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Resenha de 1984

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1984
 Autor: George Orwell
 (Pseudônimo de Eric Arthur Blair)
 Tradução de: Wilson Velloso
 277 páginas; 16. Edição
 Companhia Editora Nacional
 São Paulo-SP
 “Os limites do meu mundo são os limites de minha linguagem”.
 Clifford Geertz
 “l.984” é um livro de muitos méritos. O pano de fundo óbvio e que permeia a estória o tempo todo é a política, contudo, a estória não se limita ou se esgota ao assunto, isto é, apenas no que diz respeito ao poder.
 Não há heróis em “1.984”: nem o grande herói romântico, o indivíduo idealizado dos folhetins, nem tampouco o ‘herói coletivo “das lutas históricas, no caso, o proletariado. Não por acaso, na obra, este proletariado existe, mas é subserviente, aliás, inconsciente de uma improvável” vocação histórica “para uma radical transformação das bases e das estruturas sociais”.
 Isto se explica porque, justamente, os heróis que haviam , heróis revolucionários como o trio Jones, Aaronson e Rutheford, ou mesmo os que incomodaram, sob qualquer aspecto, o Partido ( que se confunde com o Estado) , foram perseguidos, execrados, exilados, executados e literalmente pulverizados da História.
 
 “1.984”, na verdade, tem um anti-herói: o burocrata Winston Smith. Aliás, um membro do Partido, não um prole. E, mais especificamente, um membro do Partido Externo, funcionário administrativo.
 O livro é escrito no discurso direto, ou seja, em forma de diálogos e o narrador não é Winston, mas se vale da ótica, da perspectiva pessoal do personagem. Smith é descrito, aliás, se infere, como um “desajustado” – ou próximo de um limite de desequilíbrio-, sente lapsos de memória que o remetem à sua difícil infância de fome e de desaparecimento dos pais e da única irmã, tem intuições questionadoras de sua realidade imediata, de seu contexto social, uma Inglaterra não mais soberana, autônoma, uma nação ou governo próprio como se conhecia antes, no passado imaginado por Orwell.
 É uma Inglaterra incorporada a um país-continente chamado Oceania, que ora se confronta, ora se alia com outras duas nações-continentes: a Eurásia e a Lestásia, símbolos, por sua vez, do mundo anglo-americano, no caso da Oceania (Estados Unidos, Inglaterra e outros países das Américas, como uma evidenciação, na vida real dos leitores, o grande peso geopolítico, hegemônico e geoestratégico que os Estados Unidos da América alcançaram com o fim da Segunda Grande Guerra e que, diferente da ficção, consolidaram sua hegemonia no mundo Ocidental (e parte do Oriental, aliado ao Japão e alguns outros países asiáticos) ao longo do século XX.
 Quanto à Eurásia, essa outra nação-continente compreenderia uma Europa, desligada da Grã-Bretanha (um prenúncio do Mercado Comum Europeu, outra das “sacadas futurológicas” orwellianas, de uma Inglaterra que preserva a libra e não adotou o Euro?), junto à União Soviética de então. E, ao que diz respeito a Lestásia, compreenderia os outros países asiáticos.
 A ficção orwelliana, em 1.984, já apresenta um mundo diferente da linearidade, aliás, da bipolaridade da época em que foi escrito: a “Guerra Fria”, que era caracterizada pela disputa hegemônica, geopolítica e geoestratégica do mundo pelas duas superpotências mundiais de meados até fins do século XX na história e geografia oficial conhecida por nós, leitores: o embate entre os Estados Unidos da América (aliados ao Japão e à Europa), representando o mundo “livre” capitalista, de economia de mercado, e a ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, URSS, líder e representante da ordem socialista, de economia planificada, estatal, inicialmente aliada da China, Leste Europeu, Cuba e países asiáticos como Coréia e Vietnã.
 Em minha opinião, não discutindo o mérito de uma hipótese de intencionalidade real ou não do autor de já pensar um mundo multipolar naquele período, anos à frente de sua História, o texto se enriquece, porque parece destoar do tom pessimista, amargo e desiludido do fim da obra; em seu final, com a execução, por fuzilamento, do Winston “recuperado’ (e massacrado mais intelectual, moral e racionalmente do que fisicamente) e que, infelizmente, não leva a cabo a elaboração inicial de sua” vingança “contra o Partido – a ilusão da negação deste, o” ódio “de Winston ao Partido, ódio que, depois de tanto horror, coação, intervenção cognitiva, se transforma em” amor “ao Grande Irmão), George Orwell passa uma impressão de determinismo histórico-político, de uma História sempre condicionada (como os personagens de sua narrativa, tanto os proles induzidos quanto os membros do Partido, até mesmo os internos, que acreditam no próprio delírio) , de uma negação da possibilidade, da utopia.
