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APROXIMAÇÕES ENTRE DIREITO E ANTROPOLOGIA: UMA REFLEXÃO A PARTIR DO PROJETO DE LEI N° 1.057/20 071 Débora Fanton RESUMO Atualmente, encontra-se tramitando no Congresso Nacional, sujeito à aprovação, o Projeto de Lei n° 1.057/2007. Conhecid o como “Lei Muwaji”, o referido Projeto de Lei dispõe sobre o combate a práticas tradicionais nocivas e à proteção dos direitos fundamentais de crianças indígenas, bem como pertencentes a outras sociedades ditas não tradicionais. Não obstante, percebe-se que algumas comunidades indígenas brasileiras concebem diferentemente as noções de ser humano, de vida e de morte e, por essa razão, não consideram tais práticas como “nocivas”. Diante desta questão, que envolve a diversidade cultural, a Antropologia assume relevante papel para a Ciência Jurídica, uma vez que evidencia, através de instrumentos interpretativos, diferentes sistemas de símbolos significantes. Neste contexto, o presente trabalho tem por objetivo introduzir, primeiramente, o conceito antropológico de “cultura”, a partir da perspectiva de Clifford Geertz, para uma melhor compreensão sobre a diversidade cultural, bem como os elementos relacionados a ela: o etnocentrismo e o relativismo cultural. Em seguida, será exposta a importante função do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na ordem jurídico-constitucional brasileira. Por fim, no terceiro e último capítulo, o Projeto de Lei será analisado e, em seguida, serão trazidos os argumentos tanto da perspectiva antropológica, como da jurídica. Concluir-se-á, nesse sentido, a necessidade de um diálogo intercultural, baseado em ambas as perspectivas. Palavras-chave: Direito. Antropologia. Diversidade Cultural. Relativismo Cultural. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. INTRODUÇÃO Cada vez mais se tem despertado o interesse e desenvolvido pesquisas entre os campos do Direito e da Antropologia. Atualmente, discute-se a necessidade do diálogo entre as duas áreas, principalmente no que concerne ao âmbito da diversidade cultural. Assuntos como a luta pelo reconhecimento e delimitação das terras indígenas, elaboração de políticas públicas, preservação do patrimônio histórico nacional, questões relativas à saúde e educação diferenciadas e os direitos das minorias étnicas de uma forma geral demonstram esta significante preocupação. O conhecimento antropológico, apesar de até o presente momento não ter recebido seu merecido destaque na Ciência Jurídica, é extremamente indispensável 1 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Aprovação, com grau máximo, pela banca examinadora composta pela orientadora Profª. Drª. Clarice Beatriz da Costa Söhngen, Profª. Drª. Lígia Mori Madeira e Prof. Dr. Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, em 25 de novembro de 2009. 2 a ela, tanto em termos teóricos, quanto em termos práticos. O Direito lida com o ser humano e ocupa-se, predominantemente, em regular e resolver os conflitos decorrentes das relações sociais. Já a Antropologia tem por objetivo buscar compreender, através de instrumentos interpretativos, os homens e sua cultura. Dessa forma, o pensamento antropológico assume importante papel para proporcionar uma ampliação e uma melhor compreensão sobre o homem e, assim, sobre o papel do Direito nas relações sociais. Pode-se afirmar que a “Antropologia Jurídica” seria a disciplina encarregada dessa tarefa e que, através da teoria antropológica e de métodos específicos de estudo, como o trabalho de campo e/ou a observação participante, analisa e compara as instituições do direito e as concepções de justiça de determinadas culturas.2 Um exemplo presente no cenário nacional que evidencia a exigência de se refletir sobre a conexão entre Direito e Antropologia é o Projeto de Lei n° 1.057/2007. Conhecido como “Lei Muwaji”, ele foi apresentado pelo deputado Henrique Afonso e, no momento, encontra-se tramitando no Congresso Nacional, sujeito à aprovação. Este Projeto de Lei dispõe sobre o combate de algumas práticas tradicionais indígenas consideradas nocivas, em relação ao tratamento das crianças. Dentre as práticas, está aquela que popularmente se convencionou chamar de “infanticídio” indígena. Por meio de tal instrumento legal, pretende-se impedir tais práticas, a fim de se fazer cumprir os direitos humanos e fundamentais, bem como todas as normas de proteção à vida e à infância, previstas no ordenamento jurídico brasileiro. A justificativa do Projeto de Lei n° 1.057/2007 est á calcada, principalmente, na garantia do direito à vida, já que este é o direito “por excelência”. Nesse sentido, percebe-se o ideal de preservar a dignidade da pessoa humana e, portanto, a vida, a saúde e a integridade físico-psíquica das crianças indígenas e, como aponta o texto legal, também das crianças pertencentes a sociedades ditas não-tradicionais.3 Igualmente, refere o Projeto de Lei, que o artigo 231 da Constituição Federal, relativo ao direito de reconhecimento da diversidade cultural, não deve ser interpretado de forma desvinculada do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, previsto no artigo 1°, inciso III, e das diretrizes dos direitos fundamentais, previstas no artigo 5°. Contudo, desde a sua divulgação, o Projeto de Lei n° 1.057/2007 tem recebido inúmeras críticas e causado polêmicas, sobretudo, entre as comunidades indígenas englobadas nesta discussão. Percebe-se que algumas comunidades indígenas brasileiras não concebem tais práticas como nocivas, indicando, portanto, haver outro universo de significação em relação às concepções de ser humano, de vida e de morte. Desse modo, nota-se que a discussão centra-se no conflito entre o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, o direito à vida e o direito à diversidade cultural. 2 SHIRLEY, Robert Weaver. Antropologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 12; COLAÇO, Thais Luzia. O despertar da antropologia jurídica. In: COLAÇO, Thais Luzia (Org.). Elementos de antropologia jurídica. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008, p. 29. 3 Cumpre referir que a ênfase de nossa reflexão neste trabalho se dará sobre as práticas tradicionais indígenas. 3 Assim sendo, o presente trabalho tem como finalidade refletir, a partir do Projeto de Lei n° 1.057/2007, sobre as aproximações que podem se estabelecer entre os campos do direito e da antropologia. Ou seja, iremos discutir a aplicação dos direitos humanos e fundamentais, questionando o caráter universalista e interventor do Projeto de Lei. Por outro lado, expor-se-á a particularidade da significação dos sistemas simbólicos indígenas, já que, a partir do ponto de vista antropológico, dever-se-ia interpretar o artigo 1°, inciso III e o artigo 5° em conformidade com o artigo 231 da Constituição Federal. Tendo em vista que muitas vezes as minorias étnicas são incompreendidas ou, até mesmo, menosprezadas, interpretá-las significa despertar a importância de enxergar o “outro” a partir de seu contexto social. Diante disso, no primeiro capítulo desta monografia serão abordados os principais conceitos antropológicos, como a noção de “cultura”, a partir da perspectiva de Clifford Geertz, para que seja possível um melhor entendimento sobre a diversidade cultural, além das concepções que estão diretamente ligadas a esta noção, como o etnocentrismo e o relativismo cultural. No segundo capítulo, será explicada a noção e a importante função que o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana exerce na ordem jurídico-constitucional brasileira, posto que ele é o principal fundamento do Projeto de Lei n° 1.057/2007. Ou seja, o primeiro capítulo expõe as principais ferramentas antropológicas para tratar deste tema, ao passo que o segundo capítulo, as ferramentas jurídicas.Por fim, no terceiro capítulo, mostrar-se-á os principais aspectos e os fundamentos da justificativa do Projeto de Lei n° 1 .057/2007. Em contraposição, exporemos as críticas do olhar antropológico dirigidas a ele, bem como a interessante proposta do diálogo intercultural e da hermenêutica diatópica de Boaventura de Souza Santos sobre o debate relacionado à diversidade cultural e à aplicação dos direitos humanos (e fundamentais). Nesse sentido, o que estamos buscando é encontrar uma decisão sobre este Projeto de Lei que seja justificável para ambas as culturas. Para uma melhor compreensão sobre o assunto, realizaram-se entrevistas, as quais nos aproximam da realidade indígena e, igualmente, suscitam outras questões, que poderiam muito bem ser abordadas neste tema, mas que, devido à complexidade, não foram objeto de maior desenvolvimento neste trabalho, tais como: a democracia, relacionada à participação das comunidades indígenas no processo constituinte brasileiro; o tratamento legal dos povos indígenas no Brasil; a colisão entre direitos e princípios constitucionais; os direitos coletivos e o pluralismo jurídico. Considerando que o presente estudo limita-se em apresentar algumas aproximações entre Direito e Antropologia, ressalta-se que não temos o intuito de apontar soluções definitivas para o problema, mas o de esboçar questionamentos e ampliar o debate sobre ele, uma vez que repensar o Direito a partir do viés antropológico é um desafio que se impõe nos dias de hoje. 4 1 CULTURA, ETNOCENTRISMO E RELATIVISMO CULTURAL: O ARCABOUÇO TEÓRICO DA ANTROPOLOGIA Dizer que a Antropologia é a ciência que se dedica ao estudo do homem é reiterar o óbvio. As áreas da Antropologia (Biológica, Arqueologia, Lingüística, Social e/ou Cultural, entre outras) se ocupam em interpretar a complexidade da existência humana, sob o enfoque de diferentes aspectos.4 Aqui, nos ateremos mais à abrangência do plano cultural, tendo em vista a especificidade dos fatores estudados. A noção de “cultura” é de extrema importância para a reflexão antropológica, pois sobre ela foi desenvolvida a compreensão de como a experiência humana é organizada. Como existem diversas concepções sobre cultura, neste trabalho optaremos pela matriz epistemológica do antropólogo Clifford Geertz, tendo em vista a atualidade de seu pensamento no que concerne ao assunto, ressaltando-se claramente que não possuímos a pretensão de absolutizar o termo. 