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DIDÁTICA E METODOLOGIA DO ENSINO DA MÚSICA AULA 5 Prof. Flávio Denis Dias Veloso 2 CONVERSA INICIAL A passagem da primeira para a segunda geração de pedagogias em educação musical foi marcada por aspectos como a renovação das concepções de autonomia e autenticidade criativa (na perspectiva dos aprendizes), a inserção da música contemporânea nos contextos de musicalização, além de marcantes mudanças no cenário artístico e sociocultural como um todo (com destaque aos avanços tecnológicos e ao processo de globalização, aspectos que interferiram diretamente nas relações de ensino de aprendizagem musical). Para fins de comparação, podemos afirmar que enquanto o advento da primeira geração foi possível graças às reformas educacionais em voga – com destaque às pedagogias ativas –, o surgimento da segunda geração foi consequência direta das novas tendências artísticas/musicais e dos achados inéditos dos campos da psicologia e educação. Voltemos nossa atenção a este momento histórico de novas perspectivas educativo-musicais, que amparam o ensino da música na atualidade. TEMA 1 – UMA APROXIMAÇÃO À SEGUNDA GERAÇÃO: A AUTONOMIA CRIATIVA EM FOCO Assim como na primeira geração, as tendências deste segundo período surgiram majoritariamente na Europa e no norte da América, particularmente na segunda metade do século XX. Do ponto de visto musical, trata-se de um período marcado pelos avanços em termos de procedimentos composicionais, pela busca de novos timbres (fontes sonoras) e por um novo olhar aos fenômenos sonoros. A definição de música do compositor estadunidense John Cage (1912- 1992) – “música é sons, sons à nossa volta, quer estejamos dentro ou fora de salas de concerto” (citado por Fonterrada, 2008 p. 179) – reforça a necessidade de um olhar sensível ao som enquanto elemento central à experiência musical. Como consequência dessas novas concepções sonoro-musicais, vislumbramos progressos na música eletrônica, por exemplo, impulsionados por “um renovado interesse pelo ‘som’ como matéria-prima da música e sua transformação, graças a uma série de procedimentos de manipulação realizados em fita (música concreta) e por meio eletrônico” (Fonterrada, 2008, p. 179). Evidencia-se, desse modo, um primeiro grande impacto dos avanços das tecnologias digitas na produção musical (fruto da chamada terceira revolução industrial). 3 Para resumir os propósitos da segunda geração, podemos considerar que as formulações teórico-práticas dos educadores musicais deste período visavam habilitar os indivíduos (em qualquer fase da vida) a ouvir música de forma mais atenta, consciente e reflexiva, e levá-los a fazer música de maneira ativa e criativa, tornando-os ainda mais musicais (explorando as aptidões musicais comuns à natureza humana). Fonterrada (2012, p. 99) explica que os educadores da segunda geração de pedagogias musicais ativas priorizaram “as propostas que dão relevo à criatividade e à improvisação”. Ainda segundo a autora, o principal desafio desta vertente, “não obstante a diversidade de materiais e propostas, é produzir música por meio da exploração de materiais, segundo regras estabelecidas previamente, ou criadas na hora da prática”. Por fim, podemos inferir que a “palavra de ordem” que unifica as diferentes abordagens pedagógico-musicais dessa segunda geração é formar indivíduos na música e por meio dela para a autenticidade e autonomia criativa, compreendendo que os processos criativos incluem criar por meio da exploração e pesquisa sonora, improvisar livremente, e ouvir música de forma atenta e consciente, considerando a totalidade do universo de sons que nos circunda: a trilha sonora (não apenas musical) do cotidiano. Os educadores musicais desse período alinham-se às propostas da música nova e buscam incorporar à prática da educação musical nas escolas os mesmos procedimentos dos compositores de vanguarda, privilegiando a criação, a escuta ativa, a ênfase no som e suas características, e evitando a reprodução vocal e instrumental do que denominam “música do passado”. (Fonterrada, 2009, p. 179) Saiba mais A EDUCAÇÃO musical no século XXI – Experiências Criativas. A Musicana Escola, 24 jan. 2012. