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REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações Ltda. ISSN: 1983-0882 Page 1981 REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações e Editora Ltda., Curitiba, v.21, n.1, p. 1981-2000. 2024 Retratos dos currículos praticados: saberes/fazeres docentes no cotidiano escolar rondoniense Portraits of the practiced curricula: teachers' knowledges/ doings in the daily school life in Rondonia DOI: 10.54033/cadpedv21n1-103 Recebimento dos originais: 05/12/2023 Aceitação para publicação: 08/01/2024 Geovânia de Souza Andrade Maciel Mestra em Letras Instituição: Universidade Federal de Rondônia Endereço: R. Rio Amazonas, 151, Jardim dos Migrantes, Ji-Paraná – RO, CEP: 76900-730 E-mail: geovania.maciel@ifro.deu.br Robson Fonseca Simões Doutor em Educação Instituição: Universidade Federal de Rondônia Endereço: BR 364, Km 9,5, Porto Velho – RO, CEP: 76801-059 E-mail: robson.simoes@unir.br Mirian de Oliveira Bertotti Mestra em Educação Escolar Instituição: Universidade Federal de Rondônia Endereço: Rodovia RO-257, s/n, Zona Rural, Ariquemes – RO, CEP: 76870-000 E-mail: mirian.bertotti@ifro.edu.br RESUMO Este artigo procura trazer para o debate os currículos praticados em uma escola pública estadual no município de Ji-Paraná, estado de Rondônia, privilegiando as práticas curriculares na instituição rondoniense. Em diálogo com uma pes- quisa de doutoramento, numa abordagem qualitativa, procura analisar as per- cepções docentes sobre o cotidiano escolar no âmbito das memórias docentes. A análise documental e as entrevistas semiestruturadas com duas professoras constituíram os instrumentos metodológicos para uma observação dos proces- sos e das práticas curriculares emancipatórias ou hierarquizantes. A tentativa do estudo é a de se poderem desinvisibilizar as práticas escolares voltando-se para o reconhecimento de outras lógicas e sentidos dos principais praticantespensan- tes (OLIVEIRA, 2012) do currículo da/na cultura escolar. Assim, é possível exa- minar por um lado discursos marcados por estratégia de controle por parte da Secretaria de Educação, que se contrapõem aos discursos sobre autonomia das escolas, e simultaneamente, desvelam táticas (CERTEAU, 2014) realizadas REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações Ltda. ISSN: 1983-0882 Page 1982 REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações e Editora Ltda., Curitiba, v.21, n.1, p. 1981-2000. 2024 pelos agentes escolares com fins de superar as exigências burocráticas e res- significar o currículo escolar no período pós-pandemia. Palavras-chave: currículos pensadospraticados, cotidiano escolar, táticas prati- cantespensantes, pós-pandemia. ABSTRACT This article seeks to bring to the debate the curricula practiced in a state public school in the municipality of Ji-Paraná, state of Rondônia, focusing on curriculum practices in the rondoniense institution. In dialogue with a doctoral research, in a qualitative approach, seeks to analyze the perceptions of teachers about the school daily life in the context of memories teaching. The documentary analysis and semi-structured interviews with two teachers constituted the methodological instruments for an observation of the emancipatory or hierarchical curricular pro- cesses and practices. The attempt of the study is to be able to disinvisibilize the school practices turning to the recognition of other logics and meanings of the main thinking practitioners (OLIVEIRA, 2012) of the curriculum of/in the school culture. Thus, it is possible to examine on the one hand, discourses marked by control strategy by the Secretariat of Education, which oppose the discourses on autonomy of schools, and simultaneously, unveil tactics (CERTEAU, 2014) per- formed by school agents in order to overcome the bureaucratic requirements and re-signify the school curriculum in the post-pandemic period. Keywords: thoughtful-practiced curricula, everyday school life, thoughtful-prac- ticing tactics, post-pandemic. 1 PRIMEIRAS REFLEXÕES: A DOCÊNCIA COMO OFÍCIO POÉTICO [...] Houve um tempo em que minha janela se abria sobre uma cidade que parecia ser feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim seco. [...] (MEIRELES, 1973, p. 150) Iniciamos nosso artigo com a epígrafe que rememora o poema A arte de ser feliz, da poetisa Cecília Meireles (1973). No poema se fala de um jardim quase seco e morto cuidado por um homem que com um balde, todas as manhãs, atira com a mão gotas de água sobre as plantas. O ritual de simular uma chuva diariamente com as gotas – que rolavam pelos dedos do homem até as plantas – era o que não deixava o jardim sucumbir e isso resultava em grande felicidade para o eu-lírico, narrador-observador. REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações Ltda. ISSN: 1983-0882 Page 1983 REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações e Editora Ltda., Curitiba, v.21, n.1, p. 1981-2000. 2024 Por meio do poema, é possível fazer uma alusão à docência: diariamente na caminhada docente somos como o jardineiro em “uma espécie de aspersão ritual” para que o jardim/sala de aula não se dilua em meio a tantas turbulências do sistema. Ao longo do artigo as falas das entrevistadas exporão essa aspersão de pequenos gestos para a boa efetivação da prática docente. É plausível fazer outra alusão: o olhar do eu-lírico contemplando ao seu redor é similar ao desempenho do pesquisador ao observar o cotidiano escolar: [...] Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz. Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim. (MEIRELES, 1973, p.151) O pesquisador cotidianista se depara com a escola cumprindo o seu destino e ao mesmo tempo se defronta com pontos de vistas divergentes. Assume a posição de perceber os mínimos detalhes certos que estão diante de cada sala de aula, de cada estudante, de cada instituição de ensino, de cada profissional da educação ou de cada pessoa que compõe a comunidade escolar. E no decorrer da pesquisa encontra participantes que dizem não vislumbrar tais percepções, outros afirmando que só existem para outras pessoas e em outros lugares... e a cada perspectiva apontada se torna melhor compreensível o porquê da subjetividade nas pesquisas em educação: “o que cada pessoa seleciona para “ver” depende muito de sua história pessoal e principalmente de sua bagagem cultural” (LUDKE; ANDRÉ, p. 25, 1986). Nem por isso a subjetividade implica em descrença do trabalho científico. Conforme Ludke e André (1986) desde que se tenha um “planejamento cuidadoso do trabalho e uma preparação rigorosa”, o observador alcança de maneira mais íntima a perspectiva do sujeito investigado e obtém informações relevantes sobre o contexto, pois a “diversidade de pontos de vista e de enfoques parece contribuir mais para aumentar o conhecimento sobre algo do que para limitá-lo” (LUDKE; ANDRÉ, p. 41, 1986). REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações Ltda. ISSN: 1983-0882 Page 1984 REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações e Editora Ltda., Curitiba, v.21, n.1, p. 1981-2000. 2024 A seguir nos propomos a apresentar por meio da abordagem qualitativa de caráter interpretativo descritivo, algumas percepções sobre os currículos praticados, bem como os desafios e os contentamentos vivenciados no espaçotempo das escolas. Para tanto, nos embasamos em duas entrevistas semiestruturadas realizadas com duas professoras praticantespensantes da educação básica da Amazônia Ocidental e em outros materiais obtidos no momento das interlocuções. Vale enfatizar que procuramos desviar de um certo engessamento metodológico conforme propõe os estudos de Oliveira (2007), em especialquando a autora destaca que escrever, apenas, parece trair as intenções de compreender melhor o complexo cotidiano das relações sociais, por isso a necessidade de fotografar, gravar e filmar podem ser recursos para abarcar os múltiplos retratos e vozes desse processo e dar suporte a interpretação daquilo que está sendo investigado. 1.1 CAMINHOS METODOLÓGICOS Pensar sobre os processos e experiências educadoras de produção de currículo no âmbito da escola básica pública é um dos objetivos que permeiam esse artigo, proposto a partir de um trabalho de campo previsto no programa da disciplina1 Currículo e Educação Básica. A metodologia sugerida permeia os estudos dos cotidianos, memória e (auto)biografia docente, por isso propomos a realização de entrevistas semiestruturadas com uma coordenadora pedagógica e uma professora da escola pública selecionada. Um dos critérios para seleção da escola diz respeito ao fato dessa instituição estar localizada em setor considerado periférico da cidade, tão logo recebendo muitos estudantes oriundos de família de baixa renda. A partir das reflexões, procuramos compreender os processos de produção do currículo escolar em diálogo com as experiências das educadoras entrevistadas e assim perceber os obstáculos do cotidiano escolar a partir do olhar de seus agentes. 1 Trata-se de uma disciplina eletiva do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar Pro- fissional (PPGEEProf/UNIR) ministrada pela docente Dra. Márcia Machado de Lima. REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações Ltda. ISSN: 1983-0882 Page 1985 REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações e Editora Ltda., Curitiba, v.21, n.1, p. 1981-2000. 2024 Além de bloco de notas, contamos com a gravação das entrevistas que foram transcritas com o uso do aplicativo Reshape2 – uma plataforma online para transcrição de áudio e geração de legendas. Apesar da eficiência do aplicativo foram necessárias muitas escutas e edições para uma transcrição mais fidedigna ao contexto de produção do momento das interlocuções. Optamos pela entrevista semiestruturada para que não houvesse uma imposição rígida das questões, contudo as entrevistadas tiveram previamente conhecimento do tema com base na explicação constante no termo de autorização da pesquisa, assinado pela direção escolar, e também no termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), preenchidos e assinados pelas professoras voluntárias que participaram das entrevistas. As entrevistas ocorreram no mês de novembro de 2022, em momentos diferentes devido a incompatibilidade de horário da professora e da supervisora escolar; além de acreditarmos que a entrevista individualizada poderia garantir maior naturalidade no ato da conversa e possibilidade de aprofundamento na subjetividade das respostas. Nessa direção, a partir da apropriação das “artes de fazer” apostamos no subsídio teórico de Certeau (2014) e na concepção da pesquisa “no/do/com o cotidiano”, para ver, ouvir e rememorar