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SUMÁRIO Parte I – Introdução aos princípios constitucionais penais Para início de conversa 1) Limites ao poder punitivo estatal 2) Os princípios são normas jurídicas de caráter cogente 3) Diferenças entre princípios e regras: 4) Colisão de princípios Parte II – Dos princípios constitucionais penais 1) Princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos 2) Princípio da intervenção mínima 3) Princípio da materialização ou exteriorização do fato (nullum crimen sine actio) 4) Princípio da legalidade do fato 5) Princípio da ofensividade (do fato) 6) Princípio da culpabilidade 7) Princípio da responsabilidade pessoal 8) Princípio da responsabilidade subjetiva 9) Princípio da igualdade 10) Princípio da legalidade da pena 11) Princípio da proibição da pena indigna 12) Princípio da humanidade da pena 13) princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade ou da proibição de excesso Parabéns! Você chegou ao final do livro Quizzes sobre princípios constitucionais penais Referências bibliográficas PARTE I – INTRODUÇÃO AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS PENAIS PARA INÍCIO DE CONVERSA O tema do presente livro possui importantes reflexos na prática jurídica. Os princípios constitucionais penais estão na base das decisões legislativas tomadas quando do processo de incriminação de condutas, no processo decisório que envolve a elaboração da sentença penal e na fase da sua execução. Além disso, serve de guia para a interpretação que é feita pelos estudiosos do direito penal. Não obstante toda a evolução que o tema sofreu e o quanto ele encontra-se amadurecido nas ciências penais, observa-se que há uma diminuta aplicação de vários dos princípios penais consagrados constitucionalmente. Observamos duas importantes crises: A) Baixa legitimidade social: a própria sociedade manifesta seu inconformismo em vários episódios em que o sistema de justiça penal aplica os princípios constitucionais penais (exemplos: quando o juiz reconhece a nulidade das provas obtidas ilicitamente; quando o juiz manda, sem fundamentação, algemas pessoas na audiência, violando o teor da Súmula Vinculante 11 etc.). B) Falta de comprometimento de alguns operadores jurídicos com a obediência aos princípios constitucionais penais O desrespeito a princípios constitucionais penais por parte de operadores jurídicos e a baixa adesão da sociedade em relação à aplicação deles traz alguma consequência prática para o sistema de justiça penal? Sim, pois acaba por dificultar que o principal objetivo da existência dos princípios constitucionais penais concretize-se, que é, exatamente, servir de limite ao poder punitivo estatal, tema que veremos a seguir. Após termos discorrido acerca dos limites do poder punitivo, analisaremos a natureza jurídica dos princípios, a diferença entre princípios e regras, bem como as recomendações da doutrina penal para os casos de colisão de princípios. Somente após termos analisado todas essas questões é que passaremos ao estudo dos princípios constitucionais penais em espécie. 1) LIMITES AO PODER PUNITIVO ESTATAL De onde devemos extrair os princípios jurídicos? Considerando-se que as leis, a Constituição e os Tratados internacionais contêm inúmeros preceitos que direta ou indiretamente conformam ou modulam o sistema punitivo brasileiro, é deles que devemos extrair as regras e os princípios jurídicos assim como os postulados político-criminais que demarcam o âmbito da aplicação do direito penal. Esse conjunto normativo limitador do castigo (ou seja: do ius puniendi) vale tanto quanto o conjunto de normas que incriminam várias condutas humanas. Como conciliar o caráter punitivista do direito penal com o sua natureza limitadora do poder punitivo? O direito penal, ainda que possa parecer paradoxal,1 não é somente punitivo, posto que também é limitativo e garantista (ou seja: está dotado de uma série de normas que regulam e limitam a cominação, a aplicação e a execução do castigo, procurando evitar o abuso ou o excesso). Por força da regra do império da lei, tudo deve ser observado (tanto os preceitos sancionatórios quanto os limitativos e garantistas). Desde que Roxin (contrapondo-se a von Liszt) aproximou o direito penal da política criminal (em 1970, Política criminal e sistema do direito penal), todos os princípios limitadores do poder punitivo são invocáveis diretamente nas sentenças pelos juízes (o princípio da insignificância é exemplo paradigmático disso). >>> Exemplificando. Nos países que aboliram a pena de morte, ela não pode ser restabelecida (Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 4.º, 3). A Constituição brasileira atual (de 1988), em virtude do princípio da proibição de regresso (ou da vedação do retrocesso, que também é conhecido como “efeito cliquet” – os alpinistas utilizam essa expressão para significar que seus instrumentos somente permitem subir, nunca retroceder), salvo o caso de guerra declarada, não permite a pena de morte ou qualquer pena de caráter perpétuo (art. 5º, XLVII, a e b). Lei ordinária nesse sentido não só violaria o art. 4º, 3, da Convenção Americana, como também a própria Constituição (seria inconstitucional e inconvencional, portanto). Propor ou estimular qualquer debate sobre a pena de morte no nosso país, portanto, significa só incrementar o sensacionalismo e a manipulação do estado emocional do povo, iludindo-o com um “produto” vedado e reconhecidamente discriminatório (basta lembrar que em toda história da pena de morte, decretada judicialmente fora dos momentos revolucionários, raríssimos foram os casos de execução de alguém com alto status social).2 O que difere o direito penal do poder punitivo e do estado policialesco? O direito penal do Estado Democrático de Direito (conjunto de normas que definem os crimes e as penas e fixam os limites do poder punitivo do Estado) não se confunde com o poder punitivo estatal (que é o exercício do ius puniendi de acordo com as regras e os princípios estabelecidos nas leis, 1 SEMER, Marcelo, Princípios penais no Estado Democrático, 2014. 2 Sobre o tema, consultar: GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos: pacto de San José da Costa Rica. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2013, p. 45-46. constituição e tratados internacionais) nem muito menos com o estado policialesco (que é o exercício do poder punitivo fora ou além dos limites estabelecidos pelas normas do Estado Democrático de Direito). O poder punitivo estatal é um fato da realidade (e do direito). Quando exercido fora dos parâmetros fixados pelo Estado de Direito, ele se converte em atos policialescos, passíveis de anulação e, eventualmente, de sanção. É de se lamentar a distância que existe entre o que está programado pelas normas (limitadoras) do Estado de Direito e o que acontece na prática por força do estado policialesco (que significa a aplicação, ilegal inconstitucional ou desproporcional ou desarrazoada do direito vigente). Não existe Estado de Direito puro (Zaffaroni), é verdade. Todos são perturbados pelos estados policialescos (em maior ou menor grau). Isso comprova que o poder punitivo é inequívoca ou tendencialmente bruto, atavicamente expansivo, animalesco, autoritário, arbitrário ou tirânico. O estado policialesco é fonte de deslegitimação dos órgãos encarregados da aplicação da lei penal.3 De se observar que o Estado de Direito e o estado policialesco são regidos por “constituições” completamente distintas. O Estado de Direito segue a Constituição de 1988 (foi com base nela que o ministroGilmar Mendes descriminalizou o porte de drogas para uso pessoal, por exemplo – RE 635.659-SP). O estado policialesco, por seu turno, está atavicamente ancorado no Malleus Maleficarum, elaborado em 1497 pelos padres Krämer e Sprenger, que é o código (manual) nuclear da Inquisição. A forma mentis inquisitiva nunca morreu. No exercício do poder punitivo estatal frequentemente se pratica abusos, excessos, desproporcionalidades (tudo isso reconduzível à letra e/ou ao espírito do Malleus Maleficarum). Daí a imperiosa necessidade de serem estudados os limites desse poder punitivo. O juiz como semáforo do sistema penal (Zaffaroni). O juiz funciona como o semáforo do sistema penal. Se não levanta o sinal vermelho para o estado policialesco, incentiva as violações aos direitos fundamentais. O papel de combater a criminalidade não é do juiz. Cabe- lhe, sim, transformar em realidade a certeza do castigo de acordo com a culpabilidade de cada um, assim como preservar todos os direitos e garantias do Estado de Direito. Se o juiz se transforma num “combatente do crime” (como se fosse um membro da segurança pública) passa a integrar o estado policialesco (porque são inevitáveis os excessos, os abusos e as arbitrariedades). O juiz não pode ser um “vingador social” (Alexandre Morais da Rosa). 