1.1 TEORIA INTERPRETATIVA DA CULTURA: A PERSPECTIVA DE CLIFFORD GEERTZ Clifford Geertz (1926-2006), antropólogo norte-americano de notável influência na segunda metade do século XX, contribuiu para a reconstrução do conceito “cultura”, para o debate do relativismo cultural, além de ampliar e conectar suas reflexões a outras áreas, como história, política, direito, artes e literatura. Dessa forma, promoveu o desenvolvimento da antropologia moderna e o desencadeamento da antropologia pós-moderna. Sua dimensão hermenêutica rompeu com as estruturas metodológicas formais de estudo do meio antropológico, ao considerar que o homem e as relações humanas devem ser interpretados em suas particularidades culturais, e não sintetizados como se fossem leis gerais em uma espécie de Código Cultural. Nesse sentido, a abordagem semiótica da cultura revela que os fenômenos culturais são dotados de um conteúdo simbólico e, conseqüentemente, carregados de significados passíveis de serem interpretados de forma inteligível. A posição por uma teoria interpretativa da cultura é claramente visível nos argumentos do pensador. O trabalho antropológico é uma interpretação, isto é, uma leitura do objeto analisado, e não uma “construção de representações impecáveis de ordem formal”.5 Dito de outro modo, a interpretação cultural, através do instrumento da prática etnográfica (a descrição densa), somente é possível pela aproximação de dados concretos. Ela é um ponto de vista articulado pelo próprio observador a partir da interpretação do(s) observado(s) e, por essa razão, nunca será completa, eis que apenas o “objeto” de estudo poderia revelar uma interpretação “pura”, já que faz parte de sua cultura.6 Nesse sentido, o trabalho antropológico é uma interpretação de uma interpretação. Ao estudar uma comunidade indígena, pode-se dizer que o antropólogo depende das informações reveladas pelos nativos, seus “informantes”. 4 Para uma noção geral sobre os ramos da Antropologia, consultar: DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 27-38; LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2001, p. 16-20. 5 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 13. 6 Ibidem, p. 11. 5 Através dessa coleta de dados, o intérprete busca compreender a trama de significados. Assim, a interpretação não pode ser vista como uma lei, mas como uma compreensão de um fato particular, de uma comunidade particular, de uma cultura particular.7 Seguindo essa linha de raciocínio, o ideal de Geertz pode ser demonstrado pelo seguinte trecho: Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado.8 Com efeito, tendo em vista a atualidade dessa discussão em relação ao estudo antropológico, em grande parte deste capítulo, serão apresentadas as idéias desenvolvidas por Clifford Geertz para uma melhor compreensão da cultura e, portanto, da diversidade cultural. 1.1.1 Cultura: o conjunto de sistemas de símbolos significantes Uma das principais preocupações da Antropologia foi – e continua sendo – a definição do termo “cultura”.9 Tal preocupação deve-se ao fato de que em torno desse conceito é que se estruturou todo o estudo do homem. Desde a antigüidade, inúmeros pensadores, tais como Confúcio, Heródoto e Tácito,10 tentaram explicar a noção de cultura, com o intuito de compreender a diversidade humana. Entretanto, apenas em 1871 que as idéias foram sistematizadas, sendo pela primeira vez descrito o conceito científico da palavra, trabalho realizado pelo inglês Edward Burnett Tylor.11 Após ele, diversos antropólogos se dedicaram a esse objetivo, cuja pluralidade de enfoques pode ser analisada nas escolas antropológicas do pensamento.12 Contudo, a maioria das formulações do conceito “cultura”, por serem um tanto abrangentes, mostrou-se demasiadamente confusa. Segundo Clifford Geertz, as noções amplas correm o risco de perder seu foco, frustrando o seu próprio sentido. Conforme o autor, as noções universais perdem sua força. Portanto, percebe-se que é de suma relevância delimitar e especificar o conceito cultura, a fim de que tal 7 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 11 e 21. 8 Ibidem, p. 4. 9 A opinião de Roque de Barros Laraia sobre o estudo da cultura é que: “provavelmente nunca terminará, pois uma compreensão exata do próprio conceito de cultura significa a compreensão da própria natureza humana, tema perene da incansável reflexão humana”. (LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 63). 10 Ibidem, p. 10-11. 11 Para Edward Burnett Tylor (1832-1917), antropólogo inglês da corrente Evolucionista, “Cultura ou Civilização, tomada em seu mais amplo sentido etnográfico, é aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem na condição de membro de sociedade”. (TYLOR, Edward Burnett. A ciência da cultura. In: CASTRO, Celso (Org.). Evolucionismo cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,2005, p. 69. Sobre a crítica de Clifford Geertz em relação ao referido autor, consultar p. 3 da obra A interpretação das culturas). 12 Neste trabalho não se pretende detalhar as diferentes contribuições das escolas antropológicas, limitaremo-nos em apenas citar as mais conhecidas: Evolucionismo, Difusionismo, Funcionalismo, Estruturalismo, Antropologia Interpretativa, Antropologia Pós-Moderna ou Crítica. 6 noção não perca seu conteúdo, torne-se mais esclarecedora e quiçá mais poderosa.13 Por essas razões, Clifford Geertz expõe que: a cultura é melhor vista não como complexos de padrões concretos de comportamento – costumes, usos, tradições, feixes de hábitos -, como tem sido o caso até agora, mas como um conjunto de controle – planos, receitas, regras, instruções (o que os engenheiros da computação chamam de “programas”) – para governar o comportamento. [...] O homem é precisamente o animal mais desesperadamente dependente de tais mecanismos de controle, extragenéticos, fora da pele, de tais programas culturais, para ordenar seu comportamento.14 Diferentemente de Tylor, que define cultura utilizando a enumeração de itens, como um mero descritivismo – e aqui não desvalorizamos seu mérito, pois foi a partir de sua construção que o conceito se desenvolveu –, a concepção de Geertz torna- se mais consistente, pois mesmo subjetivamente, define de forma simples e clara a expressão “cultura”, sem dissecar as “banalidades empíricas do comportamento”.15 Em suma, para Geertz, o conceito antropológico de cultura pode ser designado como um conjunto de sistemas de símbolos significantes ou padrões culturais, construídos historicamente, que orientam o comportamento humano, dando significado à sua experiência.16 Ao contrário do que é comumente pensada, a cultura não é apenas um detalhe característico que pode marcar um povo, como se o futebol representasse o brasileiro, a cuia, o gaúcho, o acarajé, o baiano e assim por diante. Conforme Geertz, a cultura não é simplesmente um acessório, mas um elemento essencial para a existência humana.17 Os sistemas de símbolos significantes ou padrões culturais são, de acordo com o autor, uma espécie de “programa” ou um “gabarito”18, no qual o homem norteia as suas decisões. Ressalta-se que o homem não é estritamente determinado por sua cultura, como se fôssemos fadados a viver de uma só forma. A gama de possibilidades de nossas decisões está inserida em uma espécie de gabarito cultural. Por essa razão, pode-se dizer, por exemplo, que preferimos escolher comer churrasco de gado à aranha grelhada. Para Geertz, “um dos fatos mais significativos a nosso respeito pode ser, finalmente, que todos nós começamos com o equipamento natural para viver milhares de espécies de vidas, mas terminamos por viver apenas uma espécie”.19 Assim, todas as pessoas são capazes de crescer em qualquer cultura, porém tendo crescido em uma específica, a ela se adaptará, pois a convivência com os símbolos correspondentes implica na sua absorção e, por conseguinte, no seu modo de vida. Conforme Geertz: É por intermédio dos padrões culturais, amontoados ordenados de símbolos significativos, que o homem encontra sentido nos acontecimentos através dos quais ele vive. O estudo da cultura, a totalidade acumulada de tais padrões, é, portanto, o estudo da maquinaria que os indivíduos ou grupos 13 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 3 e 28-31. 