alguns dos compassos e descompassos que coabitam os chãos das escolas. De tal forma os estudos no/do/com o cotidiano nos faz olhar e ver que como professorespesquisadores estamos cada vez mais dentro do tema a qual pesquisamos, como se estivéssemos na busca de entender a nós mesmos, porque de certa forma “nós somos também esses outros e outros ‘outros’ (FERRAÇO, 2003, p. 160). Esse fato auxiliou na criação de relação de confiança, na qual as partícipes se sentiram mais à vontade para expressarem suas experiências, sentimentos e indagações em torno do currículo. Qual o significado que se pode atribuir para a palavra currículo?; O que a palavra currículo representa para você?; Como ocorre a produção de currículo na instituição de ensino em que você atua?; Quais os principais tópicos que permeiam a discussão do currículo em sua escola? ... essas foram algumas das indagações 2 Disponível em: https://www.reshape.com.br/ https://www.reshape.com.br/ REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações Ltda. ISSN: 1983-0882 Page 1986 REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações e Editora Ltda., Curitiba, v.21, n.1, p. 1981-2000. 2024 que surgiram no transcorrer das entrevistas, a fim de (re)conhecer as tessituras de negociação curricular que atravessam e movimentam as práticas no cotidiano das escolas, em meio as adversidades que surgem e a maestria de reinvenção do trabalho docente, conforme pode ser lido nas linhas escritas que seguem. 1.2 CONHECENDO AS PRATICANTESPENSANTES DA ARTE DE FAZER EDUCAÇÃO EM UMA ESCOLA PÚBLICA JI-PARANAENSE Desvelando a singularidade que habita a profissão docente, entrevistamos duas educadoras que lecionam o mesmo chão de uma instituição de ensino localizada na Amazônia Ocidental, mas que tecem relações educativas diversas nos processos de se constituírem permanentemente docente. As professoras revelaram no transcorrer das entrevistas suas experiências cotidianas dentrofora da escola, permitindo compreender as redes de produção dos Currículos pensadospraticados. Vale enfatizar que para preservar o anonimato serão utilizados nomes fictícios de flores para cada uma das participantes, respectivamente Violeta (1) e Margarida (2), conforme apresentado no quadro a seguir, e também nos excertos das entrevistas apresentadas na discussão e na interpretação dos dados observados. Segue um quadro com uma síntese do perfil biográfico das colaboradoras. Quadro 1: breve perfil das praticantespensantes entrevistadas Função exercida no ano da entrevista Professora (1) Violeta Supervisora (2)Margarida Formação de ensino médio Fez o antigo ensino mé- dio curso Colegial, em seguida trabalhou na Es- cola Família Agrícola, em Ji-Paraná. Fez o antigo ensino médio curso colegial e depois cursou disciplinas complementares para obter o certificado Médio-Técnico correspondente ao Ma- gistério. Formação docente Pedagogia/2000 Pedagogia/ 2002 Letras-Libras/2019 Tempo que atua na educação 22 anos 23 anos Primeira definição de currículo “A palavra currículo para mim ela é o norteador de todo o processo do en- sino, a base... ela eu con- sidero nesse sentido que a partir desse currículo que norteamos todo trabalho a ser desenvolvido”. “Então o Currículo, o que penso: que é toda a orga- nização de uma escola voltada para aos alunos, né? Pra que eles possam aprender, desenvolver e tam- bém assim, a organização com base no, nas compe- tências que o aluno precisa. Também tem a abran- gência que entra as propostas pedagógicas, né? Que a gente organiza também de maneira pra reali- zar o Projeto Político Pedagógico da escola. Então o currículo, eu penso é tudo voltado para desenvolver a competência dos alunos.” Fonte: Próprio da autora (2022). REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações Ltda. ISSN: 1983-0882 Page 1987 REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações e Editora Ltda., Curitiba, v.21, n.1, p. 1981-2000. 2024 Sem dúvida a palavra Currículo é algo difícil de definir, pois está envolta por transformações ao longo dos espaçostempos escolares e percorre por toda a prática pedagógica. Ou seja, o currículo “adota significados diversos, por quê, além de ser suscetível a enfoques paradigmáticos diferentes, é utilizado para processos ou fases distintas do desenvolvimento curricular” (SACRISTÁN, 2000, p. 103, grifo do autor). Ainda segundo Sacristán o ambiente econômico, político, social, cultural e administrativo funciona como condicionantes do ambiente escolar, de forma a estabelecer intervenções mais diretas ou indiretas, a depender de quem e como se propõe a pensar e praticar o currículo. Às vezes ficamos tão impregnados com os condicionantes que esquecemos de olhar para o cotidiano subjetivo de cada escola, decifraresse cotidiano e, ao mesmo tempo, identificá-lo como a principal âncora para a tessitura do conhecimento dos sujeitos escolares e consequentemente, para a tessitura do próprio currículo. Por isso constatamos a relevância desse momento de conversa em que se tornou explícito as peculiaridades da escola por intermédio das respostas de cada uma das participantes e desse jeito os significados da palavra Currículo foi ganhando matizes no transcorrer dos diálogos, por intermédio desse exercício de escuta das vozes docentes, mediante as duas entrevistas semiestruturadas. 