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-. 
o SEGREDO DO INDlvfDUO 
o INDWfDUO E SUA MARCA 
o semimcmo de identidade individuaI acentua~se e difunde-se am-
plamente aa longo de rodo 0 século XIX. A historia do sistema de dena-
minaçao fornece um prlmeiro indicio. 0 processo de dispersâo dos pre-
nOffil:S iniciado no século XVlll prossegue; contradiz 0 movimemro de coo-
centraçao ddiberadamente encorajado pela Igreja da Reforma Catôlica, 
desejosa de valorizar 0 exe-mplo dos principais santos. Neste dc.minio, a 
Rtvoluçào naD constitui urna verdadeira ruptura; no maxima da desem-
penha 0 papel de acelerador. 
Aù longo de décadas, ciclos mais ou menos curtos, eSlabcleddos pe-
la moda, dao 0 ciuno do movirncnto de dispersao; esta aceleraçao traduz 
sUnultaneamemc a acentuada vomade de individualizac, a preocupaçâo 
cm sublinhar 0 cocte das geraçôes e 0 desejo de adaptar-sc à nova norma, 
sugerida pelas classes dominantes. Corn efeiro, a moda de cettos peeno-
mes propaga-se verticalmeme, da acÎstoccacÎa para 0 povo, da cidade para 
o campo. A precisao e complicaçao crescemes da hiecaequia social favoee-
cern a transmissao de tais modas por capilaridade. . 
Ao mesmo tempo, as regcas de tcansmissao familiar dos nomes pcc-
dem sua auroridade. A escoUla do prcuome do padrinho ou da madri-
nha, ou seja, rradicionalmeme, de um dos av6s, um rio-avô ou uma tia-
av6, a passagem do prenomc do pai ao filho primogênito ou do avô fale-
cido ao neto cecém-nascido constituem, cspecialmeme no campo, impe-
rativos cujo declinio certamcmc nao convém exageeac; nern poc isso dei-
xam de sec contcaeÎados pelas novas praticas em ascensâo. 0 cnfraqueci-
mento das regras de rransmissào famïliar traduz 0 definhar das virtudes 
hceedicirias e ao mesmo tempo vaticinadoeas do peenorne. A peeda da 
fé na exisrência de urn patrimônio de cararer cransmitido pela denomi-
naçao evidentemente trabalha a favoc do individualismo. 
Quando peedura a familia de estrutura complexa c a pobeeza da 
gama dc pecoornes agrava os riscos de confusao, 0 sisrema denomina-
A ORlGINAllDADE 
DA DENOMlNAÇÀO, OU 
"UM NOME PARA SI" 
11.0 rednir Of ClIJIOJ tU fotogrofo 
proJtn:.id3 em Jin·e, DiJdin p ermÙù. 
o "ulgrnizo;iio do retrolo. Com 
ete, 0 ur/Jo de 11I!;14 toma·fe mllù 
insùlewte; pouce queur figuror 
no ilbum de fomü;a. A pofe 
fotogriftU, oqu; elabormlfuima, 
en/fll1l0f proCl!dimenlos 
de sofùlicopo do apmenUlÇ40 
de si t1mfTJ(). (DiJdin·, Ûltes 
de visite: groupées. Pon!, Bibliolec.; 
NlICio"J.. ) 
• 
.il1 1l:\1'III)'IIiH 
difundem os pcqucnos cspclhos para qUt· as mu lhcrcs c moças pos· 
sam contemplar seus rostos; mas as aldcias ignoram os espclhos em 
que se vi:. a corpo inteiro. Entre os camponeses, a identidade corporal 
continua a ser lida nos olhos dos OUtrOS, a reveJar-se por meio da escuta 
de urna percepçao intcrior. "Coma viver em uro corpo que nao se viu", 
em seus menores detalhes?, indaga Véronique de Nahoum; eis aî uma 
questao que é preciso colocar para os bisloriadores da sociedade rural. 
Entao compreendem-se melbor as interdiçôes que pesaro, cm tal am-
biente, sobre 0 uso do espclho: apresenra-Io a um hebê pode deter 
seu crescimento; deixar um espelho descoheno depois de urna morte [raz 
azar. 
Nas classes abastadas, 0 codigo de boas maneiras proibira por muito 
tempo que uma moça se admire nua, mcsrno que seja através dos reflexos 
de sua banheira. Hâ pos especiais corn a mÏS5ào de [Urvar a âgua do ba-
nho, de forma a prevenir tal vergonha. 0 estîmulo erotico da imagem do 
corpo, exacerbado por semelhante proibiçâo, freqüenta esta sociedade que 
enche os bordéis de espelhos antes de pendurâ-Ios, tardiamente, na porta 
do armârio nupcial. 
No final do século, a difusâo citadina desre ambîguo m6ve! permite 
a organizaçâo de urna nova identidade cu l[U ral. No indiscreto espe!ho a 
beleza desenba para si uma nova silhueta. 0 espdho de corpo inteiro au-
torizara a afloramento da estética do esbelto e guiara 0 nutricionismo por 
novos rumos. 
Nao menos essencial é a difusao social do retrato, "funçao direra", 
observa Gisèle Freund, "do esforço da personalidade para afirmar-se e 
tomar consciência de si mesma' '. Adquirir e aflXar sua pr6pria imagem 
desarma a angustia; é demonstrar sua existência, registra! sua lembrança. 
Bem encenado, 0 re([ato atesta 0 sucesso; manifesta a posiçâo. Para 0 bur-
gu~s, familiarÏzado corn 0 papel de her6i e pioneiro, nao se trata mais, 
coma fora outrora para 0 aristocrata , de inscrever-se na cominuidade das 
geraçoes, mas de criar uma linhagem; e1e deve partanto inaugurar seu 
prestÎgio por meio de seu êxito pessoal. 0 século da comemoraçao é tam-
bém 0 da fundaçâo das genealogias comerciais, orgulhosamente ostenta-
das. Bem entendido, a moda do reuato panicipa do proccsso de imitaçao 
par capilaridade, precocemente di!tCernido por Gabriel Tarde; da satisfaz 
o desejo de igualdade. Nâo esqueçamos, por fim, 0 papd inovador da 
técnica que reproduz a desejo da imagem de si, convenida ao mesmo tem-
po cm mercaclori a e cm instrumento de poder. 
Tendo sido par longo periodo Oum apanâgio da arÎstocracÎa e da 
mais rica burguesia, 0 retrato se difunde c toma-se intimo no fina l 
do Antigo Regime; é cntao que uiunfa a miniatura; os pingcntes, os 
medalhoes, as cobcrturas de caixinhas de pO facial ostemam os rosros 
amad.os. Barbey d'Aurevilly enfalÎza corn quanta fervor as dites da 
Restauraçao retomam esta moda do retrato-j6ia. Para uma dama do bu-
o JEGIiED(l IXlINIJwfl>uO 423 
A DEMOCRATIUçAO 
DO RETRAIO 
o artiJ/a do final do $&1110, 
lio /ncinado e perlllrbado pela 
inlù,ûdade da mlilher Iozinha como 
al erpeuadouI aOI quail te dirige, 
de/eitt1-te cam uleJ tibioI 
dllplamente o/ertadoI. Opera-te 
enlia, POliro d POIlCO, a idenlificafào 
do individuo rom $tll cor po; 
Il dtfllI40 do elpe/ho de corpo inle/ra 
eJ/imlim 0 alumo do narcùùmo. 
(Djante do cspc:lho, 1890. Parù, 
Biblio/eu dal Artu Decoralivt1J.) 
" . 
426 iJAS17IJORIiS 
Dùdi n" e JeUJ dùcipulo! sabem 
exaltar igua/mente Il funfiia materna. 
o eJpaçamento regular do! fi/ho! 
permite /JO ar/ùfa deJenh4T lima 
piramide. &/a reproduz e alarga 
o ~y;Jume da cn"nolin:: ou da! 
(mquinhaJ, que têm a fllnfiio 
de disJimular e Iimuluneamente 
wgenr os ponontes quodtiJ dG 
geni/ora. (Colepo Sirot-Angel.) 
pouco a pouco a vida cotidiana. Milhôes de rcrratos fotograficos djfundi . 
dos e cuidadosamente inseridos cm albuns impôem normas gestuais que 
renovam a cena privada; ensinam a alhar corn nOVQS olhos para 0 corpo, 
especialmente para as maos. 0 retraw fotografico contribui para esta pro-
pedêutica da postura objedvada pela escola, ao mesmo tempo cm que 
difunde um nOVQ c6digo perceptivo. A arte de sec avô, assim como 0 ges-
to de reflexâo do pensador, obedecem a panic de agora a urna banal en-
cenaçao. 
o desejo de idealizac as aparências. 0 rep6dio ao feio, conforme os 
cânones da pÎntuca oficial, convergem igualmeme para 0 ordenamemo 
do retrato-foto. As rnultidôes da Exposiçao de 1855 mostram-se fascina-
das pela demonstraçao do retoque. Esta técnica difunde-se ap6s 1860; os 
traços do rasto se suavizam; manchas, vermeIhidôes, rugas. verrugas in-
convenientes desaparecem das faces lisas, aureoladas por urna artistÎca de-
licadeza. Até no campo, urna nova imagem da beJeza vern ameaçar as noc-
mas impostas pela cultura tradicional. 
o album de fotografias da familia delirnita a configuraçao da pa-
rentda e conforta a coesao do grupo, entao ameaçada pela evoluçâo eca-
nômica. A Ïrrupçâa do retrata no seia de vastas camadas da sociedade ma-
difica a vÎsâo das idades da vida, e portanco a sennmento do tempo. As 
fotos, comenta Susan Soncag, tambérn coostiruern memenlo mon'. Gca-
ças a elas, fica mais fâcil imaginar sua pr6pria desapariçao; 0 qu~ incita 
a lançar mais um olhar sobre os velhos e a reconsiderar a sone que se re-
serva a des. 
Esreio da rememoraçâo, a foto renovaa nostalgia. Pçla primeira vez, 
a maior parte da populaçao cern a possib~lidade de representar antepassa-
dos desaparecidos e parentes desconhecidos. A juvenrude dos ascenden-
teS corn quem sc convive no dia-a-dia torna-se perceptivel. Opera-se no 
mesmo processo uma mudança d,as referências da mem6ria familiar. De 
urna rnaneira geral, a possessào simb61ica de outra pessoa tende a canali-
zar os fluxos semimentais, valoriza a relaçâo visual em detrimemo da re-
laçào orgânica, modifica as condiçôes psicologica<> da ausência. A fota dos 
defuntos ateoua a anguscÎa de sua perda e concribui para desarmar 0 re-
morso causado por seu desaparecimento. 
o novo processo favorece por fim a vulgarizaçao e a comcmplaçâo 
da imagem da nudez. Tende a modificar 0 equilîbrio dos modos de si-
mulaçao erôrica, a difundir urn nova tempo do desejo; testemunha-o 0 
prestîgio do "nu 1900". 0 legislador percebeu-o bem depressa: desde 
1850. urna lei profbe a venda de foros obsceoas na via piiblica. Ap6s 1880, 
a foro de amador suprime 0 intermediario profissional, alivia 0 ritual da 
pose, abre de par em par a vida privada para a objetiva, a pa'nir de entao 
avida de imagens întimas. 
1 
1 
i 
Deotco do cemîtério manifesta-se a mesma vomade de perpetuar· 
se, de imprirnir sua marca. Philipe Ariès rclatou 0 tfiunfo da rumba indj· 
vidual e a emecgência do novo culto aos mortos no alvorecer do século 
XIX. Aqui interessa-nos apenas 0 epitâfio personalizado, procedimeoto 
também inteiramente nova para a grande maioria da populaçâo; inédito 
apelo à permanência da lembrança. A l-tisr6ria da vulgarizaçào neste dis-
curso funerario começa a esboçar-se corn nitidez. Durante a Monarquia 
de )ulbo, multiplicam-se os epitâfios enalrecendo os mérÎtos do esposo, 
do pai ou do cidadao. lnscreve-se sobre a pedra tumular 0 avanço da pn'-
tldey. Mais adiante, a cornplicaçao dos cemitérios construldos e a indus-
trializaçao dos rumulos tendem a apagar aos poucos rodo 0 discur~o ori, 
ginal e a subsrÎtuf·lo par estere6tipos que os medalhôes-fotografias in -
crustados na pedra irao individualizar corn felicidade. 
Diversos trabalhas mostram que esta evoluçâa operau-se segundo 
ritmos diferemes e nao deixou de provocar atritas . No cemitério de 
Asnières, obscura aldeia do Ain, 0 primeiro texto runebre 56 surgiu em 
() .ŒGRH)O l x) l ''Jlw fJ)/lO 
A PERENIDADE 
DA RECORDAÇ,l.O 
A fOlogTafia iflsm "d" '10 ilbum 
de fomf/it1 conuglle <InCOTIIT flO 
ùmbronça 0 soltdariulode entre 
427 
os irmlio!. Qut1l1do 0 j,ida os 
dispersar, 0 instant.itl~o Il'RoTeiecido 
servira de SUPOTte do unlimento. 
(ColeçiJo Siro/·Angel) 
;" .' "î-
428 BA.f7700REf 
Enqlla11lo, nos CU II/linos comtruIdos, 
a5 formulas estueoliplldas fende", 
Il 5ubJ/iluir os epitôjios 
p ersona/izados de outrora, fi fo ro no 
meda/h30 asugura Il ",unon"a do 
aparincia. &Ia prôficil efimerll 
cotlstitui lima dal mais sigllificalillas 
11Iamfosltlflus do deujo de garantir 
a Mrenidade da maf"Ca. 
1847. Em 1856, a villva de um dignatario, mUlto malvisto por seus conci-
dadâos, manda cereac corn urna balauslrada 0 monumento de seu espo-
50. 0 gesto provoca um movimnno de hoslilidade; 0 proprio padre insurge-
sc ao constatar que 0 marmore ira conservar a Iembrança daquele simples 
cristâo, quando é Impossfvd saber onde jaz exatamente seu piedoso cria-
dor. Nas pequenas par6quias rurais, a pedra tumular, 0 epitw.o por mui. 
tO tempo continuarào esbarrwdo no sentimenw de igualdade. Em 1840, 
Eugénie de Guéein vê-se obrigado a guardar a pomba branca que, no cen-
tro do cemitério de Andillac., celebra a mem6ria de seu irmao Maurice. 
o surgimento do discurso funecario nestas miniisculas par6quias 
é acompanhado pela aseensâo da dignidade post mortem: 0 comerciame, 
aqui, uma vez [alecido, da-se ares. Inversamente, esta nova permanên-
cia do traço favorece a manutençào, e até a ampliaçâo, do boato desa-
bonador. 
Um fio condutor vincula corn efeito todos os procedimentos ·que 
tcndem a reforçar 0 sentimento do eu: a tentaçâo de forjar her6is, a 
hipencofia da vaidade tranqüilizadora. A époea foenece muiras OUtros 
sinais neste senrido, conforme se verifica a ascenso da meritocracia: a 
împonância atribuîda ao ouadro de hanca, ao ritual das distribuiçôcs 
de prémios, ao dip loma que sc pendu ra na pan.:dc do sal ào uu da sala 
comum; ou ainda 0 prestigio da decora ... ·ao, () tom hagio!;rafiw da rubrica 
necroJ6gica. Para muitos humildes, sera a nova emoçào de k r scu nome 
em uma coluna de jornaJ. Qualqucr Ulll pode, ago ra, scc lelllado a ado-
tar a pose de her6i; ainda que scja apenas no seio do circulo fami liar. on-
de esta nova pretensâo modifica 0 ambienre. Alé ° pr6prio gcSlO crimi-
nosa traduz lai aspiraçâo. lncitado por leituras sobre fundadores, no esti-
10 de Plutarco, 0 jovem parricida de Aunay-sur-Odon escreve, coma se 
esuvesse orgulhoso, na primeira linha de suas assombrosas mem6ri as: "Eu, 
Pierce Rivière, tendo esuangulado minha mae, minha irmà e mtu iemâo ... ". 
o eeajustamento do indivîduo impôe-se corn maioe razâo às autoeÎ -
dades, que, no inteeioe do espaço publico, passam pouco a pouco do ano-
nimato paea eelaçèies de inteeconhecimcnto. A multidao cada vez mais 
densa e silenciosa que cobee a rua perde sua teatralidade; dissolve-sc cm 
um ageegado de pessoas corn a pensamento absorvido poc seus interesses 
privados. Compreende-se que a partie dar se purifiquem os processos de 
idemificaçâo e 0 controle social torne-se peeciso. 
Até 0 uiunfo da Repiiblica (1876-1879), as técnicas de aj ustamento 
sâo ainda balbuciames; sua peecariedade ftxa os limites desta visâo pa-
n6ptica que se auibui, sem d6vid':l corn algum exagero, aos delemores 
do poder. 0 Estado civil, secularizado desde 1792, codificado a 28 Plu-
vioso do ano Ill, os ra:en..."CaIIlentos da populaçào e as listas nominais cs-
tabdecidas a cada cinco anos, as listas cleitorais, censiciirias aré 18·18, es-
tc:ndidas ao conjunto da populaçao masculina em março de 1848, c: a se-
guir em seeembro de 1851, constÎtuem as refcrências essenciais do sistema. 
Certas categorias sac adc:mais objeto de procedimemos especiais: os ope-
r~iri os, teoricamente su je je os à caeteira desde 0 Consulado, can eira que 
des pr6prios passarâo a ponar desde a lei de 22 de junha de 1854, para 
grande prejufzo dos patc5es; os militaees; os domésticos, dos quais se exi-
ge a apresemaçâo de certîficados emÎ tidos pelos empregadorcs prc:ceden-
tes; as mulheres da vida registradas pela Chefatura de Pollcia ou pela ad-
ministcaçao municipal; as crianças abandonadas às quais sc de se je aui-
buir um estado civil cuma (Ueela; os viajantes e, mais especialmenrc, os 
elementos Itinerantes e nômadcs, que devem providenciar passapones antes 
de efetuar suas andanças. 
o escudo dos migrantes de limoges, assim como 0 dos viajames que 
atravessam 0 departamenro de Indre, rnosua claramente que a extre-
mada miniicia das exigências é acompanhada, neSfe panicular como 
em muifOs ourros, poe uro grande laxismo, para nao d izer pd a mais 
completa anarqu ia. 0 n:conhecimento interpessoal e a mcm6ri a visual 
continuarâo por muito taupo a ordenar as listas de migrantes c: de 
amoricladcs. Enuetanto, junto corn os progressas da alfabc ti zaçâo, 0 
eecrudescimento de todas estas exigências admin islCativas conu ibui para 
dcsenvolver a posse, 0 uso e a decodificaçào dos "papéis" . Nova fami -
liaridade que, avivada pelo a.scenso da peatica do COntralO no seio da 
o !iI:X;J:E/ l(j : >n INI)lV!IJUO 429 
OS LIMITES 
DO PAN6PTICO 
432 HA.Î1J/lO/'J:.\ 
1fao C01ll0 0 menOI dOlado drJJ 
membrO! de In1Ja fomfHa de ",édicol 
preJfigioJOI, em cOll frdparJida 
Adolphe Berl/Jlon encol//rar; 
a n%riedode IIOJ esen/6rios do 
ChefolurJ de Policia. ToI eomo por,1 
nonos an/rop6logos rio filial do 
século - Cesare LDtnbroJO 011 
PoIllline 1imlovJl.:uio, par exemplo -
o ombienledos en"minOJOJ forma JeU 
labora/6rio. (PariJ. Milieu tU Policil1. ) 
MEDIDAS 6SSEAS EM 
BUSCA DA MARCA 
&1' 'OC' .,. "",,", .. ~ __ . "," • • I ~ . 
' .,I;~- - _~ ! :.~___ , IIW '~' I - - • t ...,.. ___ .. -- - -,.'''·--Il .... - I~··_ ·· ' =\ ···~I-----
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• 1 
1 
e. mais tarde, a panir de 1850, 0 arquivo judiciârio, mantido pela canô-
rio dos tribunaîs. 
No final do século 0 duplo problema estâ resolvido; novas técnicas 
permitem que se atribua a cada indivîduo urna idenridade invariâvel e 
facilmente passlvel de demonS(raçâo. 0 sistema de reconhecimento toma 
imposslvel dal por diante a substituiçâv de quem quer que seja. mesmo 
entre gêmcos; eJimina a fa lsificaçao do estado civil. Em urna palavra, in-
terd ita a metamorfose. A prôpria bigamia toma-se urna aventura, mais 
ainda quando 0 legislador restabcleccu 0 div6rcio. Em contraparcida, aca-
baram os temores devidos à prova impossivel ; as dificuldades do coronel 
Chaben penencem agora ao passado. 
Em 1876 a polîcia começa a empregar a fotografia; no final da déca-
da. a Chefatura jâ possui 60 mi l foros. É verdade que estas, tomadas de 
todos os ângulos e guardadas em dcsordem, têm pouqufssima valia; de 
quaJquet rnaneira, nâo permîtem que se desc ubra:t verdadeÎra identida-
de de um fa:sario. Tudo mu da a partir de 1882, corn 0 emprego da iden-
tificaçâo an tropométrica estahelecida por Alphonse Benillon. No momenro 
em que a aprovaçâo da lei de 27 de maio de 1885 sobre a reincidência 
tornara mais imperiosa a nccessidade da identificaçâo criminal , de prova 
que cinco ou seis medidas 6sseas efetuadas corn rigor e conforme um pro-
cedimemo fixo sao 0 baslanre para marcar uro indivlduo. 
" , 
o 5l:."GRl:."DO DO /ND/v1oua 433 
Ante! que le pratique 0 regùfro 
de impreJJôeJ digi/où, 0 ngor 
tkJ medidas 6sJeoJ indicada! por 
Bertillon permite a iden/ifieaç4Q 
jlUlieil1/.. 0 a/conce da ducoberto 
wlrllpaJJt"'; aos POUCOJ a elftra 
do crime e d.:J delinqüéncUt: no ronjunlo 
do corpo Jocia/a metomorfou 
em bfelle Je lomoril imposs1vel. 
434 RI1mDORfS 
Em selembro de 1894 Il França 
eSla aterroriuda par aten/ados 
anarquu/as. Desta tJez a bUSCil 
dos indil/ruuas n40 Je bau;" flpenfls 
nll ~mf40. Ji folOgrafia ths sUJpeùos, 
difundida nas jronuiraJ, é IIm 
obJt.uu/o il IIJurp/lftlo da iden/ùiade. 
(Album photognphiqul:: des 
individus qui doivent êUI:: l'objl::l 
d'uol:: su['V(:il12ncl:: spéciale 2UX 
frontières. Paru, MIiJeIi da poIrcw.) 
A btfftdlof/agem, (ul milla ~ao dt: Uilla vast Î~ima caminhada, baliza -
da pelus trabalhos de Barrud sobre 0 sangue e 0 oda!" individuais, pelas 
invc:stigaçoes de Ambroise Tardieu , dt: Quételet e dos membros da Socic-
dade de t\lllropologia, reinara sem ri vais :né 0 inkio do séçu lv xx. Nes-
te intcrvalo, é aperfeiçoada por seu inventor. que decidc acrescentar os 
si nais parr iculares à idcntificaçao ddin ida pelas medidas ôsseas, ajuntan-
do mais tarde a fotografia ao bolctim amropomécrico. 
