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Óscar WILDE - Salomé

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Prévia do material em texto

Óscar WILDE  Salomé 
  , Oscar 
  (N. Dublim, 1854 F. 1900 ) 
  TÍTULO ORIGINAL: Salomé 
LOCAL DA PUBLICAÇÃO: Lisboa. 
  EDITORA: Editorial Estampa 
  Data da publicação: Julho de 2000 
  2.a Edição 
  GÉNERO: Dramático 
  CLASSIFICAÇÃO: Inglaterra – Século XIX ­ Ficção 
  COLECÇÃO: Ficções  n.º 22 
  DIGITALIZADO E CORRIGIDO EM 
Novembro de 2007 
  POR: 
  Ângelo Miguel Abrantes   
*** 
  Esta obra foi digitalizada para uso exclusivo de deficientes visuais. A                     
sua distribuição fora desta condição, que viola a lei de direitos de autor, responsabilizará                           
directamente quem desrespeitar  
a referida disposição legal. 
*** 
 
oscar wilde 
Salomé 
  
DRAMA EM UM ACTO 
  
ILUSTRAÇÕES DE AUBREY BEARDSLEY 
  
Prefácio e Tradução 
  
sobre a versão francesa de 
  
ISABEL BARBUDO 
  
2.a Edição 
  
Editorial Estampa 
  
Ficções 22 
 
PREFÁCIO 
  
FICHA TÉCNICA: 
  
Título do original: Salomé 
  
Autor: Oscar Wilde 
  
Capa: Carlos António de Oliveira e Sousa 
  
Colecção: Ficções N.º 22 
  
1.a edição: Editorial Estampa, 1992 
  
2.a edição: Editorial Estampa, Julho de 2000 
  
Fotocomposição: Byblos­Fotocomposição, Lda. 
  
Impressão e Acab.: Rolo & Filhos ­ Artes Gráficas, Lda. 
  
Depósito legal n.º 154 452/00 
  
ISBN 972­33­0864­9 
  
Todos os direitos para esta edição estão reservados 
  
por Editorial Estampa, Lda., para a língua portuguesa 
  
Tendo nascido em Dublin em 1854, e após terminar os estudos na Universidade de Oxford,                             
onde foi discípulo de John Ruskin e Walter Pater, Oscar Wilde inicia a sua carreira literária                               
em Londres no ano de 1879. Nessa data são publicados os seus primeiros poemas que,                             
aliados às palestras feitas na qualidade de ”professor de Estética”, constituem a base do                           
lançamento do seu nome no difícil meio intelectual londrino. É como ”dandy” e símbolo vivo                             
de um esteticismo de inspiração francesa que ele consegue, efectivamente, sair do anonimato.                         
As suas poses e vestuário são caricaturados por George du Maurier na revista ​Punch, ​e                             
Gilbert e Sullivan tomam­no como principal fonte de inspiração para criarem a figura de                           
Bunthorne, o Esteta, na ópera satírica ​Patience ​(1881). 
  
A ideia de experimentar o drama seduzira entretanto Oscar Wilde. Assim, em 1880, pouco                           
antes de iniciar uma digressão pelos Estados Unidos como conferencista e divulgador daquilo                         
a que chamava a ”Ciência do Belo”, publica ​Vera; or, The Nihilists, ​seguida, três anos mais                               
tarde, de ​The Duchess ofPadua. ​A crítica literária constitui um dos passos seguintes:                         
iniciando, em 1885, uma curta 
carreira como crítico nas páginas de várias revistas e jornais, Wilde inaugura também a sua                             
obra ensaística com um texto que, numa versão posterior, viria a receber o título ​The Truth                               
ofMasks. ​Este ensaio, juntamente com ​The Decay ofLying, Pen, Pencil and Poison ​e ​The                           
Critic as Artist, ​integrou uma colectânea saída a lume em 1891 e a que o autor conferiu um                                   
título significativo: ​Intentions. ​Entre 1887 e 1891 publicara ainda duas colectâneas de contos                         
(The Happy Prince and Other Tales ​e ​A House of Pomegranates) ​e, em 1890, o seu único                                 
romance: ​The Picture of Dorian Gray. 
  