2 ANÁLISE DOS DADOS 2.1 VIOLETA – A PRIMEIRA ENTREVISTADA Inicialmente, Violeta trouxe uma percepção do currículo bem próxima ao que preza os documentos oficiais, em especial, a partir de 2010 com a proposta de elaboração das Novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica: “A palavra currículo para mim, ela é o norteador de todo o processo de ensino, a base...” Por meio da palavra “norteador” (utilizada em sua fala por 8 vezes) é perceptível que a entrevistada reconhece o currículo como um caminho que foi traçado e deve ser seguido por sua instituição de ensino. A ideia de fixar diretrizes não é algo novo. O parecer do Conselho Nacional de Educação/ Câmara de Educação Básica (CNE/CEB nº 7/2010) relembra em seu texto inicial que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação em seu artigo 9, inciso IV, já explicitara como incumbência da União, em parceria REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações Ltda. ISSN: 1983-0882 Page 1988 REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações e Editora Ltda., Curitiba, v.21, n.1, p. 1981-2000. 2024 com os Estados, o Distrito Federal e o Município, de “estabelecer competências e diretrizes para a Educação infantil, o Ensino Fundamental e Médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum” (BRASIL, 2010, p.1, grifo nosso). A ideia de currículo como um rumo a ser seguido é reforçada com o vocábulo nortear e seus derivados (norteadores, norteia...) que aparecem por 16 vezes no decorrer do Parecer homologado em 7 de abril de 2010. Apesar dos documentos citarem que as escolas possuem autonomia, o que muitos estudos criticam com relação aos documentos curriculares é uma certa necessidade eloquente de estabelecer um conhecimento válido que deve ser assegurado a todo e qualquer sujeito em sua formação, com o enfoque da demanda de um “currículo como prescrição” – (GOODSON, 1995), por isso alguns estudiosos alertam sobre a “potencialidade reguladora” dos currículos (SACRISTAN, 2000). Isso nos faz refletir igualmente, sobre o estado moderno que, conforme Cambi (1999), induz a um projeto educativo de controle social que objetiva tornar não só o corpo do indivíduo dócil, mas também a sua consciência. De modo peculiar o autor Veiga-Neto (2008), argumenta que a crise da modernidade consagra as inovações curriculares como dispositivo de controle, apontando a diferença entre corpos dóceis/da modernidade que vem cedendo espaço para os corpos flexíveis/da pós-modernidade. Ao ser questionada sobre como ocorria a produção de currículo na sua instituição de ensino, a professora antes de responder trouxe à tona um dos grandes desafios imposto a qualidade do ensino público: a necessidade de que o docente atue em área divergente daquela que corresponde a sua formação. [...] E aqui só para concluir tem uma outra situação: porque eu sou pe- dagoga, eu comecei [esse ano de 2022] com o quinto ano né, e aí no final do segundo bimestre, com a falta de professores, a escola me lotou do sexto ao nono, com história e sociologia. Aí então para mim é um outro desafio grande, entendeu? [...]porque eu estava com o quinto com 16 alunos, tô agora com 300 me- ninos... muito desafiador! Mas assim, o que eu percebo né, porque todo ano a gente tem aquele critério de organizar o currículo, de sentar os professores, refaz o plano de curso, que não é o que exatamente a gente fecha dentro da escola. Aí como eu cheguei do primeiro ao quinto ano, aliás eu tô seguindo o que já estava. Então eu não participei desse REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações Ltda. ISSN: 1983-0882 Page 1989 REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações e Editora Ltda., Curitiba, v.21, n.1, p. 1981-2000. 2024 processo de construção... Mas assim o que temos feito há vários anos, o ano passado dos anos anteriores teve muita formação da questão da BNCC3 né. Que é pra gente se basear por ele, se nortear por ele, pela BNCC. Então eu acredito que é um processo que praticamente todos estão caminhando juntos. A própria escolha do livro didático é voltada para essa questão né, a BNCC. Também que os que eu vou acompanhando nas turmas, eles [os livros didáticos] abordam bastante as questões da BNCC. (VIOLETA, 2022, grifo nosso) É perceptível na fala da entrevistada – embora despropositadamente – que o Estado possui meios para controlar as instituições de ensino, seja pela BNCC ou pelas propostas dos livros didáticos, uma vez que os professores passam a ser os distribuidores dessa prescrição retórica de governo que se sustenta em um discurso pacífico de que todos devem caminhar juntos, mascarando interesses outros que configuram uma política mercantilista (como por exemplo ocorre por intermédio dos novos cursos de formação de professores, assessorias especializadas e o mercado editorial divulgando o “novo” modelo de Educação). Outro ponto observado nas falas da docente é o uso dos vocábulos Currículo e BNCC como sinônimos, fato que porventura Macedo (2018) procura distinguir em seu texto “A Base é a base. E o currículo o que é?”, reiterando que a BNCC não pode de forma alguma ser tomada como substituta do currículo vivido de cada instituição escolar, precavendo ainda que tal documento se estrutura em torno de competências e por isso “funcionará como currículo prescrito e como norteador da avaliação” até porque existem “interesses comerciais muito