Na vcrdade, a bertillonagcm naD é mais que urna Clapa. Oesde a 
inicio do século XX triunfa a idcntificaçâo pelas marcas corporais e mais 
precisamente pelas împre:ssôt:s digitais. Esta vdha descobena chinesa, uti-
lizada cm Be:ngala pela adminisnaçâo inglc:sa, é apropriada por Galton 
que sahe:ra convenccr Alphonse Bertillon a integrar 0 nova dado ao OOle-
{im antropométrico. 
Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, os procedimcl1tos destina· 
dos aos ddinqüentes e crimÎnosos ultrapassam 0 quadro penitenciario. 
A lei de 16 de julho de 1912 os impôe tambérn aos nômades e itineran-
tes, inclusive comerciante:s e industriais do exterior, a posse de urna "car-
ta de identidadc antropornétrÎca' '. Nda figuram 0 nome, sobrenome. data 
e local de nascimento, ftliaçâo, descriçâo. Împressôes digitais e a foto do 
individuo; reconheceremos nela a antepassada de nossa carteira de iden-
tidade. 
A nova amea·ça que tais procedimentos ruem pesar sobre 0 segredo 
da vida privada começ:a a inquietar. Qualldo a questâo alcança seu apo· 
geu, a am~opometria desperra a ira dos dreyfusianos e alime:ma um vivo 
debate. Entretanto, e revela-se aqui a mesma ansiedade, 0 afluxo de queixas 
obriga 0 prefeito Lépine a deixar de exigir das proprierarias de bordéis 
. a fotografia das mulheres que freqüemam seus estabdecimemos. Prova-
veImente seria possivel distinguir muÎtos outras sinais desra nova suscetÎ-
bilidadc; Philipe Boutry mosrra também, desde 1860. cm vârias par6quias 
do Ain , uma intolerância até entâo desconhecida em reIaçâo a qualquer 
violaçâo de atos pessoais por parte dos p regadores. Os pastores, apegados 
à batida imagem da " e!oqüente profundcza dos abusos individuais", sâo 
aos poucos obrigados a levar em conta 0 nova espaço privado da vida mo-
ral baseada na autonomia da pessoa. 
É f:icil observ-.d.r que , em todas as esferas menci0nadas, urna mudan· 
ça se esboça em torno de 1860 p::.ra ce!inir-se par volta de 1880. Em resu-
ma, opera-se urna transformaçâo no momento do triunfo da Republica. 
o movimento de individuaIizaçâo que anima 0 século culmina, ao passa 
que 0 neokamianismo inspira os dirigemes c que: Pasteur impôe a exis· 
tênt.: ia do micr6bio. pcnurbador do organismo; este modelo biolôgico, apli. 
cado ao campo social, estabelccc que 0 controle do individuo é essencial 
à so brevivênCla do grupo. 
Ao mesmo tempo. 0 temor da violaçâo do cu e se u segrcdo en-
gendra 0 famascÎco dêsejo de decifnl.r a personalidade que sc oculta e 
de Înt romcter·se na iulimidade dos outras; muda preocupaçâo que cm· 
436 BAmOORES 
A AlMA E 
o CORPO 
basa 0 csnobismo do incognilO, .ui\'a a lcmaçao da cana anônima, comri-
bui para 0 prcstigio do voycurismo do fim -dc-sécu lo, cxplica a cmcrgên-
cia da pcrsonagcm do detctivc em busca de pistas. Mais ainda que Conan 
Doyle, é G aslOO Leroux que restcmunha a nova sensibil idade e que raz 
nao da identificaçào, mas da propri a identidade do culpado, e de seu dis-
farce, a essência da açâo policiaJ. 
AS AMEAÇAS DO CORPO 
È iDUtil temar compreender 0 semimemo de imimidade que orien-
ta a vida privada no sécuJo XIX sem uma reflexâo preliminar sobre esta 
permanente dicotomia entre alma e corpo que gera as atitudes de entâo. 
As modalidades desta espantosa partilha variarn evidentemente confor-
me a extraçâo social, a nlvd cultural e 0 grau de fervor rdigioso. Por ou-
tra lado, urna sedimemaçào de ceenças nos subsrratos pcofuudos de cada 
indivlduo assim coma urna incessante ciccuJaçao das modas e compona-
mentos entre as diferentes camadas da populaçao semeiam confusâo mes-
mo em meio às mais rigorosas anâlises. Assim, é cooveniente nâo perder 
de vista 0 imeincado dos sistemas de repeesemaçâo que nos, por razôcs 
didâticas, Îremos diferenciae aetificialmente. 
Muitos ernologos, enue os quais Françoise I.oux, evideociaram a coc-
rência e 0 dommio do corpo no seio da sociedade tradiciooaJ. Muito 
curiosamente, esta parece ignorar a dicotomia à qual aludi. Os peovér-
bios coletados por folcloristas cm fins do século XIX reflerem uma visâo 
laicizada da existência, que privilegia 0 oegânico. Ddineiam urna moral 
da moderaçâo, constatacn que 0 repiidio à posiçâo mediana, 0 respeito 
ao jUStO meio favorecem a sailde e buscam, aqui, um bem-estar mais refi-
nado que 0 prazer. Esta ética brota de um campesinato laborioso, que 
vaIociza os fcuros do esforço e desconfia dos pobres, fermemadores de vio-
lências e desordens. Mentalidade impeegnada de pessimismo e resigna-
çao, que mantém uma obedieme escuta das mensagens do corpo, basea-
da na convicçâo de que este encontra-se estreitamente ligado à ordem cos-
mica, vegetal e animal, por toda uma série de correspondências simbOlicas. 
A atençâo dcdicada às fases da lua,indicadoe cdeste do cielo feminino, 
a ansiosa auscultaçao do discurso do galinheiro quando se apresenta 0 pe-
cigo da mone, a mediçâo do crescÎmemo da ârvore plamada 00 dia do 
nascimento do filho, as proibiçôes que ceccam a gestào dos dejews do or-
ganismo, placenta, fragmentos de uoh15 ou dente caldo, atestam 0 carâ-
ter obsessivo desus ceenças aecaicas. Elas sao acompanhadas poe urna oor-
ma higiênica que admite 0 born desempenho das funçoes nattirais, talera 
o arcoto, 0 peido, 0 espirco, 0 suor e os sioais do desejo, assume sem red a-
mar os estigmas da decadência. É um sistema de opinioes e atitudes que 
define uma frente de resÎstência à difusâo da higiene acadêmica e que 
se insinua. em pérfidos comra-ataques, até no imerioe bur~uês, graças 
à cumplicidade das amas ou criadas. Nâo ha motivo para espaoto quan-
do se eccncontram, parucularmente imeriorizadas pela dite, a1gumas de:stas 
normas que af}oram a parti r das profuodezas sociais, cm peneita harmo-
nia corn 0 higienismo cotidiano de médicos bonachôes, panidârios. tam-
bém d es, da posiçâo mediana. 
No polo oposto às crenças antigas inscreve-se a permanência e, em 
ccnas esferas, a tendência a acentuae a mensagem cristà baseada no ama-
gonismo entre a alma e 0 corpo. Desdenhando os limites dogmaticos do 
desprezo pela carne, desenhados pelo mistério da Encaroaçao, 0 mistério 
da Eucaristia e a fé na Ressurreiçâo, uma visao pessimista, refinada pdos 
Padees da Igreja, notadameme Tertuliano, e retomada tanto por Bossuet 
como pelos jansenistas, reduz os despojos monais, fururo pasto dos ver-
mes, a urna provisoria peisâo. 0 corpo, que 0 padre de Aes nuoca chama 
senâo de "0 cadâver", compromete a alma corn os instintos e impede-a 
de dcvar-se rumo à parria celeste. Assim se jusrifica a guerra permanente 
movida contra os anseios, os impulsos orgânicos; se a alma nao modera 
o corpo, este, tal coma 0 deagao, hâ de Ievamar-se para avassalâ-Ia. Nâo 
existe compeomisso pOSSIVel. Este desdobramemo, quase esquizofrênico, 
embasa os componamemos ascéticos_ 
Alimentadas pelo crescÏmemo dos efetivos congregacionistas, pda 
mulciplicaçao dos pensionaws edigiosos e das oedens terceiras, tais prao-
cas, oeiundas de uro passado longlnquo, nâo cessam de cvoluir ao longo 
do 5&ulo XIX. Até a alvorada do Segundo Império sobrevive um rude 
ascetismo, companheiro do rigorismo que persiste. Esta violência 
harmoniza-se corn a imagem do Cristo no G6lgota, e piedosos gravadores 
se comprazem eotào em fazer suas feeidas venerem sangue cm terriveis 
jacos_ A partir de meados do século declinam as monÛtcaçôes, pouco ade-
quadas à feminizaçao da prâtica. A Igreja, que investe na mulher para 
levar a born termo sua reconquista, deve levar cm conta 0 discueso médi-
co que sublinha à saciedade a fragilidade das filhas de Maria. Mil peque-
nas monificaçôes, mais adaptadas ao !Îtmo dos tempos femininos. subs-
tituem 0 sangue e a dor. lnterioriza-se assim a eenuncia a si mesmo no 
cotidiano e inaugura-se a comabilidade dos pequenos sacrificios. 
Os disct'rsDS acadêmicos revdam-se mais Înovadores. Em fins do sé-
cula XVIII, tem um pape! decisivo neste dominio a difusao na França dos 
esccitos de Georg Stahl e sua influência sobre 0 pensameDto médico. Quer 
se prodacnem partidârios do vitalismo montpe!lieriano, do anicnismo ou 
do organicismo, os médicos da épata, cm sua maiocia, noradamente aque-
les que, tal como Roussel, daboraram 0 discurso sobre a especificidade 
do sexo feminino, al inham-se corn 0 dogma da supeemacia da alma sobre 
o corpo. A alma, guia, detemora do segredo da vocaçao do corpo, dirige 
sua efetivaçâo. Nâo sao portamo as formas da anatomia, Dem os traços 
especificos da fisiologia da mulher que deteeminam seu carater e justifi-
cam sua missao maternai; é a alma que modela simultaneacnente 0 corpo 
o SEGREDO DO INDlvfouo 43ï 
,~ .,,:;1:: :~ ... 
• . . 
440 BM11I>O /ŒS 
o LEITO 
E 0 QUAR10 
INDIVIDUA I$ 
progressiva identificaçào do sujciro corn 0 corpo; 0 que implica atenua-
mente do desprezo pelo orgânico, pela animaJidade. Pouco a pouco instaJa-
se a so!idào dos apetiles, semidos como sendo os da pr6pria pessoa, e nào 
mais coma expressao das exigências de um Outro, a um 50 temp9 amea-
çador e fascinante. 0 anacronismo psicol6gico espera 0 historiador desa-
tento a esta mutaçào do estatUlO do desejo. 
o século XIX assistiu à continuidade do proccsso dc desamomoa-
mcnto dos corpos, inaugurado nos espaços colcuvos por volta do final do 
Antigo Regime. 0 lei ta individuaJ , velha norma dos convemos, tomou-
se simples precauçao sanÎtaria, especialmente nos hospitais. De fata, co~ 
mo bem demonstrou Olivier Faure, a peop6sito do exemplo lionés, a pri-
vatizaçào do espaço reservado ao enfe rmo demorara a trjunfar nestes esta-
beleeimentos, pois contrariava os ritOS da sociabiJidade poputar que se 
reconstituia espontaneamente. 0 essencial no que diz respeito ao nosso 
objetivo é sobretudo a transferência desta preocupaçào p"ara a espaço pri-
vado; um processo acele rado pela epidemia de c6lera de 1832, que enfa-
tizou tardiamente os males do amonroamento e da promiscuidade rei~ 
nantes no seio da habj[açào popuJar. 
Estimulados pelas descobertas de Lavoisier e pelo novo emendîmen-
ta do mecanismo da respiraçâo, pe rsuadidos dos benef1cios de urna resee-
va de oxigênio, os médicos luram durante todo 0 século contra 0 Idto co-
JetÎvo e a promiscuidade. Pouco a pouco serao ouvidos. Seria impossivel 
superestimar as conseqüências de seu dif1cil triù.nfo. A nova solidâo do 
leiro individual conforra 0 sentimemo da pessoa, favarece sua autonomia; 
facilita 0 desabrochar do mon610go imerior; as modalidadç:s da prece, as 
formas do devaneio, as condiçôes do adorf!lecer e do despenar, 0 desen-
volvimemo do sonho, e do pesadelo, rudo é transtornado. Ao passo que 
se atenua 0 ealor da fraternidade e se desenvolve na criança a exigência 
da boneca ou da confortadora mao .materna. Os médicos 0 deploram: 0 
p:-azer solitario Bea favorecido. ' 
No seio da pequena burguesia, pelo menos, avança 0 quarto indivi-
dual, objeto da solicirude dos higienistas que ditam os volumes, aconse-
lharn a e1iminaçâo das domésticas e da coupa de cama suja. 0 quarto de 
uma moça, transfonnado em templo de sua vida privada, enche-sc de sUn-
bolos; confunde-se corn a personal idade da ocupante, prova sua autono-
mia. 0 pcqueno oratorio no ângulo, a gaiola do passarinho, 0 vasa das 
flo res, 0 pape! de parede que imita 0 tecido de Jouy, a escrivaninha que 
encerra 0 â1bum e a coleçao de canas intimas. talvez a bibli9teca. comr.i-
buem para definir a imagem de Césarine Biroueau ou Henriette .Gérard, 
e mais ainda a de Eugénie de Guérin, cujo d iatio emoa um interminavel 
hino ao prazer de ter seu "quarti nho" , igualmeme celebrado por Caro}j~ 
ne Brame. 
'1 o SliCIŒ/)O IJ(J n·mwfDllo 44/ 
" 
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Il ' 
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V .',) ~. 1 
No lj1lflrlO JI1/ur.:uIo de objelos, 
simb%s de seUl prdZeres, elta 
burgUellI de/eila·Je cam sua friorenta 
solirJâo. Ner/Il épocl1, Il lIedaçiio 
dos/ocuù de infimidade cons/ilui pllnl 
muitos umo I1grl1divel nOl/idade. 
(Pllni, Bibliofeca daI Arlel 
DeCQrativuJ. ) 
illesmo TIll Salpémere, este inJerno 
das mu/huer, In-unft o /ûlo 
indi"ùlllai e eJbofu-se Il pril/l1tizl1flJo 
do t:Jpayo. (Albut Morand, 
la Salpêuièr~ Paris, MUIeu da 
ÂJsutêncùl Nb/ica.) 
442 H.H11IXlh'/ .. \ 
il HJGIENE 
INTIMA 
Aqui Il lame/(: $e,."e de pretexto 
pl1r.z" exalla;40 do cor po dll mu/hu, 
CM};' perftira depi/Ilfdo i apena; 
w m'enciontJ/. 0 hùron;'dor 
I1mericano Peter G"J" ;ub/inM com 
11lz00 0 pape! de$empenhado pela 
contemplo{iJo de obr.:; de orte na 
educa{iio dO$ Jenfidol d" jUlienlude 
bUfEuua. (Benj.zmitt-Eugène Fiche/' 
Mulh~t n:i. tO:i.kt~, 1891. PanJ, 
Bibliotua Nac1onal.) 
A idîlica mansarda da cosrureirinha, cujo bcm-componadoambienrc 
é atestado de vinude, constirui 0 avatar plebeu do modelo. A obrigato-
riedadc de " um quarto para cada um" impoe-se mesmo nas casas de to-
lcrâncÎa fi scal izadas pela polîcia de costumes. No campo, a intimidade 
de um espaço conjugal cxplicita-se pouco a pouco corn a instalaçao de 
coninas. de biombos, até corn a construçao de sumarios tabiques, Quan-
do 0 dono da casa decide passa-la a alguém, desenvolvc-sc: 0 uso de reservar-
se um quano no conuato de doaçâo; de garante assÎm a privacizaçlio do 
espaço cm que deve passar 0 resto de sua existência. 
Paraldameme, a w:sceme intimidade dos locais de defccaçao favo-
rece a busca do mon610go Îmerior, Nos im6veis populaces, a passe da chave 
das lauinas inaugura esta familiaridade do excremento, que constitui um 
d emenro nlio negligenciavd do avanço da pn'tlocy, Quando, em torno de 
1900, difunde-se 0 sanitârio, e mais tarde 0 banhciro, dotado de um soli-
do ferrolho. 0 corpo nu pode começar a experimemar sua mobilidade a 
salvo de qualquer intromissao. Este espaço, dessensibilizado ao maximo, 
transforma-se no templo cleon ond decent do inventario e da contempla-
çào de si pr6prio. 
Os progressos da higieoe intima efe:tivamc:nte revolucionam a vida 
privada e as condiçoes da funçao. MGltiplos fatores contribuem, desde os 
prim6rdios do s&ulo, para aceoroac as antigas cxigências de limpeza, que 
germinaram no interior do espaço dos convemos, Tanta a descoberta dos 
mecaoismos da transpiraçlio como 0 grande sucesso da teoria infecciorus-
ta levam a se acenruar os perigos da obstruçao dos paros pela sujeÎra, par. 
radora de miasmas. Um pouco mais tarde, 0 fonaJecimento do conceito 
de "depuraçao" impOe uma vigilante higiene dos' 'emunctorios" do or-
ganismo. A ceconhecida influêncÎa do fisico sobre a moral valoriza e re-
comenda 0 limpo, Navas cxigências senstveÎs rejuvenescem a civilidade; 
a acentuada delicadeza das dites, 0 desejo de manter à distância 0 dejeto 
orgânico, que lembra a animalidade, 0 pecado, a morte. em resumo, os 
cuidados de purificaçào aceleram 0 progresso. Este é cstimuJado igua!-
mente pela vantade de distinguir-se do imundo zé-povinho. Tudo con· 
tribui para estabdecer uro novo esraroto do desejo sexual e da repulsâo, 
que por seu turno aviva 0 impulso das p'"'iticas higiênicas. 
Porém, cm contrapanida, muitaS crenças incitam à prudência . A 
agua, cujos efeitos sobre 0 115ico e a moraJ sào superes[Îmados, reclama 
p recauçôes. Normas exrremamente estritas regulam a pcitica do banho 
conforme 0 sexo. a idade, 0 temperamento e a profissào. A preocupaçâo 
de evÎtar a languidez, a complacência , 0 olhar para si , na verdade a mas-
rurbaçào. limita a extensào de tais praricas. A rdaçao na época firmemente 
estabelec ida entre âgua e estcrilidade dificuha 0 avanço da higiene inti-
ma da mulher. 
Entretamo, 0 progressa esgueira.se aos poucos, das classes supe-
riores para a pequena burguesia. Os empregados domésticos contribuem , 
o SfO::ElJU DO JNDWfDl'O 44., 
446 IMsnDORES 
Ir. AMEAÇA 
DO DESE)O 
]impamentc sua sapa; no cnt'anro, na casa da vizinha, Fifille Migneboeuf, 
ordena-se que a cfiança enxugue 0 sanguc mcnstrual espalhado pelas la-
jes da sala comum. A pr6pria t'scola rc.:publicana, taO exallada por sua açâo 
higiênica e pela rimai das visitas de limpcza, nâo rem ambiçôes; para 
convencec-se basta celer atemamente Le tour de France par deux enfonls 
(A volta à França por dois meninas]. A batalha dccisiva efava-se cm torno 
do usa do pente e do aprendizado da disciplina da defecaçâo. 0 garora 
deve deixar de pemear-se corn os dcdos; ca menina, aprendcr a manter 
limpa sua calcinha. 
Por volta do inkio do século xx, contudo, urna virada se deJineia: 
o progressa, limicado, do equipamcmo e do mobiliârio sanitiirios, a 10-
f1uência da clucha das sociedades esponivas, os esforços da nova adminis-
traçao da higiene publica, a crescente utilizaçao dos hotéis de turismo e 
dos bordéis de luxo ajudam a difundir a bacia e 0 jarro d'ligua; mas sera 
preciso esperar pelo period'J entreguerras para que se difunda 0 ferro es-
maltado; e pelos anos 50, a banalizaçâo da ducha e do banheiro, para 
que a revoluçâo higiénica se opere em prafundidade. 
É no seio do espaço privado que 0 individuo se prepara para afron-
tar 0 olhar dos outras; ali configura-se sua apresentaçâo, em funçâo das' 
imagens sociais do corpo. Também neste domÎnio verrncou-se uma revo-
luçao. 0 século XIX' elabora e em seguida impôe uma esrratégia da apa-
rência, um sÎstema de convençôes e ritas precisos que nao visam senao 
a esfera privada. Depois opera-se 0 lento enfraquecimento desra recente 
especificidade, corn base na distinçâo hipertrofiada entre 0 dentro e 0 fo-
ra. Assim, ao cabo de décadas, a camisola de dormir deixa aos poucos 
de ser toJerada fora do quarto. Tornou-se 0 simbolo de uma incimidade 
erôtica e a menor alusâo a ela, mesmo implîcita, seria ja entao inconve-
niente; mais ainda uma vez que a camÎsûla conjugal tende a distinguir-se 
da simplicidade juvenil. Toda uma gama de déshabillés compôe 0 guarda-
roupa matinal, no quai uma mulher decorosa nao sera vista par estranho 
algum, a menos que seja scu amame; uma exigência de modésria espica-
çada pelo progressivo refinamemo destas vestes e pela visibilidade cada 
vez maior das roupas intimas. 0 Mas enldo niio passeies Ioda nua de fey-
deau nao deve sec t"''llado ao pé da leua. D" mesma maneira, em sua 
casa uma mulher circula corn os cabelos solcos; no espaço pûblico, urn 
tai penteado designaria a arrumadeira ... ou a prostituta . Tais normas en-
tram no sistema global de freios que contribui simultaneamente para li-
mitar 0 acesso da mulher à cena pûblica e para dar so1enidade ao seu apa-
recimento. A distÎnçao emre 0 dentro e a fora rambém nao poupa a po-
pulaçao masculina; a vestimenra adotada pelo parisiense em sua casa nao 
Ihe permitiria afromar a rua. 
Outra fato histôrÎco renova entao as condutas privadas: 0 inaudi -
te sucesso da lingerie. A extrema sofisricaçao da vestimema invisivel 
valoriz:l a n1ldez, dando-lhe maior profundidade. Jamais, observa Phi-
l 
1 
lippe Perror, 0 corpo feminino foi tao cscondido como cnuc 1830 c 
1914. Ap6s a combioaçâo, 0 calçao propaga-se irresistivehnente. Usado 
primeiro pela menina, vence sua causa junte às mulhcres adultas corn 
o triunfo da crinolina, 'ou seja, no iolcio do Segundo Império. Em 1880, 
seu uso é imperativo, ao menos na burguesia . Entretanto, 0 corpete re-
sisre às violentas ofensivas empreendidas contra de pelo corpo médi-
co. A amarraçao "à preguiçosa" permire seu uso autônomo; deixa que 
a mulher se arrume sozinha, 6 que incremema sua margem de manobra 
amorosa. 
