problema encontrado nas respostas femininas e terceiro nas masculinas. Cruzando este dado com as respostas à questão: Para você, o que é ser infiel?, temos que a principal resposta feminina foi: trair a confiança do parceiro. Esta resposta é muito ampla e permite várias interpretações. Trair a confiança do parceiro pode ser desde “ficar” com outra pessoa, beijar outra pessoa, ter relações sexuais com outra ou simplesmente estar interessado em alguém. O que parece estar presente nesta resposta é a idéia de que a infidelidade consiste em romper um pacto estabelecido (implícita ou explicitamente) pelos parceiros, de acordo com as expectativas de cada um no relacionamento. A segunda resposta feminina é mais objetiva, trair é estar com uma pessoa e transar com outra. A infidelidade estaria relacionada a um relacionamento sexual fora do casamento ou do namoro. Em seguida aparece que infidelidade é mentir, desrespeitar o parceiro, desejar outra pessoa, trair a si mesmo, estar insatisfeita com o relacionamento, estar com alguém sem amar. A principal resposta masculina foi: estar com uma pessoa e transar com outra, seguida de trair a confiança do parceiro, mentir, desejar outra pessoa, trair a si mesmo, falta de amor e desrespeitar o parceiro. Ao serem questionados se Você já foi infiel alguma vez?, 60% dos homens e 47% das mulheres afirmaram que sim. As razões para a infidelidade mais apontadas pelas mulheres foram: atração, falta de amor, insatisfação, crise ou problemas do relacionamento, relacionamento morno, rotina, acomodação, imaturidade, carência. As principais razões apontadas pelos homens foram: falta de amor, atração, crise do relacionamento, natureza masculina, instinto, insatisfação, imaturidade, aconteceu, fuga da rotina, oportunidade, desejo, vontade, tesão. 8 Quando perguntamos: Você já foi traído?, 41% das mulheres e 32% dos homens afirmaram que sim, o que parece justificar o fato da infidelidade ser um dos principais problemas apontados por homens e mulheres em seus relacionamentos conjugais. Voltando aos problemas vividos nos relacionamentos, a falta de compreensão é o segundo maior problema vivido pelos homens e o terceiro pelas mulheres. O quarto problema vivido pelos homens e mulheres é a falta de confiança. Falta de segurança é uma queixa mais feminina do que masculina. Falta de sinceridade aparece, quase na mesma proporção, nas respostas femininas e masculinas. Rotina/monotonia/falta de criatividade também aparecem igualmente nas respostas femininas e masculinas. Os problemas relacionados à vida sexual não foram muito destacados por homens e mulheres. Na tentativa de agrupar as respostas, temos que 61,5% dos homens e 61% das mulheres disseram viver (ou ter vivido) problemas que classificamos como relacionados ao amor-romântico. Diretamente associados às dificuldades para a realização do amor- romântico, aparecem os problemas que dificultam um relacionamento simbiótico, encontrados nas respostas masculinas e femininas. Por outro lado, mulheres e homens afirmaram que seus maiores problemas estavam relacionados ao desejo de viver um relacionamento igualitário, livre e com respeito à individualidade de cada um. Problemas associados a um relacionamento igualitário foram apontados por 28,5% dos homens e 37% das mulheres. A falta de liberdade/individualidade também foi destacada por homens e mulheres. Dentre as respostas que classificamos no grupo dos problemas para um relacionamento igualitário, a mais encontrada entre os homens e mulheres foi falta de compreensão. Falta de comunicação/diálogo foi um problema mais apontado por mulheres do que por homens. Os homens reclamaram mais de falta de paz/cobrança/stress/brigas do que as mulheres. Também a falta de dinheiro é um problema que aparece maisnas respostas masculinas do que femininas. Considerações finais Nos discursos dos pesquisados, percebe-se uma contradição com relação a um modelo hegemônico de casamento, apesar de demonstrarem o desejo de casar ou viver um relacionamento afetivo estável, duradouro e monogâmico. De um lado, aparece o desejo de um modelo “tradicional” da família nuclear vivendo sob o mesmo teto, de outro, 9 a idealização do modelo “de cada um em casas- ou quartos - separados”, independentes economicamente e com total liberdade e privacidade. Pode-se dizer que ao contrário de uma total ruptura com antigos modelos de “’ser homem” e “ser mulher” e de conjugalidade, o que se vive hoje, com base na análise dos discursos, é, ainda, um processo de convivência, muitas vezes conflituosa, entre comportamentos e valores “tradicionais” e aqueles considerados “modernos”. Pode-se pensar que os homens e mulheres pesquisados procuram conciliar desejos, comportamentos e valores hierárquicos e igualitários, holísticos e individualistas, num processo de resignificação dos arranjos conjugais que rompe com a dualidade “tradicional” versus “moderno”. Ideais “tradicionais” do amor romântico aparecem nas respostas masculinas e femininas ao lado de ideais mais “modernos”, que valorizam a igualdade, a liberdade e a individualidade nos relacionamentos. O fato do ciúme e infidelidade serem apontados como os principais problemas vividos nos relacionamentos amorosos, conviver com a exigência recíproca de sinceridade, lealdade e franqueza absoluta, pode ser visto como um dos principais paradoxos presentes nos relacionamentos atuais. Ao mesmo tempo em que se reivindica a privacidade, o espaço, a independência e autonomia, entre outros “novos” ideais de liberdade e individualidade, ressaltam-se valores simbióticos/românticos de sinceridade absoluta, cumplicidade, interdependência e complementaridade. Queixas diretamente relacionadas ao ciúmes e possessividade, como “controle excessivo por parte do(a) parceiro(a), “cobranças”, “invasão de espaço”, “falta de privacidade” aparecem, no material analisado, juntamente com outras como “falta de