14 Ibidem, p. 32-33. 15 Ibidem, p. 33. 16 Ibidem, p. 66 e 135. 17 Ibidem, p. 34. 18 Ibidem, p. 124. 19 Ibidem, p. 33. 7 de indivíduos empregam para orientar a si mesmos num mundo que de outra forma seria obscuro.20 Portanto, pode-se afirmar que a cultura modela o comportamento humano, na medida em que fornece símbolos, ou seja, diretrizes abrangentes de conduta e até mesmo tendências e reflexos sutis, os quais orientam a vida do homem. Sem tais “códigos”, a vida humana seria vazia de sentidos. 1.1.2 Os elementos simbólicos e seus significados Como a cultura é um conjunto ordenado de sistemas de símbolos significantes, entendê-la importa assimilar o que são os símbolos. Já foi dito anteriormente que os símbolos orientam, coordenam e dão sentido ao comportamento humano. Mas, o que são eles? Em linhas gerais, “símbolo” é tudo aquilo que carrega em si um significado. Da mesma forma que a noção de cultura, o conceito de símbolo precisa ser delimitado. Geertz o especifica, referindo que: [...] ele é usado para qualquer objeto, ato, acontecimento, qualidade ou relação que serve como vínculo a uma concepção – a concepção é o “significado” do símbolo [...] são formulações tangíveis de noções, abstrações da experiência fixada em formas perceptíveis, incorporações concretas de idéias, atitudes, julgamentos, saudades ou crenças. [...] Os atos culturais, a construção, apreensão e utilização de formas simbólicas, são acontecimentos sociais como quaisquer outros; são tão públicos como o casamento e tão observáveis como a agricultura.21 Os significados, segundo Geertz, “só podem ser ‘armazenados’ através de símbolos”.22 Estes, por sua vez, podem ser expressos por uma atitude, um objeto concreto, uma relação ou até mesmo uma abstração. A mão abanando em direção a alguém que está partindo, o calendário, uma obra de arte, a palavra “amor”, uma música. Todos eles são símbolos carregados de um significado específico, isto é, que procuram “dizer algo”. Eis alguns exemplos de Geertz: O número 6, escrito, imaginado, disposto numa fileira de pedras ou indicado num programa de computador, é um símbolo. A cruz também é um símbolo, falado, visualizado, modelado com as mãos quando a pessoa se benze, dedilhado quando pendurado em uma corrente, e também é um símbolo a tela “Guernica” ou o pedaço de pedra chamada “churinga”, a palavra “realidade” ou até mesmo o morfema “ing”.23 Logo, os significados da cultura de um povo estão sintetizados e representados em símbolos, construídos pelo homem para que sua vida tenha sentido. Ressalta-se que os elementos simbólicos não podem ser confundidos com os atos, objetos e relações, aos quais o homem atribui os significados. Embora os primeiros confundam-se com os segundos, isto é, uma cruz simbolize a fé cristã, a cruz por si só não é a fé cristã, mas um objeto que a exprime a partir de sua utilização por crentes. 20 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 150. 21 Ibidem, p. 67-68. 22 Ibidem, p. 93. 23 Ibidem, p. 68. 8 A interação de um símbolo com outro, dos símbolos entre si, forma um conjunto de sistemas de símbolos, os quais regulam e modelam as demais relações em que o homem está inserido.24 Segundo Geertz, os sistemas de símbolos, ou seja, os padrões culturais desempenham um papel mútuo: são modelos “da” realidade e modelos “para” a realidade. No sentido de modelo “da” realidade, as estruturas simbólicas modelam as relações físicas ou não-simbólicas. No segundo caso, no modelo “para” a realidade, as estruturas simbólicas é que são adaptadas às relações físicas ou não- simbólicas. Fazendo-se um paralelo à atividade agrícola, no modelo “da” realidade, o homem elabora uma teoria sobre as condições climáticas, da acidez do solo, da necessidade de fertilizantes, etc., a fim de obter uma maior produtividade em sua plantação. Ao mesmo tempo, no modelo “para” a realidade, essa teoria é modelada de acordo com o desenvolvimento da referida plantação, isto é, de acordo com os resultados obtidos com as condições climáticas, da acidez do solo e da qualidade dos fertilizantes utilizados. Destaca-se que os modelos “da” e “para” a realidade não possuem um caráter cronológico, como se um precedesse o outro. Ao contrário, a relação entre “da” e “para” a realidade é mútua, paralela, assim como pode serobservado em relação ao exemplo da agricultura. Ao mesmo tempo em que o homem elabora sua teoria agrícola, ele observa a natureza, ou seja, a teoria molda o físico, bem como a teoria se ajusta ao físico. Desse modo, os símbolos assumem uma dupla função, qual seja, dar sentido à realidade, modelando-a e, igualmente, modelando a realidade a eles mesmos.25 Nas palavras de Geertz: Diferentemente dos genes e outras fontes de informação não-simbólicas, os quais são apenas modelos para, não modelos de, os padrões culturais têm um aspecto duplo, intrínseco – eles dão significado, isto é, uma forma conceptual objetiva, à realidade social e psicológica, modelando-se em conformidade a ela e ao mesmo tempo modelando-a a eles mesmos.26 Apenas o homem possui uma ligação entre os modelos “da” e “para” a realidade. Isto é, diferentemente dos animais, os homens modelam a realidade e não apenas adaptam-se a ela. Portanto, a partir das observações do mundo em que está inserido, o homem procura tirar proveito dessas constatações, possibilitando desenvolver seu aprendizado.27 É o acúmulo desses aprendizados, ou, nas palavras de Geertz, do “fundo acumulado de símbolos significantes”28, criado historicamente, que possibilita ao homem enriquecer sua própria cultura. Nesse sentido, os símbolos representam a essência do comportamento humano. Os símbolos possuem papel elementar na vida do homem e, por essa razão, os indivíduos têm uma dependência tão grande em relação a eles. 1.1.3 Pensamento Humano e Diversidade Cultural Inúmeras pessoas acreditam que as diferenças culturais entre os seres humanos são produtos da composição genética. Existem teorias que sustentam que algumas raças e povos possuem atribuições hereditárias. Pode-se recordar, em 24 CRAIK, apud GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 69. 25 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 69. 26 Ibidem, p. 69. 27 Ibidem, p. 70. 28 Ibidem, p. 35. 9 tempos não muito distantes, do nazismo, o qual propunha serem superiores os indivíduos da raça ariana. Além disso, muitas afirmações como estas se tornaram populares: “índio é preguiçoso”, “negro de canela fina é mais trabalhador do que o negro de canela grossa” ou “japoneses são mais inteligentes”.29 Da mesma forma, tal problemática pode ser exemplificada pela notícia veiculada em uma reportagem do programa Globo Repórter. Nela, os cientistas demonstram que a característica de infidelidade de homens e mulheres estaria relacionada a determinados genes, ou seja, pessoas com certos atributos genéticos estariam mais propensas a trair. Nesse sentido, argumentam os cientistas: A diferença entre fiéis e infiéis pode ter mesmo relação com os hormônios. Cientistas suecos e americanos estudaram o comportamento sexual de ratos que formavam pares e descobriram um gene presente no hormônio vasopressina que, até então, acreditavam controlar apenas a pressão sanguínea, mas que pode influenciar também nos relacionamentos. [...] “No ano passado, um grupo de cientistas publicou o primeiro trabalho em uma variação desse gene que é relevante para o comportamento dos homens. Os homens que têm a versão curta do gene tendem a ser mais promíscuos e mais infiéis, e homens que têm a versão longa do gene tendem a ser mais monogâmicos e a ficar mais vinculados em casa e a cuidar mais dos filhos”, explica o geneticista Renato Zamora Flores, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).30 Como é de se notar, a discussão do poder dos genes sobre o comportamento humano é ainda muito polêmica. Negar que a composição genética influencia os seres humanos soaria irrazoável. Contudo, a Antropologia, através de pesquisas, desmistifica a concepção de que tão-somente os genes são os elementos essenciais para a distribuição dos comportamentos. Assim, as diferenças genéticas não determinariam as diferenças culturais, de modo que, como no exemplo citado, homens comportar-se-iam diferentemente das mulheres não em razão de seus hormônios, mas porque a cultura lhes fornece uma gama de possibilidades de comportamentos e de identificações distintos.31 Por outro lado, há quem pense que a diversidade cultural é resultante da geografia. O tipo de clima, vegetação e outras condições naturais específicas do local onde um povo se instalou interfeririam fortemente na vida desse grupo humano, conduzindo-o de modo peculiar. Até mesmo condicionariam seu progresso. Essa doutrina surgiu na antigüidade, mas se desenvolveu e tornou-se conhecida no final do século XIX e início do século XX, sendo refutada por antropólogos como Franz Boas. Para ele, os fatores geográficos exercem influência limitada sobre as culturas. Tal doutrina também dificilmente responderia por que alguns povos com 29 Baseado em LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 17. 