No final do século a riqueza, até emao desconhecida, da renda 
e dos bordados acompanba a hipemofia da lingerie. Jamais ficarao tao 
evidentes os efeitos perversos do pudor; enquanto se inultiplicam os 
estagias do despir-se, os impacientes dedos masculinos devem suplantar 
obstaculos de uma gama cada vez maior de laços, colcheres e botôcs. 
1àmanha acumulaçâo er6rica, que contribui para renovar a mitologia 
libidinosa e cuja represenraçao grâfica continua a ser um rabu, exceto 
na caricatura, difunde-sc com extrema rapidez - mais depressa que a 
higiene ~ em todas as classes da sociedade. Muito em breve, até 0 jo-
vern campônio sedutor deverâ aprender a haver-se corn inesperados 
obsrâculos. 
Seria convenienre refletir sobre 0 que signrnca a aceitaçâo destes re-
finados complicadores, cm harmonia corn a perturbadora hipertrofia do 
imaginario er6rico que traduzem, no seio da burguesia, a ânsia de cobrir-
se, a obsessâo da capa, do estojo c do cadarço. 0 desejo de conservaçao, 
o cuidado de proteger-~, 0 medo da castraçâo, a permanente lembrança 
'da ameaça do desejo realizam aqui um neur6tÎco encontro. 
Camo entao admirar-se corn 0 ascenso deste fetichismo, descrito e 
codificado por Binet e Krafft-Ebing,no final do século, mas cujos sinto-
mas ja tÎnham sida minuciosamenre analisados por Zola, Huysmans e Mau-
passanr? A mistica do talhe e das curvas, a fixaçâo do desejo nos sedosos 
arredondados do colo, 0 valor er6cico do pé e do couro das borinas, 0 de-
sejo de conar a cabeleira feminina para respirar à vontade rornaram-se 
fatos histôricos, assim como 0 fetichismo do avental, simbolo de intimi-
dade que parece autorizar rodos os atrevimentos. A lingerie, onde vao 
inscrevcr-se os traços da sexualidade, da eofermidade, alé do crime, adora 
um discurso comprometedor; nde se ap6ia 0 cumor elaborado pelos cria-
dos e logo amplificado pelas Javadeiras. A lavadeira do castelo sabe de 
muita coisa; desfruta na aldeia do .prestigio da mulher que conhcce os 
segredos das belas coupas intimas. 
[,enero do espaço privado desenvolve-se também a toalere que 
prepara a apariçao na cena publica. 0 ri tuai deste labor inutil, par 
muito tempo confinado à dite, difunde-se bruralmente entre 1880 e 
1910. Aiguns traços principais 0 caracrerizam: para começar é urn da-
() SEGREDO DO fNDfvfDUO 44ï 
o corpete lem por missilo Jubliflhar 
as formJS fominimn. Na jo"em 
de silhuetlllJintia etbe/lIl, iUentua 
Il Cllroa da! Iln~ e do Jeio. 
Contn'but; sem demaniuJa 
indiscripo, PIlTIl e"ùknCÜlr 0 dole 
ettético. Itq:ti. tonludo, Um4 
Ilmarraç40 "à pregyifOSa'; bOJlIlnte 
frouxo, "oIon'zondo Il grlJf4 do geslo, 
e"ilo a (1ulénfÎca tortura que 0 mOfd 
Je arrisca 0 sofrer qUllndo chegor a 
horo do =17JUJto e da motemidade. 
(Eugène Vincent Vitiol, Moça do 
corpctc: toSll. Paris, MUJeu 
de Luxembourg.) 
AS ESTRATÉG1AS 
DA APARÊNClA 
448 MS71IXJREJ 
N o final do Jéculo, li lIledidJ q ue 
se d t/(1f(1 a '~1/IpO d t: lazer do ~'OllJinlIO 
do corpo !orùl. dt/fm de·se I/m 
eXiJUItivo " Irobalbo dal UpllréII(ÙI" 
(P. Perro/), aD quaI 
Il pequeno·burgueJ(1, (1j ud(1da par 
!U(1 criada, delle l ubmeter-se an'u 
de 4 ron/(11 (1 cena piib/icd, 
A mul/iphàf4u dOJ traju ao lO/lgo 
do dia imp6e url/a p en!1(1/1c"Ie 
adeqtluf40 dOJ elulu tllo! do 
guarda-roupa; CUJO cOTllrtino, 
a co ,,[us40 /r.ms[onfllJr1(1 CI)1f/ 
du nas/ada e"idêllci(1 0 upafO intima 
er" ballidor do Je(1/ro IOcial (Colefilo 
Siro/,Allgel.) 
I!IIJ 
lWiI 
rissimo dimorfismo sexual quc rcsuha cm salicntar a difcrcnciac;ao dos 
papéis, A mulhc: r lem 0 monopôl io do pcrfumc. da pimura. da cor, da 
sedosidade, da renda e sobrerudo de urna tOrturante body sculpture que 
a coloca dcsde 0 infcio acima de qualquer suspeita de trabalho. Tem a 
funçâo de ser a insignia do horncm condenado à atividadc, ou scja, à ves-
timenta negra ou cinzenta, cm forma de tubo, que faz Baudelaire bradar 
qne este é um sexo de luto, As pr6prias roupas intimas masculinas care-
cern de refinarnemo, 0 homem do século XIX nâo se orgulha de seu cor-
po, exceto de seus pêlos. Enquanto as ondas da cabeleira feminina fee-
qüentam 0 modem style e a "ondulaçâo Marcel" faz furor. propagada 
pelos cabeJeireiros para damas que começam a surgir. outros proflSSionais 
nâo propôem menos de quinze a vinte modelas de bigodes, barbas e suiças, 
o que se investe nestas modas nào é nada insignificante; sua his-
tôria inaugura a difusâo de um novo escilo de vida priY<l.da. Eviden-
cia-se novamente aqui a imporrância da mutaçao eferuada entre 1860 
e 1880. AtE emao, 0 campo mostra-se desconfiada em relaçâo ao que 
chega da cidade; nas pr6prias ruas eitadinas. os trajes camponeses con-
tinuam a exibir-se alcivamente nos dias de fcira e de mercado, VaJe 
ruzer que entre 1840 e 1860, favorecida pela prosperidade rural, a ves-
timenta tipica conheceu uma generosa idade de ouro, Em seguida inau-
gura·se 0 mÎmetÎsmo que conduzici à expropriaçao simb6lica. à pro-
gressiva eliminaçâo dos costumes regionais, piedosarnente recolhidos 
pelos folcloristas, Enquanto as toucas e os eoletes tfpicos desaparecem 
pauco a poueo, as gravuras de modas espalham-sc até as regiôes ru-
rais menos acessfveis. As vendas por coreespondência, a multiplicaçao 
das sucursais da Printemps, a instalaçâo de modistas e sobrerudo a 
extraordinâeia proliferaçào das cosrureiras no final do sEeuJo aceleram 
a evoluçâo. Transforma-se a existência das jovens adolescentes. agora 
sujeÎtas a um novo aprendizado. Yvonne Verdier bem 0 mostrou a pro-
p6sito de Minot. é verdade que sem sublinhar 0 bastante que se Ullta 
de um fenômeno histôrico, estreitamente delimitado no tempo. 
o ambiente dos opccirios urbanos nâo é poupado. Por muito 
tempo impusera-se a especificaçâo do offcio pela cipa de roupa; :ué 
meados do Segundo Império, era fâeil d istingui r na rua a blusa do 
operârio, 0 cerno negeo do magistrado, 0 eolarinho do empregado. 
Mas eis que germina, apôs 1860, a tentaçâo de endomingar-se, Oope-
cirio pretende vestir-se à burguesa para fazer sua festa mesclado corn 
a multidâo uebana. 0 repouso dominical reveste-se a partir dar de 
um nova significado. Endomingar-se é mostrar-se senslvel à moral da 
limpeza. Para a jovem operaria quer dizer assumir os novos refinamen-
taS da seduçâo femini na, aceitar 0 jogo da botina, dn leneinho perfu-
mada e do seio bem desenhado. adotar urna postura nova; é tambérn 
impor-se 0 obcecante aprendizado das compras; é. por fim, reconhe-
cer os novos tempos da usura. Muitos COntOS de Maupassan:, inume-
a SEGRWa DO INDwlDUO 449 
o PUDOR 
E Il VERGONHA 
Enq~(JnJO 0 mo"imt: I1Jo operin'o 
chaf1Ul1l Ji Il clerical injunf40 do 
repouJo dominical, 0 n'Iual do 
PIlJJeiO, por mllilo tempo confinado 
nll b1ltguesia, propaga·Je 
bruscllmenU no final do l ieu/o. 
É es/imulado pela pro/angon/enta 
do lempo /ivre e pela du ejo 
de pllrtitipflr do desfile de trlljes 
que emba,.uho os ni"eiJ soàais e 
p ermile 0 Jonho do conlolo eftmero. 
(Henri Ellenepoel, Pa.sscio de 
domingo, 1899. Liège, Museu de 
Belas ArteJ.) 
ras cançôes de 1900 registram esta mutaçâo simbolizada aioda pela surgi-
menta do moço de recados, longfnquo descendente da costureirinha 
gnselte. 
No século XIX, 0 pudor e a vergonha pretendem regcc os campana-
mentas. Por tras destes termas ocutta-se um duplo sentimento: de um 
lado. 0 m,do de ver 0 Omra - 0 corpo - exprimir-se, de permitir que 
o animal panha as manguinhas'dé fora; de omro, 0 temor de que 0 segre-
do intimo seja violado pela indiscriçâo, 0 desejo atiçado por todas as pre-
cauçôes destinadas a mascarar tamanho tesouro. 0 primeiro sentimento 
da lugar à conrençâo, ou seja, a preocupaçâo de evitar qualquer manifes-
taçâo orgânica suscetivd de recordar que 0 corpo existe. Richacd Sennett 
evoca a prop6sito a "doença vecde", coostipaçâo provocada nas mulheres 
pelo receio de peidar em pûblico. Os médicos estabeJecem 0 quadro c1i-
oico da "eceutofobia", pudoc exacecbado. mocbido pavoc de nâo poder 
imperur 0 ruboc de subir às faces. Do segundo sentimemo deciva, poc 
exemplo, a recusa do espéculo, cujo emprego permanece por muito tem-
po identificado corn um "estupro méd ico"; no final do século, os aboli-
cionistaS continuam a empcegar 0 argumento em sua lura contra a prosti-
tuiçâo regulamentada. 0 rnesmo tipo de ansiedacle acarreta nas mulhe-
ces 0 "mal branco", cecusa em sair por medo de sec espiada por desco-
nhecidos. 
Esta dupla pceocupaçâo instiga a exigência do porte ,. modesto", que 
inspira em especial a pedagogia das congregaçôes femininas. Esta visa em 
pcimeiro lugac ceduzic a vivacidade das crianças. A quebra do citmo dos 
impulsos conjuga-se aqui corn a vontade de estancar as fontes de emoçao 
e restcingic os assamos da sensualidade. Ja que os sentidos sao semelhan-
tes a ponas aberras para 0 demônio, é pceciso ensinar a pcudência, ins-
truir a juvenrude paca que ocupe pecmanentemente as mâos, ceceie seu 
pcoprio olhar, saiba falar em voz baixa e, melbor ainda, compenetce-se 
das virrudes do silêncio. Odile Arnold distingue a este respeito, nos coo-
ventos de rneados do século. um nitido enducecimeoto pedag6gico,que 
se segue a uma considecavd liberdade e até a urna eeal espontaneidade 
de atitudes. A tentativa de descorporificaçao se exaspera corn 0 enalteci-
mente do modelo angeJical; em muitas moças opera-se entao urna vecda-
deica identificaçâo corn 0 anjo. Esta miragem, cuja gêneseJean Delumeau 
atcibui cm parte à antiga influência do neoplatonismo, acentua capida-
mente seu domînio; nitidamente perceptivd nas POSturas da prece, acom-
panha a ccescente exaltaçao da virgindade e 0 ascenso do lirismo da casti-
dade. É sintomatica, a pcop6sito, a capida difusâo do culto a Filomeoa 
a partir de 1834. 0 moddo desta santa que ouoca existiu, mas à quai 
ainda assim sao consagradas abundantes biogcafias, permice a difusao de 
preces, imageos e até cocdôes destinados às jovenzinhas desejosas de se 
cooservacem intatas. Nao esqueçamos: nesse século em que se afirma 0 
prirnado da palavca masculina, é atcavés da cetocica do corpo, da elevaçao 
do olhar e do fervor do gesto que se opeca a prédica feminina. 
Resta colocar 0 problema da difusâo das conduras. Suzanne Voilquin, 
filba do povo, rdata 0 verdadeiro noviciado a que foi submetida, entre 
1805 e 1809, pelas mestras da escola do claustra de SaÎnt·Merry, e em 
seguida pelas tristes senhoritas normandas em cuja casa eferuou seu 
aprendizado, desde os nove anos de idade. Todavia, a antropologia an-
ge1ical rdativa à época romântica 56 se estende amplamente quando 
se deflagca a contca-ofensiva cat61ica, ou seja, ap6s 1850. As técnicas 
de començâo destiladas nos conventos penetram emâo nos meios po-
pulaces. Muito cecentemente, Macie:José Garoiche-Mercitt, que eeco-
lheu minuciosamente 0 testemunho da mem6ria popular, tcaça um 
quadro impcessionante da rninuciosa vigilância execcida, ainda entce 
1900 e 1914, pdas celigiosas sobre as moças da pequena comuna de 
Bué·eo-Sancerrois. Constitui·se. especialmente nas par6quias curais, 
urna cede de congcegaçôes juvenis. Incomaveis assocÎaçôes de ccianças, 
de Filbas de Maria, ou ainda dessas donzdas agraciadas corn coroas 
de rosas, as rosières, que Manine Segalen avalia serem pcovavdmenre 
um milhar, aplicarn a iiçao de moral e començâo dispensada pela es-
o Sl:.'GREOO DO INDJVfDUO 45 J 
454 B ... snOORES 
o ONANIS'LI. 
SOB VIGILÂNGIA 
de gerir qualquer dispéndio e ponamo de daborar urna saudavel I.:cono-
rnia espermatica. Nesta perspectiva, repete-se que 0 prazer solitirio mas-
cutino conduz a uma tâpida decadência. 0 definhamemo, a senilidade 
precoce seguida de morte baljzam 0 îtînerario percorrido por estes indivî-
duos emagrecidos, macilentos e quase amnésicos que lotam os consult6-
rios médicos. A dramatizaçao do quadro clînico traduz 0 ternor de que 
o dispêndio de energia prejudique 0 dinamismo necessario ao esforço e 
coloque em causa a capacidade de uabalho; oculta sobretudo a recusa do 
aprendizaclo do prazer, a negativa das funçôes hedonistas. 
o gozo da mulher sem a presença masculina parece ser panicular-
meme inroledvel. A "manualizaçao" constirui 0 supra-sumo do vîcio. 
Para 0 homem, figura 0 segredo absoluto, infinitamente mais misterioso 
que as comoçôes do coÏto. Aqui nem se cogita de privilegiar os riscos de 
esgotamento, pois a capacidade copulaclora da mulher parece infini ta; po-
rém outras sançôes, igualmente terrlveis, espreitam no horizonte da ful-
ta. Nao ha um quadro clînico, mas a biografia de ninf6mana, de histérica 
ou prostituta que se abre sobre a imagem da pequena viciosa. Reencontra-se 
aqui a hostilidade que os médicos do século XIX demonstram diante do 
clitoris, simples instrumento de prazer, ioual na procriaçao. 
A luta concra a corrente provém dos pais, do padre e sobrerudo do 
médico. Os livros incÎtam a vigilância doméstica. Aos o1hos dos edueado-
res clericais, 0 sono deve ser 0 equivalente da morte, 0 Idto, imagem do 
tûmulo e 0 despenar, equivaleme àa ressurreiçao. No imerior do dormi-
tôrio do pensionato eocontra-se uma freira para zelar pela "modéstia" 
do despertar e do adormecer. Durame a dia, convém nao deixar a criança 
sozinha por muito tempo. 0 regulamenro das casas dirigidas pelas ursu-
linas prescreve que as moças devern ficac sempre à vista de numerosas co-
legas. Os médicos, por seu turno, aconselham que se evite 0 calor e a ma-
ciez da cama; proscrevem a manta e um exagero de cobertas, e Hxam a 
postura do sono. A prâtica feminina da equitaçâo desperta sua descon-
fiança, assim como a maquina de cosrura, ~enunciada pela Acadernia de 
Medicina em 1866. 
A estrutura dos equipamentos e, em caso de necessidade, a ortO-
pedia concorrem para a prevençao. Em 1878 os especialistas aconselham 
a adoçao de sanitarios tendo na parte superior e na inferior orifîcios 
autorizando 0 controle de posruras. Cenos médicos 3.consdham que os 
menioos vistam longas camisolas. Até 1914 os especialistas propôem 
contra 0 onanismo rebelde 0 uso de bandagens sob medida; alguns 
chegam mesmo a fabricar "cintos de començao" destinados às moças. 
Nos hospkios, algemas, correias, aparelhos instalados entre as coxas para 
impedir 0 toque S:i0 impostos aos alienados ninfôrnanos. Quando 0 
mal persiste, pode acontecer a cirurgia. A cauterizaçao da uretra pa-
ecce ser praticada corn bastante freqüência. Théodore Zeldin cita 0 mar-
tîrio do empregado de urna loja, corn dezolto anos de idade, vltÎma 
por sete vezes de scmelhante terapêutica, destinada, em princîpio, a cura-lo 
de perdas seminais involuntarias. Porém sac ainda mais eloqüentes os pa-
vores de Amid, minuciosarnente relatados pela prôpria vÎtima. 0 iofeliz 
"sucumbe" regularmente às "perdas seminais' '. "Cada poluçao é uma 
punhalada para vossos olhos", declarou um especialista ao rapaz de de-
zenove anos. Este, aterrorizado, anota cuidadosamente desde entao cada 
urna de suas ejaculaçôes noturoas; consigna seus arrependimentos, escre-
ve suas resoluçoes; à noite, toma banhos de agua fria, come gelo picado, 
lava as virilhas corn vinagre. Nada adiama; em 12 de junho de 1841 de 
decide nao dormir mais que quatro ou cinco horas por noite, sentado cm 
uma poltrona. 
A cauterizaçao do clitôrÎs e do orifîcio da vulva constituern em con-
rraparrida procedimentos muÎto raros, e mais ainda a clitordectomia, pra-
ticada pelo de. Roben desde 1837 e mais tarde, no final do sécu.1o, pelo 
dr. Demettius Zambaco. Corn efeito é necessario ser prudente e, sem ne-
gar a significativa dimensao de tao terrificantes prâticas, nao s,uperesti-
mar sua freqüência. 
Cornpreendern9s assim 0 guanto 0 corpo tocna-se urna obsessao no 
seio da vida privada. 0 auscultar dos obscuros sinais da cenestesia, a vigi-
lante espreüa da tentaçao, a permanente ameaça que se.acredita pesar so-
bre 0 pudor, 0 fasdnio exercido pela transgressâo semprë possîvel conco~­
rem para valoriza-lo. Chega-se a fugir do esperaculo do coiro animal. A ......... 
simples alusao a ele é urna grosseria masculina cujo sentido hurnorîstico 
é dificil conceber atualmente. Grupos de canto e circulos formarn-se ex-
clusivamente p~ra rir e falar de sexo. 0 nu, profundamente oculto, é um 
fantasma a rondar os hornens. Os convidados da condessa Sabine, urna 
das herofnas de Nana, con je ct ur am longarnente sobre a forma de suas co-
xas. Comparada corn îsto, nossa tao célebre subrnissao aos impulsas e de-
scjos do corpo parece bastante descuidada e até urn tanto desajeitada. 
1NTERPRETAÇAO E CONTROLE DE SI 
Enquanto sc processa 0 esgotamcmo literario da intimidade, apro-
funda-se 0 desejo de decifrar a si pr6prio, banaliza-se a pratica da Întros-
pecçao. Processos favoreciJos pelo refinamento e difusao social dos exer-
ckios espirituais surgidos do esforço disciplinar pôs-tridemÎno. Parado-
xalmentc, 0 procedimcnto do exame de coosciéncÎa estende-se no mo-
mento cm que se reduz 0 efetivo dos praticantes. Uma nova cornpreensâo 
dos imperativos da teologia moral petmite 0 acesso da massa de catôlicos 
a uma disciplina mental que permanecera pormuito tempo restrita à di-
te. Durantc a Restauraçao, multiplicam-se os retiros e mÎssôes; rama uns 
coma ouuas desaguam em uma confissao geral; estas proporciooam oca-
siao para uma longa exploraçao' de si. Claude Langlois mostrou 0 en raiza-
. .. 
o SI::GRU)O [ln INlJwiVIlO 455 
QlIando a l'ig/ïânc/4 dos pais 
e edlludores nâo bllllll, apenas 
o corpete 011 0 aparelho orJopédico 
conlêm no adolescente Il i"CSUlil'el 
neceJSidade do prazer soli/mG e e1Iita 
a senilidade precoce, ou alé a morte 
por exceJSilla d/ïapidaçâo da puc/osa 
ummte. (Paris, B/bliouca da antiga 
Faculdade de Mellicina.) 
A BANALIUÇÀO 
DO EXAME 
. , 
456 IM S71DORëS 
A PROCURA 
DO DIÂRIO 
mento popular da prâtica do retiro na diocese de Vannes. Em 24 de 
março de 1821, relata Gérard Cholvy, 6 mil homens participam, de c1-
rio cm punho, da honrosa eerimônia de caridade que eonstitui 0 fone 
da grande missâo de Montpellier. Cerea de meio século mais tarde, 
em 1866, par motiva da visita de uns pregadores a Chasseradès - a 
humilde eomuna do inacesslvel Gévaudan - opera-se 0 voltar-se para 
si e desata-se a Irogua dos rudes camponeses dos oustaux. A manuten-
çâo, durante décadas, da dupla confissao e da absolviçâo difeft'nciada, 
a pradca da confissao geral por ecapas, entremeada par longos perlo-
dos de auto-anâlise, tal como era preconizada pelo padre de Ars, con-
venido em missionario sedentario durante a Monarquia de Julho, in-
citam a um minucioso esquadrinhamemo da memoria à procura da 
falta. 
A proliferaçâo dos "regulamemos de vida", a crescente precisâo 
das "reso!uçôes" acompanham 0 aprofundamento dos exames. Prega-
dores e educadores congregacionistas convidam as aimas piedosas a exer-
cer esta nova maestria. AssUn se acomodam as condutas no interior 
da vida privada. Aconselhados pelas educadoras, os pais Împôem urn 
rigido reguJamemo às moças que retomam do internato, corn 0 inten-
to de afasca-Ias das temaçôes de uma vida que parece devotada 20 6cio. 
o emocionaote Cahier de résolutions [Caderno de resoluçôes] da ;0-
vern Léopoldine Hugo testemunha 0 sistema. Algumas boas aimas 
chegam a escimular tadas as moças a manter um diario, como simples 
corolârio do sacramento da pcnitência. Em Marselha, Isabelle Fraissi-
net , corn doze anos de idacle, é constrangida a preencher todos os dias 
a seu. 0 papel pode registrar rambém 0 progresso da vida espirirual 
dos adultos, aliviar os escriipulos nascidos de pequenas falras cotidia-
nas. Apos 1850, 0 ascenso do diâIio feminino de conversao, tendo por 
modela 0 de madame Swetchioc, editado por Falloux, traduz 0 mes-
mo desejo de adaptar a fins edifiéantes a crescente necessidade de (:Scre-
ver sobre si. 