 O texto é enfático: não há concessões.
 Continuando, ao imaginar um mundo multipolar, diferente da conjuntura internacional real do século XX, o autor aparenta passar uma mensagem de que, na verdade, o que é histórico é, por isso mesmo, transitório e passível de transformação, mesmo que, no seu tempo, a União Soviética dava mostras de solidez e de “atemporalidade” (em relação ao futuro). 
 Aproveitando o mote da transformação, seja ela interna ou externa, da substituição da “velha ordem’ pela” nova ordem “, é justamente esta possível transformação infra e superestrutural que o personagem Winston Smith se pergunta o tempo todo: sensível, ele percebe os lapsos e lacunas documentais, do registro oficial de” antes da Revolução “, de como seriam as características do mundo pré-Partido, pré-Grande Irmão, uma espécie de” paraíso (capitalista) perdido “, que, no discurso oficial do Partido, era um mundo injusto, desigual, antidemocrático.
 “Winston, perspicaz, sabia, emocional ou intelectualmente, que, apesar da negação, pelo Partido, do” mundo de antes “, o Partido ainda reproduzia todas as mazelas do antigo sistema e, pior, maximizava-os.
 Não que isso fosse inédito na História, pelo contrário. ““Em alusão a isso, outro livro de Orwell”, A Revolução dos Bichos “, (Animal Farm, 1945) demonstra um processo revolucionário, que se pretendia melhor que o status quo e com o tempo esquece suas propostas iniciais, suas promessas, sua utopia e instaura, gradativamente, a sociedade hierarquizada, centralizada, repressiva e alienada na Granja (que, metaforicamente, é a própria sociedade industrial), a mesma sociedade de trabalho coisificado que havia sido negada pelo grupo revolucionário.
 Ou, como em 1.984, instaura-se uma organização pior que a anterior, repressiva, totalitária e que acaba, ao menos na Revolução dos Bichos, por dialogar com o anterior inimigo, em detrimento do seu próprio povo , os animais.
 Por ter sido escrito em. 1949 e por descrever uma Inglaterra (Oceania) de 1.984, e pelo autor ter falecido em 1950, ao elaborar este futuro, e um futuro tão sem esperanças, horizontes, perspectivas, o autor escreveu uma “distopia”, isto é, uma antiutopia : o que poderia acontecer, sim (utopia: o “não-lugar”), mas em tom de pesadelo político, opressivo, sob um arremedo de comunismo, em uma Ditadura... do Partido.... e não do Proletariado. 
 O fato é que, este desencanto social que transparece no livro foi influenciado pela decepção que o autor passou ao lutar na Espanha, como militante político de um partido marxista-trotskysta, contra o Nazismo e o Fascismo, e, como bom observador, já era uma testemunha dos descaminhos do stalinismo, do socialismo burocratizado.
 Como já foi referido, em “1.984”, não contando com heróis, e sim com o indivíduo – no caso, Winston, Julia (ela mesma, uma anti-heroína, Seymor, o “inteligente” pulverizado, O’Brien, o “Judas” da estória -, este mesmo proletariado é idealizado pelo personagem Smith,que tenta ver neste grupo social uma “vocação” revolucionária, sob a capa de mesmice, mediocridade que estes trabalhadores, que não são membros do Partido, nem interna nem externamente, demonstram. 
 Eles, os proles, trabalham para comer – e muito mal-, se vestir, habitar casas miseráveis, ou seja, só executam, são peças industriais, sem qualquer direito de cidadania, de participação, de igualdade, de liberdade e fraternidade.
 Eles são enquadrados na ótica do Partido, que os querem “proteger” e, paradoxalmente, conforme o Capítulo XII, um dos mais emblemáticos do livro, o Partido faz isto para se proteger do socialismo, extraoficialmente e, no discurso oficial, o Estado torna-se “O Grande Pai”,em nome deste mesmo socialismo que se superestatizou. (Até o “Grande Irmão” seria este “Grande Pai”).
 Pensar em 1.984 como uma metáfora do Socialismo Real, ou do chamado Stalinismo, ou mesmos dos ditos regimes totalitários, como o Nazismo e o Fascismo, talvez, para mim, tenha sido óbvia, por causa da fama que precede autor e obra. Mas Orwell dá pistas, o tempo todo, de sua leitura pessoal, crítica, destes governos autoritários. 