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2019. TEMA 2 – ABORDAGENS CRIATIVAS (1970-80): COMPOSITORES EDUCADORES No período do “método criativo” (1970-80) – assim nomeado por Gainza (2004) – podemos observar o despontar de uma geração de compositores que dedicaram-se ao ensino de música desde as fases iniciais, dentre os quais destacamos a compositora alemã Gertrud Meyer-Denkmann (1918-2014) e o 4 compositor canadense Raymond Murray Schafer (1933-). Os educadores dessa segunda geração direcionaram suas contribuições menos à formação musical centrada na apreciação auditiva e na execução por reprodução, e mais às práticas criativas, com destaque para a criação musical (composição e improvisação). É evidente que a primeira geração também contou com a colaboração de compositores educadores, a exemplo de Zoltán Kodály e Carl Orff. Entretanto, nas propostas desses educadores-compositores, a criatividade relacionou-se mais com procedimentos pedagógicos (de certo modo, focalizando a execução) e menos com a criação musical (o que não deve minimizar a relevância das contribuições desses educadores). Tomando a improvisação como comparação ilustrativa, podemos considerar que as atividades improvisatórias presentes nas propostas da primeira geração estiveram mais associadas à improvisação dirigida1 (a exemplo das improvisações em atividades de pergunta e resposta e/ou com o uso de ostinatos), ao passo que as iniciativas relativas à segunda geração advogam a favor da livre improvisação, muitas vezes com caráter exploratório. Além disso, as iniciativas dessa nova geração apoiaram-se fortemente na integração das diferentes modalidades do fazer musical – criação (na perspectiva da composição, improvisação e exploração), audição (com foco na escuta focalizada e periférica, além da já consagrada audição ativa) e execução –, com vistas à aprendizagem musical significativa e efetiva. Figura 1 – Contribuições dos educadores-compositores da segunda geração. 1 A improvisação dirigida “oferece maior controle sobre o produto resultante dos processos de criação guiados pela improvisação, sendo possível estabelecer parâmetros musicais e sistematizar aspectos dos procedimentos de criação” (Veloso, 2019). Propostas dos educadores- compositores da 2ª geração Autonomia criativo-musical Exploração e improvisação Abordagens integradoras 5 TEMA 3 – GERTRUD MEYER-DENKMANN (1918-2014): A MÚSICA NOVA NA SALA DE AULA “Nas décadas de 70 e 80, a música contemporânea foi a proposta educativo-musical predominante” (Gainza, 2004, p. 78, tradução nossa). Nessa tendência, diferentes sons (de fontes distintas e inusitadas) passaram a ser concebidos como matéria-prima para a produção musical, o que tornou a diferenciação entre “ruído” e “som musical” obsoleta. Os educadores musicais dessa vertente foram responsáveis pela aproximação entre as recentes tendências da música nova e a educação musical. Nessa corrente, destaca-se a produção pedagógica da educadora e compositora alemã Gertrud Meyer- Denkmann (1918-2014). As bases da proposta de educação musical de Meyer-Denkmann, segundo Souza (2012, p. 230), apoiam-se “nas novas teorias do desenvolvimento e psicologia infantil”. Tais perspectivas esclarecem que: A psicologia educacional reconhece, hoje, que talento não é primariamente e somente uma predisposição herdada; que habilidades especiais não aparecem somente por causa do gérmen que se desenvolve, mas que as duas (talento e habilidade) são definidas pela maneirae pela medida e do quanto uma experiências de aprendizagem é oferecida a uma criança. (Meyer-Denkmann, 1970, citada por Souza, 2012, p. 231) O escopo das proposições educativo musicais de Meyer-Denkmann está centrado em quatro aspectos principais (Souza, 1991; 2012), a saber: 1. Ampliar a sensibilidade artística dos indivíduos e as suas capacidades de percepção. 2. Favorecer a autorrealização na esfera social (coletiva) e individual. 3. Desenvolver as potencialidades criadoras dos sujeitos de forma reflexiva/crítica. 4. Fomentar um olhar crítico para o repertório musical. De acordo com Souza (1991), a produção pedagógica desta autora concentra-se ainda em aspectos comportamentais e psicológicos da relação da criança com o fenômeno sonoro, incluindo os conceitos de tempo e forma em música; a utilização de uma diversidade de fontes sonoras (de instrumentos convencionais à objetos sonoros, incluindo o uso do corpo), com foco na experimentação; em termos de notação musical, ressalta-se o uso de desenhos 6 e símbolos criados pelos aprendizes para posteriormente promover uma aproximação a recursos de escrita musical mais precisos em termos de altura e duração. Assim, a centralidade do trabalho de Meyer-Denkmann reside: na