Nâo menos essencial é a laicizaçao dos procedimentos de imer-
pretaçao do Îndivîduo, elaborados à sombra do confessionârio. A com-
patibiJizaçao da existência, a aritmética das horas e dos dias. que so-
brecarrcgam 0 homem do século XIX. nao derivam apenas do tcmor 
da Calta; provêm igualmente deste mesmo fantasma da perda que con-
duz a manter livros de contabilidade doméstica da mais extremada 
minucia, que engendra a angûstia do desperd1cio de espcrma ou sim-
plesmente do coridiano esucitamento da duraçâo da vida. Este desejo 
de represar a perda t~ansborda para 0 diario intimo. 
o extraordinacio Essai sur l'emploi du temps ou Méthode qui a pour 
objet de bien régler l'emploi du temps, premier moyen d'être heureux 
,. 
[Ensaio sobre 0 emprcgo do tempo ou método tendo par objeuvo a boa 
organizaçào do emprego do tempo, primciro meio de ser feliz}. redigido 
em 1810 por Jullieo. militar da reser\"a. manifesta clarameote sua filiaçao. 
o autar, que remete a lDcke e a Franldin, e cujo crabalho sera coreado 
par Fourcroy, recorncnda que se divida a dia em três fatias de oito horas. 
Aconsdha que .se coosagre a primeira 01.0 sano, a segunda aos esrudos e 
aos "deveres de .seu emprego", a terceira às refeiçôes, 01.0 lazer e aos exer-
crcios corporais. Aconsdha, sobrerudo, que se mantenham tcês diarios ou 
"contabilidadcs", onde serâo registf2.d2S as fluruaçôes da saûde, 2S vicis-
situdes da moral e as pulsaçôes da arividade Îme1ectual. Um "memorial 
analltico" e um quadro trîplice da siroaçâo, redigidos a C2.da trimestre 
ou semestre, pennicirao que se façam sucessivos balanços que serâ conve-
niente su bmeter a um amigo volumâIio para julgar sua evoluçâo. 0 dese-
;0 de esdarecÎmento interior, combinado corn 0 temor do desperdfcio, 
suscita aqui uma prâcica que nâo subemende nenhum dialogo corn 0 Cria-
dor. É em funçâo do olhar sobre si mesmo, c dos olhares dos outres e 
do mondo, que se e5trutura um exame permanente, obcecante. Olongo 
monélogo interior permite também que se conuole a aparência pessoaI, 
tomando-a 01.0 mesmo tempo mais iodecifrâvd aos ourros; 0 necessmo 
segredo do individuo conuibui pan. impar a introspecçâo. 
Os grandes autores de diarios da primeiC2. metade do século esfor-
çaram-se por levar a bom terme esta ucefa de esclarecimento, sem a me-
nar ambiçao literâria. Suas obras, que corn fceqüência regiscram simulta-
neamente 0 crabalho, 0 dinheiro, 0 luer e a açao amoresa, desempenham 
o.papd de cOllubilidades da decadência. 0 dîmo Intima tenta exorcizar 
esta angUstia da morte, que de aviva corn 0 proprio ato de se escrever. 
Detectar 0 desperdkio de si proprio é proporcionar-se os meios para uma 
estratégia de poupança. "Ao conservar a historia do que sioto", diz Dela-
croix em 7 de abril de 1824, "tenho um duplo fun: 0 passado retornara 
a mim. 0 future :sti sempre aIi." Assi.m se constirui uma mem6ria que 
autoriza a um sô tempo a amnésia e a comemoraçâo. 
Manter um diacio é rambém disciplina de imeriorizaçào; depo-
sita-se sob re 0 papel a discreta conftssâo. A escritura pcrmitc a anâlisc da 
culpabitidade înrima, registra taoto os fracassas da sexualidade como 0 
sufocante semimento da iocapacidade de agir: cepisa as resoluçôes secretas. 
Multiplos fatores comribucm ainda para explicar a ascensâo desu 
fascinante prâtica. Em Maine de Biran, da respollde à ambiçâo de 
apoiar a ciência do hamem na observaçâo e captar, para tanto, as cela· 
çôes que se estabelecem entre 0 fîsico e 0 moral. A busca de si mesmo 
é estimulada ainda por todos os fatas historicos que conduzem ao 
aprofundamemo da sensaçao de identidade. Sobrerudo, 2 acderaç2:o 
da mobilidade social engendra um semimemo de iosegucança. Incita 
o SEG;:WO DO INDwtDUO 45ï 
> 
4 5 8 nASl1DO/Œ.l 
A pRAnCA 
DE ESCREVER 
SOBRE SI 
A alfobetiZOfâo, ji qUlIse generaliZllda 
quando da imfallfllç40 dt1 esco/a 
republicana, p ermite pela prime/ra 
liez que 0 conjllnlo da jUllenlude 
se dedique às d1leren/el modaltdades 
da escrila de Ji propn"o. LiçJo 0 ;: praxer, 
a car/a, IlISÙn (omo (/ redaçiio, en/ra 
a pllr/ir de agorll na liIta dal 
obngllfôel. (Philippe jo/y et, A carta, 
Salao de 1908.) 
o autor do diârio a indagar-sc sobre sua posÎçâo, a calcular 0 julg:unento 
dos outros. A muda presença da sociedade freqüenta a vida privada e so-
jitiria do autor. 0 novo fcitio das reJaçôes interpcssoais ditado pela urba-
nizaçâo muhiplica as feridas narcîseas , gcra uma frusrraçâo que convida 
ao recolhimento neste refugio interior. Maine de Biran prevê, em 1816, 
esta busca de urna revanche psicologica; prcssente os (Crnpos cm que' 'os 
homens, cansados de ouvir, estarao mais dispostos a se vOltaT sobre si pro-
prios, buscando ali 0 repouso c esta espécie de calma e consolo que s6 
se encontra na intirnidadc da consciência". 
o avanço do sentirnento de propriedade nao é estranho à nova bus-
ca; mais urna vez é Maine de Biran que 0 pressente; de se Felicita quando 
o abade Morellet, seu amigo, na monografia que consagra ao assuntO, ba-
scia 0 dircito de propriedade no "direito de cada homem sobre si pro-
prio, sobre todas as suas faculdades, [sobre] seu eu". 
Resta definir 0 efclivo consagrado à prâtica de escreversobre si mes-
mo. Caso nos atenhamos aos grandes aurores de diirios, reconhecidos pe-
la historia literaria, a tarefa é fici!. Sao numerosas as mulheres ils quais 
o codigo das conveniências proibe a publicaçao e que suprem graças ao 
diârio sua neccssidade, quando nao sua fUria, de escrever. A propria Eu-
génie de Guérin confessa que aplaca urn irreprimivd desejo e {Odo leva 
a crer que 0 mesmo ocorre a madame de Lamartine, a mie do poeta. 
Corn freqüência mal inserida na sociedade onde foi chamada a vi-
ver, a autora de um diârio sofre por nao poder comunicar-se. Ademais, 
seme dificuldade em decidir-se. Em maio de 1848, corn 27 anos de ida-
de, Amie! expôe em seu diario, sob a forma de uma interminavcl equa-
çao, os clementos de um eventual casamento. "Eu invento fantasmas e 
obsticulos gratuitos", confessa Maine de Biran, esmagado pelo que de-
nomina a "preocupaçao" - nos didamos a ansiedade - que de atribui 
à "desconfiança de si pr6prio". 
Eru suma, 0 grande escritor de diirios nao estâ longe de parecer uro 
doente; certamente uro dmido, aré um il"f.lpotente, cheio de tendências 
homosscxuais que nao saberia saciar. A microfaroilia burguesa da provin-
cia constitui 0 lugar privilegiado da eclosao do diario intimo. Sua estru-
tura favow:e 0 apego à mae e à infância; Béatrice Didier afirma que 0 
autor de um diirio sofre de regressao e sua caligrafia traduz a busca de 
um refù.gio maternaI. Nao se poderia negar que este castigo cotidiano pro-
longa os imperativos da pedagogia juvenil: de lembra simultaneamente 
o cademo escolar e 0 dever de casa. 
Com efe ito 0 diario é, para começar, e talvez acima de tudo, uma 
pritica. Impôe um fatigante trabalho; lembremos as 17 mil pâginas 
escritas por Amiel! Para os que sc comprazem com 0 rnon610go inte-
rior, de pode {Omar-sc também um refinado prazer. "Quando estoe 
sozinho", declara Maine de Biran, "basta-me a ocupaçao de seguir 0 
rnovimento de minhas idéias ou impressôes, de apalpar-me, observar 
minhas disposiçôes e as variantes de minha maneira de ser, de tirar 0 me-
lhor partido de miro mesrno, de registrar as idéias que me ocorrem por 
acaso, ou as que minhas leituras sugerem." Neste sentido, 0 diârio inti-
mo é 0 coroamento das alegrias da pn·vdcy: "Aspiro a tornar-me eu mes-
mo, retOrnando à vida privada e familiar", confessa 0 mesmo escritor, 
"erguendo-me assim acima de mim mesmo; entao nao serei nioguém". 
Entretaoto, pode-se adivinhar, 0 di:1rio é inimigo da vida conjugal! Às 
mulheres, sobretudo, impôe-se que 0 escrevam às escondidas. Eu~énie de 
Gué.rin oculta até de seu adorado pai 0 caderno que cla preeoche à noite, 
em seu "quartinho", enquanto contempla as estrelas. Manter um diârio 
reveste-se efetivarnente do aspecto masturbat6rio reaIçado por Béatrice 
Didier. 
Os hiscoriadores ainda nao mediram satisfarorÎameme a difusao so-
cial de urna prarica cuja anilise permanece coma monop6lio dos especia-
listas em literatura. Ademais, a grande fragilidadc destes documentos cer-
tamente leva à subestimaçao de sua quantidade. Muitos indicios levam 
porém a pensar que 0 diârio Intimo é 0 contrapomo de muitas vidas pri-
vadas. A pequena burguesia nao 0 ignora, como testernunha 0 texto de 
o SEGREDO DO INDJVfDfJO 459 
Um4 fm,/her th IJTislocraciz ou da 
bllrglles/n conJlJgra muitn.r nOTai 
por dilJ à lua co"espondéncia. 
Caroline Chol4r4-Iiorel pâde analisar 
pOrlllnto milhores de cn"IlS elen·llll, 
11Q i1h·ma leTfO dosicuÛ}, pelos BoileJ1u, 
I/m Ulal de dignalânos 
de Snl/mllrois. Ao pemllhr 
Il IIeriflClJfiio e mI1nulençiio dol 
gn/pOl, Il C4r11l joga um plJpe/ 
crelt:ente na re/4pa amoroJ4. Nesta 
BeDe Époque da dU/lénO, é eu que 
permite 114 mI1iorin tins vezes que a 
mmido delCtlbrlJ que é enganado. 
(ViscondesJII de Cil/ello, A resposta, 
Sdiic de 19<19.) 
.Jo() HIHTII)(JI1f:S 
A MODERAÇAO 
DAS AMBIÇOES 
P. H. Azaïs, modesto autodidal3 p:trisicmc; :lqUÎ 0 diario apn..'SCnta-St: camo 
herdeiro longinquo do livra de razâo c companheiro do livre de conrabi-
lidade. Adivinha-se que as mocinhas que encontraram ode urna mancira 
de dcsabafar sejam legiao. Caroline Brame, cujos papéis foram cncomca-
do nos Puces, e Marie Bashkirtseff cenamcntc nâo sâo exemplos isolados; 
e menas aioda Isabelle Fraissinet. 
Convém desracar a prop6sito a imensa popularidade do album. 
Durante a Monarquia deJulho, escrcve Pierre Georgel, coda moça de boa 
familia {cm 0 seu, que apresenta aos amigos da casa. É Lamartine que 
abre 0 de Léopoldine Hugo. Aré os Heze anos de idadc. Dicline regis-
tra ali seus brinquedos, seus sonhos de infância, suas leiruras; em se-
guida surpreendem-se ali os suspiros c dedaraçôes dos primeiros admi-
radores aos quais a jovem aos poucos vai atemando. Desde cntao ela 
se preocupa corn as roupas, registra os bailes , os espetâculos a que assis-
te e (em 0 cu idado de inscrever suas impressôes de viagem. 0 album 
é uro saco de gatos; ali colam-se boletins escolan:s e gravuras picores-
cas; ao chegar 0 casamento, de ira un ir-se aos cadernos no oovo museu 
dos arquivos familiares. 
Funcionam entre 0 povo equivalentes simb61icos do album, se nao 
do diario. 0 enxoval bordado pela jovenlinha nio pode ser coosiderado 
como uma arenta escrituraçao de si e de seus soohos para 0 fururo? Em 
rodo caso, sua funçao ultrapassa em muito 0 simples desejo de dispor de 
uma reseNa de panos para depois do casamenro. Agn~s Fine mostra corn 
quantos cuidados a adolescente dos Pireneus fia, borda, marca corn um 
fio vermdho este resouro que, mais tarde, de nada Ihe servira. A moça 
designada como herdeira também se curva a em: rito cuja necessidade 
pratica ela nao rem. Explica-se assim 0 extremo apego da mulher a seme-
lhante acumulaçao simbolica. Em Icarie, Cabet sera acusado de querer 
confiscar 0 enxoval. Ao valorizar ao extremo cm sua narrativa 0 bau de 
panos que G illiat herda de sua mac, 0 amor de Tratltufleurs de /0 mer 
[1fabalhadores do mar] sabc pcrfeitamence que aponta um clemento maior 
da sensibilidade popular. 
A busca retrospectiva do eu, objeto do diario intimo, estimula arre-
pendimentos, aviva nostalgias , mas, em um mesmo movimemo, valoriza 
a aspiraçao e desperta 0 imaginario da conscruçao de si. Convida à histo-
ria da ambiçao, mas ai!, sem pre 00 limbo. Vma evidência., comudo: enorme 
moderaçao cerca as represcntaçôes do futuro; esta prudência vern contra-
dizer a imagem excessivamentc fogosa de um século cm que sc daria va-
zao aos apetites. De fato, convém nao esquecer 0 atrativo da reproduçao 
e a força dos mecaoismos que 0 co rroboram. A amplitude do apadrinba-
mento, do si.<;tema da " rccomeodaç:io", cm suma, 0 peso das relaçoes e 
o intrincado das estratégias familiares conrêm por muiro rempo a ascen-
sac de uma democracia que, mesmo depois do triunfo da Rcpublica, coo-
tinuara mitigada. TaI coma sublinha Théodore Zeldin, 0 temor da 
1 
eSlafa, do cxcesso, subsnito pclo corpo rnc:diLO, t:umribu i para moderar 
ambiçôes. Seria preciso acrescentar a inOuênria dcsla cu hura cl âssica dos 
huma ni stas, cuja importânt:ia é minimizada por um condcSl.:cndcmc dcs-
prczo. QuaOlos homens maduros. leilOres de Horacio. nào buscaram ilci-
ma de tudo 0 ofÙl'1n e praticaram 0 corpe dielll, à imagcm dos prefeiros-
poetas descritos por Vincent Wright ou do presidente de Neuville, 0 ma-
gisuado levado à ceoa por Duranty cm Le mo/heur d'Henriette Gérard 
[A infelicidadc de Henriette Gérard]. A busca da estima publica, teste-
munhada pela idéia fixa da condecoraçao, sobn::pôe-se corn freqüência à 
da riqucza; c a diflcil posiçao do novo-rico mosrra bem que a mobilidade 
social nilo é cm absoluto uma simples questao de fortona. 
Entào compreendcm-sc melhor certos resultados da historia quanti-
tativa; c antes de mais nada a permanente arraçâo exercida pelas profis-
socs liberais e a funçào pli blica. Vma pesquisa coordenada por Duruy cm 
1864 junro aos alunos do curso c1iissico dos liceusda provincia mostra que 
o direiro, a medicina e a escola militar de Saint-Cyr concentram as ambi-
çôes dcstcs jovens. De qualquer forma, a burguesia prefere 0 serviço do 
Estado ao mundo dos negocios. Christophe Charle avaliou bem tanto a 
solidez dos mecanismos de reproduçao como 0 permanente atrativo dos 
al(Qs cargos publicos. A Politécnica e outras grandes escolas fascinam , em· 
bora a pratica de tfocar 0 serviço pliblico pela empresa privada ainda nào 
renha se desenvolvido e. ponamo. este ripo de carreira esreja longe de 
assegurar a aquisiçao de uma grande fo rtuna. 
No ambiente operario, 0 orgulho da comperência, 0 prestÎgio do pro-
fissionalismo limitam 0 desejo de evasao social; e simultaneamenre con-
'uibuem para explicar a amplitude da endogamia técnica e as escassas pro-
moçôcs. A multiplicidadc das transferências sociais que se operam de uma 
geraçao para outra oao deve oculcar aqui a estabilidade dominante dos 
esratutos SOClalS. 
Jacques Rancière evidenciou todavia a profunda influência da ex-
periência vivida, entre 1830 e 1850, por um contingente minoritârio 
de trabalhadores sobre 0 qual abateu-se um nova mal-estar. Senslveis 
à dor do tempo roubado pelo trabalho, estes individuos que se semem 
vocacionados para coisa bem diferente da exploraçào sofrem de uma 
superabu ndância existencial e temam libenar-se dela entregando-se a 
verdadeiros " ddfrios domésticos". As noÎres destes prolerârios, povoa-
das por sonhos para 0 futuro, sào também freqüc:madas pelo paraiso 
da idcntidade. É uma rensào minoritâria. sentida pelos uabalhadores 
que vivcm como ope rârios mas rratam de falar e escrever coma bur-
gueses; e isto ao preço de um imenso esforço cm leiruras difîceis. ses-
roes de cop ia e liçoes aprendidas de cor. 0 nlimero, nitidamenre mais 
elcvado, de operârios parisienses que durame a Monarquia de Julho 
puseram-se a freqüenrar cuesos notumos restemunha a propagaçio desta 
o SIiCh'I:.." -") INOW7DL"(. 401 
462 M S17DORFS 
ambiç:lo prolctâria. A hi S1'o ri:1 das singularidades temper:1 :lqu; os muclos 
clados da quamificaçào, informando·nûs sobre a g<:n(:se do dcscjo. 
Também 0 povo do campo abrc· sc :lOS poucos para 0 sonho do fucu· 
ro individual; é urn cngatinhar cujos WIÇOS devern sec procurados mais 
no gesto que no discurso. Assim, 0 alroz crime de Pierre Rivière pôde ser 
interpretado como sina l de tomada de consciência pessoa l de um mal· 
cStar colctivo. A forrnulaçâo de ambiçôes individuaîs dcsagrega lenta e 
muito desigualmente as estruturas familiares, conforme 0 sistema; cons· 
(range as estrarégias parernas c vern resolver, muito oponunameme, 0 pro· 
blema colocado pelos fi lhos mais novos da farnrI ia·tronco. Segundo Gre· 
gor Dallas, que estuda 0 carnpesinaro de Orléans, 0 progresso da indîvî -
dualizaçâo distende 0 vÎncu lo que ligava a mâe aos fi lhos, aumenta 0 
scntimento de insegurança e leva à implosâo de uma "economia campo· 
nesa" que de outra maneira leria sobrevivido às conru rbaçôes econômÎ-
cas. Aqui , longe de curvar-sc perante 0 menino-rei, a familia desloca-se 
pelo desvanecimento da relaçâo afetiva . Se ria faci l detectar va rios OUtrOS 
aspectas desta crescente descnvolrura cm re laçao aos seus , deste definhar 
do semÎmento. Um exemplo entrc outros: a partir da Restauraçao, 0 imi-
grante de Creuse começa a reeusar ao pai 0 montantc de suas economias; 
dentro em breve, passara longos anos sem rever e abraçar sua mâe e suas 
Îrmâs. 
Très formas de ambiçâo instigam os jovens do campo, moldadas de 
acordo corn suris hierarquias imrafamiliares, em especial conforme 0 pos~ 
tO oeupado em relaçâo aos irmaos: P) a vontade de adquirir 0 est3.ruto 
de pcoprietârio, projeto tradicional, mais faci l de realizar que no passado, 
restemunhado pela clevaçao do valoe da terra, 0 retalhamcnto das parce-
las e a retomada de grandes movimemos de arroteamento; 2 ~) 0 desejo 
de alçar-se a uma dessas raras profissôes·de-rransferência, como a de mo-
leiro e sobretudo a de taverneiro, que, coma Ronald Hubscher mostrou 
a prop6sito das zonas cu rais de Pas-de· Calais, constituem os trampolins 
indispensaveis ao sucesso social; 3~) a emigraçao dcfioÎtiva para a cidade, 
experiência de exilio cujos riscos sao remperados pelas red es de solidarie-
dade, de acolhida, colocaçao e aliança, quase sem pre corn base regianal. 
estrururadas na urbe ao 10ngo de décadas. Ali se elaboram a: novas rela-
çôes, os novos itinerarios que permitem il: geraçao seguinte empreender 
uma vcrdadeira ascensao. 0 caso dos imigranrcs vindos de Auvergne, exa-
minado por Françoise Raison, é exemplar. 
Nao esqueçamos a vocaçao, apice da csca la das ambiçôes, cujo ca-
rater irrepreensÎ\'el freqüenrememc perturba - ou exalta - a "ida 
privada das familias do século XIX. 0 modelo da vocaçao reli giosa in-
cremema seu domînio, como demonstra, ainda uma vez, 0 aumenro 
dos efctivos cclcsiiisticos até 0 advcnto da Terceira Repûbli ca. A exten-
sao social do recrutamento varia a tal pontO conforme as dioceses que 
pareee i0l1ei l remar mesmo uma breve sÎnteSl:. No maxim o podcmos 
. .::. ~ DO J"'. :"':.:. 
o h",.I)J~"': . :;IOr/'Îr.. : ; . -:.lçJe, 
litr.rJrÙ, '; ';;1::, ';. (J I OÙr.; c" {J',UUr. 
o rgJIIt1.IJ1n G. i"".I)OJ d, CG r. J1r:1fJ(, 
de Ji pr';; -; .~ Tr:prodJ.,,~ ~ .i.;J .. ,";; , 
do Jécu/o S1.': .. " J Js:J pd~J !xuld;;Jo~ 
d~ direito û ':' tr..:dÙ:;'11l ~. $(.OU'ls"Ù" 
p~/I1J grJI:,ù, <Ut'JIOI cUl0 vr.iforrn ( 
COllItIlUIJ " .(û; .... ï UlT(1J amb/{-6eI. 
A !reqiiù;t:.; .;'of !nuaJJoJ .::lima"; 
fllllitO tl1n.;rg.:. : ; t'nJ,~ 01 r<p rol ·Jdo.' 
n OS ,,~JIIb:'.'.;T.·i. obrigodoJ 
Il Je COI/JUII';- ,'om ~117PT~go;,l 
JlIbaiumoJ. 