 Como exemplo destas pistas dadas pelo texto, está o uso do termo “Camarada” (Tovarish), próprio dos sovietes (conselhos). O texto indica, também, com o uso do uniforme negro do soldado do Partido, uma clara referência à SS, a polícia secreta Nazista, mais um ícone do poder arbitrário do Estado autoritário.
 Penso eu, também, que o autor faz outras alusões, como a “Mansão Vitória”, em Londres, e não o Palácio de Buckingham, que me fez interpretar como uma citação à Rainha Vitória – em “1.984”, é uma Inglaterra decadente, e, ao mesmo tempo, estável-e na possibilidade do autor ter elaborado a idéia de uma Grã-Bretanha sem sua rainha – na vida real, contemporânea a Orwell, a rainha Elizabeth e não mais Vitória. Mais uma vez, este estilo orwelliano tende a requintar o texto.
 Nesta Londres alternativa, identifiquei, teoricamente, o raciocínio do intelectual Norberto Bobbio, que explica como elementos específicos do poder político os critérios de classificação que se serve o sujeito ativo, no caso, o Partido, em 1.984, para determinar o comportamento – individual e social – do sujeito passivo.
 Neste romance orwelliano, as três grandes classes do conceito de poder são absolutas, por serem totalitárias e estatais: a posse de certos bens, necessários numa situação de escassez, para induzir aqueles que não os possuem ao comportamento de trabalho dominado e/ou assalariado, em troca de uma sobrevivência mínima, miserável para o caso dos proles, “remediada”, com poucos bens de consumo à disposição, para os membros do Partido externo e com relativa abundância, conforto e qualidade para os Membros do Partido interno, sem beirar o luxo, claro, mas, mesmo assim, demarca uma distinção que, mais uma vez, mostra a dicotomia da práxis política deste Partido( não que, mais uma vez afirmo, esse fosso entre o topo e a base, seja em uma sociedade explicitamente dividida em classes sociais, seja em outra, que se dizia sem classes, como em 1.984 e/ou no próprio socialismo soviético, seja inédito ).
 O Estado, a grande “empresa” – cujo “lucro”, benefício ou interesse ultrapassa o meramente econômico -, ao dominar os meios de produção, em substituição à sociedade de mercado, levava em (des) consideração, no caso, a promessa e a atribuição de compensação (a tutela, a comida, a “superação de metas” – planos qüinqüenais? - e, em caso extremo, a própria “vida” e um conceito distorcido ou corrompido de “liberdade”).
 O segundo critério de poder manifestado em 1.984 é o ideológico: este se funda sobre as influências que as idéias formuladas de uma determinada maneira, ou emitidas em certas circunstâncias, por uma pessoa – no caso, o “Grande Irmão” - ou o grupo – o Partido- revestidos de autoridade e difundidos por certos meios, têm sobre o comportamento dos comandados.
 A ideologia, em 1.984, é, como na vida real, uma “faca de dois gumes”: em sua primeira instância, a da difusão sobre o outro, é um processo deliberado, há todo um planejamento, uma racionalidade, por parte do Partido e executados pelos membros internos de sua tecnocracia, também especializadas, como seus cientistas, economistas, psicólogos, sociólogos.
 Há uma intelectualidade que concebe a padronização do comportamento, a difusão do “Ministério da Verdade”, nos lemas ‘Ignorância é Força”, Liberdade é Escravidão”, “Guerra é Paz”, ou seja, a construção de toda uma visão de mundo, das representações sociais, acerca da ordem social, exacerbados no programa de reducionismo lingüístico, semântico, gramatical, que são o “Ingsoc” (Inglês Socialista), a “Novilíngua” que se manifesta na descodificação da “Antilíngua” (a “língua antiga”, ou o Inglês como o mundo o conhece), como forma de controle social, de formatação de ideias, de “edição” de pensamentos, dos processos cognitivos e epistemológicos sobre o mundo, sobre si mesmo, sobre a História, a memória individual e social.
	 Com a mídia servindo de aparelho ideológico de Estado (ler Althusser), periódicos, artigos e demais publicações vão sendo alterados e alterando (ajudando a alterar) os registros, na difusão de valores, saberes, juízos de valor, de todo um civismo, nacionalismo e patriotismo fanáticos, como “A Semana do Ódio”, ‘os dois minutos do ódio”.
 Continuando, a ideologia também atinge o próprio grupo que a engendra: O’Brien, capaz do “duplipensar”, pôde pensar, nos termos nossos, de pensar ideologicamente e contra-ideologicamente. Porém, ele pôde, também, optar por qual ordem de raciocínio abraçar (apesar da idéia de condicionamento, pensamento cristalizado e inflexível de um mentiroso que acredita na própria mentira).