descoberta do som como “material bruto” pela criança, apoiada no ouvir e registrar aquilo que se ouve. Meyer-Denkmann refere-se às pesquisas acerca das manifestações de crianças pequenas sobre o som e afirma que “para uma criança de até sete anos de idade, o som é primariamente uma expressão dos campos da vivência e da ação (Meyer-Denkmann, 1970, p. 8, tradução nossa). Nesse ponto, sua concepção diferencia-se de numerosos “métodos” que colocam em destaque o treinamento de melodia e ritmos. Assim, ela amplia o repertório comumente utilizado e vislumbra outros aspectos da educação musical. (Souza, 2012, p. 231) As considerações aqui expostas não exaurem o amplo aporte teórico- prático e filosófico da pedagogia musical proposta por Gertrud Meyer- Denkmann. Realizamos uma síntese com foco em apenas alguns dos elementos dessa perspectiva. Para um aprofundamento, é imprescindível consultar o livro- base da disciplina. Leitura complementar (livro-base) SOUZA, J. V. Gertrud Meyer-Denkamnn – uma educadora musical na Alemanha pós-Orff. In: MATEIRO, T.; ILARI, B. (Org.) Pedagogias em Educação Musical. Curitiba: IBPEX, 2012. p. 219-242. TEMA 4 – RAYMOND MURRAY SCHAFER (1933-): POR UMA EDUCAÇÃO SONORA “Precisamos aprender a ouvir. Parece que esquecemos esse hábito. Precisamos sensibilizar o ouvido para o mundo miraculoso de sons à nossa volta” (Schafer, 2009, p. 17). Essa preocupação, manifestada pelo educador musical e compositor canadense Raymond Murray Schafer (1933-), motivou o desenvolvimento de proposições pedagógicas organizadas sob o rótulo de educação sonora. Essa perspectiva visa a melhoria nos hábitos de escuta através da ampliação dos níveis de atenção e consciência diante dos fenômenos sonoros (musicais ou não), por meio da “experiência direta com o som, de maneira lúdica e prazerosa” (Fonterrada, 2009, p. 10). Desse modo, para além de uma abertura da audição para a “paisagem sonora” do mundo que nos cerca, a educação sonora propõe a criação musical (composição e improvisação) a partir de materiais sonoros extraídos da 7 paisagem acústica dos ambientes. A seguir apresentaremos alguns dos conceitos fundamentais às propostas teórico-práticas de Schafer para o ensino da música: Paisagem sonora: segundo Schafer (2009, p. 14), este termo designa o “ambiente acústico”, isto é, “o campo sonoro completo onde quer que estejamos”. Contempla tanto os espaços internos quanto externos dos ambientes. Crédito: Billion Photos/Shutterstock. Escuta periférica e focalizada: “a escuta se dá em um processo contínuo, queiramos ou não, mas o fato de termos ouvidos não garante sua competência” (Schafer, 2009, p. 13). É preciso, portanto, aguçar as propriedades psicológicas intencionalidade e consciência nos processos de recepção sonora, para superarmos a escuta periférica em direção à audição focalizada. Crédito: Diego Cervo/Shutterstock. 8 Limpeza de ouvido: “é preciso voltar aos exercícios simples, básicos, de audição, para que a capacidade auditiva, tão prejudicada pelo aumento indiscriminado de ruído e pelas condições da vida moderna, recupere a sua plena capacidade” (Fonterrada, 2008, p. 196). Nesse sentido, a limpeza de ouvidos consiste em exercícios ligados à percepção auditiva e a preparação para as atividades de escuta atenta (focalizada/direcionada). Atividades desta natureza favorecem a concentração e posicionam o processamento auditivo no foco da consciência. Crédito: Africa Studio/Shutterstock. Na sequência veremos algumas indicações práticas relativas à proposta de educação musical de Murray Schafer. As informações com as quais tivemos contato neste tema não representam a totalidade do aporte teórico-prático e filosófico que compõe a pedagogia musical pensada por Schafer. Para um aprofundamento, é imprescindível à consulta ao livro-base desta disciplina. Leitura complementar (livro-base) FONTERRADA, M. T. O. Raymond Murray Schafer – o educador musical em um mundo em mudança. In: MATEIRO, T.; ILARI, B. (Org.). Pedagogias em Educação Musical. Curitiba: IBPEX, 2012. p. 275-304. 9 Saiba mais AS paisagens sonoras. Otolhamar13, 28 abr. 2012. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2019. TEMA 5 – A PROPOSTA PEDAGÓGICA DE SCHAFER: UMA ABORDAGEM PRÁTICA A centralidade da perspectiva schaferiana é “ensinar a ouvir”, especialmente em um mundo marcado por uma complexidade e sobrecarga acústica, nunca antes vista. É nesse sentido que Schafer defende a conscientização e sensibilização da escuta da trilha sonora (e não somente musical) das cenas cotidianas, dos nossos lares às salas de aula. Para Schafer (2009), a melhoria qualitativa da escuta só é possível se levarmos em consideração as dimensões ambiental (contextual), perceptiva (cognitiva), fisiológica (biológica), estética e musical. O autor destaca ainda que, em termos de prática pedagógica, não devemos perder de vista os aspectos lúdicos e criativos da experiência de apreciação sonora. Figura 2 – Dimensões que favorecem a melhoria da qualidade da escuta Fonte: Elaborado com base em Schafer, 2009. Proposta de atividade 1: Solicite aos alunos – em um exercício de focalização da escuta – que listem (e caracterizem) entre 10 e 20 sons possíveis de serem observados no ambiente escolar (dentro e fora da sala de aula). Depois, convide-os a replicar estes sons com os recursos disponíveis em sala (objetos, corpo e instrumentos). Melhoria da escuta Dimensão Ambiental Dimensão Cognitiva Dimensão Fisiológica Dimensão Estética 10 Crédito: Prostockstudio/Shutterstock; Vectorpocket/Shutterstock . Proposta de atividade 2: Considere a Figura 3. Tendo em mente a diversidade e complexidade sonora de um determinado ambiente acústico (a paisagem sonora da sala de aula, por exemplo), peça aos alunos que realizem uma minuciosa pesquisa, construindo um amplo acervo sonoro. Em seguida, solicite a associação dos sons encontrados com as formas e texturas dispostas nas imagens. 11 Figura 3 – Proposta de atividade 2 Fonte: Schafer, 2009, p. 67. NA PRÁTICA O ambiente onde me encontro enquanto elaboro este material está repleto de estímulos sonoros. Trata-se de uma cafeteira, com boa parte dos espaços ocupados por clientes. Uma massa sonora vocal (consequência das conversas simultâneas), sons dos talheres, além dos ruídos de máquinas de café e refrigeradores, promovem uma rica e contínua experiência sonora. Eventuais interferências sonoras de passos, e a movimentação de objetos na cozinha, integrama trilha sonora na parte interna do ambiente (isso sem considerar o ambiente externo, com sons de veículos, vento, obras nos prédios da região, enfim, sons da vida urbana, cuja trilha nunca cessa. Partindo do exposto, lhe convido a realizar este mesmo exercício: permita- se ouvir com cautela a paisagem sonora do espaço onde se encontra neste instante. Procure elaborar um acervo dos sons ouvidos, categorizando-os de acordo com as suas propriedades: altura, duração, intensidade e timbre. Você tem autonomia para ampliar as categorizações de acordo com a natureza dos sons da paisagem sonora por você contemplada. FINALIZANDO Ao longo desta aula – particularmente no começo –, conhecemos as bases filosóficas e os direcionamentos didático-pedagógicos das propostas e metodologias da segunda geração de pedagogias ativas em educação musical (segunda metade do século XX). Dedicamo-nos ao estudo de uma das principais 12 abordagens do referido período: a educação musical alinhada às tendências da música nova, proposta pela compositora-educadora Meyer-Denkmann. Nas seções finais (temas quatro e cinco), conhecemos a perspectiva de ensino de música defendida pelo educador-compositor Murray Schafer, que privilegia a sensibilização da escuta (para além da apreciação musical tradicional), contemplando todos os elementos que integram as paisagens sonoras cotidianas. Bons estudos! 13 REFERÊNCIAS FONTERRADA, M. T. O. Apresentação. In: SCHAFER, R. M. Educação sonora. São Paulo: Melhoramentos, 2009. _____. De tramas e fios: um ensaio sobre música e educação. 2. ed. São Paulo: Unesp, 2008. _____. Educação musical: propostas criativas. In: JORDÃO, G. et al. (Org.) A música na escola. São Paulo: Allucci & Associados Comunicações, 2012. p. 96- 100. _____. Raymond Murray Schafer – o educador musical em um mundo em mudança. In: MATEIRO, T.; ILARI, B. (Org.). Pedagogias em Educação Musical. Curitiba: IBPEX, 2012. p. 275-304. GAINZA, V. H. La Educación Musical En El Siglo XX. Revista Musical Chilena, Buenos Aires, n. 201, p. 74-81, 2004. SCHAFER, R. M. Educação sonora. São Paulo: Melhoramentos, 2009. SOUZA, J. V. Gertrud Meyer-Denkamnn – uma educadora musical na Alemanha pós-Orff. In: MATEIRO, T.; ILARI, B. (Org.) Pedagogias em Educação Musical. Curitiba: IBPEX, 2012. p. 219-242. _____. Modelos de iniciação musical da Alemanha. Revista Opus, Porto Alegre, v. 3, n. 3, p. 58-63, 1991. VELOSO, F. D. D. Improvisação e o ensino de música: aportes à prática docente. Curitiba: InterSaberes, 2019. No prelo.