3 Segundo a pesquisa Índice de Percepção do Cumprimento das Leis, a maioria das instituições analisada tem confiança de menos de 50% da população (FGV, junho de 2015). O percentual de pessoas que confiam nos partidos políticos caiu de 7% (2014) para 5% (2015) e, no governo federal, de 29% para 19%. Os que disseram confiar no Congresso Nacional permaneceram em 15% e os que confiam no Poder Judiciário caíram de 30% para 25%. Na polícia, o índice aumentou de 30% para 33%; nas emissoras de TV, de 31% para 34%; nas grandes empresas, caiu de 38% para 37%. As instituições mais bem avaliadas foram a imprensa escrita, cujo índice aumentou de 42% para 45%; a Igreja Católica, de 54% para 57%, e as Forças Armadas, de 64% para 68%. As questões acima levantadas levam à compreensão acerca da importância de se prestar obediência aos princípios constitucionais penais, sob pena de não cumprimos os ditames respectivos, que buscam, ao final e ao cabo, formas melhores de vivermos em sociedade. Também importa ressaltar que os princípios não são apenas um conjunto de valores ou de prescrições éticas ou programáticas; eles são normas jurídicas e possuem caráter cogente. Assim, quando, por exemplo, o magistrado não presta obediência a um princípio, isso pode levar à reforma da sentença penal por ele prolatada. Da mesma forma quando se trata do processo de criminalização de condutas. A desconsideração dos princípios constitucionais penais pode acarretar a invalidade da figura delitiva criada pelo legislador (tal como foi reconhecido pelo voto do min. Gilmar Mendes no RE 635.659, no que diz respeito ao art. 28 da Lei 11.343/06 – lei de drogas). É desse assunto que trataremos no próximo item. 2) OS PRINCÍPIOS SÃO NORMAS JURÍDICAS DE CARÁTER COGENTE Qual o valor jurídico dos princípios? Os princípios não são apenas um conjunto de valores ou de prescrições éticas ou programáticas. São normas jurídicas de caráter cogente. De outro lado, a eficácia prática dos princípios irradia-se não só ao momento legislativo de elaboração da norma penal (quando o legislador cria a lei penal), senão também ao aplicativo e interpretativo (nem o intérprete nem o juiz podem ignorá-los), bem como no momento executivo (no momento da elaboração de políticas preventivas assim como quando se vai concretizar o comando sancionador contido na sentença condenatória, ou seja, no momento da execução da pena). Também é a partir da conformação constitucional que as reformas penais devem ser realizadas, principalmente por conta do longo espaço de tempo que medeia muitas legislações criminais (nosso Código Penal ainda prevê dispositivos criados na década de 40) e a Constituição (promulgada em 1988), o que leva, inexoravelmente, a uma sempre necessária conformação constitucional da legislação criminal. Desde a criação do modelo constitucionalista de direito (com especial ênfase a partir da Segunda Guerra Mundial, quando o surge o chamado neoconstitucionalismo – Dworkin, Alexis etc.), quem estuda, interpreta ou aplica o direito penal sem conhecer (ou reconhecer) a força normativa e cogente dos princípios constitucionais penais não é um penalista que se possa dizer atualizado e/ou comprometido com o atual Estado de Direito. Tampouco está atualizado quem, desde os anos setenta, em razão de toda construção teórica de Roxin (Política criminal e sistema do direito penal), que parte da constatação de que o direito penal não pode ter existência isolada, sem o influxo dos princípios constitucionais fundamentais, ignora a proximidade entre direito penal e política criminal, desconhece que os princípios constitucionais orientam a política-criminal a ser adotada pelo legislador e seguida pelos intérpretes e aplicadores da lei penal. Os princípios, como afirmamos, são normas jurídicas de caráter cogente e, por isso, não se confundem com as regras, conforme se verificará a seguir. 3) DIFERENÇAS ENTRE PRINCÍPIOS E REGRAS: Qual a diferença entre princípios e regras? Do livro de autoria de André Estefam e Victor Eduardo Rios (Direito penal, p. 99) extraímos o seguinte quadro explicativo: Como se verifica no último critério diferenciador do quadro acima, havendo conflito entre princípios há que se aplicar o critério da ponderação de interesses, tema que será objeto de atenção a seguir: 4) COLISÃO DE PRINCÍPIOS Os princípios que norteiam a aplicação da lei penal devem ser aplicados conjuntamente? E no caso de haver colisão entre eles, qual a solução? Havendo conflito entre os princípios, há que se aplicar o critério da ponderação de interesses, o qual determina que os princípios, acaso existentes mais de um no caso concreto, sejam sopesados, analisados caso a caso, prevalecendo o mais adequado e justo, caso seja impossível aplicar um ou mais princípios concomitantemente. Deverá prevalecer o interesse mais relevante em detrimento do menos relevante no caso concreto. Os princípios são fundamentais para iluminar a aplicação das regras que regem os casos concretos. Nossa Constituição legitima qual movimento de política criminal? O punitivista, o minimalista ou o abolicionista? Os princípios penais extraídos direta ou indiretamente de nossa Constituição Federal indicam a opção político-criminal (preponderante) pelo minimalismo penal (que vê o direito penal como conjunto de normas que limitam a liberdade assim como, ao mesmo tempo, o poder punitivo do Estado). Com isso fica refutado o abolicionismo penal (seja o moderado, seja o radical – Hulsman, Christie etc.; o abolicionismo radical afasta qualquer aplicação do direito penal, levando os conflitos para outras esferas de resolução, como a civil, administrativa etc.; o abolicionismo moderado propõe a abolição da pena de prisão, que seria mais nefasta que útil para o controle da delinquência). Mas entre a teoria e a prática há uma grande distância. Na prática se nota nitidamente uma tendência maximalista (uso máximo ou desproporcional do direito penal). Os princípios assim como os postulados político-criminais estão contemplados no texto constitucional e nos tratados de direitos humanos de forma expressa (princípio da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade etc.) ou implícita (exclusiva proteção de bens jurídicos, ofensividade do fato etc.). Qual a posição do princípioda dignidade da pessoa humana na hierarquia dos princípios? De outro lado, todos os princípios jurídicos e político-criminais encontram-se ancorados no princípio-síntese do Estado de Direito, que é a dignidade humana (CF, art. 1º, III). Nenhuma ordem jurídica pode contrariá-lo. Qualquer violação a outro princípio afeta igualmente o da dignidade da pessoa humana. O ser humano não é uma coisa, é, antes de tudo, pessoa dotada de direitos, sobretudo perante o poder punitivo do Estado. Não existe liberdade onde o humano deixa de ser tratado como pessoa para ser enfocado como coisa (Beccaria, Kant etc.). É imoral conceber o ser humano como meio e não como fim; ele não pode ser instrumentalizado para a obtenção de nenhuma finalidade (Kant). O Estado Democrático de Direito possui, assim, uma dimensão antropocêntrica (porque fundado na dignidade da pessoa humana). Daí a impossibilidade da existência de um direito penal tirânico, arbitrário ou totalitário (toda pena desnecessária é tirânica, dizia Montesquieu, secundado por Beccaria). As formas, os meios legítimos, a dimensão, a intensidade: tudo (ou praticamente tudo) do poder punitivo está regrado (nas leis, na Constituição e nos tratados internacionais). Na prática, no entanto, é chocante a quantidade de afrontas emanadas do estado policialesco (que é o estado que pune fora das regras jurídicas do Estado de Direito) frente ao conjunto normativo limitador (os presídios constituem o emblemático exemplo do que acaba de ser afirmado). Isso ocorre, sobretudo, quando se privilegia o eficientismo em detrimento das regras e princípios limitadores do poder punitivo. Há uma corrente que afirmar que o “direito penal do neoliberalismo” (a partir dos anos 90) seria violador do sistema penal constitucionalizado. Na verdade, é da nossa história a persistente violação dos direitos fundamentais das pessoas. Basta uma rápida visita a qualquer presídio brasileiro (em qualquer época) para se constatar a aporia entre sua realidade e as normas jurídicas vigentes. São princípios estruturais (ou estruturantes) do direito penal: o da dignidade da pessoa humana, que também é o princípio-síntese de todo Estado Democrático de Direito (art. 1º, III), o da legalidade (art. 5º, XXXIX) e o da culpabilidade (art. 5º, LVII). Esses princípios são estruturantes porque sem eles não haveria o Estado de Direito. Mas esses princípios estruturantes não são os únicos do sistema penal. Ampliando um pouco mais a visão sobre o tema, os mais relevantes princípios podem ser agrupados da seguinte forma: Vejamos cada um dos 13 princípios acima elencados. Parte II – Dos princípi os constitucionais penais 1) PRINCÍPIO DA EXCLUSIVA PROTEÇÃO DE BENS JURÍDICOS O direito penal não serve para a tutela da moralidade, de funções governamentais, de uma ideologia, de uma religião etc. É sua missão tutelar os bens jurídicos (Roxin), como a vida, a integridade física, a liberdade sexual, o meio ambiente etc. Ademais, por conta do princípio da intervenção mínima, conforme se verá no item 2, somente os bens jurídicos mais relevantes devem ser objeto de proteção do direito penal (não sendo relevante o bem jurídico, não se justifica uma intervenção tão drástica do Estado, como é a que acontece por meio do direito penal). Os bens jurídicos de menor monta podem ser objeto de proteção de outras esferas do direito, como o comercial ou o civil. O adultério, por exemplo, foi retirado do campo penal (Lei 11.106/05), por se entender que a exigência de uma relação monogâmica entre o casal não era matéria de relevância penal. É necessário que o bem jurídico tutelado pelo direito penal esteja contemplado expressamente na Constituição? Não. Fundamental é que o bem jurídico não conflite com o quadro axiológico constitucional, isto é, com os valores que a Constituição contempla. Se a CF assegura o direito de reunião e de associação (art. 5º, incisos XVI e XVII), nenhuma lei penal pode incriminar esse direito (sendo inconstitucional qualquer dispositivo em sentido contrário – como é o caso do art. 39 da Lei das Contravenções Penais). 2) PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA Não se trata de princípio previsto expressamente na Constituição, mas é das suas regras e princípios (dignidade humana, Estado democrático de Direito etc.) que extraímos a vertente político-criminal da intervenção mínima. Nos regimes absolutistas, totalitários ou autoritários (assim como nas ditaduras) o direito penal aparece em primeiro plano, porque o controle social é feito para gerar terror. De acordo com a concepção minimalista, o direito penal é instrumento de ultima ratio (só deve ser usada em último caso). O uso incontido ou desmedido do direito penal leva inexoravelmente ao estado policialesco. O direito penal, em suma, quando se transforma em instrumento de prima ratio perde seu caráter essencial de subsidiariedade. Isso é o que vem acontecendo com o direito desde o Código Penal de 1940, o mais punitivista de todos. Confia-se numa estridente intervenção simbólica (nos textos legais) como meio para a contenção da criminalidade (deterrance). A certeza do castigo sempre foi um objetivo postergado. No atual quadro de expansão do populismo punitivo, o uso desmedido do direito penal encontra amplo apoio popular e midiático. Isso significa que não vivemos numa democracia pura, sim, no campo punitivo o que vigora é a oclocracia (governo influenciado pelas massas). Na era do espetáculo as decisões político-criminais não são tomadas para mudar a realidade, sim, para promover mais espetáculo (Baratta). O princípio da intervenção mínima possui dois aspectos relevantes: fragmentariedade (o direito penal não protege todos os bens jurídicos de todas as ofensas a eles dirigidas) e subsidiariedade (sempre que outros meios de tutela forem igualmente eficazes, o direito penal não pode ser utilizado). A fragmentariedade no direito penal possui duas dimensões: - somente os bens mais relevantes devem receber a tutela penal; - exclusivamente os ataques mais intoleráveis a esses bens jurídicos relevantes é que devem ser punidos penalmente. O Direito tem condições de oferecer aos bens uma proteção diferenciada, que pode ser civil, administrativa, penal etc., devendo a tutela penal ser reservada para aquilo que efetivamente cause lesão ou perigo a um bem jurídico-penal de reconhecida relevância. “A lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias” (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1789). Ataques ínfimos, irrisórios, devem ser regidos pelo princípio da insignificância. O princípio da insignificância tem como fundamento a fragmentariedade do direito penal. Não é exatamente a mesma coisa que intervenção mínima, senão uma manifestação dela. Princípio da insignificância: caracteriza inequívoco afastamento da tipicidade material pela ausência de grave ou relevante lesão ao bem jurídico no caso concreto (é também chamado de princípio da bagatela). Nós sustentamos dois tipos diferentes de bagatela: 1) bagatela própria: o fato, apesar de formalmente típico, já nasce irrelevante pela diminuta lesão ao bem jurídico (ex.: subtração de um shampoo em supermercado); 2) bagatela imprópria: o fato nasce penalmente relevante, mas a pena se torna desnecessária na situação concreta, normalmente porque o réu já sofre uma “pena natural” (experimenta enorme e desproporcional sofrimento em razão do seu delito). O parentesco da bagatela imprópria com as situações de perdão judicial é inevitável. Considere-se o exemplo do pai que mata filho em acidente de trânsito - § 5º do art. 121 do CP. Expressamente o Código Penal permite o perdão judicial.Fora dessas situações expressas, o juiz pode reconhecer concretamente a desnecessidade da pena nos termos do art. 59 do CP (para isso se exige que o agente tenha experimentado desproporcional sofrimento pelo seu fato – por exemplo: réu que tentou roubar R$ 10 reais da vítima, com ameaça, não violência, desarmado, primário, dinheiro restituído e que ficou preso, por exemplo, seis meses em razão desse fato; ademais se reconciliou com a vítima, explicando que “tudo não passou de uma bebedeira”). No final pode ser que o juiz entenda que a pena seja desnecessária. Com fundamento no art. 59 do CP pode reconhecer a bagatela imprópria, extinguindo-se a punibilidade do agente. A jurisprudência, normalmente, não vem admitindo a insignificância nos crimes dolosos praticados com emprego de violência ou grave ameaça (em especial o roubo). Pensamos que, em situações excepcionais, pode-se reconhecer a bagatela imprópria (que foi reconhecida pelo TRF 4ª Região num caso de descaminho, em que o total dos tributos era pouca coisa acima do admitido como fato insignificante). Não é preciso que o crime seja de menor potencial ofensivo (punido até dois anos) para a adoção da insignificância. No furto simples (punido com pena de até quatro anos de reclusão) a jurisprudência admite a insignificância. Do livro de Rogério Sanches (Direito penal-PG) extraímos, resumimos e atualizamos o seguinte quadro sobre o panorama jurisprudencial do princípio da insignificância (p. 74): Adequação social: outro princípio que exprime a fragmentariedade do direito penal é o da adequação social (não se pune os pais que perfuram as orelhas de uma criança para a colocação de brincos). A evolução social costuma modificar a valoração de alguns comportamentos tornando o repugnante em inofensivo com o tempo. Com base na constatação desse descompasso, Hans Welzel idealizou o princípio da adequação social que teria função parecida com o princípio da insignificância, sendo seus dois principais escopos: 1) Restringir a abrangência do tipo penal, excluindo a tipicidade nas situações em que se constatasse a adequação social (função concreta); 2) Orientar a função seletiva do tipo funcionando ora para determinar a “incidência aflitiva” (na previsão de novos crimes) ora como catalisador da descriminalização de condutas (função abstrata). Princípio da desnecessidade concreta da pena: mais uma manifestação da fragmentariedade do direito penal reside no princípio da desnecessidade concreta da pena (também chamado de irrelevância penal do fato). Quando o fato não é necessitado de pena, como é o caso do perdão judicial ao pai que mata o filho em acidente de carro, não pode incidir o castigo penal. Condutas ou resultados considerados pela sociedade como adequados ou que por ela são social e amplamente tolerados (sem ferir preceitos constitucionais), não devem entrar no âmbito do direito penal. Subsidiariedade do direito penal: o direito penal só tem lugar quando outros ramos do sistema jurídico não se mostram suficientes para a prevenção e reprovação do fato. O direito penal é direito de ultima ratio (TJSP, AC 113.999-3, rel. Luiz Betanho). >>> Caso concreto: Há firme jurisprudência no nosso país no sentido de que não se configura o delito de desobediência quando existe sanção administrativa para a conduta. Isso constitui exemplo de subsidiariedade do direito penal. Em vários julgados, quando se trata de descumprimento de uma medida protetiva de urgência prevista na Lei Maria da Penha, tem- se entendido que não configura o crime de desobediência, tendo em vista que há previsão legal referente às consequências do descumprimento: aplicação de uma medida ainda mais severa, podendo-se chegar à prisão preventiva (desde que os requisitos se façam presentes) – STJ, 6ª T., REsp 1.374.653, j. em 11/03/2014. Por força do princípio da intervenção mínima, o que resulta constitucionalmente proibido no nosso país é o chamado direito penal máximo violador, dentre outros, dos princípios da culpabilidade e da proporcionalidade, que consiste no abuso do direito penal para atender finalidades ilegítimas (atemorização pela imposição de penas exemplares, por exemplo), para acalmar a ira da população etc. A utilização do direito penal traz um enorme custo individual e social e ele somente se justifica quando se estiver diante de um bem jurídico relevante que tenha sido ofendido de forma grave, e desde que outros recursos (instrumentos) não possam ser utilizados para se proteger tal bem. Análise crítica. O direito penal máximo, tal qual vem sendo sustentado, é desproporcional, desigual, abusivo e arbitrário (até porque, instrumentaliza uma pessoa para servir de exemplo para a sociedade, violando um dos imperativos éticos de Kant). Os defensores do direito penal máximo que vai além do que é justo são propagadores do estado de polícia. O direito penal deixa de cumprir seu papel de contenção do poder punitivo abusivo (Zaffaroni) quando instrumentaliza o ser humano. 3) PRINCÍPIO DA MATERIALIZAÇÃO OU EXTERIORIZAÇÃO DO FATO (nullum crimen sine actio) Ninguém pode ser punido pelo que pensa (mera cogitação) ou pelo modo de viver. Só responde penalmente quem realiza um fato descrito como crime ou contravenção penal (direito penal do fato). Está proibido punir alguém pelo seu estilo de vida, ou seja, está vedado o chamado direito penal de autor, que pune o sujeito não pelo que ele fez, mas sim, pelo que ele é. A lei penal não punir o agente pelo que ele é, sim, pelo que ele faz (o direito penal do fato não se coaduna com o direito penal de autor). As pessoas não podem ser punidas pelo que são (judeus, vagabundas, ociosas, bruxas, hereges, inimigos do povo etc.). O direito penal de autor conduz ao estado policialesco, que favorece as concepções autoritárias ou totalitárias do poder punitivo (Muñoz Conde). A exacerbação do valor da reincidência (ela é constitucional, disse o STF, RE 453.000) constitui outra fonte de ilegitimidade do direito penal, assim como a ideia de periculosidade (que é usada para a decretação de prisões preventivas). >>> Ilustrando: O direito penal nazista, regido doutrinariamente pela denominada Escola de Kiel, é exemplo histórico de direito penal de autor. O agente, na época nazista, era punido não pelo que fazia, senão pelo que era: judeu, prostituta, homossexual, africano, latino-americano, portador de deficiência, idoso etc. O art. 59 da Lei das Contravenções Penais (Dec.