fortes” (MACEDO, 2018, p. 31). Dessa maneira ao questionarmos o que a professora percebeu como mais produtivo vivenciado nos momentos de formação sobre a BNCC, Violeta destacou: [...] a questão que para mim ficou bastante marcado foi essa questão de se tratar de uma base nacional comum que fosse o ensino é co- mum para todos, aí tem todos aqueles desafios de regiões, de locali- dade né. Mas assim, que se buscasse o que eu acho que deveria estar, tipo, eu pudesse estar trabalhando aqui e ser a base comum. Quando ele chegasse na outra escola, teria que ser a mesma coisa, porque daí 3 O próprio documento conceitua BNCC ou Base Nacional Comum Curricular como documento de caráter normativo que define um conjunto de conhecimentos, competências e habilidades que se esperam no desenvolvimento dos estudantes de acordo com sua escolaridade básica (BRA- SIL, 2018). Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_1105 18_versaofinal_site.pdf http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações Ltda. ISSN: 1983-0882 Page 1990 REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações e Editora Ltda., Curitiba, v.21, n.1, p. 1981-2000. 2024 eu acho que essa forma geraria aprendizado, porque a rotatividade aqui é muito grande, de aluno... muito, muito grande. Então eles ficam perdidos né, porque aqui estão vendo uma coisa, lá em outro lugar é outra. [...] (VIOLETA, 2022) O peso do discurso de currículo prescrito sustentado na uniformização do ensino, na verdade oculta uma visão mercadológica que “fogem à experiência do chão da escola, à realidade do professor e às necessidades dos estudantes” (GERALDI, 2016, p. 381). Como resultadoteremos maior desigualdade, pois a escola em si é uma extensão da sociedade e reafirma julgamentos sociais na medida em que ambiciona um patamar de ensino que não pode ser alcançado por todos os estudantes. Tão logo surgem as comparações que classificam uns como estudantes superiores e outros como inferiores. Por meio dos resultados das avaliações internas e externas, sustenta-se um discurso de mérito acadêmico e de igualdade de ensino para todos como princípio de justiça e de continuidade certa de ensino em qualquer espaço/tempo que o estudante estiver. Assim, é relevante indagarmos a veracidade total e/ou parcial dessas e demais informações que constam nos documentos oficiais, como as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) e a BNCC, e que passam a influenciar o discurso dos principais agentes da educação. Destacamos a abordagem da BNCC em se autodefinir como “um conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos alunos devem desenvolver” de modo a assegurar “seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento” (BRASIL, 2018), além de se reconhecer como um documento de caráter normativo. Todavia nos propomos lembrar as reflexões de João Barroso (2004) que em um primeiro momento nos traz a assertiva do sociólogo François Dubet (2004): “A igualdade de oportunidades é, portanto, uma ficção necessária” (DUBET, apud BARROSO, 2004, p. 49). Sabendo disso fica mais fácil compreender que a autonomia das escolas também faz parte de um pacto ficcional que esconde um objetivo maior de controle do estado. Quando questionada sobre a memória de uma prática curricular relevante desenvolvida na escola, a entrevistada trouxe à tona a mesma prática pedagógica citada pela segunda entrevistada. Ambas mencionaram que o REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações Ltda. ISSN: 1983-0882 Page 1991 REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações e Editora Ltda., Curitiba, v.21, n.1, p. 1981-2000. 2024 projeto de leitura idealizado e desenvolvido pela/na escola foi o que realmente representou o currículo da sua instituição: [...] Os projetos, porque assim, essa escola aqui ela é muito voltada para projetos e esses projetos, de certa forma eles remetem para essa questão curricular, uma vez que são situações que tentam abordar todo mundo, né!? Como por exemplo, agora nós concluímos o projeto de leitura Dia de ler. Todo dia4, então uma coisa que abordou desde o primeiro aninho até o nono ano [pausa]. Todo mundo, toda a escola porque envolve todo funcionário, geral. Não só professores e alunos, né? Todo mundo. (VIOLETA, 2022) Ao falar desse projeto sentimos uma narrativa empolgada, um exemplo de um fazer pedagógico em rede que propôs uma aprendizagem emancipatória e mais igualitária aos estudantes. Cada professor ficou responsável por liderar o trabalho de leitura em uma turma que faria apresentações finais na culminância do projeto. Por um momento percebemos que o projeto facilitou à professora e aos demais envolvidos assumirem táticas tecidas em redes para desocultar os mecanismos de subordinação que intercorrem nas escolas, mostrando como diria Certeau (2014, p. 38) que “O cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não autorizada”. E quando questionamos se a definição de currículo apresentada na graduação e nas formações de professores são a mesma definição que ela presencia em sua prática diária da sala de aula, a entrevistada afirmou que: [...] teoria e prática são duas coisas bem distintas né. Na verdade, o que a gente aprende muitas vezes a gente quando está na prática você tem que, não desviar, mas é uma situação bem, bem diferente en- tre teoria e prática. (VIOLETA, 2022) A palavra ‘desviar’ resgata as “maneiras de fazer” na perspectiva de Certeau (2014), já que se resume em usar “inúmeras e infinitesimais metamorfoses da lei, segundo seus interesses próprios e suas próprias regras” (CERTEAU, 2014, p.40). Em certo momento da entrevista também é notável a dificuldade na definição do termo Currículo, pois Violeta interrompe a sua própria 4 O Projeto de leitura citado é desenvolvido pelo Governo de Rondônia sob responsabilidade da Secretaria Estadual de Educação (SEDUC) Para saber mais, acesse: https://rondo- nia.ro.gov.br/seduc/programas-e-projetos/projetos/projeto-dia-de-ler-todo-dia/. https://rondonia.ro.gov.br/seduc/programas-e-projetos/projetos/projeto-dia-de-ler-todo-dia/ https://rondonia.ro.gov.br/seduc/programas-e-projetos/projetos/projeto-dia-de-ler-todo-dia/ REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações Ltda. ISSN: 1983-0882 Page 1992 REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações e Editora Ltda., Curitiba, v.21, n.1, p. 1981-2000. 2024 fala e indaga (-se) o sentido de currículo: “dá a definição de currículo para eu ver se realmente é o que estou, é [pausa]se eu estou na linha certa [pausa], se cada um faz o seu, a escola [...]”. No intuito de não a influenciar no diálogo, apenas balanceia a cabeça em gesto afirmativo e disse que é um termo amplo. Isso nos conduz a perceber o Currículo pode ser algo palpável e simultaneamente abstrato, visto que sempre quando falamos dele, a pergunta ressurge e sua conceituação permanece aberta e complexa. 2.2 MARGARIDA – A SEGUNDA ENTREVISTADA A definição inicial de currículo exposto pela segunda entrevistada enfatiza “as competências que o aluno precisa” (Margarida, 2022), visto que no decorrer da conversa a docente repetiu a palavra competência por nove vezes. A reiteração nos remete a perspectiva neoliberal, que invoca testes de regulação ou avaliações em larga escala, baseados em modelos privados de gestão (MACEDO, 2014, 2015). Em suas falas há uma enorme preocupação em cumprir as ações propostas pela secretaria de educação: [...] Então, esse ano a gente deu prioridade para essa questão da [in- compreensível], a questão desse projeto do Microkids5 que foi bastante denso e a plataforma do Aprova Brasil6 que entra as habilidades, entra a avaliação diagnóstica e os simulados. O do Microkids é do quarto ao nono ano. E do Aprova Brasil é do sexto ao novo que são atendidos. Aí eles fazem mensal. Um cronograma do dia das missões. Que faz o período que eles lançam. Que faz online ou que faz no papel. Faz os simulados. Aí eles lançam no sistema. (MARGARIDA, 2022) O projeto Microkids citado pela entrevistada é desenvolvido por uma empresa especializada em tecnologia educacional. Apesar do Projeto Microkids apresentar as tecnologias educacionais como facilitadora do cotidiano escolar e ter como missão “prover soluções integradas de educação tecnológica às redes privadas e públicas de ensino [...] em prol do desenvolvimento da educação do nosso país” (MICROKIDS, 2023), os órgãos públicos mantenedores das instituições de ensino precisam angariar valores para a aquisição do produto e a 5 Mais informações do Projeto Microkids Tecnologia Educacional podem ser acessadas em: https://www.microkidsetc.com.br/ ou https://www.microkidsetc.com.br/rondonia. 6 Para saber mais a respeito do Plataforma Aprova Brasil: https://www.solucoesmoderna.com.br/pro- dutos-de-educacao/aprova-brasil/ ou Projeto https://projetoaprovabrasil.com.br/ https://www.microkidsetc.com.br/ https://www.microkidsetc.com.br/rondonia https://www.solucoesmoderna.com.br/produtos-de-educacao/aprova-brasil/ https://www.solucoesmoderna.com.br/produtos-de-educacao/aprova-brasil/ https://projetoaprovabrasil.com.br/ REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações Ltda. ISSN: 1983-0882 Page 1993 REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações e Editora Ltda., Curitiba, v.21, n.1, p. 1981-2000. 2024 escola precisa ter equipamentos como computadores e notebooks para desenvolver a tecnologia e os projetos ofertados pelo Programa/Projeto Microkids. Dessa forma,percebemos que não é qualquer escola e não é qualquer aluno que terá o privilégio de ter acesso aos recursos da plataforma. Cada escola tem a liberdade de escolher o(s) projeto(s) e a(s) turma(s) que será(ão) contemplada(s). Segundo a professora entrevistada, a Secretaria de Educação fez a compra do Projeto e algumas equipes gestoras tem se empenhado bastante em aderir e desenvolver o projeto em sua instituição, enquanto que outras instituições demonstraram pouco interesse em colocar o projeto em prática. Nessa escola foi possível ofertar as ações do Projeto Microkids para todos os estudantes do quarto ao novo ano. Todavia, existe apenas uma sala com computadores disponíveis para os estudantes – denominada laboratório de informática e que possui um professor responsável pelo agendamento e zelo nos momentos de uso -, por isso houve a necessidade de fazer um cronograma para o atendimento e disponibilizar um professor responsável por cada turma. Pela descrição inicial, sugeria ser um projeto frutífero, mas aos poucos as nuances negativas foram sendo apresentadas: a) o projeto começou em sala de aula e depois passou a ser aplicado em horário oposto, o que reduziu a participação do número de estudantes; b) nem todo professor foi favorável a aplicação do