AS J-1GUR.~ 
DA VOc:\ç.~0 
464 liunOOIHiS 
Enlre a auin3tura da Concordata 
(IBOI) e 0 fim do Segur/do ImPéno, 
mU/llp/icam-u al vocPf6el feminin/n. 
Segundo C1l1ude lAng/où, e/aJ 
a!cançam 0,8% dl1 popu/af8o 
de mu/hue;. hUllo na Jociedade 
como no Jào d:J fomi/itl, (1 19re/a 
d3 Fr311fa com.; com 0 JeXO jrJgil 
p<lr3 ü"lIr (1 bom fermo (/ conquùtp 
duJ a/mas. Uu/n]tlrnes ROligeron, 
Ordcnaç2o no Carmelo. "fliJeli 
de Dijon.) 
destacar globalmente a progressiva "ruralizaçao" do c1ero. Amitide, 0 pri-
meiro chamamento faz -se ·ouvir à véspera da primeira comunhâo, por oca-
siâo desta crise de misticismo taO hem rclatada, fora de época, por Geor-
ge Sand e vivi da corn tama imensidade pela desgraçada Caroline Brame. 
Apcs 1850, a exaltaçâo da figura do anjo, 0 crescÎlnento do culto a Maria, 
a promulgaçâo do dogma da Im",,,:ulada Conceiçao, a onda de devoç6es 
que conduz ao enaltecimemo da personalidadc de numerosos santos até 
entaO neg ligenciados e 0 recuo do amimisticismo amerÎor concorrem pa-
ra exacerbar um sentimemalismo juvenil contido cm seus impulsas pela 
negaçao circundame do corpo. A grande eclosâo da VJuriofonia, que se 
dcsenvolve em La Salen e (1846) e Pontmain (1871), atesta a presença ce-
leste e aumema a freqüência dos apelos. 
Seria também convenÎente refleeir sobre a deslocamcmo comem-
porâneo de uma figura laicÎzada de vocaçao. Cenos pol1ticos burgue-
ses, apôstolos populistas, testemunham corn suas vidas a realidade da 
-
tra nsfc rénr ia. 0 riqu lssirno qua remao Ferd inand G:un l){)fl perde quinze 
anos de sua vida no dreere, resiste às sli plicas de sua famflia e de sua 
noiva, supona as suris sevfcias dos rarccreiros pa ra nao ter de solici lar 
o pcrdâo Impe rial; libertado, por fim. dcvota il. causa n:publica na 0 res-
ta de sua èxistência. Numerosos militantes operarios, que vivem uma 
pe regrinaçâo quase apostôlica, muitas fem inist"as, que decidcm pe rma-
nccer vi rgens ou pelo menos sohei ras, varias educadoras ascélicas mo-
delam, mais ou menos conscientemente, sua condu ta conforme 0 antigo 
figurino. E jii raz bastante [empo que Françoise Mayeur deslacou 0 as-
pecto convencual da Escola Normal de Sèvres. C<:nameme seria frurffero 
reexaminar nesta perspectiva.de consagraçao do indivlduo privado e 
disso luçâo 00 sonho roletivo, os intimeros ve.'"rbetes do Dictio""oire du 
mouvement otlvtùr [Dicionario do movimenco opera ri o], publ icado 
pelo infaeigavcJ Jean Maitron. 
Enquanto aguardamos, uma ccneza se impôc, enctrrando este cs-
boço de uma historia da ambiçâo: a freqüéncia e amplitude da deccpçâo. 
Em 1864 , os alunas do cu rso classico sonham corn carreiras dl; generais. 
grandes proprietârios ou advogados; imaginam-se reirorcs, funcionari os 
do registro civil, mei rinhos. A decepçâo do bacharelado mostra-sc simé-
trica à da jovcnzinha, burguesa ou camponesa; esra sonha corn 0 princi pe 
cncamado ou a belo cOr.lpaoheiro mas nâo ignora ,!ue a estratégia matri-
monial , cujas impcrativos interiorizou, iril arirâ-Ia nos braços de um ccl i-
batario envclhec ido ou de um triste palcrma. 
A VIAGEM E 
AS VAGABUNDAGENS DA ALMA 
Durance a primeira metade do sécuio, opera-sc uma rcvol uçâo nas 
maneiras de viajar. Elabora-se uma nova experiência, destinada a ocupar 
amplo espaço nos devaneios da vida privada. a modela dassico do itine-
rario calmo e serena, poncilhado de escalas citadi nas, que esti mul a\'<l. a 
t-urista a cncrcter-se corn obras de acte e visitas a monU!llentos, lClHamen-
te cede lugar a urna prat ica datada de fins do século XVIII e cu jos mode-
las foram ddinidos pelas cxcursôes alpinas de Saussure, as caminhadas 
de Ramond de Carbonnières pelos Pireneus ou as de Cambry no Finistè-
re. r-aze r fremi r 0 eu, enriquccer-se corn uma expcriência nova do espaço 
e dos ou trOS, vivida fo ra do quadro habituai, const it uem emâo as meras 
essenciais. a viajame gosta de confromar-se corn a (ena grandiosa, as 
paisagens caôticas. Dominando a fa lésia, semado bem peno dos abis· 
mas, cie ani nha-se nos flancos da momanha, a meio camioho emre 
os cumes solares e a segurança do vale. Suas IcilUras collvidam·no a de-
[rontar-se corn os bons sclvagens que habitam estes rdugios. A imagcm 
. .-11" . ';'1, 
A r\on. 
EXPEKl~:"':CJA 
DO E~?"ÇO 
466 Jj,O"mVOHfJ 
No Belle Époqlle é em fomf/io 
qlle olluceJJorel de monitelir 
Pern"chan e'Jjrenlllm ll1!Jonlonho. 
A expons40 dOl priliClll esporlilJos 
renOIJ3 0 modo, ji balillnu Ilnligo, 
do exctmiio lis ''ge/eirIJl'' dos A/pel 
ou dOl Pireneui. 
do highlander de Wavedey, do Îndio de 1..0 prairie lA pradariaJ ou das 
margens do Messachebé suscita urna etnologia rude e povoada de fantas-
mas. Os s.ibios da Academia Ceha e pouco depois os arque610gos das as-
sociaçôes ciemfficas apontam ao via jante os traços de um passado incrus-
tado na terra e sugercm misteri osas correspondências cntre 0 minerai, 0 
vegetal e 0 humano. 
Os turistas que supedotam as estâncias hîdricas emprcendem a es-
calada em grupos dos primciros cumes das montanhas vizinhas. Desde 
1816, Maine de Biran arrLsca-se pelas Pireneus, cam seu Ramond oas maos. 
Os guias rurîsticos publicados sob a Monarquia deJ ulho indicam os "pon-
tas de vista", mais tarde os "panoramas"; levam, assim coma a imprensa 
pitorcsca, a urna nova propedêuüca do olhar, logo reforçada pela desco-
bena do instamâneo fotogrwco. Entâo rCOOvaffi-se os itinerârios: apas os 
Alpes e a Auvergne. a Normandia e, mais tardiamcnte, a Brctanha co-
mcçam a ser atraemes, a despeito da precariedade da rede hoteleira. Du-
rante a Monarquia de J ulho e 0 Segundo Império os componamentos se 
vulgarizam, através de um esca lonamemo c.ronolog ico bem compreensî-
vel. Enquanto os bons burgueses de Rouen empreendem viagens à Suiça, 
Perrichon arrisca a vida no mar de Gelo. 
o simples pa.sseio l'ambérn se uansforma. 0 descjo de um rcfû-
gio no seio do quai busca-se a emoçào das vibraçôes intimas e 0 con-
sola do serena cspctaculo da natureza, ou seja, a expcriência de Rous-
seau na ilha de Saint-Pierre, conserva seu prestfgio porém renova-se. A 
l 
gruta, 0 descampado agitado pelo venta, a costa batida pelas vagas, 0 pro-
mont6rio sobre 0 quai ergue-se 0 farol brevemeOle serno os cenarios pri-
vilegiados da contemplaçao. A leitura de René ou Dominique encoraja 
a adoçao de novas conduras. Jean.Pierre Chahne constata que, apesar da 
proximidade da praia, as longas caminhadas e os solitarios devaneios cm 
meio aos basques constÎtuem os melhores lazeres dos bons burgueses de 
Rouen. 
A partir da Monarquia de J ulho, contudo, empreende-se urna nova 
expcriêocia, conforme testemunha à perfeiçao 0 circuico brecao de Flau-
bert e Du Camp. J a entao nao sc encontra mais a mesma expcctaliva das 
revclaçôes da terra, a mesma busca metafrsica e etnolôgica, a mesma prco~ 
cupaçao corn correspondências. Em contrapartida, aumenta a disponibi-
lidade para sensaçôes e mensagens da cenestesia; 0 corpo eoconrra·se mais 
engajado 00 oova circuito. A pratica de panir para 0 campo nas caleças 
de Courbct e nos barcos de Maupassant, a moda da praia , onde se bus-
cam 0 ar e 0 frescor, mas ainda nao 0 sol, as audacias do ban ho de mar 
a 13 graus centigrados, cujas fortes sensaçôes Didine relata-nos cm seu 
album, lcstemunham CStC primciro estâgio do desnudar dos corpos. 
Deve·se ((namente acresceLHar a isro 0 papel de iniciaçao que 
assume, pan 0 jovem culto, a grande viagem ao "Oriente", ou seja, 
à Espanha, Grécia, Egito ou B6sforo; ou ainda a difusao, e em segui-
da a degradaçao social, da viagem de nupcias; tempo de urna dupla 
o Sf(,ïU,'DO DO /NDWfDt'O 46 i 
A Jembronftl do excllrJJlo . 'huôù:Il" 
conldbui PtlfJ se/tir Il «MMO do 
anu/o [aff/disf 011 dll rede de omigos. 
Enqullnlo celJd en/te 01 Iralulh4dorel 
o prJlicll dOl T1IigrIJfOeJ lemponiril1s, 
tI IJÙJgeT1l luriU/Cd prop6e Il '!:JIIIlI 
cOff/odos dll pOpU/Ofiia lodtl Uf1Ul 
gomll de emo{oes refinodul. AI e/iteJ 
ponstenJeJ e 01 eJlrongelrol mal 
perdem 0 monopa/io dll iklcoberlo 
do lem·lano. (P.ms. Bihliolull 
NOClonai. ) 
J"\'TRODIICTIO\' 
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d',hi,- \Iill("""'; ,", .• , Ja L'''''II''''., 'l ' '' ')," ,~ i. ,Jo ', ·ri , -~. 
I1llo:t!."ào, SÎ rHt".(" das pr{it Îcls ;lJltigas. que condul. os jOV{·o ... lOisais l :ln -
to a Vcllt' za t Tunis como à costa da Brctanha ou aos (j o rdcs ch Norucga. 
,\ viagcm pc rmancce urna pcripécia: impôt: urna colcçiio de: rCCOf-
daçôcs cuj'I imponànc ia l'ode-se apcnas imaginar hoje cm dia. 0 indis-
pcnsâvd album aba rrotado de Îm pressôes fragmemarias c croquis iospi . 
rados na moda do Vo)'age pittoresque IViagem pitorcsca]. as numerosas 
anotaçôcs c eonlOS publieados pelos maiores nomes, de Stendhal a Flau· 
bert , de Gautier a Nerval, ateSlam a intensidade da experiêneia, Sera ne· 
ecssario enrrctamo espe rar pela institu içao dos trens de rcereio e sobrctu· 
do l'da aseensào das grandes pcregrinaçôcs, ou scja, pcla ofcnsiva que os 
assuneionistas emp rccndem entre 1871 c 1879, para que as massas ru rais 
possam cxpcrimcntar por sua vez as emoçôes que ha (jllasc um sé:cu lo en· 
riqueeiam a dite. 
Na cidade, 0 afloramcmo da figu ra do "pcrambulador", detee· 
rada por Victor Hugo e bem analisada per Baudelaire, Haduz simul. 
taneameme a mutaçao do espaço publieo e 0 avanço da pn'v(lcy. Nova 
transeumc na paisagem pétrea da eidade, 0 perambulador inaugura 
as estratégias de privatizaçao que se desenvolverao no scio do espaço 
publieo; neSte semide, aparecc eomo um elemento de lransiçao, Em sua 
explo raçâo eitadina, aprecia 0 espaço que Ihe permitirâ. reconsliwi r as 
cond içôes da vida privada; a prôpria rua tende a connituir para de a 
imagem do apartamento. As passagens que 0 urbanismo da Monarquia 
de Ju lho muhipliea e os cafés que aninham faci lmente a d aboraçâo 
de novas conduras propôem ao perambulador falaciosos interiores.Chegado 0 tempo da haussmannizaçao, a gare e sobretudo a loja de 
depanamentos, novo labirinto da mereadoria, fornecem derradeiros 
refugios a esta personagem. Tornado insOli te, cie abandona aos poucos 
a calçada ao passame. 0 pedestre apressado, ansioso por garantir sua 
segurança, corn 0 espÎrÎto absorvido por suas preocupaçôes, jâ nio pode 
dar atençao ao esped.culo da rua; para de nao se trata mais de fazer dela 
o prolongamento de sua residéncia. 
Sabe·se corn quanta audiicia os românticos rcnovaram 0 imaginario, 
multiplicaram as pistas do sonho, enriqueceram as modalidades do mo· 
n61ogo ioterior e convidaram se us lei tores à meditaçâo, à contcm pla~o, 
quando nao ae êxcase m:st!co. Pode·sc esboçar aqui as etapas de tao pro-
digiosa renO\"açao. Durante a Resl:lUraçâo rriuofa aqud e devaneio sense· 
rial no interior da natu reza , propoSlQ por Jean.Jacques Rousseau, emi· 
quccido por Lamartine, que permite à consc iência abandonar·se aos mo· 
vimentos da \' ida imerior. 0 pensamemo da morre, 0 tcma da fuga do 
tempo freore aos vestîgios do passado, a eontcmplaçâo do oceano ou da 
noire esrrclada, a escuta do rouxinol eomandam as encenaçôcs da me· 
ditaçâo. 
Oepois de 1830 alargam·se os caminhos do imagioario; 0 deva· 
neio scnsorial perde prestÎgio em benefîeio do devaocio fabuloso e iti· 
() If ; :::'0 no ISD!: 1nl '0 4(\< 
AS VERED.J,5 
DO SOKHO 
lAhord~. \ ';;;,;:em :lo Oriente'. 183(. 
(P"rù, Bib.;; :<!(;! Nacior..z!.) 
470 M .f /ll)()JŒJ 
D1VERS1F1CAÇÀO 
DAS IMAGENS 
ONfRICAS 
oerante que dâ livre U1r~u j Jtll;iJ.: i ll:H.)(). ;iviJ;1 de p rojetar-sc fumo a par-
ses cx6ticos ou 010 mais rell1o\O passado. 
Resta sabcr cm quc med id:l {"STeS Icmas lilcrârios alimenraram atos. 
A muhipljeaçâo das barrcÎras qUl" gllard:IITI 0 seg rcdo da vida privada, 
a difusao dOlS novas disc ipl in:L5 som:hie:ls e :l cresccnrc precisâo do cm-
prt:go do tempo cvidemememe s6 frl.efam esrimular a fuga para as vc-
fedas do imaginario. As moças, p:micu larmeme visadas por tais limi-
taçocs, passam a seT temadas pelas sonhos de amor etéreo; pelo menos 
o romance epistolar alraycssa ra IOdo 0 século repisando esta imagem, 
desde Balzac até Edmond de Goncourt c Marcel Prévost. A inacessi-
bi lidadc da yirgem, 0 isolamclHo do ir1cernaro, enquanto favorecem 
as praticas da dcgradaçao scxual, inciram 0 jovem rapaz :l sonhar corn 
a diiifana srIfide imaginâria. A graciasa silhueta cnrrevisc:l na igreja, 0 
pcrfeito oval de um rost'O à luz do vitraI bastam entâo para alîmentar 
fanrasmas. 
Encontram-se numerosos traços desta tendência nos arquivos da 
vida privada juvenil. As caminhadas de Eugénie de Guérin pelo cemi-
tério patecem, até nas posturas , inspirar-se na iconografja da jovem 
mulher e da morre. 0 "caderno de estilo" rcdigido por Léopoldine 
Hugo aos dezesseis ou dezessere anos de idadc mosua q ue da se es-
mera nas "dissenaçôes rned irarivas" e revela na aurora urna espan-
rosa maruridade quanto a esta prarica. Um de seus rextos, imirulado 
Le soir [A noite], é uma longa anâlise de tal escado de devaneio. George 
Sand relata como, cm sua ado lescência, deixava sua imaginaçao criar 
um parque de Versailles, que ela nunca vira. Em seguida é a jovem 
Aurore que adquire 0 habito de abandonar-se às ilusôes de um instan-
te, de entregar-se às mais loucas idéias; cm casa, a divagaçao itinerante 
tende a transformar-se cm mania. Ela avaliza assim a célebre extrava-
gância virginal, subJinhada pelo discurso méd ico. Aqui despoma inclu-
sive a [emaçio flauberrÎan a da vida sonhada e nio vivida, cuja cxten-
sao lamentavdmeote é impossivcl medir. 
o aumento da demanda onÎrica decectado por Jean Bousquet ex-
plica a extrema atençao dispensada pelo século <l.OS pracessos do sonho, 
percebido como 0 mais secreta cemra da personalidade, protegido pelos 
multiplos involucros da vida diurna. A fun de evitar qualquer anacro-
nismo, convém recordar aigu mas cvidências que 0 domlnio das {eorias 
freudianas levou a perder de vista. Durame as primciras décadas do 
século XIX, os fd6sofos interrogarn-se sobretudo acerca do estado no-
[urno da alma; Maine de Biran julga que ela também adormece; Jouffroy 
considera, inversamente, que ela vela; lélut, que repousa; scgundo os 
româmicos, 0 sonho equivale para a alma a urna verdadcira ressurrei -
çâo. É nada menos que 0 ser plOfuodo que toma a palavra. 
A impordneja ar ribuida l'dos idcôlogos ft cenes tes ia e ii influência 
do frsitû sobre: 0 moral guia por muito te:mpo as explicaçoes cientîficas 
sobre os méGtnismos o nrticos. Conduz a p rivilcgiar 0 papel das mensa-
gens orgânicas, visce rais ou cerebrais c simultaneamcme a valorizar a in-
fluêllcia das prcocupaçoes da véspera e dos resrduos das scnsaçôes diur-
nas. Dar as dÎstinçôcs ope radas por Maine de Biran e, mais tarde, por Mo-
reau de Tours, Alfred Maury ou Macario, entre os $Onhos scnsoriais, afetivos 
e inrelecruais. 
Entre 1 84~ e 1860, concudo, urna pléiade de sâbios franceses renova 
perspectivas; para des 0 sonho nâo passa de um dos multiplos mecanis-
mos de regressao e dissoluçao das formas superiores do psiquismo; fica 
relegado à patologia, 010 lado do delfrio e da loucura. Os pesquisadores 
dedicam dc:sde entao uma grande arençao ao sonambu lismo, assim como 
ao processo hipnag6gico, ou seja, a estas imprecisas sensaçôcs que se im-
paem nos limiares do sono, quando a coerência do pensamenro se desva-
oece. A obca de Moreau de Tours, De l'identité de l'étot de rêve et de 
l%lie !Sobre a identidade do estado de sonho e da loueura] (18~)), as-
sim como 0 fascÎnio exercido pela AlIré/io de Nerval, traduzem esta' 'psi -
quiatrizaçao" das anlilises. Elabora-se entao uma ciéncia do sonho, que, 
pelo menos na França, reinara inconreste até a Întroduçâo da psieallâlise. 
o probJema da hisroricidade da fenomenologia do sonho e da divi-
sâo social das pratÎcas oniricas mostra-se mais ddicado. Jean Bousquet abre 
o debate de maneiea perempt6ria. Segundo de, "apenas depois de 1780 
os homens sonham estas cenas esuanhas, estes bizarros jogos sem signifi-
cado" que constÎtuem a crama do onirismo comemporâneo. A acreditae 
em sua tese, houve no fim do século XVIII uma reviravolra simultânea na 
forma, no conreudo e na funçao do sonho. 
De qualquer maneira, rodos os especialistas coincidem cm observac 
um debi liramemo do sonho premonit6rio. 0 fururo deixa de poJarizar 
a atividade onÎcica. Segundo George Steiner, a difusâo da cosmologia new-
toniana e, em seguida, do evolucionismo de Darwin ;a nao permitem que 
sc procurem os sinais do amanhâ na obscuridade da noite individual. Di-
to isto, 0 sucesso que continua a bafejar, duranre [odo 0 séeulo, as Clés 
des songes [Chaves dos sonhos], difundidas poc mascates eotre 0 publieo 
popular, atesta, a proposito, 0 escalonamemo d~ compo:tamenros e a ma-
nutençâo das crenças arcaicas. 
OUlta evidência: 0 cecuo do son ho para 0 passado individual. Os 
româotîcos 0 estimulam, !>Ois consideram 0 sonho coma um cetomo às 
proprias eaîzes do ser, que esrariarn impressas cm sua p rimei ra infância. 
Este desenvolvimento dcve-se à reavaliaçao da infância que eSta cm vias 
de se operar no seio da célula famil iaL 
Menos garamidas sao as evemualidades do onirismo erôtico. tais co-
mo parecem dclinear-se. Casa nos atenhamos ao sonho literario, esta cla-
ra manifestaçâo do descjo, freqüente no século XVIII, regride cm seguida 
at é 1840-18 50. cm bent.:fkio das imagens de amor platônieo. A :lt ividadc 
onirica acompanha ponamo a marcha do deva neio diurno. Ope ra-sc cm 
scguida um Ilhido rClOrno ao erotismo. avança 0 sonho b scivo, prostibu-
lar. (al como os rerrata, por exernplo. Flaubert. A dar crédito a Chant:.tl 
Briend . esta onda se esrende entre 1850 e 1870; 0 prestigio da vcnalidade 
sexual e a licenciosidade da festa Imperial rambém freqüeotam 0 sono. 
Alfred Maury vê nesta volta do erot;smo a manifestaçao de urna nlXessi-dade de . 'desamontoamento" (sic), despenado pela tentativa de descor-
porificaçâo cm curso. De fam existe urna curiosa sincron ia cotre este pre-
dorninio onrrico do sexo e 0 ascenso do angelicalismo. Os mais tûC2dos 
pela tentaçâo do erotismo cm sonho scriam as mulheres histéricas e os 
rapazes vi rgens - e agui recnconu amos 0 drama das pcrdas seminais in-
volunn'irias - , assim como "as pessoas que se ded icam a trabalhos iote-
Iectuais e à meditaçao" (Macario). Aiguns sonhos norurnos narrados por 
Edmond de Goncourt e, mais ainda, as ceoas ooiricas de incesto relatadas 
por Ju les Renard em seo d ii rio atestam a aguda consciência da rdaçao 
que existe eotre 0 sonho e 0 desejo sexual, em urn momento em que ger-
mi na a psicanilise. 