-lei 3.688/41: vadiagem) também é um exemplo de direito penal de autor e, desse modo, inconstitucional. O abuso da prisão preventiva contra os criminosos “estereotipados”, particularmente quando não praticam crimes violentos, também se insere nesse contexto de “direito penal ou processual de autor” (o sujeito é preso, muitas vezes, pelo que ele “é” – pobre, marginalizado ou diretor de uma empresa, funcionário de uma estatal etc. –, não pelo que fez). O crime omissivo configura exceção ao princípio da materialização do fato? Não, porque a exteriorização da conduta acontece ou por meio de uma ação (crime comissivo) ou por intermédio da omissão (crime omissivo). A forma omissiva (não fazer o que a lei determina) é maneira de exteriorização de uma conduta penalmente relevante. O princípio da materialização do fato não pode ser entendido só em sentido naturalístico; ele conta com sentido jurídico e abrange tanto a ação como a omissão. O médico que deixa de prestar socorro a um paciente ferido que está dentro do hospital exterioriza uma conduta omissiva punível. Ainda em virtude do princípio da materialização do fato, quando não há conduta humana penalmente relevante (não é penalmenterelevante, p. ex., condutas praticadas sem consciência em estado de sonambulismo), não há que se falar em crime. A conduta humana voluntária é o primeiro requisito (formal) do fato típico; sem ela, não há que se falar em crime (porque não existe crime sem um fato tridimensionalmente típico: formalmente típico + materialmente típico + dolo ou culpa). Entrosando o iter criminis e o princípio da exteriorização do fato temos: 4) PRINCÍPIO DA LEGALIDADE DO FATO O fundamento do princípio da legalidade é a segurança jurídica. O poder público não pode interferir nos direitos pessoais arbitrariamente. O juiz não tem legitimidade democrática para criar um crime ou uma pena. Somente o legislador pode prever ingerências na liberdade humana. Uma das bases do princípio da legalidade reside na (controvertida) teoria da coação psicológica de Feuerbach (prevenção geral negativa): se o fim da cominação penal consiste na intimidação de delinquentes potenciais, a determinação psíquica que se pretende só pode ser alcançada se antes do fato é fixada na lei, da forma mais exata possível; é fundamental saber- se qual é a ação proibida. Pois se falta uma lei prévia ou esta é pouco clara, não se poderá produzir o efeito intimidatório que se pretende, porque ninguém saberá se sua conduta pode acarretar uma pena ou não. A origem remota do princípio reside na Magna Carta do Rei João Sem Terra, de 1215, art. 39. O direito penal só pode exercer sua dupla função de limitar a liberdade e criar liberdade (Jescheck) ou constituir-se na Magna Carta do delinquente (von Liszt) se se sabe, prévia e precisamente, o que está proibido e o que é permitido. O âmbito do proibido penalmente vem delineado na lei, e só um Estado de Direito, como vimos até aqui, pode garantir o princípio da reserva legal (que hoje é entendido como reserva legal proporcional). O princípio da legalidade criminal (não há crime sem lei) e penal (não há pena sem lei) encontra-se previsto na Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU) de 1948 (art. 11, II), na Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais de 1950, no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966 (art. 15, I), na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 9.º). Consolidou-se no direito penal por obra do Iluminismo e de Beccaria (Dos delitos e das penas). Logo que a burguesia ascendente assumiu o poder (1789), preocupou-se em estampar o princípio da legalidade nas leis e constituições (como a Maryland, de 1776). Feuerbach o contemplou no Código Penal da Baviera de 1813.Teoricamente o princípio da legalidade foi imaginado para evitar irracionalidades (tais como as cometidas durante a Monarquia). As quatro dimensões do princípio da legalidade no direito criminal (direito penal, processo penal e execução penal) são: 1) princípio da legalidade criminal: “não há crime sem lei anterior que o defina” (CP, art. 1.o) – nullum crimen sine lege; 2) princípio da legalidade penal: “não há pena sem prévia cominação legal” (CP, art. 1.o) – nulla poena sine lege; Ambos os princípios acima estão constitucionalizados: Constituição Federal (art. 5º, XXXIX): “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. 3) princípio da legalidade jurisdicional ou processual: não há processo sem lei, ou seja, ninguém pode ser privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (nulla coatio sine lege – CF, art. 5º, inc. LIV) ou nemo damnetur nisi per legale iudicium; 4) princípio da legalidade execucional: “a jurisdição penal dos juízes ou tribunais de justiça ordinária, em todo o território nacional, será exercida, no processo de execução, na conformidade desta Lei e do Código de Processo Penal” (LEP, art. 2º) – nulla executio sine lege. No campo penal o princípio da legalidade constitui a fonte da norma penal assim como do tipo penal (tipo penal é o conjunto dos requisitos que fundamentam uma determinada ofensa a um bem jurídico. São várias as dimensões de garantia do princípio da legalidade criminal. Oito delas valem também para a legalidade penal. São elas: 1.a) lex scripta (lei escrita): nosso Direito pertence à (família da) civil law, não à common law, isto é, entre nós, o que vale (para fins incriminadores) é o direito escrito (publicado no diário oficial), não os costumes ou apenas os precedentes jurisprudenciais. Não há crime sem lei anterior que o defina. Isso significa, desde logo, que apenas e exclusivamente a lei é que define crime no nosso país. Os costumes não servem para essa finalidade. Tampouco a jurisprudência. Podem os costumes ser válidos para a interpretação da lei penal, particularmente em favor do réu, mas não criam crime ou pena. A jurisprudência, como se vê, não é fonte direta de incriminação no Brasil, mas como o legislador vem editando (cada vez mais) leis penais vagas, a margem interpretativa dos juízes vem se ampliando na mesma proporção. Esse é o caso do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), previsto no art. 52 e ss. da Lei de Execução Penal (que usa padrões linguísticos extremamente vagos). A interpretação extensiva para além da vontade do legislador está se tornando frequente (e isso viola a garantia da lex scripta). Para ter vigência a lei precisa ser aprovada, promulgada, sancionada e publicada. Só pode ter valor jurídico a lei publicada na imprensa oficial (Diário Oficial). E desde que publicada sem vícios. >>> Caso concreto: Na Lei 9.639/98 publicou-se um parágrafo único ao art. 11 que concedia anistia ampla nos crimes previdenciários. Descobriu-se depois que esse parágrafo não havia sido discutido no Congresso. Sendo assim, era absolutamente inconstitucional. Jurisprudência pacífica passou a reconhecer essa inconstitucionalidade. (TRF 3.a Região – RC 1999.61.81.001152-6 – rel. Theotonio Costa – DJU 10.04.2001, Seção 2, p. 243). 2.a) lex populi (lei popular, lei do Parlamento): Só pode definir crime a lei formalmente discutida e aprovada pelo Parlamento (TFR, ED, rel. Assis Toledo, RTFR 149, p. 277). Somente os representantes diretos do povo é que podem deliberar sobre o proibido (preceito primário da norma incriminadora) ou sobre a sancionabilidade do fato (preceito secundário da norma incriminadora). Nessa questão reside a fundamentação democrático-representativa do direito penal. Não se pode confundir o princípio da legalidade criminal com o princípio da reserva legal ou mesmo com o princípio da anterioridade. Vejamos: - princípio da legalidade: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (CF, art. 5º, inc. II). Princípio da legalidade criminal significa que não há crime sem lei (CF, art. 5º, XXXIX; CP, art. 1º). Conta hoje com várias dimensões de garantia. Dentre elas acham-se o princípio da reserva legal e o da anterioridade. - princípio da reserva legal: significa que em matéria penal somente o legislador pode intervir para prever crimes e penas ou medida de segurança (garantia da lex populi). Reserva legal, em síntese, significa reserva de lei aprovada pelo Parlamento, de acordo com o procedimento legislativo previsto na Constituição. No direito penal, em se tratando de normas incriminadoras, vigora o princípio da legalidade, aliás, mais que isso, vigora o (plus) da reserva legal. Medida provisória, por exemplo, como veremos em seguida, não pode criar crime ou pena. Na atualidade a reserva legal deve ser entendida como reserva legal proporcional (voltaremos ao tema detalhadamente mais abaixo). >>> Aprofundando: em direito constitucional existe a legalidade em sentido amplo e a legalidade em sentido estrito. Legalidade em sentidoamplo é a prevista no inciso segundo do art. 5º da CF (“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”). Esse