projeto; c) a desmotivação de alguns docentes influenciou muito na decisão de alguns estudantes em não participar das atividades. Tivemos a curiosidade de saber os valores investidos nesse material por parte do Estado de Rondônia, e por meio de uma pesquisa rápida encontramos o processo n. 764/2020 7 instaurado pelo Tribunal de Contas de Rondônia – com o objetivo de verificar a legalidade do edital de licitação Pregão Eletrônico n. 054/2020, Processo SEI/RO n. 0029.488533/2019-10 – na qual consta o valor estimado para a contratação de R$ 61.850.833,35 (sessenta e um milhões, oitocentos e cinquenta mil, trinta e três reais e trinta e cinco centavos) na qual 7 Para leitura do documento do Tribunal de contas de Rondônia https://tcero.tc.br/spj/Metadado- Arquivo/AbrirPdfConvidado/ccc6cff0981bc66c71cb2041d2846108. https://tcero.tc.br/spj/MetadadoArquivo/AbrirPdfConvidado/ccc6cff0981bc66c71cb2041d2846108 https://tcero.tc.br/spj/MetadadoArquivo/AbrirPdfConvidado/ccc6cff0981bc66c71cb2041d2846108 REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações Ltda. ISSN: 1983-0882 Page 1994 REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações e Editora Ltda., Curitiba, v.21, n.1, p. 1981-2000. 2024 uma parte do material didático listado são obras didáticas referentes a coleção Microkids (RONDÔNIA, 2020). De forma alguma queremos julgar a qualidade dos recursos obtidos pela Secretaria do Estado de Rondônia ou mesmo julgar a licitude para a aquisição dos bens e serviços; apenas queremos assegurar que a partir do momento que um material didático se torna mercadoria, a pré-existência de qualidade deve ser garantida ao consumidor, uma vez que se tornou produto de compra-venda; e não podemos perder de vista que “a necessidade de produção em larga escala, os aspectos de unificação e efemeridade, além das convicções ideológicas... na verdade visa privilegiar exigências do mercado, quando deveria priorizar aspectos pedagógicos”. (MACIEL, 2020, p. 102, grifo nosso). Analisando de maneira mais profunda, é compreensível que quando o espaço escolar público passa a se desenvolver com/como a esfera empresarial, automaticamente começa a se influenciar mercantilmente e em determinadas circunstâncias passa a priorizar as negociações em seu entorno, no lugar de priorizar a qualidade do serviço público ofertado. No momento em que questionamos se todos os professores concordavam com as atividades do projeto e se tinham escolha em não desenvolver as atividades, a entrevistada respondeu: “minha responsabilidade é de acompanhar. Tem professor que pisa, né? Diz que vai deixar para depois [...] não tem muito tempo. Mas tem alguns que pisa” (MARGARIDA, 2022). Importa saber que o vocábulo “pisa” foi empregado no sentido de alguém que reclama, se nega a fazer o que foi solicitado ou faz o solicitado com má vontade. Podemos dessa forma reconhecer a expressão como um exemplo de táticas insurgentes experenciadas no campo da docência. No percurso da interlocução foram citadas várias demandas (local e nacional) expedidas a escola com o discurso de oportunizar melhorias. Ainda tivemos a oportunidade de verificar o cronograma de aplicação do Projeto Aprova Brasil, enviado para as escolas pelo Sistema Eletrônico de Informações (SEI) 8. 8 O sistema eletrônico regulamentado através do decreto n. 21794, de 5 de abril de 2017, foi desenvolvido pelo Tribunal Regional Federal (TRF) e é uma ferramenta de gestão de docu- mentos e processos eletrônicos (tramitação digital), com a finalidade de promover a eficiên- cia administrativa. REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações Ltda. ISSN: 1983-0882 Page 1995 REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações e Editora Ltda., Curitiba, v.21, n.1, p. 1981-2000. 2024 Na escola em questão o cronograma estava, no momento da entrevista, impresso e anexado ao mural na sala da supervisora. Embora esteja identificado inicialmente como Informação n. 10/2022/SEDUC-SEF, ao efetivarmos uma leitura mais atenta, é possível perceber no título a palavra Execução, que apesar de significar fazer ou realizar, pode possuir uma significação mais forte e abrangente interligada a área judiciária-administrativa, que é o sentido de cumprir ou tornar efetivo (uma obra, um plano, uma lei). Figura 2: Trecho do Cronograma de Execução Pedagógica do Projeto Aprova Brasil/RO Fonte: Margarida, 2022 ou mural de uma escola da Amazônia Ocidental. O cronograma, composto por duas folhas, especifica de abril até dezembro de 2022 como períodos a ser executado o projeto Aprova Brasil direcionados para as disciplinas consideradas críticas, a saber: Língua Portuguesa e Matemática. Ao efetivarmos uma leitura mais atenciosa do documento, tornou-se inevitável não lembrar da palavra agoniado dito por uma das entrevistadas, pois o arquivo organiza a sugestão de trabalho por semanas/meses e dispõe de devolutivas bimestrais. Importante também retomar que no decorrer da entrevista as falas apontaram como uma das funções da supervisão o repasse das exigências advindas das instâncias superiores. REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações Ltda. ISSN: 1983-0882 Page 1996 REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações e Editora Ltda., Curitiba, v.21, n.1, p. 1981-2000. 