Apesar de, ao notável sucesso alcançado pelos seus contos e romance, se contrapor o evidente                             
fracasso teatral das duas peças que escrevera, Wilde insiste, daí em diante, em fazer carreira                             
como dramaturgo. O projecto seguinte é uma comédia que lhe fora sugerida por George                           
Alexander, actor do ​St. Jamess Theatre, ​e que havia de tomar forma sob o título ​Lady                               
Windermere’s Fan ​­ a primeira das quatro comédias que viria a escrever. Entre o início da                               
sua elaboração e a entrega do texto já concluído, Wilde escreve entretanto uma outra peça                             
que, não sendo comédia nem tendo, ao contrário daquela, qualquer objectivo imediato de                         
encenação, parece brotar de uma espontânea necessidade interior. 
  
Encontrando­se em Paris, cidade que visitava amiúde e cujo ambiente artístico desde sempre                         
o seduzira, Wilde completa numa só noite o texto dramático a que dá o título ​Salomé.                               
Posteriormente descreve a génese desta sua peça ao poeta e romancista Vincent O’Sullivan,                         
que a relataria do seguinte modo: ”Ele almoçara com um grupo de jovens escritores franceses                             
que incluía André Gide, e contou­lhe a história da peça em que andava a 
pensar há algumas semanas, inventando­a e desenvolvendo­a à medida que ia falando. Depois                         
regressou aos seus aposentos no Boulevard des Capucines. Estava sozinho, e a noite                         
começava a cair. Sobre a mesa estava um bloco de papel em branco. Ocorreu­lhe então                             
escrever o que acabara de ’narrar’... ’Se o bloco de papel não estivesse ali em cima da mesa,                                   
eu nunca pensaria em fazê­lo’.” Ainda de acordo com este relato, a única interrupção feita ao                               
longo da noite ocorreu entre as dez e as onze, quando o autor se deslocou ao Grand Café para                                     
jantar. Aí uma orquestra tocava, e Wilde disse ao chefe da mesma: ”Estou a escrever uma                               
peça acerca de uma mulher que dança descalça sobre o sangue de um homem que ela desejara                                 
e mandara matar. Quero que toque algo de acordo com os meus pensamentos.” O chefe da                               
orquestra, obedecendo ao pedido, executou uma música de tal modo terrível, que todas as                           
pessoas presentes emudeceram. Quanto ao autor, subiu aos seus aposentos e acabou de                         
escrever ​Salomé. 
  
O resultado deste breve mas intenso momento de inspiração foi um texto escrito não para                             
agradar a um encenador ou a um auditório, mas unicamente a si próprio. 
  
Se durante algum tempo houve dúvidas quanto à língua em que a versão original teria sido                               
escrita ­ inglês ou francês ­ está hoje definitivamente assente que Wilde a escreveu nesta                             
última língua, tendo a tradução para inglês sido feita por Lord Alfred Douglas. Foram três,                             
aliás, as versões manuscritas pelo autor em francês, todas elas sujeitas a correcções de                           
carácter meramente linguístico. A terceira dessas versões, corrigida por Pierre Louys, viria a                         
ser utilizada para publicação. 
  
Para além da atracção que a língua francesa sempre 
exercera em Wilde (segundo testemunhos da época ele dominava­a perfeitamente), o facto de                         
a ter escolhido para este texto resultou sobretudo de uma estratégia discursiva                       
deliberadamente copiada de Maurice Maeterlinck, o dramaturgo belga que lançara as bases                       
do drama simbolista europeu. O próprio Wilde o afirmou numa entrevista, explicitando: ”Ele,                         
que é de origem flamenga, escreve numa língua estrangeira.” 
  
Publicada em francês em Paris e em Londres, em 
1893, a peçaagrada de tal modo à actriz Sarah bemhardt, que esta decide pô­la em cena com                                   
um elenco francês e desempenhando ela própria o papel da protagonista. Os ensaios                         
iniciam­se no ​Palace Theatre ​em Londres com a presença do autor, para quem a adesão da                               
que ele considera a maior actriz da época constitui um indescritível prazer. 
  
O perigo da censura começara, no entanto, a pairar, colocando­se a hipótese da sua proibição,                             
por incluir personagens bíblicas, de acordo com uma lei que remontava à Reforma                         
Protestante. A indignação de Wilde assume a forma de uma ameaça: ”Se ​Salomé ​for proibida,                             
deixarei a Inglaterra e naturalizar­me­ei francês. Não aceitarei considerar­me cidadão de um                       
país que mostra uma tal tacanhez no seu juízo artístico. Eu não sou inglês. Sou irlandês ­ o                                   
que é muito diferente.” 
  