dispositivo aceita que qualquer espécie normativa limite a liberdade individual, até mesmo os atos normativos infralegais, como decretos e portarias. Em todas as demais passagens em que a Constituição demandar de forma expressa a exigência de lei para regular determinado assunto estaremos na presença da legalidade em sentido estrito e aqui teremos então a exigência de lei em sentido estrito, ou seja, lei editada pelo Parlamento (leis ordinárias, leis complementares etc.), não podendo estes temas ser regulados de forma autônoma por atos infralegais. É fácil reconhecer tais hipóteses, basta que o dispositivo constitucional tenha em sua redação os dizeres “conforme a lei”, “em virtude da lei”, “de acordo com a lei” etc. É justamente isso que verificamos na legalidade penal quando o art. 5º inciso XXXIX, afirma que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Para que o Estado edite previsões com comportamento que considere criminoso ele só poderá fazê-lo através de lei em sentido estrito. A legalidade penal, portanto, é legalidade em sentido estrito (ou seja: há aqui uma reserva legal). Mais: é cláusula pétrea. - Por força do princípio da anterioridade a lei penal nova deve entrar em vigor antes e só vale para fatos posteriores à vigência (veremos o tema mais detalhadamente abaixo). Constituição Federal: a punição dos fatos ou agentes concretos depende de uma lei penal, não da Constituição. O poder punitivo nasce da lei. Não existe um direito fundamental da vítima de obter a condenação penal do agente que violou direitos constitucionais. Não há a legalidade invertida. A Constituição nunca pode ser fonte direta da incriminação. Sem lei aprovada pelo parlamento não existe o ius puniendi. >>> Aprofundando: legalidade sob o ponto de vista formal significa submissão ao processo legislativo correto. Significa que o ato estatal que tem por consequência a privação da liberdade do indivíduo deve se formar pelo rito que a Constituição estabelece como sendo o rito de formação da lei (iniciativa, discussão e votação, promulgação e publicação – devido processo legislativo). O princípio da legalidade em sentido amplo abrange todas as espécies normativas do art. 59 da CF. Já a reserva legal toma a expressão lei no sentido estrito, conforme distinção originária do direito constitucional acima destacada. E o que seria lei em sentido estrito? Seria, segundo a doutrina, lei editada pelo parlamento conforme o processo legislativo respectivo. Dissecando as espécies legislativas do artigo 59 da CF quais seriam as aptas a prever crime e cominar pena? Vejamos: - Emendas constitucionais – Não existe previsão de crime e pena na CF, logo não poderia haver uma Emenda para prever crime ou pena. O que existe na CF são os chamados mandados criminalizantes (ou penalizantes), que são matérias em que o legislador infraconstitucional tem a obrigação de criminalizar (ou penalizar), como por exemplo: racismo (art. 5º, XLII), tortura (art. 5º, XLIII), condutas lesivas ao meio ambiente (225). Ou seja, na verdade a lei que irá tratar do assunto é infraconstitucional e na CF consta apenas o comando para que o legislador atue na matéria. Existe mandado criminalizante (ou de criminalização) não cumprido pelo legislador infraconstitucional? Sim, o inciso XLIV do artigo 5º da CF (o legislador não criminalizou a “ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático; o terrorismo ainda não foi criminalizado de forma adequada (o art. 20 da lei 7170/83 é extremamente vago e viola o princípio da taxatividade). - Leis complementares – é lei em sentido estrito. Existe crime em lei complementar? Sim. Art. 25 da LC 64/90 (Art. 25. Constitui crime eleitoral a arguição de inelegibilidade, ou a impugnação de registro de candidato feito por interferência do poder econômico, desvio ou abuso do poder de autoridade, deduzida de forma temerária ou de manifesta má-fé: Pena: detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa de 20 (vinte) a 50 (cinquenta) vezes o valor do Bônus do Tesouro Nacional (BTN) e, no caso de sua extinção, de título público que o substitua.) - Leis ordinárias – é lei em sentido estrito. Normalmente as previsões de crime estão em leis ordinárias, excepcionalmente em complementares. - Medidas Provisórias – Não é lei em sentido estrito por ser editada pelo Executivo (vide abaixo o tópico específico sobre medida provisória). - Leis Delegadas – Art. 68, §1º, II da CF/88 veda que a lei delegada discipline sobre direitos individuais. - Decretos Legislativos – é editado pelo parlamento, no entanto tem um rol de matérias específico na CF e nele não consta a previsão para atuação em seara penal. - Resoluções - é editado pelo parlamento, no entanto tem um rol de matérias específico na CF e nele não consta a previsão para atuação em seara penal. Em síntese: apenas leis ordinárias e complementares podem criar crimes e penas. Medidas provisórias: não podem, consequentemente, descrever crime ou pena ou mesmo cuidar diretamente de qualquer aspecto punitivo penal (CF, art. 62, § 1.o, I, b). O direito penal, pelas suas implicações na esfera dos direitos fundamentais da pessoa, não pode emanar só do Executivo. A lei primeiro é aprovada pelo Parlamento. Depois é sancionada pelo Executivo. E se a medida provisória for convertida em lei? Nesse caso sua validade se dá a partir da lei, como expressão da vontade do Parlamento, e não da data da medida provisória. Podem tais medidas, entretanto, beneficiar o réu, autorizando, por exemplo, uma determinada conduta descrita formalmente em lei penal. >>> Caso concreto: Foi o que aconteceu com a Medida Provisória 1.710, que criou um programa antipoluição, permitindo que as empresas possam poluir até determinados níveis e gradativamente reduzindo esses níveis. A conduta autorizada por uma norma (sendo favorável ao réu) não pode estar no âmbito da proibição de outra (teoria da tipicidade conglobante de Zaffaroni, que estudaremos dentro da tipicidade material). No entanto, há entendimento jurisprudencial no sentido de que medida provisória não pode beneficiar o agente (Nesse sentido, STJ, REsp 270.163, rel. Gilson Dipp, j. 06.06.2002, DJU 05.08.2002, p. 373, que refutou a aplicabilidade da MP 1.571, nos crimes previdenciários). Posição do STF: O STF, no RE 254.818-PR, rel. Sepúlveda Pertence, discutindo os efeitos benéficos introduzidos no nosso ordenamento jurídico pela Medida Provisória 1.571/97 (6ª e 7ª edições – essas edições permitiram o parcelamento de débitos tributários e previdenciários, com efeito extintivo da punibilidade) proclamou a sua validade. Para o STF as medidas provisórias podem beneficiar o réu. Nossa posição: Concordamos com o posicionamento do STF. Em favor do réu cabe inclusive analogia. Até mesmo os costumes podem beneficiá-lo. Nesse contexto, não há como afastar a possibilidade de as medidas provisórias beneficiarem o agente. O princípio da legalidade estrita em direito penal impede a medida provisória contra o réu, não em seu favor. A MP 1.571/97, tendo sido convalidada pela Lei 9.639/98, que suspendeu validamente a aplicabilidade da norma contida no art. 95, d, da Lei 8.212/91, tinha que ser aplicada em favor do réu. A questão das fontes do direito penal deve ser bem compreendida. Uma coisa é a adoção de medidas que restringem a liberdade; outra bem diferente é a solução quando a medida amplia o direito à liberdade e diminui o espaço do ius puniendi. Ninguém discute a validade de causas supralegaisde exclusão do delito (consentimento da vítima, inexigibilidade de conduta diversa, etc.). Se até causas supralegais são admitidas para excluir o delito, com mais razão devemos acolher a medida provisória que beneficie o réu (pro reo). No quadro abaixo podemos visualizar o tema de forma esquemática: Decreto-lei: muitas leis penais no nosso país foram instituídas por decreto-lei (o próprio Código Penal, por exemplo). Outro exemplo: Dec.-lei 3.688/41, que instituiu a Lei das Contravenções Penais. São reputadas válidas porque quando editadas o ordenamento constitucional assim permitia (STJ, RHC 5.416, rel. Adhemar Maciel, DJU de 26.08.1996, p. 29.725). Tratados internacionais: Coube ao STF, no HC 96.007/SP, Primeira Turma, rel. Min. Marco Aurélio, j. 12/06/12, DJe-027, divulgação 07/02/13, publicação 08/02/13, corrigir o grande equívoco do STJ, que admitia a possibilidade de tratado internacional (Tratado de Palermo, concretamente) definir crime no âmbito do direito penal interno. O STF, não admitindo o Tratado de Palermo como fonte normativa válida para o direito interno, respeitou a garantia da lex populi. A existência de um tipo penal pressupõe lei em sentido formal e material. A Lei 9.034/95 não definia o que se entende por crime organizado (ou organização criminosa), o que somente aconteceu com a Lei 12.850/13. Diante dessa lacuna (até o advento da Lei 12.850/13), pretendeu-se supri-la com a utilização do Tratado de Palermo, que cuida da criminalidade organizada transnacional. Era uma maneira de tentar burlar a garantia do princípio da legalidade. Afirmava-se que o referido tratado passou a vigorar no Brasil por meio do Decreto 5.015/2004, logo, assim estaria atendido o princípio da legalidade. Por vários motivos a tese não foi aceita (veja HC 96.007): (a) porque só se pode criar crime e pena por meio de uma lei formal (aprovada pelo Parlamento, consoante o procedimento legislativo constitucional); (b) o decreto viola a garantia da lex populi, ou seja, lei aprovada pelo parlamento (decreto não é lei); (c) quando o Congresso aprova um Tratado ele o ratifica, porém, ratificar não é aprovar uma lei; (d) mesmo que o tratado tivesse validade para o efeito de criar no Brasil o crime organizado, mesmo assim, ele não contempla nenhum tipo de pena (argumento do ministro Marco Aurélio) e, sem ameaça de pena não existe crime; (e) o tratado foi feito para o crime organizado transnacional, logo, só poderia ser aplicado para crimes internos por meio de analogia, contra o réu, que é proibida. 