2024 Se por um lado a coordenação usa como tática replicar as exigências das instâncias superiores de educação com o propósito de continuar recebendo verbas na escola, por outro lado ela compreende o quanto é árdua o ato da docência e revela sutilmente algumas estratégias que buscam superar as exigências burocráticas que engessam a prática pedagógica: [...] eles cobram bastante, por parte da Secretaria de Educação, do go- verno, que a gente tem que atualizar, né? Todo ano com as propostas, com até mesmo os planos de ação de cada setor, de cada componente curricular. Isso aí eles pedem e está sempre atualizando e sempre no início e no final do ano. Agora, assim, na prática, assim, do dia a dia, aquela coisa minuciosa, acho que é mais superficial. Acaba colo- cando no papel uma coisa e na prática... É, que aí na prática eu percebo que fica assim, como eu poderia dizer, que fica muito na- quela caixinha ali, ali na parte do componente, aí cada um faz da sua maneira. (MARGARIDA, 2022) Ao término da entrevista, quando não mais estávamos gravando e já estávamos nos despedindo, uma das participantes fez o pedido de que a Universidade pudesse estar desenvolvendo projetos junto a escola. Asseverou que um tempo atráscomeçou a ser desenvolvido um projeto, mas que por algum motivo desconhecido não foi oportunizada a continuidade. O pedido ecoou como uma grande responsabilidade. As Universidades, os professores, e nós, acadêmicos-pesquisadores não podemos adiar o compromisso de compartilhar a tessitura dessas redes de saberes. As escolas demonstram essa ânsia em serem ouvidas, serem entendidas, serem acolhidas.... Nesse sentido, acreditamos que as parcerias entre universidades e escolas são maneiras assertivas de impulsionar a metáfora de rede que “entre a formação realizada coletivamente pelos professores de uma mesma escola e programas mais amplos...” (MANHÃES, 2008, p. 81) possam tecer conhecimentos e tecer currículos praticados que sejam múltiplos em sua aplicação e ao mesmo tempo, coletivos na sua produção. E que sejam pensadospraticados, repletos de cumplicidade por aqueles que estão e verdadeiramente conhecem cada passo no espaçotempo escolar. REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações Ltda. ISSN: 1983-0882 Page 1997 REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações e Editora Ltda., Curitiba, v.21, n.1, p. 1981-2000. 2024 3 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES [...] finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim. (MEIRELES, 1973) Aos nossos olhos o currículo vivido apresenta-se como cordão umbilical entre escola-comunidade. É por seu intermédio que se estabelece e fortalece o vínculo de coletividade capaz de encurtar distâncias, dirimir as desigualdades numa dimensão ético-política. As escolas estão sufocadas de demandas que engessam a prática docente; então desinvisibilizar o currículo vivido é valorizar os principais praticantespensantes escolares e juntos ter coragem de sair da superfície do currículo prescrito e adentrar no magma do currículo dos espaçostempos dos chãos das escolas. Para tanto devemos sair da zona de conforto e nos incentivar a ver, ouvir, rememorar e tecer com os outros docentes a partilha das mil “artes de fazer”, se reapropriando “do espaço organizado pelas técnicas da produção cultural” (CERTEAU, 2014, p. 40-41) e compondo o currículo como uma experiência educadora tecida em redes. Agradecemos a partilha de conhecimento que as professoras- entrevistadas ofertaram com suas vivências. Foi perceptível as suas inquietações para ressignificação do currículo escolar no período pós- pandemia. De sobremaneira suas táticas para escapar da estrutura lógica de controle por parte da secretaria de educação, revelaram que é possível inventar uma nova palavra e seus agentes podem “desubalternizar” o currículo prescrito em benefício de currículos pensados praticados nos/dos/com os cotidianos das escolas. Portanto, retomamos a epígrafe desse trabalho para reiterar que a satisfação da pesquisa em educação está em compreender que a pesquisa nesse campo de atuação, deve estar indissociável ao ensino. Ou seja, o professor tem que ter consciência da importância de conhecer e refletir sobre a própria prática cotidiana e semelhante ao que se afirma nas linhas poéticas de Cecília: “finalmente é preciso aprender a olhar, para poder ver” ... os resultados dos conhecimentos produzidos nas redes dos sujeitos pensantespraticantes dos chãos das escolas. REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações Ltda. ISSN: 1983-0882 Page 1998 REVISTA CADERNO PEDAGÓGICO – Studies Publicações e Editora Ltda., Curitiba, v.21, n.1, p. 1981-2000. 2024 REFERÊNCIAS BARROSO, João. A autonomia das escolas: uma ficção necessária. Revista Portuguesa de Educação, v. 17, n. 2, p. 49-83, 2004. Disponível em <https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=37417203>. Acesso em: jan. 2023. BARROSO, João. Cultura, cultura escolar e cultura da escola. Unesp/ UNIVESP. 2012. Volume 1-D26. Graduação em Pedagogia. Disponível em: <https://acervodigital.unesp.br/handle/123456789/65262>. Acesso em: 31 jan. 2023. BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018. Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI _EF_110518_versaofinal_site.pdf>. Acesso em: 31 jan. 2023. BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica. Parecer n. 7/2010. 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