Quando a proibição se torna uma realidade, Wilde permanece no entanto em Londres,                         
assistindo desolado ao cancelamento dos ensaios e ao termo do seu auspicioso projecto. Para                           
além de tudo, é o silêncio mantido por actores e críticos que aumenta a sua íntima revolta.                                 
Um silêncio que denuncia, afinal, a consciência de que não se trata apenas do desrespeito por                               
uma cláusula obsoleta, 
  
10 
  
mas de algo muito mais profundo, conforme se tornara aliás já patente na crítica feita num                               
jornal da época, aquando da publicação da peça: ”É uma combinação de sangue e ferocidade,                             
mórbida, bizarra, repulsiva e profundamente ofensiva, na sua adaptação de uma linguagem                       
bíblica a situações que são o inverso do sagrado.” 
  
Significativamente, a peça viria a ser representada pela primeira vez em Paris, no ​Théâtre de                             
LVeuvre, ​em Fevereiro de 1896. O autor encontrava­se então numa prisão inglesa a cumprir                           
uma pena de dois anos por práticas homossexuais implicando a corrupção de menores. 
  
A Alemanha seria o segundo país europeu a pô­la em cena, em 1901, ou seja, um ano após a                                     
morte do autor. Em 1905, Richard Strauss, director da Ópera Real de Berlim, concebia uma                             
ópera com o texto de Wilde, indo assim ao encontro da concepção que este por diversas vezes                                 
manifestara, referindo­se a ​Salomé ​em termos musicais. 
  
Quanto à Inglaterra, só em 1905 teria lugar a primeira representação, semi­privada, sendo                         
posta finalmente em cena num espectáculo público no ​Lyceum ​em 1931, ou seja, trinta e nove                               
anos depois da sua publicação. Tal foi a fortuna da única peça escrita por Oscar Wilde à                                 
revelia dos padrões estéticos e ético­morais da Inglaterra vitoriana; a única peça escrita ao                           
sabor das tendências estéticas com que mais profundamente se identificava: o Simbolismo e o                           
Decadentismo franceses. 
  
Maeterlinck, o dramaturgo por quem Oscar Wilde por diversas vezes manifestou profunda                       
admiração, constitui a influência mais claramente determinante, sendo notórias as                   
semelhanças de ​Salomé ​com ​La Princesse Maleine 
  
11 
 
(1889) e ​Pelléas et Mélisande ​(1892). Ao nível temático, o fatalismo vago mas insistente das                             
peças daquele dramaturgo, subjacente às misteriosas relações entre o amor, o pecado e o                           
sofrimento, manifesta­se, com a mesma intensidade e num contexto semelhante, nesta peça                       
de Wilde. A heroína é também uma jovem princesa vítima de intensa e irresistível paixão,                             
que a conduzirá a uma morte violenta. 
  
A escolha da personagem do Evangelho segundo S. Marcos para heroína remete­nos, por sua                           
vez, para o facto de esse episódio bíblico constituir um dos temas preferidos dos artistas                             
franceses do ”fin­de­siècle”. Flaubert escrevera ​Sallambô ​(1862) e ​Hérodias ​(1877) e                     
Mallarmé publicaria, em 1898, o poema dramático ​Herodiade. ​O pintor simbolista Gustave                       
Moreau tornara­se entretanto famoso pelo cunho simultaneamente místico e erótico conferido                     
a Salomé, que pintara dançando ou admirando a cabeça decepada de S. João Baptista. Um                             
dos seus quadros, ​Salomé dansant, ​exibido em 1876, inspirara nomeadamente Huysmans,                     
autor do romance decadentista ​À Rebours. ​Des Esseintes, herói deste romance, ao descrever                         
Salomé como uma deusa de perversa luxúria, afasta­se, tanto como Moreau, da imagem                         
traçada no Novo Testamento. 
  
A conotação exoticamente sensual que atribui à dança de Salomé mantém­se no texto de                           
Wilde. Neste, a dança dos sete véus constitui, aliás, o mais central e, simultaneamente, o mais                               
hermético dos símbolos. Não dando qualquer indicação quanto ao modo como deverá ser                         
dançada (escreve apenas: ”Salomé executa a dança dos sete véus”), Wilde atribuía­lhe, no                         
entanto, um sentido esotérico, como se depreende da dedicatória inscrita no 
  
12 
  
volume que ofereceu a Aubrey Beardsley, ilustrador da primeira edição em inglês: ”Para                         
Aubrey: para o único artista que, além de mim próprio, sabe o que é a dança dos sete véus, e                                       
consegue ver essa dança invisível.” 
  