Yale registrar ainda a freqüência do tema onrrico da viagem, da 
diligência, do trem e da evocaçao de urna pa isagem; elemento tenden-
o J E(,"/i/:"1l0 /)(1 /1\'/l1l7i)l'{) 4 73 
As ena/liras do pcsodelo /ombém /é", 
SilO hù/6tio. Entrt! a inr1t!nfkJ dil 
gl/i/ho/ino t! os nellf"QUS d<J finol 
do sielllo, 0 simplificofdo do oru nol 
dt! JI/pl/cio do eorpo, 0 r0101loç40 
das figuras do ollgiiJ/in e da sojrimm/o 
prollocom 0 me/omarfose d:zJ 
rmmeiras dt! sonhar. (Pagina 472: 
Glls/olle Doré, A rua da ,~lha 
lant~rna, 1855. Pons, BibliOUta 
Nacionol. Ao Jado: Louis Boulonger, 
li/ogrollllro iluJ/rondo "L'oeillom 
poupières ", ex/ro/do dOl Contes 
bruns. Pans, BiblioteCl1 Nadonol.) 
4 74 JH s n OOkliJ 
Os ex-votos se mu//iplicam no Jéculo 
XIX. Es/e ao /ado illulra pùn.llmenle 
(J el/o/u(ao de sua es/rotura. 0 esP:Jfo 
concedidO!lOI i"ferceuores ceùJtes 
fende a se reduzir, lU) pauo que 
se expandem mais amp/amen/e 
os epis6dios dal/ida pn"vada que 
prol/ocam 11 gratidJo. (Noua Senhor.ll 
de Laghet.) 
te : c~nfirmar que esta em gestaçao urna nova experiência de espaço. 0 
propno Alfred Maury sonha corn majestosos sîtios, lugares que conte~­
plou como turisra; nada menos que seis cidades freqüentam os sonhos 
q~e rel:t~; e ~l,e~ conf~a, a proposito de uma forma peculiar de sensaçao 
hlpnagoglCa: E pamcularmente quando viajo que fico sujeito a estas pi-
wrescas alucinaçôes' '. 
Seria interessante registrar 0 rcpercorio dos temas politicos do son ho: 
ob.servo,. de minha. pane, que 0 gesto revoluciomirio retorna aqui enquanto 
:ettn:.ottv nos escmos dos cspecialistas; testefl1unha inconsciente da pro· 
tundldade dos anseios? 0 sonho da guilhotina, vivido por Maury e reto· 
~ad.o por Bergson, conquistou a celehridade, assim como 0 das pinças, 
IOsplf3.do ao mesmo Maury pelas jomadas de junho [de 1848]; porém calvez 
na~ se deva ver mais aqui do que dois destes sonhos sâdicos que Chantal 
Bnend afirma terem proliferado em fins do século passado .. 
Este punhado de consideraçôes parece bem desconcxo diante da ma· 
j~swsa construçâo arqllitctada por Jacques Bousquet corn 0 reforço da ana-
lise de c(ntenas de sonhos Iiterarios. Scgundo este autor, desde 0 fim do 
A~ti.go Regime diversificou·se progressivamente 0 estoque das imagens 
omncas, até entao estritamentc limitado a evocaçôes do paraîso e do in-
fern~. Na d~scendêncja do Éden inscrevem-se os sonhos de jardim, cm 
segUlda as vIsôes de paisagens naturais; ao inferno reportam·se as visôes 
de subteuâneo e de cidade, assim coma todos os sonhos de angustia que 
1 
desâguam nos deHrios eswdados pela psiquiatria; é a l;~ta que ~c den.: :tt ri -
buir a renovaçao das formas do pcsadelo. Assim tcriam se propagado, no 
scio do sonho, os atos involumârios e episôdios de dcsdobramento da per· 
sonal idadc. Ap6s 1850, as duas séries (onvergem kntamente (' sc mes-
dam, ao passo que se conclui a laicizaçâo do sonho. A partir de entâo 
pode expandir-se 0 onirismo contemporâneo do absurdo c do bizarro. 
Este fascinante pcrcurso, assim como certas obscrvaçôes que 0 preee-
dem, tende a referendar a hip6tcse, amifreudiana, da historieidade do 
sonho. Nao se pode, corn efeico, deixar de leva! cm conta as numerosas 
concordâncias que se estabclecem entre a hist6ria do imaginario c a evo· 
luçâo dos conteGdos onrricos. 
MEDIADORES DO COLOQUJO SINGULAR 
o estudo quantitarivo da difusao do livro rdigioso, realizado par 
Claude Savart, impôe prudência: em pleno auge do Segundo Império, 
a reediçao de antigas obras continua a sobressair. A cominuidade parece 
sem duvida maior ainda quando se analisa a literatura de brochuras des-
tinadas ao pûblico popular. 0 que leva a pensar que 0 pensamento rdi· 
gioso e as formas da prece individu al 56 evoluîram muito lentamente. As 
técnicas do exercîcio e5piritual ainda se inspiram esuitamente nos mes-
tres do passado. A Imitation {Imitaçao], que Lamennais apresenta em nova 
ttaduçao, continua a ser por muito tempo 0 mais d ifundido guia do cris· 
taO zcloso. 0 "born cura" de Ars fornece 0 modelo de um ascetismo es-
piritual, aternporal, que opera a fusao dos mûltiplos modelas de santifi· 
caçao; e a piedosa Eugénie de Guérin ainda lê corn veneraçao santo Agos· 
tinho, sao Francisco de Sales, Bossuet c Fénelon. Os missionarios da 
Restauraçao, infatigaveis evocadores das torturas do inferno, inspiram-se 
no tom dramatico dos pregadores de outrora. 0 româmico, fascinado pc· 
la morte, vibra com as terrlveis entonaç6es de Tenuliano ou sao Bernar-
do; corn toda a naturalidade, a meditaçao sobre os fins ûltimos ingressa 
nas novas encenaçôes da rnelancolia. 
Feitas estas reservas, nao se podcria negar originalidade à piedade 
do século XIX - terna um tamo negligenciado da sociologia religiosa, 
inteiramente absorvida pela preocupaçâo de medir a descristianizaçâo. A 
. anâlise das Îmençôes da prece e dos testemunhos de gratidao conduz a 
sublinhar a especificaçâo que se accntua e a familiarizaçâo das preocupa-
çôes que os recursos suscitam. As preces pela conversâo e salvaçâo do es· 
paso ou do irmâo, pela prosperidadc nos neg6cios ou 0 êxito nos exames 
agregam.se ao ja considerâvel estoque das demandas de cura individual, 
boa sorte cm viagens marÎtimas ou salvaguarda do soldado; a este res· 
peLto, 0 testemunho dos companheiros do padre de Ars coincide com 
os resultados obtidos por Bernard Cousin. Nunca 0 ex·vota foi tao difun· 
dido corno no século XIX; na Provença, seu dedînic 50 chega durame 
° S~·(;~'E<' .'0 INDWfDl"O 47; 
A PRECE SOU T:\.RlA 
E A MEDlTAç.~O 
4 76 M Y}1D()R/:'.\ 
É J (J sirulo XIX qu ,; Je "t'I'<' 
Il m.lI'ona d OJ call'oino! org Jf11z JdoJ 
IIU (JIIIPU fr3l1cés. 1('J1emull /;;mdo 
J l 'er/ .:nlt' IrJgica dJ )(' flJibilidJd" 
rdigioSt1 da époco. A l Ileltes brot/caJ 
dos 1/1O[OJ qUt ilConlponham 
a procùsJo tÏ1ISlrom cm CO nlriJ!le 
o Cluater serajico de umo piedodt 
dt ",eados do !éculo profundaffltnle 
fnarcado pelo culto 0 Mtma. (Acim:.l." 
É,mle Charlel, Safda de proôssl0. 
Saliio de 1913. Embaixo:Ju/ts BUlon, 
Imp!ancaçâo de um ca!vario. Mustu 
dt Ldle.) 
A EXAITAÇ.A.O 
D .... DOR 
o pcrfodo 1870-1880; este sfmbolo m:uerial de reconhecimemo Iraz a marca 
das preocupaç6es da pcqucna burguesia, para a quai tomou-se uma for-
ma de cxpressao priviJegiada. A nescente atençao dcdicada à figum do 
bcndiciario combina também com a asccnsao do individualismo, que recn-
contramos a cada passo. 
A familiarizaçao do recurso manifesta-se ainda no progresso da pre-
ce pelas aimas do purgatorio; é cmao que esta devoçao rama-se realmen-
re popular. Para aliviar os sofrimentos dos mottos de sua famflia, que ao 
que ele acredita ouvem seus apelos, 0 filho piedoso manda celebrar mis-
sas, comunga, multiplica as oraç6ts, esforça-se por adquirir indulgências. 
Em 1884, um padre de aldeia, a abade Buguet, que se imitulaci "caixeiro-
viajante das aImas do purgat6rio", funda cm La Chapelle-Montligeon a 
"Obra Expiatoria", fadada a conheccr um fulminante sucesso: em 1892 
da jâ conta corn 3 milh6es de associados. Este possante crescimento reve-
la a necessidade da presença dos defuntos no local em que viveram; semi.mento traduzido também pela moda do espiritismo, que deslancha nos 
meÎos cuiras corn 0 advento do Segundo lmpério. 0 desejo de evocar os 
desaparecidos aumenca depois que a cuita familiar dos mottos foi codifi· 
cado. Comprcende·s,e a partÎr de emao que a ênfast deixa de estar nas 
chamas do purgat6rio e que 0 cenario do suplîcio provis6rio transforma-
se pouco a pouco cm uma espécie de confottador "parlatorio" (Philippe 
Ariès). 
Novos epis6dios da vida espiritua!, novas ritos de passagem da alma 
se impôem, enquamo cresce 0 agnosticismo e aumenta 0 numero de livres· 
pensadores. A experiência da perda da fé concerne a efetivos crescentes. 
Também ncstc dominio aprofuoda.se 0 dimomsmo sexual. 0 jovem, so· 
bretudo, deve provar 0 embatc corn a duvida entre os dezesseis e os 2) 
aoos, ao ingressar na sociabilidade dos aduleos. Traça ducavel do passado 
revolucionario, uma imagem tcigica mamém-se na retaguarda das cons-
ciências: a do padre renegado que convette 0 sacerd6cio em escarnio e 
que inspira Barbey d'Aurevilly no mais brilhante de seus romances. Fren· 
te a da, avulta a figura do conveniciù. A nova categoria de zelosos cristaos 
que conduz tentativas de reconquista extrai um redobrado confono da 
evocaçao desta experiência individu al que rtoricnca coda uma vida. De 
madame Swetchine (181) a Ève Lavallière, "a cancârida malva" (1917), 
de Hu~'Smans a Claudel, de jodhos ao pé da pilastra da Norre·Dame. uma 
coorte de arrependidos célebres, fulminados pela fé, ajudarâ a aplacar os 
temores da dilvida e os SUStOS do abandono. 
Para além das generalidades, convém, urna vez mais, dividir a sécu· 
la em dois periodos distintos. 0 primeiro (raz a marca de uma sensi-
bilidade barroca que culmina sob a Restauraçao e onde domina a exal-
l 
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T 
! 
478 h'MnOOJŒJ 
RUMO A UMA 
PIEDADE SERAFICA 
taçào da dor. Assim tcstcmunham a ieonografia c a litcra tura qut: dao 
apoio à preee. 0 rt:alismo corn que se desc revcm os sofrimcntos de 
Cristo se exacerba a(é ombrear corn 0 sadismo. A publieaçào, em 1815, 
de L'il1tén'eur de jéJus ct Man'e [0 imcrior de Jesus c Maria], de Grou, 
e a traduçao, em 1835 , das Visions d'Anne- Co/herine Emmen'ch sur la 
vie de jésus et sur sa douloureuse Passion IVisôes de Anne-Catherine 
Emme rich sobre a vida de Jesus e sua dolorasa Paixào 1 delimitam 0 
periodo. A agonia do Jardim das Oliveiras suscita entaO terrivcis pagi-
nas. Nesta literatura, que inspira a eseola neolamaniniana, 0 sangue 
corre, esguicha e rccobre 0 corpo do crucifieado. lmpëie-se 0 costume 
de cingie a imagem do coraçâo corn a coroa de espinhos. Difundem-se 
imagens do Cristo corn um dedo apontando para seu torax abeno. Os 
rornânticos fazem do proprio Menino-Jesus urna figura sofredora; é 
entao que se eJabora a ieonografia do Menino corn 0 Sagrado Coraçao 
cercado pela coroa sangrcnta. A devoçào a Maria testemunha igualmen-
te esta fascinaçâo; Nossa Senhora das Sete Dores, a figura do Stabat 
mater focalizam a piedade mariana. Ainda cm 1846, a Virgcm de La 
Salette traz as insignias da Paixâo. 
A prâtica revela esta sensibilidade trâgica, confonada pela crcnça na 
circulaçao do sanguc de Cristo através da historia. Numerosas mulheres, 
e mesmo moças, filiadas ou nâo às ordens terceiras, usam, a exemplo de 
edesiisticas célebres, um cilicio ou até terriveis cintos metilicos. 0 padre 
de Ars f1ageJa seu "cadaver", enquanro Lacordaire faz corn que 0 piso-
reiem e cuspam na cara. A imitaçao de Cristo ja nào basta; as novas pre-
ces exaltam 0 tema da penetraçao romo ao reffigio ideal. lnsisrem 00 de-
scjo de habitar 0 Coraçào de Jesus, de chegar a de pela comemplaçao 
de suas feridas. A mesma sensibilidade origina a pradca do caminho da 
cruz; esta, comudo, nâo se difundirâ amplamente antes da segunda me-
rade do século, coma demonstram estudos realizados nas dioceses de Ar-
ras e Orléans. Yves-Marie Hilaire observa a prop6sito que jamais se cons-
truiram tamos calvarios como ,no final do sécu lo XIX. 
A piedade se detém apos a frarernal revoluçào de fevereiro de 1848. 
Dez anos antes, 0 médico trapista Pierre Debreyoc jâ criticava a vio-
lência ascética, acusada de favorecer ramo a histeria como a tîsica. Vma 
rdigiao mais afetiva coloca em xeque 0 reino do medo e do antÎmisti-
cismo. Os ternas da iconografia evoluem para urna maior plasticidade. 
A nova manofonio e a evoluçao do dogma lrnpëicm urna piedade sera-
fica; a radiosa donzela branca de Lourdes afasta-se da Mo/cr doloros(/. 
de La Salette; a suave imagem da lrnaculada Conceiçào de Sées alia-se 
à figura confoftadora do anjo da guarda , que, em breve, ira triunfar 
no "cromo". A propria virgem do Sacré·":ocur d'Issoudun nad a mais 
possui de tragico. 
lmpëie-se urna nova cena, que simboliza a distensâo: a preee in-
fanti! e maternai. Os manu ais de educaçào exaltam 0 "tocante quadro". 
l 
Cabe à mae comar a criança no colo, unir suas maozinhas e fazé-Ia ba1bU-
ciar as primeiras palavras. Assim se eoraIza nos pueris coraçôes as ima-
gens da Virgem e do "Pequeoo Jesus", associadas às da mae. 0 suave 
aprendizado vern renovar esta rdigiao doméstica ainda tao pouco conhe-
cida dos hîstoriadores. Prepara 0 decreto Quam singulan' que, em 1910, 
autorizara a comunhâo privada. 
o culto do "santissimo sacramento" e os progressos da comunhâo 
freqücme concorrcm para a distensâo. A adoraçâo perpétua que, a titulo 
de exemplo, é instituida em 1852 na diocese de Orléans c reabilit~da. n? 
ano seguinte na de Arras faz anorar urna nova fonte de emoçâo mdlVl-
dual. Esta guarda igoalitâ.ria de Deus, este cara a cara solitario e prodi-
gioso impressiona os mais empedernidos fiéis. Nas relaçôes do "bom 
cura", gOHa-sc de evocar a figura daqude camponês inculto que vern passar 
horas a fio na pequena igreja, uoicamentc para visita! 0 Born Deus; a quem 
o imerroga sobre as formas de sua devoçâo, cie responde: "Eu 0 vejo e 
Ele me vé' '. Este sublime nrvel zero da prece convida a nâo esquecer a 
imponância de recitar 0 rosârio e meditar sobre os seus mistérios. ~ais pra-
dcas tendem a se amplificar e ao mesmo tempo a se populanzar en-
o JEGiŒDO DO f{l.1)!vtDI'O 479 
Eù uma un3 ainda muùa 
negligencÎ3do pelos hù/ori:uious. 
o culto domùtico IlbJOTTe 7101'31 
figur4s do 'ù/,; prit'3d4. A puce 
e se" 4prendiurdo estreÙIZ711 os ";nculos 
en/re moe e filhol. A indin:Jf40 
pela Menino Jesus con/M'Il' Pllnl 
in/ensificar 0 intercimbio 
4e sentimental. 
A imagem da pietiade ocNtil 
com reg/umo e sem rot/nos Il th, 
e 0 !lJtlgue do Cris/a TOm8nlico. 
Muito di/undidos. estas 0'.;;&1 
inspiradas pelo 54grado Cor.;;40 
contribuem p4r:J enroizar n:n oImol 
sennlleu 0 f:uc;mo do marte. 
4S0 flA \Tm()~'1 \ 
A BONECA 
E 0 MONOLOGO 
INTERlOR 
[rc 1850 e: HŒO, graças .10 rc:~urJ.:im<:lH o ou cri:içào dt: numcrosas con-
frarias. 
Ap6s 1850 multiplic:im-sc as devoçocs paniculare:s. ESla dispefsào 
do H:curso, esta mullipliC:lçào dos ÎmcrloculOfCS da prece:. abundantt:· 
mente teslemunhada pela eSlaruaria de mau gosto, consl ituÎ um habil 
esuatagema para entrar cm Juta conua 0 cu lto popular dos "bons 
samos" e das "Loas fomes", culto cuj a persistência muiras hislOrÎa-
dores mostraram tanco cm Charente coma cm Limousin. no Loir-et-Cher 
ou cm Morbihan. A mesma esrratégia podcria ter dirado 0 renasci-
menra ou a fundaçao de numcrosas pcregrinaçoes diocesanas, e acé 
camon ais, antes que venha a inflar-se, ap6s a derrota da Comuna, a 
moda das grandes manifcstaçôc:s nacionais orquestradas pelos assun-
eionisras. 
No inîcio da déeada de 1860 desenha·sc a nova imagcm de uma rc-
ligiao séria, moralizame e sobrerudo calcu lista, pauco dada à gratuidade 
c à cspantaneidade; 0 discurso da picdade passa a cmpregar a linguagcm 
do eapita lismo: esta é a eonclusâo principal da pcsquisa de CJaude Sa-
vart. A nova concepçào utilÎlaria da preee. cm harmonia corn a macla dos 
ex-votos, conduz a uma rcnovaçâo do ascetismo.Enquamo os genuflex6-
rios burgueses vao sc ramando mais confortavcis, a violência fÎsica cede 
aos poucos li comabilidade dos méritos. A disciplina cotidiana sobre os 
impulsos, a oferenda da fadiga do trabalho, as abstinéncias moderadas 
estimula um incessante calcu lo da aJma. que integra imimamente a pre-
ce ao dia-a-dia da vida privada. 
o mon6Jogo imerior precisa de imerlocucorcs mudos que entrete-
nham a vibraçâo da alma. No século XIX {rés deles descmpenham um 
pape! nao ncgligcnciavel; e 0 primciro dcles é a boneca, cuja complexa 
mediaçao nao foi analisada até 0 fim. 
Durante a prime ira mctadc do século XlX, observa Roberc Capia, 
"a boneca francesa nunca tem 0 aspecto de urna mcnina, mas 0 de uma 
mulher em miniatura, cujas coupas, muico cui dadas, scguern de peno 
a t'voluçâo da moda". A ciorura fina, os quadris largos correspondcm 
aos cânones da beleza feminina da época. 0 eorpo da boneca é de pa-
na ou pele de cordeiro. corn enchimento de strragcm. A cabeça e 0 
colo sao de poprà môché, os dcotes de palha ou metal. A boneca acom-
panha 0 passcio da criança. A gama dos modelos, a riqueza dos enxo-
vais, as dimensôes da casa rep roduzem a hicrarquia das posiçoes; por 
isto 0 brinqucdo faci lita a tomada de consciência da idcntidade so-
cial. E a boneca ascende corn taoto maior facilidade à condiçao de con-
fidente. A literarura que a anima e Ihe empresra uma linguagem, assÎm 
como 0 progressa técnico, estimula esta funçào psicol6gica. Desdt: 
1824 , fabr Îcam-sc brinquedos que falam ; em 1826 aparecem as primeiras 
bonecas que and am. 
Por vol ta de meados do século (1855), opera-sc uma revoluçao: eo-
n .l'/·'(;fE'0 PO INDlvfDlJO 481 
NOl pn'rnii,dios da Terceir3 
Repub/ica. a boneca aÙlIla conserva 
IZ apar;ncla d~ JIma jOllenzinhl1 
que aulonu Il identificlZpo 
e a confid;nciJ. No fina/ do J&u/o, 
ela Jo concorre I1penal p,ua 0 
aprendizlldo d:1 funçJo r/1lZlerna. 
(Henn· LauunJ·DesrouJJeoux, 
A toalete dltS bonecas, Solda de 1904. 
Pans, BiMiolN:1 das Arles 
Decoratit/,)!. ) 
481 IlAJ71D()RfS 
lI"'J "tipi.; (;/ (1.1 /, {' z fIIJÙ j u q iloll.' 
COIII 0 du orrcr daJ t/Ù iJd.1J. 
o ofil!go 110 animl1l tir eJlimJ(Jo 
coinf idl' fO!fl IIJ uprl'unl.1(6f'J 
da Jl'lIJibilidode /eminilla. (VJ/én"e 
ROflenbourg, Sej2 bonzinho!, 
Sl1liio dl! 1912.) 
o dllgul!fuOJipo jii JI! eJ/orpl 'll parJ 
COnJeTVar os JrafOs do amigo fiel. 
Tomhim 0 cào dewu posar. (P,ms, 
BibliOlua Noe/o"al.) 
o ANIMAL 
DE ESTIMAÇAO 
quanto a guta-percha sc impoc.;1 bunn:a tende;1 torn:tr-St: uma menin:!. 
impropriamcnlc· chamada dt" ··bebè' '. Ao longo dos anos , 0 noyo modt:-
10 u iunfa. Este re juventsc illlcllt o facilita a idclHi!icaçao: estimula a rdk-
xiio sobre a rdaçao maelfi lha que.: sc re.:produz cm uma voragcm e so!iùt:l 
a anrecipaçào imaginaria. EntreulfHo, a COcx islência , durante 0 Segundo 
Império, de brinqucdos cm forma de mulher e de "bcbê" permite uma 
rclaçâo ambigua, de exccpcional riqucza. Bordar 0 enxoval da boneca, or-
ganizar um bai le: para da, imaginar seu casamcnto delineiam 0 destina 
que viti; [Oda esta atividadc camprccndc adcmais uma sociabi lidade in-
fanül que pcrmitc 0 aprendizado dos papéis femininos e dos usas 
mundanos. 
o constame rejuvenescime.:nra das formas da boncca muda aos pou-
cos os dadas do colôquÎo singular, cmpobrcct:ndo- lhc 0 comelldo psico-
lôgico. Quando, cm 1879. aparecc a "bcb&-chupcra", chamado "bcb&-
mamador", quando 0 vesruârio nào passa de cuciros e fra ldas, quando 
a casa de bonecas reduziu-sc às proporçôes do berço, nâo hii mais idemi-
ficaçao ou confidéncias possivcis, 0 nova brinqucdo ronvida apenas ao 
aprend izado do papel materno; rcnovaçâo de intençôcs que traduz uma 
novidade gestual pueril. prelCidio da escola de prendas domésticas. 