3.a) lex certa (lei certa): a lei penal deve ser indiscutível em seus termos, isto é, taxativa (princípio da taxatividade). Não pode descrever o crime de forma vaga, aberta ou lacunosa. A segurança jurídica do cidadão exige precisão no texto legal, a fim de que possa ser compreendido. São contrárias à garantia da legalidade material as leis que descrevem os delitos ou restrições de direitos fundamentais de forma vaga e imprecisa, deixando nas mãos dos juízes a definição do delito (ou a definição do campo das restrições de direitos). A disciplina jurídica do RDD (regime disciplinar diferenciado), no art. 52 e ss. da Lei de Execução Penal, constitui exemplo paradigmático da violação do princípio da taxatividade das normas penas restritivas de direitos. Por força do estado policialesco, nunca o princípio da legalidade deixou de experimentar um certo tipo de esvaziamento (em sua função de garantia). Tal imposição, no entanto, não impede que o legislador se utilize, vez ou outra, após uma enumeração casuística, uma formulação genérica que deve ser interpretada de acordo com os casos anteriormente elencados. Ex.: CP, art. 121, § 2º, IV: “Matar alguém... à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido”. Cabe ao juiz em cada caso concreto verificar a existência desse outro recurso que dificulte a defesa do ofendido. Por exemplo: a surpresa. Trata-se de um caso de interpretação analógica (que é admitida no direito penal). Não se confunde com a analogia, que somente é admitida quando for favorável do réu (analogia in bonam partem). A lei penal em branco (lei em que o preceito primário da norma penal só descreve uma parte do delito, deixando seu complemento para outra fonte normativa – exemplo: todas as leis que punem o tráfico de drogas) não é inconstitucional se o legislador cuidou do conteúdo proibido, deixando para outra fonte normativa apenas o complemento. Ela é inconstitucional quando o legislador deixa o conteúdo proibido por conta da norma complementar. Voltaremos ao tema da lei penal em branco quando do estudo do art. 3º do CP (que cuida das leis penais excepcionais e temporárias). 4.a) lex clara (lei clara): lei clara é a lei inteligível, compreensível. O legislador deve utilizar expressões que possam ser entendidas pela população (cuida-se de velha reivindicação de Beccaria). De outro lado, o melhor seria que todas as leis penais fossem inseridas num só código (reserva de código), pois, desta forma, estariam todas elas organizadas sistêmica e racionalmente, resultando, por consequência, numa melhor apreensão pela sociedade do âmbito do que é proibido. Quanto mais esparsas as leis, menos inteligíveis são. Isso conduz, em alguns casos, ao reconhecimento do erro de proibição. 5.a) lex determinata (lei determinada): a lei penal deve descrever fatos empiricamente comprováveis, isto é, passíveis de demonstração em juízo. Uma lei penal que previsse crime ambiental relacionado com a água de outro planeta seria inválida (diante da impossibilidade de comprovação desse fato). A legalidade estrita deve descrever condutas que sejam verificáveis, ou seja, empiricamente demonstráveis (Ferrajoli). 6.ª) lex rationabilis: nos dias atuais, se a justiça é o valor-meta do Estado Democrático de Direito é absolutamente inatendível o velho brocardo que diz: Lex quanvis irrationabilis, dummodo sit clara (a lei, ainda que irracional, sendo clara, tem de ser aplicada). O que deve imperar (no vigente Estado de Direito) é exatamente o contrário: a lei irracional não deve ser aplicada,4 porque inconstitucional. Nesse caso, aplica-se a Lei Maior, para negar validade à inválida lei ordinária. O STJ (no HC 239.363) declarou a inconstitucionalidade do preceito 4 Sobre a irracionalidade da criminalização da arma de brinquedo cf. GOMES, Luiz Flávio. Estudos de direito penal e processo penal. São Paulo: RT, 1998, p. 133 e ss. É certo que esse delito desapareceu com o novo Estatuto do Desarmamento. secundário do artigo 273, parágrafo 1º-B, inciso V, do Código Penal (por se tratar de pena sem razoabilidade). A pena do delito de venda de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais de procedência ignorada é de reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa. Trata-se de pena totalmente irracional (quase o dobro do homicídio, no patamar mínimo). No caso, após o esvaziamento do preceito secundário do delito, o STJ determinou que a reprimenda cabível seria a do art. 33 da lei 11.343/06 (5 a 15 anos). No voto proferido no RE 635.659-SP (20/8/15) o min. Gilmar Mendes, admitindo a inconstitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas (que pune com sanções penais quem porta drogas para uso pessoal), com base na doutrina e na jurisprudência da Alemanha, bem sintetizou as atuais exigências emanadas do princípio da proporcionalidade. Seu voto faz contraponto com o RE 430.105 (rel. min. Sepúlveda Pertence, 24/4/07), que admitiu apenas a despenalização (infração com caráter penal, sem pena de prisão) do porte de drogas para uso pessoal, sem chegar na descriminalização.>>> Aprofundando. Do voto do min. Gilmar Mendes extraímos o seguinte: 1) o controle de constitucionalidade das normais penais tem como eixo a proteção dos direitos fundamentais; 2) o Estado tem o dever de proteger os bens jurídicos mais relevantes, mas conta com limites; 3) muitos são os mandados de criminalização contidos na CF de 1988 (um dos catálogos mais amplos em termos de direito comparado); 4) o Estado se obriga “não apenas a observar os direitos de qualquer indivíduo em face do Poder Público, como, também, a garantir os direitos fundamentais contra agressão de terceiros”; 5) os direitos fundamentais não são apenas proibições de intervenção do Estado; são também postulados de proteção; não são apenas proibição de excesso, senão também proibição de proteção insuficiente (Claus-Wilhelm Canaris); 6) a ordem constitucional fundada nos direitos fundamentais irradia sua força para a ordem legal; 7) o Estado deve intervir para protegê-los; 8) a tutela penal, no entanto, pertence à “discrição legislativa”, porém, sempre subordinada ao princípio da proporcionalidade, que envolve a apreciação da necessidade e adequação da providência adotada; 9) essa orientação “permitiu converter o princípio da reserva legal no princípio da reserva legal proporcional”, o que “pressupõe não só a legitimidade dos meios utilizados e dos fins perseguidos, como, igualmente, a adequação dos meios para a consecução dos objetivos pretendidos e a necessidade de sua utilização”; 10) de um lado, “exigências de que as medidas interventivas se mostrem adequadas ao cumprimento dos objetivos pretendidos. De outra parte, o pressuposto de que nenhum meio menos gravoso revelar-se-ia igualmente eficaz para a consecução dos objetivos almejados. Em outros termos, o meio não será necessário se o objetivo pretendido puder ser alcançado com adoção de medida que se revele, a um só tempo, adequada e menos onerosa”; 11) ao juiz compete fazer o controle de constitucionalidades das normas penais, de acordo com os parâmetros assinalados. Socorrendo-se da doutrina jurisprudencial alemã (Corte Constitucional - caso Mitbestimmungsgesetz, 1978 BVerfGE 50, 290), o min. Gilmar Mendes discorreu sobre os três níveis de controle de intervenção ou restrição a direitos fundamentais: a) controle de evidência (Evidenzkontrolle); b) controle de justificabilidade (Vertretbarkeitskontrolle); e c) controle material de intensidade (intensivierten inhaltlichen Kontrolle). Por força do primeiro examina-se a idoneidade da medida para a proteção dos direitos fundamentais; “a norma somente poderá ser declarada inconstitucional quando as medidas adotadas pelo legislador se mostrarem claramente inidôneas para a efetiva proteção do bem jurídico fundamental”; não são parâmetros abstratos que justificam esse controle. No segundo nível, “o controle de justificabilidade está orientado a verificar se a decisão legislativa foi tomada após uma apreciação objetiva e justificável de todas as fontes de conhecimento então disponíveis”; cabe verificar “se o legislador levantou e considerou, diligente e suficientemente, todas as informações disponíveis, e se realizou prognósticos sobre as consequências da aplicação da norma. Enfim, se o legislador se valeu de sua margem de ação de maneira sustentável”. No terceiro nível poderia o juiz desconsiderar as valorações feitas pelo legislador na etapa anterior (esse terceiro nível está praticamente descartado em razão da dificuldade de se valorar a intensidade das análises do legislador feitas no segundo momento). No voto citado se lê que o enfoque penal em relação ao usuário é uma medida totalmente inadequada (inidônea) para se alcançar a política de prevenção ao uso de drogas, porque gera estigmatização e afeta a personalidade dos jovens (que são a maioria das pessoas selecionadas pelo sistema – cerca de 75% segundo pesquisas invocadas no citado voto). Ademais, não se distinguiu objetivamente o “usuário” do “traficante”. Há incongruência entre a criminalização e os objetivos fixados pelo legislador. No que diz respeito ao controle de justificabilidade “não existem estudos suficientes ou incontroversos que revelem ser a repressão ao consumo o instrumento mais eficiente para o combate ao tráfico de drogas. Pelo contrário, apesar da denominada “guerra às drogas”, é notório o aumento do tráfico nas últimas décadas”. Os estudos (citados no voto) mostram que a descriminalização não significou aumento no número de usuários de drogas. A criminalização da posse de drogas “para consumo pessoal”, ademais, “afeta o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, em suas diversas manifestações”. 