sinceridade”, “falta de confiança”, “mentiras”. Cabe, então, perguntar: Como conciliar sinceridade absoluta e cumplicidade com respeito à privacidade e à individualidade? Como combinar, em um mesmo relacionamento, o desejo de compromisso com o de preservação dos espaços individuais? No que refere à expectativa de homens e mulheres quanto à duração da relação, é interessante notar que, quando levados a discorrer sobre o que procuram ou esperam em um parceiro amoroso, os pesquisados colocam, em boa parte das respostas, a expectativa por um relacionamento, estável, sério, fiel e duradouro. Ideal romântico ainda alimentado por muitos homens e mulheres. Talvez, apesar do crescente desenvolvimento da reflexividade individual na sociedade contemporânea, ponto pacífico para os estudiosos da modernidade, a capacidade dos sujeitos de assumir uma postura crítica em relação àqueles valores e 10 crenças mais arraigados seja relativa. No que diz respeito aos valores e crenças referentes à vida conjugal, o que se observa nos discursos dos homens e mulheres pesquisados é a permanência de ideais românticos tradicionais. Os dados da pesquisa revelam que o romantismo amoroso, que foi e continua sendo uma das marcas registradas da cultura ocidental, é daqueles ideais que resistem à mudança, insistindo em permanecer o mesmo num mundo que se tornou outro. Exigências novas trazidas pelo processo de individualização (como experimentação, crescimento, descoberta, espaço, privacidade), que se impõem através da disseminação do discurso psicanalítico, chocam-se com os ideais de amor romântico, entre os quais estão muitos dos “requisitos simbióticos” de uma família nuclear. Homens e mulheres pesquisados têm uma série de expectativas relacionadas à união, entre as quais destacam-se: compreensão, compromisso, apoio (afetivo, psicológico, econômico), convivência cotidiana, intimidade, diálogo, respeito, reciprocidade. Há uma expectativa de fidelidade mútua, sendo a traição considerada um problema, na maior parte das vezes, insuperável. É evidente a contradição entre a permanência de valores tradicionais, como estabilidade, segurança, fidelidade e outros considerados modernos, como experimentação, privacidade, autonomia, independência. Nas respostas analisadas, homens e mulheres destacam a importância de preservar seus próprios centros de interesse, que, freqüentemente, particularmente para os homens, ocupariam um espaço muito maior do que os interesses em comum, exigindo mais tempo e espaço para serem satisfeitos do que os dedicados ao casal. A palavra “cobrança” é, consequentemente, bastante utilizada por aqueles homens que não querem ser tolhidos em seus interesses individuais em função daqueles do casal. Pode-se perceber uma cultura do eu, fortemente influenciada pela disseminação e vulgarização de um discurso psicanalítico. Nesta cultura do eu, ou cultura narcísica, busca-se, uma individuação extrema (autorealização, autosatisfação, autoprazer, liberdade, espaço) dentro do relacionamento amoroso. Assim, as idéias de que tudo é separado e, ao mesmo tempo, tudo é negociado são potencialmente explosivas para o casal. Considerando que nos segmentos das camadas médias o modelo tradicional de casamento e família sofre, atualmente, a concorrência de relações com novos conteúdos e institucionalizadas sob novas formas, pode-se perceber nas respostas masculinas e femininas esta concorrência entre um modelo “antigo” e “novos” modelos de conjugalidade. Como são as mulheres que mais enfatizaram os ideais de amor-romântico e o desejo de um relacionamento simbiótico, e os homens os que mais valorizaram a 11 liberdade e independência, pode-se sugerir que o modelo ideal de vida de um casal para as mulheres é aquele que pode ser resumido na fórmula dois em um, enquanto os homens estão mais próximos do modelo um + um. Como estão sendo experimentados valores e comportamentos associados a um relacionamento simbiótico e aos ideais do amor-romântico, e outros individualistas, de liberdade e igualdade? Esta é uma das questões que merece ser ainda aprofundada nos estudos sobre as novas formas de conjugalidade. A permanência do amor romântico como ideal de felicidade num momento em que este passou a ser visto como qualquer outro sentimento (ou sensação) a ser experimentado e descartado pela cultura do consumo parece ser, como acredita Costa (1998), um dos paradoxos da atualidade e um dos principais problemas para os relacionamentos afetivo-sexuais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CASTELLS, Manuel – O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999. COSTA, Jurandir Freire – Sem fraude, nem favor: estudos sobre o amor romântico. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. DURHAM, Eunice. “Família e reprodução humana”. Perspectivas Antropológicas da Mulher (3). Rio de Janeiro: Zahar, 1983. GOLDANI, Ana Maria - Retratos de família em tempos de crise. Estudos Feministas, 2: 303-35. Rio de Janeiro: CIEC/ECO/UFRJ, 1994. GOLDENBERG, Mirian. Nicarágua, Nicaraguita: um povo em armas constrói a democracia. Rio de Janeiro: Revan, 1987. _______________. A Outra: um estudo antropológico sobre a identidade da amante do homem casado. Rio de Janeiro: Revan, 1990. _______________. Ser homem, ser mulher: dentro e fora do casamento. Rio de Janeiro: Revan, 1991. _______________. Toda mulher é meio Leila Diniz. Rio de Janeiro: Record, 1995. _______________. Os Novos Desejos. Rio de Janeiro: Record, 2000. _______________.Nu & Vestido. Rio de Janeiro: Record, 2002. LASCH, Christopher. Refúgio num mundo sem coração: a família – santuário ou instituição sitiada? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. LÉVI-STRAUSS, Claude – A Família. In: O homem, a cultura, a sociedade. São Paulo: Fundo de Cultura, 1972. 12 SEGALEN, Martine – Sociologia da família. Lisboa: Terramar, 1999. 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