Em 1909. a evoluçào se comp leta , É entâo que aparece 0 "bebé-
narureza", que tem a cabeça de um recém-nascido, 0 suc<:sso do nova 
modelo é imediato; prepara 0 do "banhista". de celul6ide, que aparcce 
cm 1920. Mas na época ;:1 impera 0 animal de pdCicia. rcproduzindo -
e estimuJando - uma relaçâo que nâo dcixou de sc ampliar ao longe 
do século. 
A historia do anÎmal de estimaçâo rcvcla, igualmente, a imponân-
cia do cone que se delineia por volra de mcados do Segundo Império. 
Até emao prolongam-se as condiçôcs elitistas estabelccidas sob 0 Antigo 
Regime. A corec de Luis XVI jâ rompera corn a rradiçao cristâ da indife-
rença - ~e nâo desconfiança - diante do animal desp royido de alma; 
rompera também com 0 animal-maquioa dos canesÎanos. Fora-se 0 tem-
po em que Malebranche dava ponmpés no ventre da gata esperando cria, 
surdo aos gritos que atribuÎa aos "csprritos animais ' '. A afeiçâo que Rous-
seau dedicou a seu do fiura escola nos salâes; deixara-se de considerar 
o an imal coma urn boneco vivo para ver nde um individuo, digno de 
senumento. 
No alvorcrer do século XIX, a cl ar crédito a Valentin Pelosse, a re-
laçao afetiva é admitida; c é inclusive de.:signada coma pci rica estabc· 
lecida, mas sob duas fo rmas privi lcgiadas. Antes dc mais nada, exalta-sc 
o vinculo que une 0 dio à mulher. Os doces sorrisos, os olhares afe-
tl/OSOS, as " inorcmcs carkias", a " brincadeira folgaza" atestam esta 
tendência para a ternura, eHa abcnura para a piedade que 0 d iscurso 
médico rcconhece na mulher, Tais gestos fcnJininos de compaixâo sac 
. \/Jwil l//() 41,-, 
."·,' //I)(JRf ' 
l''v':;,..;/ do ,éculo abOft1-U 
" rt rm Jo do lafo fk dependùm ..: 
no :r.;<rior do espsço pn'Jlt1do. 
(Cb.;.--;'u TreJlOr Ga,{:md, Menin:. 
d~:e:l.:kndo $CU galO, P.;rù, Bihl:;,.;~:.J 
t/.;, . ~ --:êJ DecOr.1,ù·;3J.) 
igualmente mensagens dcsti nadas ao homem. AnibuÎ-se desta maneira 
uma nova funçao ao anima l no espaço doméstico: mediar a propedêutica 
do seocirnenro. 
o v10culo afetÎ\'o quc se escabelece entre 0 anciào e 0 auxiliar de 
sua decrepitude constirui a segunda figura privilegiada. Alguns textos 
maiores balizam esta exaltaçâo d'a fidelidade do do: 0 sermào de Lacor· 
daire sob re a ultimo amigo do velhinho; a figura do cio branco do padre 
de Joee/JTi e, mais tarde, a silhuera do infatigavel lobo Homo. levado à 
cella por Victor Hugo cm L'homme qui n't (0 homem que ri]. 
A reroura dos ncos manifesta-se no espaça privado e é reforçada, em 
contraste. pelas imagcns da violência animal e da crueldadc populares que 
se expandem livre mente no espaça publico, Ali se ope ra um Jasrima"cI 
aprendizado do S:lOgue. que uma neccssâria profila.xia social ira proibir. 
A adminisrraçâo da :\Ionarquia de)u lho começa por oculta r 0 abate, pela 
menos cm Paris. A i\ssembléia Lcgislativa vota a Lei Grammom (1850), 
proibiodo ao prolct:uiado a vio lência publica contra animal doméstico; 
medida sem maior a1cance, que tevc sobrerudo 0 cfciro de destacar a soli-
dez das barreiras pro[etoras da vida privada. 
,\ l-pOla rOlllÙIlÙl ;( i-;')Jllt:u.: Il UIllt:ru~u~ n;nllplo~ Je ;Ili(ud t·~ d t.: lef-
nura para cam 0 an imal dt Lomp--.rnhia. Eugénie dt Gué rin ama se.:us de.:· 
zinhos; :!ca ricÎa-os, cuicla dcJcs, reu por des: chora a pe rda de um c dt·ci· 
Je cmewl·1o condignamcllic Este npÎtu lo de ~ua \,iJa afeliva ocupa amplo 
espaça cm seu diari o, Seu amOf dirige-sc também ao pâssaro. (!Special-
mente 0 rouxiool ; sua arcma solicirudc csrende-se mcsmo aos fnfimos mos-
quitos que atr--d.vessam a pagina de um :ivro. Ja aqui a animal faz-se fe-
curso comra os tcmorcs da solidâo.lsolado, cm l84 1, cm Cita\'C(chia, triste 
por nâo l'Cr ninguém a quem am.ar, Stendhal afaga seus dois cachorros. 
Victor Hugo mosua-sc muitO apcgada ao bom câa que 0 acompanha no 
exilio. Os cadernos dt: Gambon sio :;ûnda mais revcladores dt.'Sta sc nsibi-
lidade. Quase cinqücmiio, ele deu."2-se comovcr pelo o lhardo bai. a viV<l-
cidade do cava lo, a fragi li dade do ameiro. Na prisao, tal como fazia Sil-
vio Pellico, alimenta uma aranha e lcm par companhia um caramujo. Em 
Dolleos, Mazas,mais tarde em BeUe-Île, cie cria e Hala de loutinegras, 
que sc tornam suas melhores amigas. Aprcnde corn um companhciro de 
infortûnio, um pobrc camponés do Limousin , 0 canto dos pintassilgos; 
emprcende até dirados musÎcais! 
Uma cena destas constirui bom indkio do apcgo dos homcns do povo 
aos animais. Convém , corn cfcito, nio se d ei xar levar pelo discurso domi-
nante sobre a brmalidade do carroceiro e as praricas sangu inarias dos or-
ganizadores de brigas de galos ou de caes. Em toroo dc 1820, os campo-
neses de Aunay.sur-Odon espamam-sc corn a cmeJdade de Pierre Rivière 
para corn ~ râs e os passaros; e ficam indignados com as sevlcias que de 
impinge aos cavalos. A correspondëncia dos Odoard de Mercurol cnsina-
n<?s que 05 camponeses do Drôme tém 0 costume de nao abatcr os ani-
mais que os serviram bem; e sabc-se da paixâo dos opc rarios do Nanc 
pdos pombos. Em 1839,) . B. Roch:lS Séon apresenra a Histoire d'un che-
val de trollpe [Hisrôria de um ca\>alo de rropa]. 0 cOntO é cdificame: um 
jovcm agriculcor nào teme alistaHe para seguir s: u cavala, com-
prado pclo Exército. Elc marre de risica, e 0 animal recusa-sc.:l. sobrcvive r 
sem cleo 
Apôs 1860, as concluras de (cmura sc difundem e sc .aprofundam 
simultaneamente; opera-se entâo 0 .aprcndizado de uma vcrd:adeira neu-
rose coletiva. Ja em 1845, a Socicd2dc Procctora dos Animais instala-se 
cm Paris. É cerro que a fundaçao da pravas de anglomania; mas rcflcte 
também os esforços desenvolvidos por alguns franccscs z06filos, tendo à 
freme a dr. Pariset. Sob 0 Segundo lmpério, 0 cao de apartamcnto lorna-
sc um fato na socicdadc; 0 poodle. cm cspecia l, eSta na moda. Desdc en-
taO amplia-se a mania d as exposiçôcs caninas; en quanta cresee a obsessao 
por pedigree e pêlo escovado, a fotografia do bicho junta .sc à das crianças 
no album d e familia. Desenvolve-se 0 costume de e l1l crrar 0 animal no 
jardim de casa; a aberrura de cemitérios publieos inaugura um novo cul-
ro. 0 do chega a colocar um probkma para as companhi as ferroviârias, 
/) .\l'(,ii/'I>O I X I/!,'I I /I ·/I.>I'U 4H5 
o APRENDIZADO 
DE UMA NEUROSE 
o PIA.NO, 
HAXIXE DAS MUlHERES 
ANglll1t Renoir, Mulher ao piano, 
18i J, (Chirago, Art /rtllill/le, Coleçâo 
Manin A, R;'ellon,) 
qU(! rcservam um vag~o para cks, ënquanto isso, desde a Monarquia de 
Julho, a gaiola de passarinho instalada no quaninho da jovem burguesa 
ou na mansarda da costureirinha rcvda a sensibi lidade da proprietaria e 
constitui um indkio de sua virtude, 0 livro que Michelet consagra ao pis-
sa ro cm 1856 confirma este apego. 
Durante 0 ultimo quartel do século, 0 status do animal tcnde a 
modificar-se. A crescente influência dos livres:pensadores favorece 0 cres-
cimento de uma nova frarcrnidade entre 0 homem e 0 bicho. Garantir 
seus direitos, assegurar sua felicidadc é: tentar romper corn a nova solidào 
do gênera humano. 0 problcma absolutameme nao se coloca em tcrmos 
ecol6gicos; trata-se de enahecer sÎmultaneamente ° semÎmemo de hu-
manidadc e a utilidade social. A escola primaria empenha-se em dar uma 
crescente atençao aos animais, A vulgarizaçao das doutrinas evolucionis-
las, a cxpansào da mcdicina veterinaria, os êxitos da zootecnia trabalham 
em favor desta nova fraternidade e avivam a temaçào do antropomorfis-
mo. Este alcança entào ° seu apice; aparccem obras que nào indicam ou-
Ira coisa senào a avidez de dialogo, especialmcme Zoologie pauionnelle 
(Zoologia passional J de Alphonse Toussenel. 
Entretamo, igllalmente neste domÎnio as descobertas de Pasteur con-
vidam a uma mudança de conclura. É cerco que nao parece que 0 cuida-
do corn a assepsia. que levava a nao se acaricÎar um animal sem usar lu-
vas, tenha sobreviviclo por muiro tempo à moda. inicial das novas teorias; 
o medo dos micr6bios ira atuar pelo menos em favor do gato de apana-
mento, menos malcheiroso e repucado como mais limpo que seu concor-
rente, 0 fclino, até encao limitado à alta sociedadc e aos roeios artÎstÎcps, 
expande-se enue 0 povo. Os siameses da familia imperial , os companhei-
ras de Gâucier e de Baudelai re começam a ser apreciados pelos zeladores, 
indepe;}dentemente de sua funçao raticida. Ao raiar do século xx, 
inaugura-se entre 0 homem e 0 animal uma inversào na rclaçao afetiva 
de dependência; 0 ultimo ;a se apresta a tornar-se 0 soberano e 0 senhor 
do espaço doméstico. 
Edmond de Goncourt exagcra apenas um pouco quando batiza 
a piano como "haxixe das mulheres"; é bem assiro que ° instrumen-
te aparece no imaginario da época. Danièle Pistone levantou na litera-
rora romancsca do periodo 2 mil cenas nas quais de intervém. Metade 
dclas diz respeitQ a moças; um quarto, a mulheres casadas, A grande 
moda do instrumento inicia-se em 1815; 0 pudonor trabalha a seu fa-
vor, depois que a harpa, 0 violoncelo e 0 violào começaram a parecer 
Îndcccntes. Durante a Monarquia de Ju lho, 0 piano expande-se pela 
pequena burguesia; em seguida, democratiza-se. Começa inclusive a 
tOrnar-se um pouco vulgar a panir de 1870: comcça entào seu rclativo 
declinio. 
o primado da funçào social do instrumento impôe-se como 0 
mais evidente resultado do trabalho de Danièle Pistone. Tocar bem pia-
(lIH,.',i. / , 'I>/J '/{'/", 4,, -
Saber loc;}r piano s6 foz allTIJl;!rltor 
as cvallces 110 IfIerf.odo malfimomal. 
A agtlid.Jde dos dedos cria 
o a",bietlfe sonora que impregnll 
o bn'lIquedo Jos p equenirloJ e Prof'OC.; 
o dCVimeio dOJ Jeres queridos. 
o "ludo pumo d.J recém·C:JJoda ales/ar; 
COf/} JtIJ slléncio ° domlllio qlle 
exercia Jobre 0 cor(Jf!Jo dos pois. 
(Drjongve, Moça ao piano, 1880.) 
no esrabdcce urna reputaçào juvenil , dcmonstra publicamente urna 
esmerada educaçâo. 0 vinuosismo entra na esrrarégia matrimonial, ao 
lado do "dore esrérico" . Em comrapartida, apenas rarameme 0 piano é 
o lugar da (foca, do dÎa logo amoroso; este pape! é reservado ao canto, es-
pecialmeme à romanza. Fcilas estas reservas, quauo figu ras priviJegiadas 
delÎneiam, preferencialmente na calma de um entardecer, a imagem de 
um amigo, de um confidente, de um refûgio que permite um dcsafogo 
solitario. Note-sc que tais figuras irâo se apagando corn 0 correr das déca-
das, na medida cm que 0 piano for deixando aos poucos de ser 0 amigo 
da alma para convener·sc cm um m6vei sem personalidade. 
Sob os dedos inocentes da jovenzinha ignorante, 0 tedado traduz 
as pulsaçôes que a linguagcm nâo saberia exprimir. Por esta razào Balzac 
aconselha a sua irmâ que compre uro piano. Este aparece coma 0 exut6-
rio privilegiado da rimidez; 0 ql!e permite 0 surgimento da cena literâria 
cm que a moça, acrcdi tando-se s6, rcvela ao indiscreto anseios ranto mais 
insuspeitados jâ que 0 instrumento tem ainda 0 privilégio de c:Ievar a a l ~ 
ma até 0 idcal. 
Mais raramente, 0 piano faz-se caixa de ressonância de amores 
contrari ados, mensageÎro solitario ao amanre ausente. Sabe também 
traduzÎr os queixumes de uma alma ferida pelo rompimento. Segundo 
Edmond AboUl, 0 envio de um piano à amante abandonada entra na 
lista dos presentes rituais. Esta prarica harmoniza-se corn 0 estereôtipo 
li lcrârio da boa mulher, nao muÎ lO beb. mas compreensiv:1 t' se llsivd , 
que, corn 0 coraçao magoado, improvisa {trias pungentt's; cm resumo, a 
mulher da quai) ules Laforge esrfcvera quc vai "fazenda sua autopsia ao 
som de Chopin". 
A terccira destas ccnas ainda é a mais freqüentc: 0 piano desempt-
nha ° papel de exurorio solit:hio da força irreprimîvcl das paix6es; é de 
que acalma 0 delfrio dos sentidos da duquesa de Langeais. Nesras oca~ 
si6es. [Orna-se substitulO da cavalgada a galope e do passeio sob a lem-
pcslade; vale notar, a propôsi[O, a proximidadc dos três campos semâmj-
cos. Por este mQ[ivo Edmond de Goncoun, anres dos psicanalislas, associa-o 
il prarica da masturbaçâo. 
o dedilhar do piano participa pOt fim da inutilidade do tempo 
feminino; permite matar as horas à espera dohomem; scgundo Hyppo-
Irre Taine, ajuda aquela que 0 toca a resignar-se corn "a nulidade da 
condiçâo feminina' '. Resta registrar que rodas as cenas que atestam a 
importância do instrumento na vida Intima referem-se, ames de mais 
nada, ao imaginârio masculino da mulher ao piano. A cabeleira desfei-
ta, a visagem incendiada pelas velas iJuminando a partitura, os olhos 
perdidos no vazio, d a parece ja a presa sonhadora ofe recida aos desejos 
do homem. 
PRAZERES SOLITARJOS 
E TESOUROS SECRE1DS 
Durante a primeira metade do século XIX, 0 livro custa caro. Sob 
a Reslauraçâo, a compra de um romance nova absorveria um terço do 
salario mensal de um assalariado agrkola. Explica-se assim a rarefaçao 
da rede de livrarias, até 0 auge do Scgundo lmpério. Por Îsto mesmo 
a locaçàa se impôe. Dali por diame conhece-se bem, graças a Françoise 
Parem-Lardeur, 0 considerâvel papel do gabinete de leitura na P:iris da 
Restauraçao. Estas 10;as de 1er emprestam por volume ou por assinarura; 
o leÎtor que parte para sua aldeia natal pode mesmo levar vÎme, ou cern 
livros. Quarenta mil parisienses freqüentam estes gabinetes; na maioria, 
aparenremente, pertencem à nova burguesia e especialmenre à pequena 
bu:guesia que se satÏsfaz corn seme!hante sisrema de locaçào. Porém, 
ao lado do rentier e do csrudanre, enconrram-se ali muitOs indivîduos 
que vivem cm conratO corn as classes dominantes: camareiras, poneiros, 
balconistas das lojas de departamentos. Os domésrÎcos do bulevar Saint-
Germain lêem no escrit6rio obras empresladas pelos patr6es. No bairra do 
Temple, as costureiras. as grisettes, <)s artesàos constitucm 0 grosso da 
c1iemela desles estabe1ecimentos que os operârios quase nunca freqüen-
tam. 0 gabinete de Ieitura existe também na provfncia; desenvolve-se 
comudo mais tardiameme. Em muitas sedes de cantôes do Limousin, 
.... ---------~---~~--~-'_. __ ._-_. 
j>( , I\ 
o aj,nallaqui. :::Jjo C01J/~~d.J 
na/uro/mUIIl Ji' u nOllo. cor.r.nlJ(J 
IlIé a Pn·m~ir.; G::J~rT.J Mur.,ii.;l romo 
pri"cipll//~i::.r.; dOl carnpor.eJeJ. 
De liial "um~~. :JgrJdo.z 1000000S dt/fa1l/e 
() seriio. A/ùr. dùJo. por,;Jdaxdmeflft:, 
ajuda a comprUlliiio d;; srx!Ù.I4de 
cirf.lJndl1nle. (P.;nJ. Bibliou:r..; 
Naàollol.) 
o ACESSO 
AO L1VRO 
du rante a Monarquia de Julha e 0 Scgundo lmp€ria, algumas mCfo.:c i -
ras. solm:tudo vÎLivas, lambém alugam romances de coleçôes baratas. 
o habitante das regi&s rurais mais afastadas deve recarrrer ao envia 
por correspondência. 0 livro consutui um produtO precioso; pade tornar-sc 
um inespcrado presente que provoca muila alegria; prova-o a emoçâo dos 
habi tantes do pobre Cayla de Albi ao receberem as obeas de Walter Scou 
ou de Victor Hugo. 
Em lais regiôes opcram estes representantes de grandes livrarias, na 
grande maioria naturais dos Pireneus, cuja atividade culmina sob 0 Se-
gundo Império. Eles acabam de substituir os humildes vendedores am-
bulantes que tinham espalhada tantos Telémaqut [Telémaco], Simon de 
Nantua, Ge11eviève de Brabant ou Robinson Crusoé durante as décadas 
anreriores. 
A partir da década de 1860, um sistema de distribuiçao mais efi-
clente entra cm cena. É ceno que as bibliotecas pLiblicas cominuam 
dormitando; seu fundo de obras clâssicas e cieotrficas, em pane herdado 
de antigos conventos, nao Interessa senao a urna cliemela de especia-
listas, irrirada corn os parcimoniosos horacios. 0 silêncio que reina 
em tais estabelecimentos e a apresentaçao que se exige dos lei tores 
comrariam os habitos populaces a ponto de impedir que tao severos 
dep6sitos possam desempenhar um gtande pape!. Em compensaçao, 
os citadinos comam a panir de entao corn urna rede bastante conside-
clvc:l de livrarias, que completa as bibliotecas das estaçôes ferroviarias. 
---~.~~..,.----'--.--.---- -
o .ŒÇiŒDO 00 ISDn1Dl'o 4 9 1 
No inlmor du Clllil de fomilia, 
a contemplllfâo em comum da! 
melma! imagens JOIda a co"i"éncla 
dOl irmaol. 0 livro prop6e iil crianfl/I 
da burgue!1a proliftrante UfrJ(J 
alternati"a de calflUI e recolhimento 
face li b"liçolo ogilupo do jardim. 
Contn"buiporo fI/odelllr a imagem 
do menino belll·rompOTfodo. Vules 
Trayer, 0 livro de figuras .) 
o Iit"lo do qudro, expo!lo no Saio<J 
tie 1902, leva il crer que 0 aTtisla n<kJ 
tk!eja apenal e1'OC4r 1171'1 paJSatempo 
co!fumeiro enl" mOf'IJ em "Wta. 
Ao Je contu npltlril obra, lente-Je 
que a hora ji nio pmenu Mn/Oa() livro 
religioJO, m:Jl a liUralur3 romanuca, 
amblgua porém Munre, que, 
na Jolidiio da leitUtrl em l 'OZ baiXB, 
ensina li jovem 0 baJ1tmte pllr3 
que ela deixe de Jer um3 ;nocenlo"a. 
(Mary Shepard Greene, Urna 
historieta, Saliio de 1,902. ) 
492 IltIS17DO/ŒS 
A EVOWÇXO 
DAS MANEIRAS 
DE LER 
0/ hu/ori:JJoreJ dll/itertl/llrll do 
$lclllo Xl)( ha milita regu/rllram 
a impOrlancra da janela ngs 
rept'e$enlaf6~/ da /4nn'bilidtui4 
4 da Illividad4 fominimu. Parti a jOf'em 
mu/hu 4m $4111ar; Il june/a çonJlilui 
IIm cenano pn·IIi/4gigdo. 
A abllndâncill de /IIZ foclïila a leirura; 
o acuso (1C} mOllimenlo do esPaça 
publico, Clljo nJfdo Il flirlraçll 
gn;orlece, prop6e $e necemin'o 
IImll alumlllÎlIll 11() rI~lIaneio. (LoIIÙ 
TeSS01l, Meditaç~o.) 
Emretamo, 0 progresso da grande imprensa barata rdega para 0 roi dos 
arcaîsmos 0 canard, 0 pasquim dos prim6rdios do século XIX, quando nao 
os almanaques, cuja uti lidade continua a sc impor aos camponeses. 
Uma utplicc cede de bibliOlecas paroquiais, populares e escolares 
se Înslala; as primeiras, inslaladas desde a Monarquia de Julho até nas 
menorescidades, propagam os "bons livros"; as ~gundas, estabelecidas 
sob a Terceira Repûblica, difundem obms consideradas faccis, mas de bom-
tom; as iiltimas, criadas a partir de 1865, sâo freqüemadas sobretudo por 
jovens que adquiriram na escola 0 gOSto pela IcÎtu ra. A biblioteca escolar 
desempenha 0 mesmo papel da colcçao de IivtOS caros que ocupa urna 
das pratdeiras do armârio camponês. Seus magros recursos mal conseguem 
suprir, no caso de cenos lavradores famimos de leitura, 0 fosso cavado 
entre 0 esciolameoco do mascatc e a apariçao da imprensa regional de gran-
de tiragem. 