Aubrey Beardsley, um artista que se tornara notado graças aos desenhos e ilustrações a preto                             
e branco evocadores de um erotismo perverso, nutria por Wilde uma aversão que era                           
sobejamente conhecida. A tal se deve, segundo se crê, o facto de Oscar Wilde ter sido                               
excluído do número dos colaboradores da revista ​Yellow Book, ​a revista inglesa que melhor                           
espelhou as tendências vivenciais e estéticas do período finissecular, e de que Beardsley foi                           
editor artístico. Apesar disso, e certamente graças ao reconhecimento de uma sensibilidade                       
estética compatível com a atmosfera da sua peça, Wilde aceita as ilustrações de Beardsley,                           
que não perde a oportunidade para, nalgumas delas, caricaturar o rosto do autor. Ao fazê­lo,                             
ele parece querer insinuar a existência, na peça, de uma dimensão autobiográfica que os                           
críticos viriam posteriormente a reconhecer. 
  
O confronto entre Iokanaan e Salomé viria, assim, a ser encarado na perspectiva de uma                             
dramatização do mais profundo conflito do autor: de um lado, o moralismo ruskiniano,                         
reflexo de uma época obcecada pela ética, e conduzido aqui aos extremos de um fanatismo                             
rígido; no pólo oposto, o sensualismo livre e sem limites sugerido pelo esteticismo pateriano.                           
O aniquilamento de ambos mostra que a conclusão subjacente a ​The Picture ofDorian Gray                           
(nas palavras do próprio Wilde: ”Todo o excesso, tal como toda a renúncia, comporta o seu                               
próprio castigo”), é retomada em ​Salomé. 
  
13 
 
Aqui assiste­se, porém, à sobrevivência de Herodes, a personagem que, àsemelhança do                         
protagonista do romance, é portadora do dilema wildeano, como homem e como artista.                         
Quando a cedência aos seus impulsos libidinosos demonstra ter consequências que não                       
previra (a destruição simbólica dos princípios morais e religiosos personificados no profeta),                       
Herodes amaldiçoa a projecção da sua própria luxúria e, instintivamente, decide aniquilá­la.                       
Sobrevivendo, embora, a este doloroso processo, Herodes continuará a ser um homem                       
marcado pelo peso de um tremendo combate interior. A seu lado, e significativamente,                         
resta­lhe apenas a presença de Herodias, a imagem do filistinismo na peça. 
  
A primeira edição em inglês, que deste modo abria caminho para fecundas interpretações da                           
peça, aparecia cerca de um ano depois da versão original, e na sequência de um processo algo                                 
conturbado respeitante à sua tradução. A dedicatória apontava o nome do tradutor: ”Ao meu                           
amigo Lord Alfred Bruce Douglas, tradutor da minha peça.” Wilde viria, no entanto, a                           
manifestar o profundo descontentamento que a tradução lhe provocara, tendo inclusivamente                     
sido causa de desentendimentos com Alfred Douglas. Em ​De Profundis, ​a longa carta escrita                           
na prisão e dirigida a este, Wilde lembraria a esse propósito: ”Três meses mais tarde, em                               
Setembro, ocorreram novas cenas, relacionadas com o facto de eu te ter apontado os erros                             
primários da tradução que tinhas tentado fazer de ​Salomé. ​Os conhecimentos de francês que                           
entretanto certamente adquiriste, mostrar­te­ão agora que a tradução era tão indigna de ti,                         
enquanto estudante de Oxford, como da obra que tentava reproduzir.” 
  
14 
  
Embora seja lícito concluir destas palavras que Wilde terá imposto as correcções que se lhe                             
afiguraram necessárias, a versão inglesa surge, de qualquer modo, como um texto recriado                         
por alguém que não o autor, e em relação ao qual este terá, porventura, mantido algumas                               
reservas. 
  
Um confronto entre a versão inicial escrita por Wilde em francês e a sua réplica inglesa põe,                                 
com efeito, em relevo não apenas as limitações decorrentes da tradução feita para uma língua                             
com características dissemelhantes, mas também, e em muitos casos, as opções do tradutor. 
  
Um dos aspectos mais salientes é o que se relaciona com a repetição de certos termos e                                 
expressões: embora já notória e insistente no texto em francês, ela acentua­se, de modo                           
flagrante, na versão inglesa. Tratando­se de uma faceta pautada por um projecto estético de                           
inspiração simbolista e favorecida, segundo Wilde, pelo uso de uma língua estrangeira, a sua                           
intensificação no texto inglês parece decorrer sobretudo da escolha ­ ou, quem sabe, da                           
inépcia ­ do autor da tradução. 
  