7.a) lex stricta (lei estrita): a lei penal restritiva de direitos fundamentais deve ser interpretada estritamente (restritivamente). O juiz não pode criar crimes, nem sequer por meio da analgia. Sendo assim, está proibida a analogia contra o réu (leia-se: in malam partem). Admite-se, contudo, a analogia em benefício do acusado (in bonam partem). Analogia significa aplicar a um caso não regulado pelo direito uma lei que foi prevista para outra situação. Onde se pune o furto “para si ou para outrem” (CP, art. 155) não se pode criminalizar, por analogia contra o réu, a “subtração de uso” (uso momentâneo e restituição imediata da coisa). O art. 128, II, do CP, contempla uma norma permissiva do aborto, realizado por médico, quando a gravidez resulta de estupro. Se um terceiro fizer esse aborto, preenchidos todos os requisitos legais, pode-se aplicar a norma permissiva em favor desse terceiro (aqui teríamos uma analogia in bonam partem). 8.a) lex praevia (lei prévia): a garantia da lei prévia exprime o princípio da anterioridade que significa que a lei penal deve entrar em vigor antes e só vale para fatos que ocorram a partir dela (CP, art. 1.o). A lei penal nova incriminadora não retroage, isto é, não alcança fatos passados. A lei dos crimes hediondos que entrou em vigor em 1990 não pôde ser aplicada para fatos anteriores. A Lei 12.850/13, que definiu o crime organizado, não pode aplicar para fatos anteriores. Lei nova mais favorável retroage em favor do agente (CF, art. 5º, inc. XL). 9.a) nulla lex sine iniuria (a lei deve descrever uma forma de ofensa ao bem jurídico): a lei penal deve utilizar sempre verbos que retratem uma ofensa ao bem jurídico: “matar”, “subtrair”, “constranger” etc. Deve descrever com clareza a forma de ataque a esse bem. Essa garantia emana do princípio da ofensividade (não há crime sem lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico tutelado). O princípio da ofensividade (que alguns autores chamam de lesividade), por sua vez, faz parte da tipicidade material, que tem pertinência dentro da concepção tridimensional da tipicidade que seguimos (tipicidade formal + material + dolo ou culpa). Validade das garantias. Todas essas dimensões de garantia emanadas da legalidade criminal valem inclusive para as medidas de segurança (aplicáveis aos condenados que sofrem de doença mental, por exemplo), que estão sujeitas também ao princípio da anterioridade (lex praevia). Valem ainda (ipsis litteris) para as contravenções penais (Decreto Lei 3.688/41), que são espécies de infração penal. 5) PRINCÍPIO DA OFENSIVIDADE (do fato) O fato cometido formalmente típico (adequado à letra da lei), para se transformar em crime deve também afetar o bem jurídico protegido pela norma penal; a norma penal não é apenas impositiva (determinativa); antes de tudo ela é valorativa (existe para proteger um bem jurídico que foi valorado positivamente); se a norma protege um valor que se transforma (no direito penal) em bem jurídico, não há crime sem lesão ou perigo de lesão ao bemjurídico tutelado – nullum crimen sine iniuria. Alguns autores preferem a denominação princípio da lesividade5. Na práxis, as duas palavras são usadas indistintamente. A ideia é simples: ninguém pode ser punido por mera atitude interna (mera intenção), posto que o fato deve ser exteriorizado (princípio da materialização do fato) e, mais que isso, esse mesmo fato deve afetar de forma significativa o bem jurídico protegido pela norma. Se o velho conceito de culpabilidade impede a responsabilidade penal sem um ato de vontade do agente (está proibido o direito penal do ânimo ou da intenção; o crime impossível, por força do art. 17 do CP, não tem nenhuma sanção), o novo princípio da ofensividade exige que dessa vontade exteriorizada nasça uma ofensa ao bem jurídico protegido (lesão ou perigo de lesão). A provecta concepção da culpabilidade é o limite subjetivo da responsabilidade penal. A ofensividade é o patamar mínimo para que isso aconteça. Se o fato for formalmente típico (adequado à letra da lei), mas não efetivamente ofensivo ao bem jurídico (lesão ou perigo de lesão), não haverá crime (TACRIM-SP, AC 1.031.723-5, rel. Márcio Bártoli). Ex.: O falso só é crime quando potencialmente lesivo ao bem jurídico; assim, uma falsificação grosseira afasta o delito (STJ, RHC 5.298, rel. Vicente Cernicchiaro, DJU 16.12.96, p. 50.953). Essa ofensa ao bem jurídico, ademais, deve ser significativa. Quando não se trata de uma ofensa significativa, aplica-se o princípio da insignificância (ou da bagatela), excluindo a tipicidade (material) do fato (STF, HC 84.412-SP). Tudo isso hoje pertente ao campo da tipicidade material. Em virtude do princípio da ofensividade está proibido no direito penal o perigo abstrato presumido (o perigo é presumido quando se dispensa a prova de sua existência, bastando a periculosidade definida pelo legislador em critérios abstratos e genéricos). No perigo abstrato presumido o legislador passa a cumprir papel processual, dispensando a acusação de provar a perigosidade (ou lesividade) real da conduta do agente. O legislador sai do campo da delimitação do âmbito do proibido para interferir na esfera probatória. Trata-se de uma atividade imprópria e inconstitucional, por violação ao princípio da presunção de inocência (que somente pode ser derrubada quando há prova da culpabilidade do agente). >>> Aprofundando. O limite máximo de atendimento do princípio da ofensividade é o perigo abstrato de perigosidade real (no delito de embriaguez ao volante, previsto no art. 306 5 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer; Fauzi Hassan Choukr; Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 4. ed. São Paulo: RT, 2014, p. 239-333; ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho penal: parte general. Buenos Aires: Ediar, 2001. do Código de Trânsito brasileiro, não basta que o condutor tenha ingerido bebida alcoólica ou outra substância, é indispensável que conduza o veículo “sob a influência” dessa substância, com alteração da capacidade psicomotora; essa influência assim como essa alteração somente pode ser comprovada com uma “direção anormal” (zigue-zague, passar no vermelho, entrar na contramão etc.). Esse é o perigo abstrato de perigosidade real, que distingue o delito de embriaguez ao volante da infração administrativa idêntica, prevista no art. 165 do CTB). Acolhendo-se o princípio da ofensividade (ou lesividade) tornam-se inconstitucionais (por violação aos princípios da presunção de inocência, proporcionalidade etc.) os crimes de perigo abstrato presumido. Vamos comparar a redação original do crime de embriaguez ao volante (art. 306 do CTB) com a redação atual (ou mesmo com a de 2008): >>> Aprofundando. Pela redação original não bastava que o motorista estivesse sob efeito do álcool, pois era necessário demonstrar que ele dirigia expondo a perigo os demais motoristas e eventuais transeuntes, ou mesmo o patrimônio alheio a dano, ainda que em caráter potencial. A partir de 2008 se estabeleceu uma presunção absoluta de que o motorista expunha a todos a risco pelo simples fato de dirigir tendo antes ingerido álcool (ainda que nada de anormal ficasse demonstrado quanto à sua forma de guiar o veículo). Na redação atual exige-se (a) não apenas a ingestão de álcool ou outra substância psicoativa que determine dependência, senão também (b) que o motorista esteja sob a “influência” dessa substância e (c) que esteja dirigindo com sua “capacidade psicomotora alterada”. Como se provam esses dois últimos requisitos: demonstrando-se no processo uma condução anormal (ziguezague, subir calçada, entrar na contramão, bater em um poste etc.). É isso que se chama “perigosidade real”. Sua comprovação derruba a presunção de inocência. Logo, o perigo abstrato de perigosidade real é o limite máximo permitido pelo princípio da ofensividade (que conflita totalmente com o perigo abstrato presumido). Contra o réu imputável nada pode ser presumido no direito penal. >>> Outro caso concreto: Para quem desconsidera o princípio da ofensividade, há crime no porte de arma de fogo quebrada ou desmuniciada (ou seja: não apta a funcionar). Essa concepção, entretanto, é inconstitucional, pois não se pode restringir direitos fundamentais básicos como a liberdade ou o patrimônio sem que seja para tutelar concretas ofensas a outros direitos fundamentais de igual importância. Entendendo que o porte de arma desmuniciada não constitui crime: STF, HC 81.057. Se a arma não está apta para uso, não coloca os bens jurídicos primariamente protegidos pela lei que incrimina o porte de arma ilegal. Em sentido contrário: STF, HC 117.206/RJ, 2ª Turma, rel. Min. Cármen Lúcia, j. 05.11.2013, DJe-228, divulg 19.11.2013, public 20.11.2013. Consta na ementa: “[...] 