A evoluçao das condutas acompanha a mudança da rede de distri-
buiçao. A leitura cm Val alta, na esfera doméstica, continua mas declina, 
assim camo a pratica da leitura ditada. Durame a Monarquia de Julho, 
os burgueses de Rouen cominuam a 1er no salao, à noite, ao pé do fogo, 
mas em seguida 0 camo, a musica, a piocura concorrem vitoriosamente 
corn urna atÎvidade considerada fora de moda, que a panir de entao s6 
a enfermidade do anciâo impôe, A leitura em VOl alta converte-se assim 
em monop61io da filha devotada ou da dama de companhia. Cai ~ de-
suso também a leitura edificante para os doméscicos"aoalfabetos, ta) co-
mo é pratic~da, varias veles ao dia, por mademoiselle de Ars, a castdà 
do padre. 
Em contraparrida, até a Primeira Gueera Mundial, a leirura em 
VOl aira permanece como tradiçào durante 0 seno camponês. Aqui da 
deve sec curta; tem por objerivo estimular a conversaçao, foenecee um 
tema para os comentarios dos membros da eeurnào; distingue-se nisso 
da mon6tona 1eitura do salao burguês, que traz consigo a teotaçào do 
sono. No final do século a leitura na oficina, pracicada a ticulo de exem-
plo pelos artesaos da porcelana de Limoges, conscirui uma forma tar-
dia de lcitura oral que, tendo surgido nos eefeit6cios dos convenros, 
ainda imposta nos colé~ios das congregaçôes, cede a partic de entao 2 
leirura em VOl baixa. 
É verdade que iseo nao significa leirura soliwÎa; da é praçicada 
na biblioteca, no grêmio, no café, no salào do gabinete de leitura. 
Mas implica um recolhimemo, uma forma de abstraie-se do ambienre, 
em suma, um conjunto de acitudes privadas do quai 0 pova dCV(:cl 
sentir-se por muico tempo excluido. Por ouuo lado, 1er na solidào é às 
veles participar conscÎentemente de um grupo de leitores,eorreter·se 
corn imerlocutores imaginârios. 0 deitor da Monarquia de Julho que lê 
seu jornal no salâo participa da vida publica; é exatameme assim que sua 
atividaJe sera assimilada. Assinac Le Quotidienne [0 Cocidiaoo 1 
J> \ 
~m Nancy, no tempo de Lucien Leuwen, é introduzir-se no seleto c1rculo 
dos legitimistas. No seio da burguesia de Rouen, para 0 prazer de Hau-
bert , lê-se bastante; 0 comentario das novidades rnovimenta as conversas 
mundanas, impondo previamente a leiNra em VOl baixa. Esta é pracica-
da no salâo, no quarto, no banco do jardim ou em plena natureza. 
Este passa tempo ditista difunde-se corn 0 progresso da alfabetiza-
çâo. Parent-Duchâtdet descobre, nao sem surpr~~. que cenas proscirutas 
passam horas lendo romances de amor. J a vimos 0 atrativo que a leitura 
noturna apresenta para uma limitada dite opeciria, apos a Revoluçao de 
1830. Ja em 1826 e 1827, Agricol Perdiguier, por ocasÎao de sua viagem 
através da França, refugia-se em leiruras dispares. desordcnadas. Sua pra-
tica da liteearura dos mascares, sua admiraçao pela cançao em com pas-
sam a ser acompanhadas por uma nova pairlo, pelos mais insfpidos auto-
res do século XVIII, cujas obras completas acabam de ser publicadas. 
Os habitos de leirura diferem profundamente conforme a idade 
e 0 se..:o. Mais do que nunca fitma-se 0 desejo de confinar as crianças 
na leitura, desde entào popular, dos CODrOS e lendas. Às miiltiplas edi-
çôes de Perrault ou de madame d'Aulnoy, somam-se incontaveis obras 
cujos autores, desde a condessa de Ségur até Jean Macé, procuram ce-
o SEGREDO DO I.VDWfDUO l;. 
A 1ei/llrJ em 110% al/a, mTlU 
eom'queir3 no $al40 fomilillr, jâ 
n4()$obrenlle, no final Jo $éelllo, $n;P: 
par OCIInJo do eon";,;o entre g thms 
de rompJnma e 0 anei40 debilzia.:k. 
Seria conun;enle reflelir sobre a 
eflm4n1 propaga;âo da/a pm/Iut 
de on'gem arnloerahu., poiJ 
a vertiade i qll4 g C<Jmpllnhi4, 
$lIb$titllidJ por 1lmi1 gllrmz de noro; 
proceJ/OJ de ueu/a, em brelle deix.zt-i 
de com/ùllir lima meTrllliorill. (É~ 
Adun, A I~irura . ) 
.; 
494 B.AJî7DORES 
1oulmouche da a entendu que, 
no Segundo ImPério, a dupeito 
da difusikJ do liJlf'O re/igioso I1nalulldo 
por Claude Savl1rt, ilS mocinhas 
sabem descolm'r cern emoy40 
I1literaltml erolÎ&I1. ReJll1Saber 
Je Ol1rtull1 n40 apazigUII em primeiro 
IlJgar um fonlllJ11UJ mJ1.Scwino, 
IKJ evocar Il perturhtlf40 e Il Jecretll 
co,,jvência enlre as meninlli 
Je I1pl1rêncUz bem-compor1tJda. 
(0 hum proibido. Il pmu de Ilm 
qlUldro de AugJlJle ToJmouche, 
Sai4/) de 186'. Pl1ris, Bih/ioleu Jas 
Jutes Decorativas.) 
o CONTIODO 
DAS LElruRAS 
enconrrar a espccificidadc do imaginârio infantil. É mais recente 0 COll-
sideravel avança de uma lücralu ra dcstinada à infância burgucsa e ob-
jetivando apoiar a supremacia social em uma primazia moral. Condu-
zida por madame Necker de Saussure e madame Guizm, uma legiao 
de boas senhoras inspira-se no modela elaborado par madame de Gen-
lis. Todas concord am corn os médicos quando aconselham que se Esca-
lizem as leituras doméscicas da rnocinha; todas denunciam os efeitos 
destruidores do romance, no quai concentra-se 0 jogo do desejo e da 
proibiçao. 
Uma maior liberdade é concedida à mulher casada, da quai, na rea-
lidade, as boas senhoras nâo faJam mais. Muitas jovens esposas verâo as-
sim a viagem de nupcias assinalar a ampliaçâo do horizome de suas leitu-
ras. No tempo de Paul Bourget, urna literatura que se compraz jogando 
corn a revdaçâo parcial dos mistérios do sexo destina-se a mulheres tao 
recentemente iniciadas que conservam aJgo da ansiosa curiosidade das vir-
gens. Os homens, por seu tumo, reservam-se esta literatura proibida cuja 
exata difusâo jamais poderemos rnedir. A vivacidade da luta movida con-
tra 0 livro obsceno, que 0 senador Béranger e as ligas da moralidade naD 
cessam de alvejar no EnaJ do século, permite adivinhar um ampllssimo 
sucesso, viabilizado pela cnaçao de canais de distribuÎçao "muito re-
servados". 
o modo de consumir 0 livro evidentemente varia conforme a cri -
gem sociaJ_ Uma observaçao a respeito: antes da instituiçao das bibliote-
cas escolares, 0 jovem camponês, faminto de sa ber, estâ condenadû a mi-
xérdias de leituras ao acaso cuja imponância supervaloriza e que por ve-
zes exercem sobre de estupenda influência. Em 1820. a condura de Pierre 
Rivière em nada difere da do moleiro friulano do século XVII estudado 
por Carlo Guinzburg. Os dois infelizes petecerao vitimas da anarquia de 
suas leiruras. Pot muito tempo a maneira de 1er dos autodidaras apresen· 
tarâ esta voracidade desordenada que despena 0 riso do autor de La nau-
sée [A nâusea)_ Meio sétUlo depois de Agricol Perdiguier, 0 mineiro J ules 
Mousseron, de VaJenciennes, atira-se, assim que "sobe" da mina, sobre 
rodos os livras que lhe cacm nas mâos. Menos audaciosos, os operârios 
da Belle Époque sentem-5e culpados par dilapidarem um tempo que not-
maJmente seria dedicado ao trabalho. Nem por isso devoram corn meno! 
avidez os romances populares cuja apresemaçâo adapta-se ao rempo frag. 
mentado de suas leituras e fâcilita 0 comcntârio de rodos os dias dentro 
do ônibus ou da oficina. 
Mas quando se alcança a idade de orientar livremente sua leitura, 
o que se lé de preferência? A este respeito convém nâo se deixar ofus· 
car pelos presdgios da historia IÎlerarÎa. Claude Savan mostrou quai 
seria, em 1861, a amplitude da difusao da literatura religiosa; e a anâ-
lise dos Înventârios post-mortem revela a importância do livro profis-
sional. As obras de direito enchem a biblioteca dos magisuados de Po-
o Sf G' r..;.- 00 INDlvfDUO 49j 
496 IM.mW /ŒS 
Jo. ÇONSTITIJJÇÀO 
DO MUSEU PARTICUlAR 
Coma um prisioneiro em mûo 
a abje/os apl1re'ltemente dfspares, 
que /omllm a/Ola/ù/ade do esPIlfO 
âisponfflel: 0 co/ecionador pareee 
f/erificar Je a sala es/â trar/cada, 
t assim, no in/m'or da pefa, que 
o gozo da paJSeJsào reâobral1O IIbngo 
de qua/quer intromÎssào amel1fadora. 
(Arthur Henry Roberts, Gabinece do 
sr. SauV2geoc. Pans, Louf/re.) 
tiers e os c1Înicos da zona rural guarnecem a sua corn livros de medicina. 
Além do mais, os autores cJissicos cominuam se amomoando. Adeline 
Daumard realça 0 desdém dos burgueses de Paris pelo livro contemporâ· 
neo; Eugène Boileau. encerrada, a partir de 1872. em um castelo de Vigo 
né, anota Sêneca e Benjamin Franklin, dois autores que inspiram oorde· 
nam.ento de sua vida. Por outro fado, rudo leva a acenruar a amplitude 
do consumo poético no século XIX. A pracica do recital, a longa escuta 
de textos litiirgicos, 0 gosto do pûblico cultivado" na maioria das vezes 
bilfngüe, pelas poetas latinos, 0 sucesso do poema amador lido ao fim 
da refeiçào e copiado no album, a superabundância das associaçôes poé· 
ticas e, talvez acima de tudo, a moda da cançao e a safra de poetas opera. 
rios asseguram a orupresença social do texto rimado. Dois indkios entre 
muitos outros; em quase todas as famrIias mineiras de Valenciennes, du· 
rante a Belle Époque. as moças possuem um caderno de cançôes e Marie 
Dominique Amaouche·Amoine registra idêncica pratica encre os chape· 
leiros do curso superior de Aude. 
Quanto ao resto, os comemporâneos sublinham os constantes pro· 
gressas do romance às custas dos autores dassicos e dos livros de hist6· 
(Ïas. A partir da Monarquia de Julho, este gOSto uaduz·se, no scio do 
pr6prio povo, pelo inwitado sucesso do romance de folbetim. Em se· 
guida a queda dos preços permite uma larga difusao destaS coleçôes 
romanescas cujo modelo foi bem delineado pelo ediror Charpentier. 
Ao mesmo tempo. a influência do cientifidsmo e do patriotismo ensi· 
nadas na escola contribui para 0 êxito de Jules Verne e Erckmann·Chatrian. 
Em lugarejos de Creuse, humildes bibliotecas irâo consti.tuir.se no fim 
do século. As obras de Victor e de Paul M~guerjtte ombreiam corn a des· 
tes tcês autores.o crescente atrauvo dos prazeres solicirios do "gabinete" acom· 
panha os progressos da leitura em. voz baixa. No século XIX, a co!eçao 
mantém-se enquanto pcitica eSsencialmerite masculina; é 0 homem 
que concebe e desenba 0 projeto da acumulaçao. A mulher nada sabe 
criar afora "mil nadas". Tanto em 1892 como em 1895. as exposiçôes 
de obras de damas despertam .a (ronia da cduca, que se recusa a dar 
valor a estes irris6rios produtos do 6cio, No maximo a ternura e a pie-
dade poderiam autorizar a amiga ou a mae a reunir nas gavetas de 
seu escrit6rio aigu mas Jembranças de famîlia, particularmencc emo· 
cionantes. 
A coleçao tem sua historia. Dumme a primeira rnetadc do século 
elabora·se urna nova peacica, Dispersados pela toementa revolucionaria, 
os objeros que guameciam as dependências arÎStocraticas ficam reduzi· 
dos à condiçâo de refugo. Irao findar em inconciveis fetras·velhos dos quais 
Victor Hugo pineou um impressionante quadro, em Quatre-vingt·treize 
" 
o .u.a..mo DO INDlvtooo 49ï 
• 
OS PRAZERES 
SOUTARlOS 
DO "GABINETE" 
INovema e trés]. Ao se consciwirem as grandes coleçêes pGblicas. 0 novo 
quescionamemo das hierarquias é acompanhado por urna desorganiza-
çâo do sisterna de sinais de supremacia social. 
Aparece emào urna nova raça de colecÎonadores. Durance duas dé-
cadas (1 815-1840), a conjunrura favorcce os compradores. À semelhança 
do primo Pons, os fomecedores de ferro-velho, corn muita freqüéncia mar-
ginais sem grande fortuna, conseguem cm pouquissimo tempo constiruir 
impressionames coleçôes. Por volta de 1840-1845 desenvolve-se uma brusca 
flexào na moda. Os burgueses passam a freqüemar as lojas de attigos de 
segunda mio. A nova condula se codifica. A visit~ ao antiquario. a pa-
ciente busca apoiada em uma nova técrlica de compra constiruem-se em 
riruaI. A Monarquia deJulho é a idade de ouro do gabinete de "arqueo-
logia", do museu panicular, Îndiferente aos prescigÎos da venalidade. 0 
colecionador privilegia 0 objeto ancigo; ambiciona "saIvar a hist6ria" e 
ainda nao cogita revendê-la. Corn sua mone, 0 inventariante dispersacl 
[odos os seus tesouros. A provincia nao desconhece a personagem. Bru. 
Toulouse, por exemplo, opera na época uma dezena de colec.ionadores. 
Ap6s 1850 defme-se 0 valor dos objetos, estrurura·se 0 comércio das 
ancigüidades. 0 fato de 0 tesouro de Pons terminar caindo nas màos do 
inculto Popinot configura a influência da venalidade que ~e aproxima. 
Uma meramorfose opera-se eotlo nas conduras. Uma legiao de coleao-
nadores riqufssimos da: 0 tom. 0 &to mereee destàque: todos os grandes 
homens de neg6cios experimemaram 0 desejo de colecÎonar'objetos pre· 
cjosos. Bm alguns, fica daro que ta! desejo sobrepôc-se a qualquer outi"a 
paixâ:o. Os magnatas das fmanças, especialmenre os irmàos Pereire, em 
sua mansâo do faubourg Saint-Honoré, e os Rothschild, em Ferrières, fo-
cam tragados pelo desejo de acumular. Muitos industriais também. Eu-
gène Schneider coleciona pinruras holandesas e desenhos. Encerra seus 
tesouros, que ninguém pode ver, em um gabinete cuja chave leva sempre 
consigo. Os diretores das lojas de depan:amentos - na maioria novos-ricos 
- rambém sào cOQtagiados pdo nova frenesi: Boucicaut coleciona j6ias, 
Ernest Cognacq e wlJise Jay, fundaaores da Samaritaine, objetos do sé-
culo xvm. 
Todos sac ao mesmo tempo meceDas; e exercem gran~e inEluência 
sobre a moda. C impressionismo, assim como 0 art nouveau, deve muito 
a estes ambiciosos hwgueses. Depois de 1870, 0 grande colecionador re~ 
cusa a dispersào p6sruma dos objetos acumulados corn grande preocupa-
çao de eclerismo. Pretende a partir de entâo ser cdebrado pdas geraç5es 
futwas. Para sobreviver na mem6ria nacionaJ, doa seus tesouros a uro mu-
seu, que da seu nome a urna sala. 
o apecite do colecionador pareee revdar eotao um duplo ritmo. 
Para quem ambidona fundar uma nova linhagem, acumular tantos 
signos corresponde ao desejo de legicimar urna posiçao recém-adquiri-
. . , 
da. A coleçao confere um evideme prestfgio cultu.a1; ligada ao mecc-
nato, permitira orientar à vontade os gostoS da produçao artistÎca. Efc-
tiva-se assîm urna esfumaçao das origens ariStocraricas e burguesas, 
elaborada 0 bastante para que Arno Mayer deixe·se levar e confunda, 
pelo menos no que diz respeito à França, 0 Antigo Regime corn 0 eeleris-
mo burguês. 
Mas 0 desejo de colecionar revela sobretudo urna estrurura psicolô-
gica secreta; remete às profunçlidades da h ist6ria da vida privada. A cons-
cituiçao de um museu parcicular resulta, conforme 0 C2S0, de mûlciplos 
desejos. A coleçao pode nao .passar de simples ac6..mulo de lembranças 
individuais. 0 cofrezÎnho secreto onde Nerval encerra as mechas e canas 
de Jenny Colon, a coleçao de ohjetos sensuais e aromiiucos que lembra 
ao Flauben de Croisset a embriaguez das noites corn Louise Colet permi. 
tem uro deleite so!itarÎo, sÎmultaneamente noscilgico e temeroSQ. A preo-
cupaçao de conuolar, de resguardar sua pr6pria libido pode suscita! se-
melhante pra.cica, que parece emao desenvolver-se pref'erencialmeme de-
pois dos quarema anos. 
Posse em esrado puro. sem fins funcionais, a coleçâo culmina a pai-
xio individual pela propriedade privada; mas pode convener-se também 
em fuga apaixonada, refûgio em meio a objetos que sao tarnbém equiva-
lentes nardseos do eu. Para além dos alibis do esnobismo e do prazer es· 
tédco, pressente-se que a coleç~o compensa um fraca.sso. real ou imagina:-
no. Apôs ter sua carreira interrompida pela administraçao imperia.l, 0 pe-
queno rnagistrado Henri Odoard retira-se para Chantemerle; la, organiza 
piedosamente os arquivos familiares e coleciona coochas e medalhas. 0 
recuo para 0 universo doméscico confirma 0 fraca.sso da. rdaçao indicado 
ainda pela obsruridade, os m6veis acolchoados c as abundantes tapeça-
rias do interior burguês de meados de 1880. Seria 0 casa de ver em ta! 
retraimento 0 sinal de um medo inconsciente das massas, ou 0 remorso 
freote à espoliaçâo atestada pela riqueza dos objetos acumulados? A neu-
rose de ' Des Esseintes poderia dar 0 que pensar. 
Sem duvida 0 jogo da série na intimidade obedeee ainda ao mesmo 
processo de regressao da maoutençao do diârio. pra.zeres solitârios e ao 
mesmo tempo formas de autodesuuiçao, os dois passatempos tomam al-
go da morre. De qualquer forma, a onipresença da coleçao conscirui cer-
ramente uma das manifestaçôes mais profundas da hist6ria das classes do-
minantes no século XIX. Ignora-la seria condenar-sc a uma tOtal imom-
preensao dos môveis que guiam os tenores da vida econômÎca. 
Nào menos essencial é a. divulgaçao destas pracicas reservadas por 
muito tempo às dites. Eoquamo a fi latdia enconua-se em pleoa as-
censâo, incomâveis coleçôes de carrêes-postais, de conchas, de meda-
lhas e mais tarde de bonecas surgem cotre 1890 e 1914. A pequena 
bwguesia, especialmente a da provincia, logo deÎxa-se Ievar pelo dese· 
jo de coostituir arquivos familiares, em seguida coleç5es de souvenirs. 
. , J. 
o SEG?.DO DO lNI)wiDuo 499 
DIRJSAO SOC!. "-
DE UMA PR..\ nc..\ 
\) 
500 BIIST7DORES 
. ' 
Chantal Martinet estuda a descida dest3, condu ta até os mcios populaces. 
Pouca depois de Henri Odoard ter piedosamente agrupado as correspon-
dências da famîlia , é cm (odos os ambiemcs que se corneça a conservar 
fotos, m onogramas, coupas de casamento, buqués c coroas de noiva. Aas 
tesou ros " [eitas a mao" acrescentam-se atas jurfdicos e nûmeros de alis-
(amcmo militar, em urna acumulaçao de piedosas lembranças que a morte 
tornara in6cua. Espfriro de imitaçao? Democratizaçao de uma conduta? 
Cenamente. Mas também d ifusa:o social de um sentimento da ameaça 
que pesa sobre os valores do passado e da recusa cm aceitar a ruptura en-
tre as geraçôes. Nâo ter sabid? assegurar sua transmissao engendra nestes 
circulas urna nova culpa; é eJa que incita a recollier aquilo que podera 
pelamenas deixar urna marca. Aclemais, encontramos aqui 0 roesroo de-
sejo que leva a personalizar a inscriçao funecaria. "Joseph Brunet é uro 
homero, eu 0 afirmo, crede em mim!", escreve em 1864 uro obscuro pro-
prietirio na pagina de rosto de um dos livros de sua coleçao. 
Ha OUtrOS fenômenos derivados do processo de imitaçao. A panir 
de 1880, à medida que se exdcerba a decoraçâo do interior burguês, os 
compradores populaces começam a mostrar-se gulosos de imitaçôes; uro 
mercado de falsas antigüidades se desenvolve; aparecem coleçôes de simi-
lares. 0 quano "Lurs xv", 0 bufé "Henrique II'' introduzem novas re-
laçôes entre 0 povo, seu mobiliirio e seu interior. É todo 0 ritual da vida 
privada que é aferado. ... 
A rec1usao do indivfduo em meio a sua coleçao, vivida por Pierre 
louys em sua residência do povoado de Boulainvilliers, assinala 0 ponto 
extremo deste volur-se para si que sda a ascensâo do sentimento da pes-
soa. Semelhante conduta permite mediI 0 quanta 0 desejo de comunica-
çâo podia tornar-se opressivo. 0 escudo dos prazeres e lazeres solitarios 
impôe a pesquisa so~re a relaçao intima, a uro s6 tempo relato de si a 
uro interlocucor e vlnculo corporal, do coraçâo ou do espfrito que se ape-
ga a Outro . 
o SEGRI:.·DO lX) i!>7:)n1DUù 
No pr:ndpio da ùruc:r~ R~pJlù.:­
~JlaJ jorogTajiaJ do Ftrr;;reJ dOJ 
RorhJchild d.io 0 qlle pNlJar àq".t,.-
qll(' . .. p.1rtir do J(}(";6i&rv Gllbru_ 
Tord( . .1r..Jlùll", (1 nue!;SUbd( 
de l(gitimOfiio MJ ~J li"h(1gt·r.. 
o deujo de celebmT Il ..-u 
individud e (1 ad~.J40 lÛt JinilJtu:. 
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