Assim sendo, e porque quisemos aproximar­nos o mais possível da obra tal como foi                           
concebida por Wilde na versão original, foi principalmente nesta que nos baseámos para                         
traduzir ​Salomé ​para a língua portuguesa ­ uma língua cuja semelhança com o francês                           
viabiliza a aproximação pretendida. 
  
MARIA ISABEL BARBUDO 
  
15 
  
I 
 
PERSONAGENS 
  
HERODES ANTIPAS, tetrarca da Judeia 
  
IOKANAAN, o profeta 
  
O JOVEM SÍRIO, capitão da guarda 
  
TIGELINO, um jovem romano 
  
UM CAPADÓCIO 
  
UM NÚBIO 
  
PRIMEIRO SOLDADO 
  
SEGUNDO SOLDADO 
  
O PAJEM DE HERODIAS 
  
JUDEUS 
  
NAZARENOS 
  
SOLDADOS, etc. 
  
UM ESCRAVO 
  
NAAMAN, o carrasco 
  
HERODIAS, mulher do tetrarca SALOMÉ, filha de Herodias AS ESCRAVAS DE SALOMÉ 
  
19 
 
CENÁRIO 
  
Um grande terraço no palácio de Herodes, dando para o salão de banquetes. Alguns                           
soldados estão encostados à varanda. A direita há uma enorme escadaria; à esquerda, atrás,                           
uma velha cisterna rodeada por um muro de bronze verde. Luar. 
  
O JOVEM SÍRIO 
  
Que linda ​que está a Princesa Salomé esta noite! 
  
O PAJEM DE HERODIAS 
  
Olhai para a Lua! Que estranho aspecto ela tem! Dir­se­ia uma mulher erguendo­se de um                             
túmulo. Parece uma mulher morta. Dir­se­ia que anda à procura de mortos. 
  
O JOVEM SÍRIO 
  
Tem um aspecto muito estranho. Parece uma princesinha com um véu amarelo e pés de prata.                               
Parece uma prin­ 
  
21 
 
cesa cujos pés são como duas pombas brancas. Dir­se­ia que está a dançar. 
  
O PAJEM DE HERODIAS 
  
É como uma mulher morta. Caminha muito lentamente. 
  
Ruído no salão de banquetes 
  
PRIMEIRO SOLDADO 
  
Que algazarra! Quem são aquelas bestas uivantes?   ­ 
  
SEGUNDO SOLDADO 
  
São os Judeus. Estão sempre assim. Estão a discutir a sua religião. 
  
PRIMEIRO SOLDADO 
  
Porque discutem eles a religião? 
  
SEGUNDO SOLDADO 
  
Não sei. Fazem­no continuamente. Os Fariseus, por exemplo, dizem que existem anjos, e os                           
Saduceus declaram que não. 
  
PRIMEIRO SOLDADO 
  
Acho ridículo discutir tais coisas. 
  
O JOVEM SÍRIO 
  
Que linda que está a Princesa Salomé esta noite! 
  
22 
 
O PAJEM DE HERODIAS 
  
Estais sempre a olhar para ela. Olhais demasiado para ela. Não se deve olhar para as pessoas                                 
desse modo. Pode acontecer uma desgraça. 
  
O ​JOVEM ​SÍRIO 
  
Ela está muito ​bonita esta noite. 
  
PRIMEIRO SOLDADO 
  
O Tetrarca tem um ar sombrio. 
  
SEGUNDO SOLDADO 
  
Sim, tem um ar sombrio. 
  
PRIMEIRO SOLDADO 
  
Está a olhar para alguma coisa. 
  
SEGUNDO SOLDADO 
  
Está a olhar para alguém. 
  
PRIMEIRO SOLDADO 
  
Para quem olha ele? 
  
SEGUNDO SOLDADO 
  
Não sei. 
  
O JOVEM SÍRIO 
  
Que pálida que está a Princesa! Nunca a vi tão pálida. Parece o reflexo de uma rosa branca                                   
num espelho de prata. 
  
25 
 
O PAJEM DE HERODIAS 
  
Não deveis olhar para ela. Olhais demasiado para ela. 
  
PRIMEIRO SOLDADO 
  
Herodias encheu o cálice do Tetrarca. 
  