2. Porte ilegal de arma de fogo de uso permitido é crime de mera conduta e de perigo abstrato. O objeto jurídico tutelado não é a incolumidade física, mas a segurança pública e a paz social, sendo irrelevante estar a arma de fogo desmuniciada. 3. Ordem denegada”; STJ, AgRg no AREsp 367860/MG, 6ª Turma, rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 11.11.2014, DJe 01.12.2014. Consta na ementa: “É pacífico, no âmbito desta Corte Superior, como bem ressaltado pela Terceira Seção, nos autos do AgRg nos EAREsp n. 260.556/SC, o entendimento de que, para a configuração do tipo penal de porte ilegal de arma de fogo, é irrelevante o fato de a arma estar desmuniciada, visto se tratar de delito de mera conduta ou de perigo abstrato, cujo objeto jurídico imediato é a segurança jurídica.” A jurisprudência não está fazendo a distinção entre perigo abstrato presumido e perigo abstrato de perigosidade real, que é o patamar mínimo para o reconhecimento da constitucionalidade da norma penal. O princípio da ofensividade está atrelado à concepção dualista da norma penal, isto é, ela é (a) valorativa (existe para a proteção de um valor, que se transforma no bem jurídico protegido) e (b) imperativa (impõe uma determinada pauta de conduta a todos). Ela vale, ademais, frente a todas as pessoas (norma primária), assim como diante do juiz, que deve aplicar o castigo previsto quando o agente infringe o aspecto imperativo da norma penal. A norma penal primária, por seu turno, conta com duas dimensões: (a) preceito primário (âmbito do proibido) e (b) preceito secundário (âmbito da ameaça da pena). A norma penal existe para tutelar um bem jurídico relevante e sem ofensa a esse bem não há delito (tem-se aqui o que modernamente é denominado de tipicidade material). Daí se conclui que o crime exige, sempre: - desvalor da ação: a realização deuma conduta valorada negativamente e geradora de um risco proibido; - desvalor do resultado: afetação do bem jurídico que a norma pretende tutelar. Sem ambos os desvalores não há crime. É inconciliável com o direito penal da ofensividade a concepção do crime como mera desobediência à norma ou como mera violação de um dever. Impõe-se o devido ajuste do direito penal à Constituição. Posição do STF sobre o assunto: HC 81.057-SP (posse de arma sem munição não configura nenhum crime). No perigo abstrato presumido só existe o desvalor da ação (de periculosidade presumida pelo legislador). Falta- lhe o desvalor do resultado (e não existe crime sem o desvalor do resultado, que é a ofensa ao bem jurídico protegido). Admitir em direito penal o perigo abstrato presumido significa conceber o delito como mera desobediência da norma, tal como fizera o nazismo de Hitler, consoante a Escola de Kiel, chefiada por Dahn e Schaffestein. >>> Aprofundando. Sobre os crimes de perigo abstrato (como é o caso da posse de drogas para uso pessoal) o ministro Gilmar Mendes, no RE 635.659-SP, ponderou o seguinte: neles o legislador formula uma presunção (que muitos supões seja absoluta) de periculosidade de uma determinada conduta frente ao bem jurídico que se pretende proteger. O perigo, nesse sentido, “não é concreto, mas apenas abstrato. Não é necessário, portanto, que, no caso concreto, a lesão ou o perigo de lesão venham a se efetivar. O delito estará consumado com a mera conduta descrita na lei penal”. Concluiu o ministro que isso está autorizado pelo legislador, mas que sobre esses crimes os juízes devem promover criteriosos controles de constitucionalidade. O escapou ao ministro foi o seguinte: hoje distinguimos os crimes de perigo abstrato presumido dos crimes de perigo abstrato de perigosidade real (quando então deve-se comprovar a perigosidade efetiva da conduta, sem necessidade de apresentar uma vítima concreta; essa seria a interpretação correta do art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro, que prevê o crime de embriaguez ao volante; a conduta anormal – ziguezague, violação do sinal vermelho etc. – configura a perigosidade real exigida). Os delitos de perigo abstrato de perigosidade real seria o limite máximo do direito penal. Com isso refutamos o perigo abstrato presumido (pelo legislador). A atividade legislativa de produção de tipos de perigo abstrato deve, por isso, “ser objeto de rígida fiscalização a respeito de sua constitucionalidade”. O ministro Gilmar Mendes menciona em seu voto dois precedentes do STF: (a) o RE 583.523, com repercussão geral, de sua relatoria (j. 13.10.2013, Tribunal Pleno), em que declarada, por unanimidade, a inconstitucionalidade da criminalização da posse não justificada de instrumento de emprego usual na prática de furto (artigo 25, do Decreto-Lei n. 3.688/1941); (b) a ADI 3112/DF, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski (j. 2.5.2007, Tribunal Pleno), na qual se alegou a inconstitucionalidade de diversos dispositivos do Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2013), restou assentado, após juízo de ponderação com base no princípio da proporcionalidade, que a proibição de fiança para os delitos de "porte ilegal de arma de fogo de uso permitido" e de "disparo de arma de fogo" mostrava-se desarrazoada, por se tratar de crimes de mera conduta, que não se equiparam aos crimes que acarretam lesão ou ameaça de lesão à vida ou à propriedade”. 6) PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE Não há pena sem culpabilidade (nulla poena sine culpa). O princípio da culpabilidade, em suas origens, reunia em torno de si muitas ideias: (a) de que a responsabilidade penal é pessoal (não familiar, societária etc.); (b) de que ninguém pode ser responsabilizado pelo fato de outrem; (c) de que a responsabilidade penal é subjetiva (não objetiva); (d) de que ninguém pode ser responsabilizado salvo por uma conduta voluntária etc. Na atualidade, todas essas dimensões antigas (mas garantistas) da culpabilidade foram ganhando autonomia (como veremos nos itens seguintes). Da velha concepção da culpabilidade como limite da responsabilidade penal nasceram os princípios da responsabilidade pessoal e subjetiva. Seu conteúdo não foi desprezado. Novas roupagens para garantias antigas. Prepondera hoje (na ciência penal) não o conceito clássico de culpabilidade, sim, o dogmático, que a vê como fundamento da pena (não há pena sem culpabilidade) e puro juízo de reprovação do agente, que podia se motivar de acordo com a norma e comportar-se de forma distinta, conforme o direito. O poder de se motivar de acordo com a norma e agir de modo diverso, conforme o direito, constituem a essência atual do princípio da culpabilidade, que, por seu turno, expressa o fundamento e o limite da pena. Em suma, quando se fala no princípio da culpabilidade temos que prestar atenção nas suas duas dimensões: a clássica (antiga), que cataloga as primeiras ideias de limitação do poder punitivo estatal, e a nova (dogmática). Do ponto de vista dogmático, a velha concepção psicológica ou psicológico-normativa da culpabilidade (vínculo do agente com seu fato), que inseria o dolo ou a culpa em seu seio, foi abandonada. Dolo e culpa, a partir da teoria da ação finalista de Welzel, foram deslocados para o campo da tipicidade. Com isso esvaziou-se todo o conteúdo subjetivo da culpabilidade, que se transformou num conceito puramente normativo (juízo de valor ou de reprovação do agente do fato). Não pode ser penalmente responsabilizado quem: - não tinha capacidade de entender, em tese, o sentido das proibições (não tinha capacidade de se motivar de acordo com a norma); - não tinha capacidade de querer (inimputáveis); - não tinha acesso ao sentido da ilicitude concreta; - não podia comportar-se de forma distinta (conforme as circunstâncias de cada caso concreto). São requisitos (normativos) da culpabilidade: (a) imputabilidade; (b) a potencial consciência da ilicitude e (c) a exigibilidade de conduta diversa (conforme o direito). Cabe ao juiz examinar em cada caso concreto as oportunidades efetivas do agente de conhecer a norma proibida assim como de se comportar de forma diversa (conforme o direito). A pena deve ser dosada de acordo com a condições objetivas de cada um, seu grau de instrução, seus conhecimentos etc. Quanto mais vulnerável a pessoa, em tese, menos reprovável é sua conduta ligada a essa vulnerabilidade (Zaffaroni). O princípio da culpabilidade, em suma, dogmaticamente falando, significa: (a) que não há pena sem culpabilidade; e (b) que está proibida a responsabilidade penal de quem não podia se motivar de acordo com a norma e agir de modo diverso (inimputabilidade, erro de proibição etc.). Trata-se de princípio não expresso na Constituição, mas que encontra fundamento na dignidade humana. Todas as causas de exclusão da culpabilidade (inimputabilidade por loucura, erro de proibição, coação moral irresistível etc.), chamadas de eximentes ou dirimentes, afetam a possibilidade de se motivar de acordo com a norma ou de agir de modo diverso, conforme o Direito. Se a culpabilidade é juízo de reprovação realizado sobre o agente do fato, verifica-se que ela consiste na ligação entre a teoria do delito (crime) e a teoria da pena, ou seja, a culpabilidade é fundamento para aplicação de pena ao agente. Ela não pertence ao conceito de crime (de acordo com a corrente de pensamento que seguimos). Sua posição topográfica é a de fazer o elo entre o crime e a pena. Sem culpabilidade não existe pena. Ela se distingue da periculosidade, que é o fundamento da medida de segurança. Ao louco inimputável não se aplica pena por falta de culpabilidade. Ele, no entanto, sofre
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