30 REPORTAGEM EXIBIDA no dia 31 de julho de 2009 na rede Globo, às 22h30min. Disponível em: <http://g1.globo.com/globoreporter/0,,MUL1250884-16619,00- ESTUDO+DOS+BRASILEIROS+CASADOS+TRAEM.html>. Acesso em: 09 ago. 2009. 31 LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 19-20. 10 condições geográficas muitíssimo semelhantes e até mesmo em distâncias próximas desenvolveram suas culturas de maneira tão discrepantes.32 Portanto, nem o determinismo biológico, nem o geográfico são suficientes para justificar a diversidade cultural. Claramente, o homem sofre influência de sua genética e do meio ambiente onde vive, porém não é determinado por esses aspectos, como se agisse com um caráter meramente receptivo a eles. Ambos são limitados.33 A perspectiva tradicional sobre a evolução biológica e cultural do homem refere que primeiramente o homem desenvolveu seu aparato físico para, somente após a finalização desse estágio, a partir de um “momento mágico”, começar a produzir e transmitir elementos culturais.34 Em oposição, Geertz afirma que a cultura sempre esteve presente na evolução do homem, sugerindo “não existir o que chamamos de natureza humana independente de cultura”.35 Assim, o autor contesta a teoria do “momento mágico” ou do “ponto crítico”, julgando ser incorreta a tese de que o desenvolvimento total da biologia humana seria pré-requisito para a capacidade de acumulação cultural.36 De acordo com Geertz: E torna-se evidente, de forma ainda mais crucial, que a acumulação cultural não só já estava encaminhada muito antes de cessar o desenvolvimento orgânico, mas que tal acumulação certamente desempenhou um papel ativo moldando os estágios finais desse desenvolvimento [...] a ferramenta de pedra ou o machado rústico, em cujo rastro parece ter surgido não apenas uma estatura mais ereta, uma dentição reduzida e uma mão com domínio do polegar, mas a própria extensão do cérebro humano até seu tamanho atual.37 Observa o autor, ainda, que não é possível traçar uma linha delimitando o homem “não-enculturado” do homem “enculturado”38, como se o próprio homem tivesse subitamente se promovido de “coronel” a “general-de-brigada”39. A evolução biológica deu-se de forma gradual juntamente com o acúmulo cultural, ambos influenciando-se mutuamente.40 Dessa forma, a cultura foi ingrediente essencial para 32 Segundo Franz Boas: “As condições ambientais podem estimular as atividades culturais existentes, mas elas não têm força criativa. O mais fértil solo não cria a agricultura; as águas navegáveis não criam a navegação; um abundante suprimento de madeira não produz edificações de madeira. Mas onde quer que exista agricultura, arte da navegação e arquitetura, todas essas atividades serão estimuladas e parcialmente moldadas segundo as condiçõesgeográficas”. Logo adiante o autor complementa: “Desse modo, é infrutífero tentar explicar a cultura em termos geográficos [...] Entretanto, as relações espaciais dão apenas a oportunidade para o contato; os processos são culturais e não podem ser reduzidos a termos geográficos”. (FRANZ, Boas. Antropologia cultural. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 61-62; BOAS apud LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 21-23). 33 Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 24. 34 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 34. 35 Ibidem, p. 35. 36 Ibidem, p. 45 e 60. 37 WASHBURN, apud GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 49. 38 O significado que o autor imprime à palavra “enculturado” refere-se ao homem ser capaz de produzir e acumular cultura. 39 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 47. 40 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 46-47. Nesse sentido, observa Laplantine que o inato (biológico) e o adquirido (aspectos culturais) interagem 11 a formação do homem, influenciando até mesmo seu aparato físico, mas principalmente a organização e refinamento do sistema nervoso central. Ressalta-se que o homem, nos seus primórdios, não havia ainda desenvolvido uma cultura no sentido de um conjunto de sistemas de símbolos significantes ordenados, o que não impede afirmar que já existiam resquícios culturais capazes de orientar o comportamento humano e, conseqüentemente, torná-lo cada vez mais dependente deles.41 No exemplo bem formulado de Geertz, sem cultura provavelmente os personagens da obra de William Golding, “O Senhor das Moscas”, não seriam selvagens inteligentes, “seriam monstruosidades incontroláveis, com muito poucos instintos úteis, menos sentimentos reconhecíveis e nenhum intelecto: verdadeiros casos psiquiátricos”.42 Por conseguinte, a cultura interferiu e pode-se afirmar que continua interferindo na evolução da mente humana. Uma constatação recente é a da provável modificação da percepção cerebral provocada pela revolução dos meios de comunicação. Os acessos à internet estimulam os circuitos cerebrais e ativam o córtex pré-frontal, possibilitando aos indivíduos tomarem decisões rápidas diante de um grande volume de informações complexas.43 Assim, segundo Geertz, como um ser inacabado, o homem é complementado pela sua cultura, por suas particularidades culturais.44 Um pássaro, após nascer, ensaia seus primeiros vôos incertos, busca seu alimento, acomoda fios, gravetos e barro para a construção de seu ninho e acasala- se basicamente através de seus instintos – os comandos de seus genes – e pelos estímulos externos, os quais ordenam suas ações para desempenhar tais atividades. O homem, por sua vez, para escolher sua companheira ou seu círculo de amizades, selecionar o alimento que lhe apetece e construir sua residência necessita muito mais das chamadas “fontes extrínsecas de informação” do que de “fontes intrínsecas”.45 As fontes intrínsecas de informação são os nossos genes. Já, as fontes extrínsecas são os fatores externos ao corpo do ser humano, os quais não possuem ligação direta com os genes, ou seja, são os padrões culturais.46 O homem, ao contrário do pássaro e de outros animais, se apóia muito mais em fontes não genéticas para se desenvolver. Nesse sentido, Geertz aduz que: Entre o que o nosso corpo nos diz e o que devemos saber a fim de funcionar, há um vácuo que nós mesmos devemos preencher, e nós o preenchemos com a informação (ou desinformação) fornecida pela nossa cultura.47 continuadamente. (LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2000, p. 17). 41 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 50. 42 Ibidem, p. 35. 43 LUZ, Lia. A internet transforma o seu cérebro. Veja, São Paulo, edição 2125, ano 42, n. 32, p. 96- 99, 12 ago. 2009. 44 GEERTZ, op. cit., p. 36. 45 GALENTER; GERSTENHABER, apud GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 121. 46 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 36, 68, 121-124. 47 Ibidem, p. 36. 12 [...] Para construir um dique, o castor precisa apenas de um local apropriado e de materiais adequados – seu modo de agir é modelado por sua fisiologia. O homem, porém, cujos genes silenciam sobre o assunto das construções, precisa também de uma concepção do que seja construir um dique, uma concepção que ele só pode adquirir de uma fonte simbólica – um diagrama, um livro-texto, uma lição por parte de alguém que já sabe como os diques são construídos, ou então através da manipulação de elementos gráficos ou lingüísticos, de forma a atingir ele mesmo uma concepção do que sejam diques e de como construí-los.48 A capacidade humana provém da interação das fontes intrínsecas e das fontes extrínsecas de informação. O aparato genético determina frouxamente o ser humano, deixando lacunas na experiência humana a serem preenchidas pelos padrões culturais. Dessa forma, as fontes extrínsecas de informação, isto é, os sistemas de símbolos significantes, especificam o comportamento humano.49 Não há dúvidas que possuímos a capacidade de sorrir. No entanto, os sorrisos irônico, envergonhado, constrangido e tímido são essencialmente culturais. Como o sorriso, outros símbolos são criados pelo homem. A capacidade de criar símbolos e compreendê-los é que distingue o homem dos animais.50 Além disso, o ser humano necessita aprender e continuar aprendendo.51 Ora, o pensamento humano não é uma ocorrência enigmática ou misteriosa, na qual não possamos descrever ou interpretar. Segundo Geertz, o homem pensa, apoiando-se em símbolos elaborados historicamente por sua cultura, os quais dão sentido à sua experiência.52 E isto pode ser descrito pela Antropologia. Em conformidade com Geertz: Para tomar nossas decisões, precisamos saber como nos sentimos a respeito das coisas; para saber como nos sentimos a respeito das coisas precisamos de imagens públicas [...]53 Para obter a informação adicional necessária no sentido de agir, fomos forçados a depender cada vez mais de fontes culturais – o fundo acumulado de símbolos significantes.54 Tornar-se humano é tornar-se individual, e nós nos tornarmos individuais sob a direção dos padrões culturais, sistemas de significados criados historicamente em termos dos quais damos forma, ordem, objetivo e direção às nossas vidas. Os padrões culturais não são gerais, mas específicos.55 Assim, a cultura é o ingrediente essencial para a orientação do raciocínio; como antes referido, é um “gabarito”. Um indivíduo, ao refletir sobre o instituto do casamento, por exemplo, raciocina de acordo com os padrões de sua cultura, isto é, na forma como o casamento é realizado. Por esse motivo, muitos ocidentais estranham o modo como é procedido o casamento muçulmano no Oriente Médio. De um lado a monogamia, de outro, a poligamia. Seus sistemas ordenados de 48 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 69. 