O CAPADÓCIO 
  
Aquela é Herodias? A que usa uma mitra negra cravejada de pérolas e tem os cabelos                               
empoados de azul? 
  
PRIMEIRO SOLDADO 
  
Sim, é Herodias, a mulher do Tetrarca. 
  
SEGUNDO SOLDADO 
  
O Tetrarca gosta muito de vinho. Tem­no de três qualidades. Um que vem da ilha de                               
Samotrácia e é cor de púrpura, como o manto de César. 
  
O CAPADÓCIO 
  
Eu nunca vi César. 
  
SEGUNDO SOLDADO 
  
Um outro que vem da cidade de Chipre e é amarelo 
como o ouro. 
  
26 
  
O CAPADÓCIO 
  
Gosto muito de ouro. 
  
SEGUNDO SOLDADO 
  
E o terceiro é da Sicília. Esse vinho é vermelho como 
sangue. 
  
O NÚBIO 
  
Os deuses da minha terra gostam muito de sangue. Duas vezes por ano sacrificamos­lhes                           
mancebos e virgens: cinquenta mancebos e cem virgens. Mas parece que nunca lhes damos o                             
suficiente, pois são muito severos para connosco. 
  
O CAPADÓCIO 
  
Na minha terra já não há deuses, os Romanos expulsaram­nos. Há quem diga que se                             
esconderam nas montanhas, mas não acredito. Passei três noites nas montanhas                     
procurando­os por toda a parte. Não os encontrei. Porfim chamei­os pelos nomes, e não                             
vieram. Acho que estão mortos. 
  
PRIMEIRO SOLDADO 
  
Os Judeus veneram um Deus que é invisível. 
  
O CAPADÓCIO 
  
Não consigo perceber isso. 
  
PRIMEIRO SOLDADO 
  
Na verdade, eles só acreditam em coisas invisíveis. 
  
27 
  
O CAPADÓCIO 
  
Acho isso absolutamente ridículo. ,, , 
  
A VOZ DE IOKANAAN 
  
Depois de mim virá um outro ainda mais poderoso do que eu. Eu nem sou digno de lhe                                   
desatar as correias das sandálias. Quando ele vier, a terra deserta alegrar­se­á e florescerá                           
como o lírio. Os olhos dos cegos verão a luz e os ouvidos dos surdos abrir­se­ão. O                                 
recém­nascido tocará no ninho do dragão e levará os leões pela juba. 
  
SEGUNDO SOLDADO 
  
Mandai­o calar. Está sempre a dizer coisas absurdas. 
  
PRIMEIRO SOLDADO 
  
Não, não. Ele é um homem santo. E além disso é muito amável. Levo­lhe comida todos os                                 
dias e ele agradece­me sempre. 
  
O CAPADÓCIO 
  
Quem é ele? 
  
PRIMEIRO SOLDADO 
  
É um profeta. 
  
O CAPADÓCIO 
  
Como se chama? 
  
28 
  
PRIMEIRO SOLDADO 
  
IOKANAAN; 
  
O CAPADÓCIO 
  
De onde vem? 
  
PRIMEIRO SOLDADO 
  
Do deserto, onde se alimentava de gafanhotos e mel silvestre. A roupa era feita de pêlo de                                 
camelo e à volta da cintura trazia um cinto de couro. Tinha um ar selvagem. Costumava ser                                 
seguido por uma multidão e até tinha discípulos. 
  
O CAPADÓCIO 
  
De que fala ele? 
  
PRIMEIRO SOLDADO 
  
Não sabemos. Às vezes diz coisas terríveis, mas é impossível compreendê­lo. 
  
O CAPADÓCIO 
  
Pode­se vê­lo? 
  
PRIMEIRO SOLDADO 
  
Não. o Tetrarca não o permite. 
  
O JOVEM SÍRIO 
  
A Princesa escondeu o rosto atrás do leque! As suas mãozinhas brancas estremecem como                           
pombas a voar para 
  
29 
 
os seus pombais. Parecem borboletas brancas. São tal e qual borboletas brancas. 
  
O PAJEM DE HERODIAS 
  
Que vos importa? Porque olhais para ela? Não deveis olhar para ela... Pode acontecer uma                             
desgraça. 
  
O CAPADÓCIO 
Apontando para a cisterna 
  
Que estranha prisão! 
  
SEGUNDO SOLDADO 
  
É uma velha cisterna. 
  