 E, por fim, em “1.984”, se dá o terceiro critério de poder, o da posse dos instrumentos através dos quais se exerce a força física, através do uso de armas de qualquer espécie ou grau: o poder coativo, coercitivo.
 Superficialmente, “1.984” só se vale pela força bruta, mas há as instâncias ideológicas e hierárquicas, produção, cultura e exército/polícia que se retroalimentam constantemente. “1.984” trabalha muito com o simulacro, porém, como já foi mencionado, o texto é sofisticado e, como o próprio personagem O’Brien demonstra, não se deve confiar em ninguém, nem em si mesmo, nem na sombra, nem no amor, o que reforça a atmosfera paranóica da estória (e, mais uma vez, nos ganchos orwellianos entre ficção e realidade, a obra reproduz a histeria da Guerra Fria da história contemporânea).
 Da síntese entre os três critérios de poder, há toda uma cultura de perseguição política, delação, suspeita de filhos contra pais, ou seja, a educação , familiar e oficial, para a guerra – como no próprio Stalinismo, Varguismo, Nazi-Fascismo e outros governos ou facções que usaram e usam a infância como seu exército e/ou como formação de quadros .
 Há também uma economia sucateada, diferente do capitalismo, pois não se baseia na qualidade total e sim em uma relativa estabilidade ou estagnação produtiva, como forma de refrear tanto o consumo como outros aprendizados humanos conectados à segurança, ao conforto, ao bem-estar, à qualidade de vida.
 Como o sexo... ou o amor. O Estado cobra todas as energias para si, o amor e o sexo são programados para os membros do Partido, é uma manifestação asséptica, mecânica, bem como o amor e conceitos como família, deturpados por um cinismo que desumaniza o ser. 
 Fiel à política do duplipensar, o sexo não é regrado para os proles: estes devem se reproduzir para manter o exército industrial de reserva e o Estado , aparentemente, abre esta exceção/concessão a este povo, como se fosse um mínimo social à uma camada tão espoliada. Até mesmo a “perversão” torna-se indústria: a “Pornosec”, escrita pelos assexuados membros do Partido externo (as “Júlias”, “Sabrinas” e “Biancas” folhestinescas da vida ) e consumidos pelos proles.
 Quanto ao amor, o Estado/Partidoconsegue que este seja traído: Winston, que renega Julia, para sobreviver e Julia, que faz o mesmo sob tortura. O Estado, personalizado no Grande Irmão, é onisciente, quase onipotente (no duplipensar, nas falas de O’Brien) e quase onipresente (o refúgio que o casal Winston e Julia encontraram na casa do antiquário Mr. Charrington revela-se, enfim, como uma armadilha).
 Além de Bobbio, em minha opinião, “1.984” aproxima-se simultaneamente de Michel Foucault, inicialmente pelo sentido mais óbvio do “panoptismo”: “o olho público”, “o olho que tudo vê”, ou, na imagem que o próprio livro constrói, na “teletela”, voz, ouvido e visor do Estado, Partido e Grande Irmão quase que em tempo integral. 
 Mas o panoptismo não se integra apenas no plano objetivo: a subjetividade, ou melhor, a intersubjetividade o assimila: todos olham, todos são soldados, policiais, todos espreitam, uns aos outros.
 Obviamente, a análise foucaultiana não se limita ao aspecto policialesco, militarista, deste Estado: “1.984” discute, indiretamente, a institucionalização da “loucura” de Winston, na verdade, sua dissidência, sua autenticidade, sua ânsia de autonomia, liberdade e originalidade frente à massa amorfa, bem como, por isso, a institucionalização, a vigilância e a punição da dissidência, o extermínio da rebeldia, da revolta, do negativismo filosófico.
 Articulada ainda ao paradigma panóptico, a própria arquitetura dos Ministérios, como o do Amor, onde se exercita a tortura, é “o lugar onde a luz nunca se apaga” (em alusão ao panoptismo, como imaginado pelo jurista inglês que o concebeu, Jeremy Bentham, que contribuiria para “destruir as trevas da Idade Média”, da “superstição”.
 Em consonância ainda com o panoptismo, ,o julgamento, o processo, a tortura, a “reintegração”, “reeducação” de Winston Smith são secretos, diferentemente dos julgamentos-espetáculo medievais. Porém, o Estado, em um contraponto ao panoptismo, ainda exerce a execução sumária pública, como a dos inimigos eurasianos e lestasianos, como punição exemplar.

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