49 Ibidem, p. 33, 36, 69, 124. 50 Ibidem, p. 48. 51 Ibidem, p. 58. 52 Ibidem, p. 150, 33, 36. 53 Ibidem, p. 59-60. 54 Ibidem, p. 35. 55 Ibidem, p. 37. 13 símbolos são diferentes e, assim, estranhos um ao outro.56 Nesse sentido, nas simples palavras de Roque de Barros Laraia, percebe-se que “a cultura condiciona a visão de mundo do homem”.57 Concordando com Gilbert Ryle, Geertz afirma que o pensamento humano é primeiramente um atopúblico e secundariamente um ato privado. É basicamente um ato público, pois os indivíduos manipulam sua experiência a partir dos símbolos e seus significados, os quais são públicos. É a partir deles que particularmente o indivíduo constrói seu pensamento e toma suas decisões.58 Conforme Geertz: os símbolos [...] são construídos historicamente, mantidos socialmente e aplicados individualmente59 O sistema nervoso humano depende, inevitavelmente, da acessibilidade a estruturas simbólicas públicas para construir seus próprios padrões de atividade autônoma, contínua. Isso, por sua vez, significa que o pensamento humano é, basicamente, um ato aberto conduzido em termos de materiais objetivos da cultura comum, e só secundariamente um assunto privado.60 Portanto, o acesso às estruturas simbólicas permite ao homem guiar seu pensamento, deliberar sobre as suas ações e determinar a sua própria vida. Logicamente, por uma cultura abranger uma multiplicidade de padrões culturais, os indivíduos não participam ou, então, não compreendem todos eles. Ainda assim, para que sua vida torne-se viável em sociedade, o homem precisa dominar o mínimo de símbolos significantes, pois são eles que vinculam os indivíduos, tornam possível a sua existência.61 Igualmente, nesse contexto, cumpre salientar que a cultura é dinâmica. Isto é, segundo Roque de Barros Laraia, as características culturais não são imutáveis, mas sofrem alterações dentro da própria cultura, tendo em vista, por exemplo, os acontecimentos históricos de seu povo e, também, sofrem alterações externas, pela interação com outros sistemas culturais.62 Diante de um mundo globalizado, torna-se fácil identificar essas modificações. O Brasil, por exemplo, através do contato com outras nações, importou palavras tais como “internet”, “hambúrguer”, “buffet”, entre outras. O indígena utiliza o celular e não deixa de ser índio. Nós aprendemos a falar francês e comemos sushi e, mesmo assim, não deixamos de ser brasileiros. Enfim, nenhuma cultura é estática, ela modifica-se ao longo do tempo pelo tráfico de símbolos significantes. 56 Evidentemente existem muitos casais poligâmicos no Ocidente, como ocorre em algumas regiões nos Estados Unidos. No entanto, de uma forma geral, a prática mais comum é de que as uniões entre pessoas sejam monogâmicas. Destaca-se também que a religião exerce grande influência nesse aspecto. 57 Para outros exemplos sobre como a cultura condiciona a visão de mundo do homem, consultar: LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 67-74. 58 RYLE, Gilbert, apud GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 121, 150-151. 59 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 151. 60 Ibidem, p. 61. 61 LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 82. 62 Ibidem, p. 94-101. 14 Diante do exposto, fica mais claro agora pensar que a diversidade cultural não é produto dos fatores genéticos ou, então, da localização em que os grupos humanos se desenvolveram. A diversidade cultural é resultado dos diferentes tipos de interação do homem com o mundo. As relações específicas de um povo, tendo em vista sua história, a maneira de como criaram seus símbolos, classificaram seus elementos e organizaram suas experiências resultaram em conjuntos de sistemas de símbolos significantes diferenciados.63 Nesse sentido, os homens foram ao mesmo tempo produtos e produtores de sua cultura e, portanto, essa mútua interação, através do processo de aprendizagem (por meio da linguagem), tornou viável a construção de diferentes culturas, as quais projetaram diferentes sentidos à vida dos seres humanos. Em suma, na perspectiva de Clifford Geertz, observa-se que a cultura, como um conjunto ordenado de sistemas de símbolos significantes ou padrões culturais, construídos historicamente, é elemento essencial para o desenvolvimento do homem. Ela funciona como uma espécie de “gabarito” ou “programa”, no qual os indivíduos norteiam suas vidas, fazendo-os capazes de tomar suas próprias decisões. Dito de outro modo, o homem está atrelado a esta “teia”, pois são os símbolos e seus respectivos significados que imprimem sentido e razão à sua própria existência. É por esse motivo que Geertz salienta: “sem os homens certamente não haveria cultura, mas, de forma semelhante e muito significativamente, sem cultura não haveria homens”.64 A cultura é fundamental para a formação do ser humano. Assim, o que distingue o homem dos animais é a cultura, pois somente ele tem o poder de criar e assimilar os símbolos. Ademais, o que distingue os homens entre si não é a sua composição genética ou a geografia, mas sim a diferença da mútua interação entre os modelos “da” e “para” a realidade que cada povo percebeu e elaborou de maneira singular. Tal processo possibilitou, portanto, construções diversificadas de modelos simbólicos, refletindo nas diferentes visões de mundo que cada cultura possui e orienta seus indivíduos. 1.2 ETNOCENTRISMO Quando uma cultura se defronta com outra é natural que deste encontro desperte um estranhamento. Isso porque, como já examinado, cada cultura imprime e entende de maneira peculiar os significados dos seus símbolos, os quais nem sempre coincidem com o conteúdo de outros universos simbólicos existentes. Não obstante, é possível notar que muitas vezes atribuímos os nossos próprios significados aos símbolos de outras culturas, ou seja, emitimos juízos valorativos a partir de nossa visão de mundo e nossa experiência em relação à diferentes culturas (o “outro”). Assim, tal estranhamento traduz nossa dificuldade em pensar o “outro” em seus próprios valores. Esse fenômeno é explicado por Everardo Rocha do seguinte modo: 63 DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 24. 64 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, p. 36. 15 Etnocentrismo é uma visão do mundo com a qual tomamos nosso próprio grupo como centro de tudo, e os demais grupos são pensados e sentidos pelos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência. No plano intelectual pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade, etc.65 Pode-se afirmar que a visão sobre o “outro” a partir das concepções do “eu” esteve presente em toda a história da humanidade. Esse aspecto pode ser principalmente verificado na época dos descobrimentos, isto é, quando o desenvolvimento da navegação permitiu os primeiros contatos entre diferentes povos. Talvez, esses foram os momentos marcantes para se começar a pensar sobre a diferença. Referindo-se aos índios do Brasil, o escrivão Pero Vaz de Caminha descreve ao Rei de Portugal: “Assim, quando o batel chegou à foz do rio estavam ali dezoito ou vinte homens, pardos, todos nus, sem nenhuma roupa que lhes cobrisse suas vergonhas”.66 Essa, dentre outras passagens, revela a perplexidade dos portugueses com a imagem dos indígenas; em outras palavras: como eles não se vestem como nós? Por que não cobrem suas “vergonhas”?67 Pero Vaz de Caminha também escreve a Dom Manuel: E, portanto, se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, fazerem-se cristãos e crerem na nossa santa fé, a qual praza Nosso Senhor que os traga porque, na verdade, esta gente é boa e de boa simplicidade e gravar-se-á neles, ligeiramente, qualquer cunho que lhes queiram dar.68 E, portanto, Vossa Alteza, pois tanto deseja acrescentar na santa fé católica, deve intervir em sua salvação.69 Igualmente,os trechos citados manifestam a visão etnocêntrica do grupo do “eu” em comparação ao grupo do “outro”. Os portugueses, ao terem a pretensão de incorporar a fé cristã à cultura indígena, a fim de salvar os “bons selvagens” e torná- los mais “humanos”, consideraram a sua religião como a única ideal. Nesse sentido, o etnocentrismo pode ser percebido quando o “eu” eleva a sua visão e as suas características como superiores, mais corretas e mais naturais. Já o “outro” é visto como uma expressão do absurdo, do frágil ou do ininteligível.70 O etnocentrismo é um fenômeno que está presente em todas as sociedades e que pode ser considerado natural, uma vez que ele decorre do choque entre as culturas, ou seja, da constatação das diferenças.71 Além disso, é um fato natural e/ou comum, pois a diferença do “outro” parece ameaçar a própria identidade cultural. Assim, o etnocentrismo até certa medida torna-se necessário, já que ele funciona como uma espécie de autodefesa ou força capaz de revigorar os elementos culturais 65 ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 7. 