O CAPADÓCIO 
  
Uma velha cisterna! Deve ser muito insalubre. 
  
SEGUNDO SOLDADO 
  
Não é. Vede o exemplo do irmão do Tetrarca, o irmão mais velho, primeiro marido da Rainha                                 
Herodias, que esteve lá preso durante doze anos. E não morreu. No fim teve de ser                               
estrangulado. 
  
O CAPADÓCIO 
  
Estrangulado? Quem se atreveu a fazê­lo? 
  
SEGUNDO SOLDADO 
  
Apontando para o Carrasco, um enorme negro ​Aquele homem ali, Naaman. ; 
  
30 
  
O CAPADÓCIO 
  
Ele não teve medo? 
  
SEGUNDO SOLDADO 
  
Não! O Tetrarca mandou­lhe o anel. 
  
O CAPADÓCIO 
  
Que anel? 
  
SEGUNDO SOLDADO 
  
O anel da morte. Por isso não teve medo. 
  
O CAPADÓCIO 
  
De qualquer modo é uma coisa terrível estrangular um 
rei. 
  
PRIMEIRO SOLDADO 
  
Porquê? Os reis só têm um pescoço, como as outras pessoas. 
  
O CAPADÓCIO 
  
Acho terrível. 
  
O JOVEM SÍRIO 
  
A Princesa levanta­se! Está a abandonar a mesa! Tem um ar muito perturbado. Ah, vem para                               
cá. Sim, vem na nossa direcção. Que pálida que ela está! Nunca a vi tão pálida... 
  
31 
 
O PAJEM DE HERODIAS 
  
Não olheis para ela. Peço­vos que não olheis para ela. 
  
O JOVEM SÍRIO 
  
É como uma pomba que se extraviou... É como um narciso agitado pelo vento... Parece uma                               
flor de prata. 
  
Entra ​SALOMÉ 
  
Eu não ficarei. Não posso ficar. Porque me olha o Tetrarca constantemente com os seus olhos                               
de toupeira sob pálpebras que tremem? É estranho que o marido da minha mãe me olhe desse                                 
modo. Não sei o que isso significa. Na verdade, sei sim. 
  
O JOVEM SÍRIO 
  
Acabais de deixar o festim, Princesa? 
  
SALOMÉ 
  
O ar aqui está tão fresco! Aqui consegue­se respirar! Lá dentro estão Judeus de Jerusalém                             
injuriando­se uns aos outros por causa das suas tolas cerimónias, e Bárbaros que bebem sem                             
parar, espalhando o vinho pelo chão, e Gregos de Esmirna com os olhos e as faces pintadas e                                   
os cabelos frisados em espiral, e Egípcios silenciosos e subtis com longas unhas de jade e                               
túnicas escuras, e Romanos com a sua brutalidade, a sua grosseria e os seus palavrões. Ah!                               
Como detesto os Romanos! São gente vulgar, mas dão­se ares de grandes senhores. 
  
32 
 
O JOVEM SÍRIO 
  
Não quereis ​sentar­vos, Princesa? 
  
O PAJEM DE HERODIAS 
  
Porque lhe falais? Porque olhais para ela? Oh! Vai acontecer uma desgraça. 
  
SALOMÉ 
  
Que bom ver a Lua! Parece uma pequena moeda. Dir­se­ia uma florzinha de prata. É fria e                                 
casta, a Lua... Tenho a certeza de que é virgem. Tem uma beleza virginal. Sim, é virgem.                                 
Nunca se corrompeu. Nunca se entregou aos homens, como as outras Deusas. 
  
A VOZ DE IOKANAAN 
  
Chegou o Senhor! Chegou o filho do Homem. Os centauros esconderam­se nos rios e as                             
sereias deixaram os rios, deitando­se sob as folhas das florestas. 
  
SALOMÉ 
  
Quem foi que gritou? 
  
SEGUNDO ​SOLDADO 
  
O profeta, ​Princesa. 
  
SALOMÉ 
  
Ah, o profeta! Aquele de quem o Tetrarca ​tem ​medo? 
  
35 
 
SEGUNDO SOLDADO 
  
Disso não sabemos nada, Princesa. Foi o profeta Iokanaan que gritou. 
  
O JOVEM SÍRIO 
  
Quereis que mande vir a vossa liteira, Princesa? Está uma bela noite no jardim. 
  
SALOMÉ 
  
Ele diz coisas monstruosas acerca da minha mãe, não é verdade? 
  