66 CAMINHA, Pero Vaz de. Carta ao rei Dom Manuel. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998, p. 9. 67 Eduardo Bueno traz à tona mais registros sobre as impressões entre os indígenas brasileiros e os navegantes lusos: BUENO, Eduardo. A viagem do descobrimento. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998, v. 1, p. 94-102. 68 CAMINHA, op. cit., p. 46. 69 Ibidem, p. 47. 70 ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 9. 71 Ibidem, p. 8; LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural dois. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989, p. 333. 16 de uma coletividade, afirmando e assegurando a identidade de um povo. Diante disso, apresenta-se o seguinte questionamento: o que seria de uma cultura se os indivíduos achassem os seus elementos inferiores, abdicando de sua própria identidade para emergir em outra cultura? Por essa razão, pode-se dizer que o sentimento de superioridade que caracteriza a visão etnocêntrica, observando-se alguns limites, é um fator positivo para o desenvolvimento de uma cultura.72 O etnocentrismo pode assumir várias feições, desde formas sutis, como o estranhamento diante dos diferentes modos de viver e pensar, e também formas extremas, como a intolerância cultural. Por conseguinte, ele é até certa medida aceitável, pois sua força pode tornar-se perigosa, sendo utilizada pura e simplesmente para menosprezar e reprimir o “outro”, negando-lhe condições para apresentar a si mesmo.73 Em relação à dificuldade dos homens em encarar a diversidade das culturas, Lévi-Strauss comenta que: A humanidade cessa nas fronteiras da tribo, do grupo lingüístico, às vezes mesmo da aldeia; a tal ponto, que um grande número de populações ditas primitivas se autodesignam com um nome que significa “os homens” (ou às vezes – digamo-lo com mais discrição? – os “bons”, os “excelentes”, os “completos”), implicando assim que as outras tribos, grupos, ou aldeias não participam das virtudes ou mesmo da natureza humana, mas são, quando muito, compostos de “maus”, de “malvados”, de “macacos da terra” ou de “ovos de piolho”. Chega-se freqüentemente a privar o estrangeiro deste último grau de realidade, fazendo dele um “fantasma” ou uma “aparição”.74 O próprio desenvolvimento da ciência antropológica é marcado por idéias de caráter etnocêntrico. Os pensadores da corrente evolucionista75, fortemente influenciados pela obra “A Origem das Espécies”, de Charles Darwin, acreditavam que a diversidade cultural poderia ser explicada em virtude das diferentes posições que os povos ocupariam nos denominados graus de evolução da humanidade. Segundo eles, todas as culturas enfrentariam obrigatoriamente três estágios de desenvolvimento: selvageria, barbárie e civilização. Assim, o parâmetro de “civilizado” para o pesquisador era, por exemplo, a existência de elementos tecnológicos em uma cultura. Contudo, o que é tecnologia? O pesquisador baseava- se na sua noção do que é tecnológico, esquecendo-se que esta sequer existia em outras culturas. Conforme as críticas dirigidas a essa corrente, o erro do evolucionismo estaria em comparar e classificar as culturas de acordo com os critérios da sociedade do pesquisador, ignorando o contexto no qual os elementos da cultura analisada estariam inseridos. Porém, é de se ressaltar que o mérito do evolucionismo está em, ao menos, ter se proposto a refletir sobre o “outro”.76 72 SIMON, apud CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002, p. 242-243; ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 9. 73 ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 14; CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002, p. 48 e 243. 74 LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural dois. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989, p. 334. 75 Edward Burnett Tylor, James Frazer e Lewis Morgan foram os autores expoentes do Evolucionismo Cultural. 76 Sobre a corrente evolucionista: DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma Introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 89-101; ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 25-36. 17 No plano legislativo brasileiro, igualmente, essas idéias podem ser observadas. O antigo Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais, criado em 1910 pelo Decreto n° 8.072, por exemplo, tinha como principal finalidade, apesar de aparentes benefícios, transformar o índio em um trabalhador rural, a fim de que ele pudesse “progredir” ao estágio “civilizado” da cultura dominante nacional. Em outras palavras, os indígenas eram considerados como um atraso ao desenvolvimento. O objetivo do projeto era o de integrar e assimilar de forma pacífica a cultura indígena pela cultura branca.77 Além disso, até pouco tempo o indígena não era considerado plenamente capaz para exercer pessoalmente todos os atos da vida civil. O artigo 6° do Código Civil de 1916 arrolava os indígenas como relativamente capazes, ao lado dos maiores de 16 e menores de 21 anos e dos pródigos. A imagem do índio “não civilizado” como um ser infantil, que necessita da tutela do Estado, pode ser notada no parágrafo único do referido artigo.78 É de se ressaltar também que, ainda hoje, o índio é visto como um personagem do folclore brasileiro que já deveria ter sumido da história do país.79 Essa posição etnocêntrica em relação às comunidades indígenas pode ser visualizada através do trecho do antropólogo Julio Cezar Melatti: Os brancos que vivem próximos das aldeias indígenas dedicam-se à coleta de borracha ou de castanha, à criação de gado, à agricultura e outras atividades, segundo as diferentes regiões. Sejam grandes empresários, trabalhadores rurais, camponeses, ou garimpeiros, estão sempre a disputar o território dos índios. O látex, a castanha, o pasto natural, a terra boa para a lavoura, a caça acham-se muitas vezes dentro da área de ação de sociedades indígenas. [...] os vizinhos das terras dos índios afirmam que eles são preguiçosos, cruéis, sujos. Ao chamá-los de preguiçosos, associam a isto a idéia de que os índios não aproveitam bem suas terras, que estas produziriam muito mais se pertencessem aos brancos; tal acusação serve também para justificar os salários baixos que dão aos índios ou em outras regiões onde há excesso de mão-de-obra, para lhes 77 BECKHAUSEN, Marcelo. O reconhecimento constitucional da cultura indígena – os limites de uma hermenêutica constitucional. 2001. Dissertação. (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, SãoLeopoldo, 2001. p. 21-23. Disponível em: <http://www.prpe.mpf.gov.br/internet/Revista-Eletronica/2007/Dissertacao-de-Mestrado-sobre- direitos-indigenas>. Acesso em: 15 jul. 2009. 78 O artigo 6° do Código Civil de 1916 dispõe: São in capazes, relativamente a certos atos (art. 147, I), ou à maneira de os exercer: I - os maiores de 16 (dezesseis) e os menores de 21 (vinte e um) anos (arts. 154 a 156); II - os pródigos; III - os silvícolas. Parágrafo único: Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessará à medida que se forem adaptando à civilização do País. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L3071.htm>. Acesso em: 14 set. 2009; BECKHAUSEN, Marcelo. O reconhecimento constitucional da cultura indígena – os limites de uma hermenêutica constitucional. 2001. Dissertação. (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2001. p. 21-23. Disponível em: <http://www.prpe.mpf.gov.br/internet/Revista-Eletronica/2007/Dissertacao-de-Mestrado-sobre- direitos-indigenas>. Acesso em: 15 jul. 2009. 79 Em relação à visão sobre os indígenas, destacamos o interessante trecho de Eduardo Viveiros de Castro: “A impressão que tenho é que o ‘Brasil’ até bem pouco não queria saber de índio, e sempre morreu de medo de ser associado, ‘lá fora’, a esse personagem, que deveria ter sumido do mapa há muito tempo e virado uma pitoresca e inofensiva figura do folclore nacional. Mas os índios continuam aí, e vão continuar. E, como vemos, eles começam devagarzinho a ser admitidos no Brasil oficial-midiático, agora que foram legitimados na metrópole. A Amazônia precisou passar pela Europa para se tornar visível do litoral do Brasil. Antes assim”. (SZTUTMAN, Renato. Encontros Eduardo Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008, p. 85). 18 recusar trabalho. Ao chamá-los de cruéis, justificam a crueldade que usam para com eles. Não raro se ouve dizer que o índio deve ser tratado a bala.80 A presente passagem demonstra como o grupo do “eu” constrói uma imagem distorcida do “outro”. Ao considerarmos como critério a nossa sociedade (desenvolvida, com elevado acúmulo de reservas), concebemos as comunidades indígenas como atrasadas, projetando, por exemplo, seu tipo de economia (de subsistência) como sinônimo de miséria e pobreza. Dito de outro modo, esquecemos o contexto no qual tais comunidades estão inseridas.81 Portanto, diante dos exemplos citados, percebe-se a necessidade de superação do pensamento etnocêntrico, caso não queiramos cair erros teóricos. Muito embora seja uma tarefa difícil, ao tentar analisar e compreender o “outro”, é importante exercitarmos o desprendimento das concepções da nossa própria cultura, atividade que é possível através da relativização. 1.3 RELATIVISMO CULTURAL O relativismo cultural é um tema extremamente polêmico e, por essa razão, não é surpreendente que sobre ele suscitem inúmeras discussões.82 Conforme afirma Denys Cuche, o relativismo cultural é compreendido de três maneiras distintas: (a) como uma teoria, na qual é sustentado que cada cultura forma uma entidade separada das demais, cujas conseqüências mais radicais seriam a impossibilidade de comparação e de diálogo entre as outras culturas; (b) como um princípio ético, que exige uma absoluta neutralidade e respeito em relação à diversidade das culturas; (c) como um princípio metodológico, que privilegia uma abordagem compreensiva da diversidade, tendo-se em vista a análise completa do sistema simbólico das culturas.83 Embora existam essas três concepções sobre o relativismo cultural, para Denys Cuche, apenas a última é válida. Isso, porque a primeira noção não pode ser comprovada cientificamente, ou seja, não é razoável pensar que as diferentes culturas não podem ser comparadas entre si; e a segunda – da neutralidade ética –, porque serve, muitas vezes, como uma “máscara do desprezo”.84 Portanto, segundo o autor, o relativismo cultural deve ser considerado como um princípio metodológico. Nesse sentido: Recorrer ao relativismo cultural é postular que todo o conjunto cultural tem uma tendência para a coerência e certa autonomia simbólica que lhe 80 MELATTI, Julio Cezar. Índios do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2007, p. 255-256. Neste capítulo da obra, Melatti expõe também outras visões de como os índios são julgados: do ponto de vista romântico, da mentalidade estatística, burocrática ou empresarial. (Ibidem, p. 256-261). 81 SAHLINS, apud ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 79-80. 82 Cumpre destacar que foi Franz Boas (1858-1942) o responsável pela concepção antropológica do relativismo cultural. Apesar de não ter cunhado a expressão, em seus textos é notável a idéia de que as culturas devem ser analisadas em suas particularidades. A primeira pessoa a utilizar a expressão “relativismo cultural” foi Melville Herskovits nos anos 1930. (CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002, p. 44 e 240). 83 CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002, p. 239-241. 84 Ibidem, p. 239-240. 19 confere seu caráter original singular; e que não se pode analisar um traço cultural independentemente do sistema cultural ao qual ele pertence e que lhe dá sentido. Isto quer dizer estudar todas as culturas, quaisquer que sejam a priori, sem compará-las e ou “medi-las” prematuramente em relação a outras culturas.85 Assim, o relativismo cultural não pode estar associado à trivial idéia de que “tudo é variável” ou “tudo deve ser aceito”, mas a de que os fatores de uma cultura necessitam ser primeiramente compreendidos em seus próprios termos, ou seja, a partir da lógica do sistema simbólico dessa mesma cultura e, vale dizer, não a partir da lógica do sistema do observador.86 Na mesma linha, Everardo Rocha destaca que relativizar é “não transformar a diferença em hierarquia, em superiores e inferiores ou em bem e mal, mas vê-la na dimensão de riqueza por ser diferença”.87 Dessa forma, ao observar o “outro”, as concepções do grupo do “eu” não podem ser colocadas como o centro de tudo, ou seja, não podem ser absolutizadas ou universalizadas. Ao contrário, é importante que o “outro” seja analisado de acordo com os seus elementos, as suas características e os seus próprios problemas.88 Ademais, ressalta o autor que o relativismo é um processo complicado, uma vez que devemos perder de vista nossas “certezas” etnocêntricas. Todavia, a postura relativizadora permite a reflexão sobre o “outro” e, até mesmo, a transformação da própria sociedade do “eu”.89 Em relação à postura de reflexão sobre o “outro”, Roberto DaMatta refere que essa atividade consiste basicamente no movimento de “transformar o exótico no familiar e/ou transformar o familiar em exótico”.90 Eis o processo relativizador. Na transformação do exótico em familiar, pode-se afirmar que o pesquisador busca entender o universo de significação do sistema do “outro”, familiarizando-se, ou seja, conhecendo melhor os aspectos culturais que outrora pareciam exóticos, incompreensíveis e obscuros. O movimento inverso, a transformação do familiar em exótico, refere-se ao fato de o pesquisador descobrir o “outro” na sua própria cultura. Em outras palavras, trata-se de identificar e estranhar os elementos familiares que estão “petrificados” em nós, ou seja, de realizar um movimento de reflexão sobre nós mesmos a partir dessa diferença.91 É justamente essa mútua relação entre o familiar e o exótico que proporciona a reflexão e, por conseguinte, o diálogo.92 85 CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002, p. 241. 86 Sobre esse aspecto, Roque de Barros Laraia ressalta que cada cultura tem a sualógica própria. A transposição da lógica de um sistema cultural para outro caracteriza um ato etnocêntrico. Por essa razão, um traço cultural deve ser observado em conformidade com a coerência de seu próprio sistema cultural. (LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 87 e 91). 87 ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 20. 88 Ibidem, p. 46. 89 Ibidem, p. 54, 73 e 93. 90 DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma Introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 157. 91 Ibidem, p. 157-158. 92 Ibidem, p. 26-27, 158 e 162. 20 Clifford Geertz, diante desse polêmico tema, assume a posição Anti Anti- Relativista.93 Esta expressão quer indicar que o autor não possui a pretensão de defender o relativismo cultural, mas a de atacar o medo infundado que é mantido em relação a ele. Assim, a dupla negativa [Anti Anti-] refere-se, estritamente, a sua oposição ao pensamento anti-relativista.94 Tal pensamento, para Geertz, além de atribuir conseqüências infundadas ao relativismo cultural, como, por exemplo, o niilismo (“ou tudo ou nada”) e o subjetivismo (“tudo depende da maneira como você vê as coisas”), dá uma solução errada a este problema antropológico, qual seja, a de que precisamos encontrar um aspecto (imutável) do ser humano que esteja acima da cultura, como a moral ou o conhecimento (a Razão), para, só assim, afastar os supostos fantasmas da abordagem relativista.95 Todavia, mesmo que Geertz rejeite a posição anti-relativista, ele não quer assumir uma posição relativista como uma teoria antropológica. Nesse sentido, ele destaca que a inclinação relativista dos antropológicos recebe impulsos não tanto das teorias construídas a partir dos dados antropológicos (costumes, vestígios arqueológicos, crânios, léxicos, etc.), mas, sim, a partir destes mesmos dados.96 Ou seja, o alerta dos relativistas sobre o perigo de nossas concepções teóricas e atitudes práticas estarem demasiadamente arraigadas em nossa cultura e, assim, impossibilitarem-nos de entrar em um diálogo autêntico com outras culturas, não precisa ser erigido ao status de uma teoria, porque a questão encontra-se em como viver com estes dados antropológicos, que colocam em questão, constantemente, a cultura na qual advém o antropólogo.97 Logo, retomando a idéia central do presente capítulo, pode-se afirmar que o relativismo cultural é um princípio metodológico ou, ainda, um exercício no qual se busca compreender como os povos deram e dão sentidos diversos aos modelos “da” e “para” a realidade. Relativizar significa abandonar a forma radical da visão etnocêntrica, na medida em que se busca interpretar a outra cultura a partir de seu próprio universo de significação. 2 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA ORDEM JURÍDICO- CONSTITUCIONAL BRASILEIRA Antes mesmo de adentrarmos na discussão propriamente dita do Projeto de Lei n° 1.057/2007, objeto deste trabalho, teceremos alguns breves delineamentos sobre a importante função do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na ordem jurídico-constitucional brasileira, eis que ela está diretamente relacionada à justificação do referido projeto de lei. Cumpre ressaltar também que não nos deteremos a examinar a totalidade das normas que estão relacionadas ao problema proposto em nosso tema, pois isto envolveria uma análise teórico-jurídica muito mais ampla do que a prevista, como, por exemplo, a análise da relação entre os direitos previstos em convenções e declarações internacionais e a respectiva abertura material do catálogo dos direitos fundamentais da Constituição Federal, bem como as disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente. Dessa forma, limitar-nos- 93 GEERTZ, Clifford. Anti Anti-Relativismo. In: _____. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 47-67. 94 Ibidem, p. 47. 95 Ibidem, p. 61-63. 96 Ibidem, p. 49. 97 Ibidem, p. 49 e 65. 21 emos em refletir sobre o Princípio Fundamental da Dignidade da Pessoa Humana, uma vez que ele irradia diretrizes a todo o ordenamento jurídico brasileiro. 2.1 A NOÇÃO DE DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA ORDEM JURÍDICO- CONSTITUCIONAL BRASILEIRA Definir o que seja a dignidade da pessoa humana não é uma tarefa fácil, tendo em vista a complexidade desta idéia. Isto se deve ao fato de que a dignidade possui um conceito extremamente impreciso, genérico, vago e ambíguo.98 Contudo, há a necessidade de conceituá-la, da maneira mais explícita possível, mesmo que em linhas gerais.99 A dignidade da pessoa humana pode ser tida como a qualidade intrínseca de todo o ser humano, sendo o elemento que o identifica como tal,100 sem distinções, ou seja, independentemente de suas características.101 Como algo inerente a todo e qualquer ser humano, a dignidade é insubstituível, inalienável e irrenunciável,102 não podendo, dessa forma, ser ela substituída, transferida ou mesmo abdicada. Note-se que a principal tarefa, aqui, é a procura de critérios de delimitação do conceito de dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, ressalta Sarlet, a dignidade da pessoa humana não é criada, concedida ou retirada, mas sim reconhecida e protegida pelo Estado.103 Em outras palavras, a qualidade que uma pessoa seja digna, não depende do Direito, já que a dignidade preexiste a ele. Ao mesmo tempo, a dignidade da pessoa humana pode ser violada e, por essa razão, ao Estado incumbe protegê-la e promovê-la.104 Assim, a dignidade é tida como um princípio e não um direito em nosso ordenamento jurídico, já que não é concedida, mas reconhecida.105 Sarlet explicita que a dignidade da pessoa humana deve ser entendida como norma (princípio e regra) e valor fundamental na ordem jurídico-constitucional.106 98 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 44. 99 Não nos ateremos em expor aqui a perspectiva histórica da construção da noção de dignidade da pessoa humana, sendo que, para isso, pode ser consultada a obra de Ingo Wolfgang Sarlet: (Ibidem, p. 31-44). 100 SACHS, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 45. 101 No contexto dos direitos humanos, Fábio Konder Comparato afirma que se trata de “algo que é inerente à própria condição humana, sem ligação com particularidades determinadas de indivíduos ou grupos”. (COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 57). 102 DÜRIG; STERN, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 47. 103 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 47. 104 Ibidem, p. 77-78. 105 Ibidem, p. 78. 106 Sobre o status jurídico-normativo da dignidade da pessoa humana como norma (princípio e regra) e valor fundamental, Ingo Sarlet remete o pensamento a Robert Alexy e, em virtude da complexidade deste raciocínio, não o desenvolveremos aqui. Para isso, conferir: SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 74-84. 22 Em função disso, afirma-se que a dignidade da pessoa humana é, ao mesmo tempo, limite (função defensiva) e tarefa (função prestacional) do Estado. Limite, pois, como uma qualidade intrínseca e indisponível de todo o ser humano, obsta que o poder estatal venha ofendê-la, atuando como uma defesa. E, tarefa, pois aoEstado cumpre respeitar, preservar e proteger a dignidade da pessoa humana e, em especial, prestar e proporcionar condições para a sua concretização.107 Ainda, aponta Sarlet, que a dignidade assume uma dimensão intersubjetiva,108 ou seja, não é tarefa apenas do Estado protegê-la, promovê-la e não a violar, mas também da comunidade e das próprias pessoas.109 Em síntese, para Sarlet, a dignidade da pessoa humana pode ser designada como: A qualidade intrínseca e distintiva reconhecida a cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.110 Ressalta-se que a dignidade da pessoa humana, embora seja uma qualidade intrínseca ao ser humano, é concretizada através de um processo histórico- cultural.111 Retomando as idéias do capítulo anterior, a afirmação desta qualidade como um símbolo significante depende da interação dos modelos “da” e “para” a realidade, de tal modo que seu conceito está em constante desenvolvimento, sendo isto uma das razões pelas quais não possui um conteúdo fixo. É o contexto histórico e cultural de um povo que assegura e procura concretizar efetivamente este elemento intrínseco de cada ser humano.112 Porém, tal elemento deverá valer para todo e qualquer ser humano protegido pelo ordenamento. Além disso, a dignidade da pessoa humana está intimamente ligada à liberdade. Isto diz respeito à possibilidade de o ser humano exercer sua autonomia e sua autodeterminação, isto é, de governar a si próprio, bem como definir sua 107 PODLECH; SACHS, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 52-53. 108 KANT, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 58. 109 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 125. 110 Ibidem, p. 67. 111 HÄBERLE, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 51. 112 De acordo com Sarlet, a dignidade é a qualidade intrínseca ao ser humano, que preexiste ao Direito, mas que apesar disso “o grau de reconhecimento e proteção outorgado à dignidade da pessoa por cada ordem jurídico-constitucional e pelo Direito Internacional, certamente irá depender de sua efetiva realização e promoção” (SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 76). Sobre este ponto convém lembrar a notável obra de Fábio Konder Comparato, que demonstra, através de documentos normativos, a construção histórica dos direitos do homem (COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2005). 23 conduta e escolher as circunstâncias em relação à sua vida.113 Sobre este aspecto, José Joaquim Gomes Canotilho refere-se à idéia de o indivíduo ser “conformador de si próprio e da sua vida segundo o seu próprio projeto espiritual”.114 Oportuno frisar que a dignidade da pessoa humana deve ser reconhecida a todo o ser humano, mesmo que a pessoa não possa exercer sua liberdade de maneira autônoma, como é o caso, por exemplo, dos absolutamente incapazes (portadores de sérias doenças físicas e/ou mentais, nascituro). Por conseguinte, fala-se que a dignidade humana está relacionada ao potencial de liberdade.115 Observa-se, assim, que a dignidade da pessoa humana será efetiva se forem garantidos – não somente eles, mas principalmente – o direito fundamental à vida e à liberdade. Nas palavras de Sarlet, eles constituem as “exigências da dignidade da pessoa humana” (bem como os outros direitos e garantias fundamentais, na medida em que são concretizações daquela).116 Nesse sentido, segundo o autor: Onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças.117 Portanto, embora tenhamos traçado em linhas gerais o conceito jurídico de dignidade da pessoa humana, percebe-se que o mesmo possui, segundo afirma Sarlet, um caráter multidimensional,118 visto que a dignidade da pessoa humana é qualidade intrínseca de todo e qualquer ser humano, com uma dupla função (limite e tarefa), concretizada em um plano histórico-cultural, e que, como veremos no próximo tópico, é o princípio embasador do ordenamento jurídico brasileiro. 2.2 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO FUNDAMENTO E FIM DO ESTADO E A SUA RELAÇÃO COM OS DIREITOS FUNDAMENTAIS A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 consagrou o valor da dignidade humana, ao reconhecer em seu preâmbulo e em outros artigos que o homem possui o direito de ser reconhecido como pessoa perante a lei. Este documento exerceu grande influência e, a partir disso, a idéia sobre o valor supremo da dignidade da pessoa humana passou a ser integrada expressamente em diversas cartas constitucionais.119 Após um longo processo histórico, o homem figura o elemento primordial do Estado, isto é, que legitima e justifica o poder estatal. 113 BLECKMANN, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 50. 114 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e Teoria da constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2000, p. 225. 115 DÜRIG, apud SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 50-51. 116 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 51. 117 Ibidem, p. 65. 118 Ibidem, p. 66. 119 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 222-237. 24 Conforme assinala Bleckmann, “é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o homem constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal”.120 Para Judith Martins-Costa “a pessoa, considerada em si e em (por) sua humanidade, constitui o ‘valor fonte’ que anima e justifica a própria existência de um ordenamento jurídico”.121 E, segundo Canotilho: A dignidade humana como base da República significa o reconhecimento do indivíduo como limite e fundamento do domínio político da República. Neste sentido, a República é uma organização política que serve o homem, não é o homem que serve os aparelhos político-organizatórios.122 Nessa mesma linha, tendo em vista que os direitos protegem a dignidade do homem, Robert Alexy destaca que: A observação aos direitos do homem é uma condição necessária
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