SEGUNDO SOLDADO 
  
Nós não sabemos o que ele diz, Princesa. 
  
SALOMÉ 
  
Sim, diz coisas monstruosas acerca dela; 
  
Entra um ​ESCRAVO 
  
Princesa, o Tetrarca pede­vos que regresseis ao festim. 
  
SALOMÉ 
  
Não irei. 
  
O JOVEM SÍRIO 
  
Perdoai­me, Princesa, mas se não voltardes poderá acontecer alguma desgraça. 
  
36 
  
SALOMÉ 
  
É velho, o profeta? 
  
O JOVEM SÍRIO 
  
Princesa, seria melhor voltardes. Permiti­me que vos acompanhe. 
  
SALOMÉ 
  
O profeta... é velho? 
  
PRIMEIRO SOLDADO 
  
Não, Princesa, é ainda bastante novo. 
  
SEGUNDO SOLDADO 
  
Não se sabe. Há quem diga que ele é Elias. 
  
SALOMÉ 
  
Quem é Elias? 
  
SEGUNDO SOLDADO 
  
Um profeta muito antigo desta terra, Princesa. 
  
O ESCRAVO 
  
Que resposta devo dar ao Tetrarca da parte da Princesa? 
  
A VOZ DE IOKANAAN 
  
Não te regoziges, terra da Palestina, por se ter quebrado a vergasta daquele que te batia. Pois                                 
da raça da serpente brotará um basilisco, e o que deste nascer devorará as aves. 
  
37 
 
SALOMÉ 
  
Que estranha voz! Gostaria de falar com ele. 
  
PRIMEIRO SOLDADO 
  
Receio que seja impossível, Princesa. O Tetrarca não quer que ninguém lhe fale. Até proibiu                             
o Sumo Sacerdote de lhe falar. 
  
SALOMÉ 
  
Eu quero falar com ele. 
  
PRIMEIRO SOLDADO 
  
É impossível, Princesa. 
  
SALOMÉ 
  
Eu quero. 
  
O JOVEM SÍRIO 
  
Princesa, seria melhor voltardes para o banquete. 
  
SALOMÉ 
  
Trazei­me o profeta. 
  
Sai ​o ​ESCRAVO 
  
PRIMEIRO SOLDADO 
  
Não nos atrevemos, Princesa. 
  
SALOMÉ  ..;  .  ’.  ;;, 
  
Aproximando­se da cisterna e olhando lá para dentro 
  
Tão escuro que está lá em baixo! Deve ser terrível estar num buraco tão negro! Parece umtúmulo... ​(Para os ​SOLDADOS): Não me ouvistes? Trazei­me o profeta. Quero vê­lo. 
  
SEGUNDO SOLDADO 
  
Princesa, imploro­vos que não nos exijais isso. 
  
SALOMÉ 
  
Fazeis­me esperar? 
  
PRIMEIRO SOLDADO 
  
Princesa, as nossas vidas pertencem­vos, mas não podemos fazer o que nos pedis... Na                           
verdade, não é a nós que o deveis pedir. 
  
SALOMÉ 
  
Olhando para o ​JOVEM SÍRIO 
  
Ato! 
  
O PAJEM DE HERODIAS 
  
Oh! O que irá acontecer? Tenho a certeza de que acontecerá uma desgraça. 
  
38 
  
SALOMÉ 
Aproximando­se do ​JOVEM SÍRIO • 
  
Fareis isso por mim, não é verdade, Narraboth? Fareis isso por mim. Eu sempre fui simpática                               
para vós. Fá­lo­eis por mim, não é verdade? Eu só quero olhar para esse estranho profeta.                               
Falam tanto dele... ouvi várias vezes o Tetrarca falar acerca dele. Eu acho que o Tetrarca o                                 
teme. Tenho a certeza de que o teme. Será que vós, também vós, o temeis, Narraboth? 
  
O JOVEM SÍRIO 
  
Eu não o temo, Princesa. Não temo ninguém. Mas o Tetrarca proibiu expressamente que se                             
levantasse a tampa deste poço. 
  
SALOMÉ  ’.,., > 
  
Fareis isso por mim, Narraboth, e amanhã, quando eu passar na minha liteira pelo portão dos                               
vendedores de ídolos, deixarei cair para vós uma pequena flor, uma pequena flor verde. 
  
O JOVEM SÍRIO 
  
Princesa, não posso, não posso. ? ! > 
  
SALOMÉ 
Sorrindo 
  
Fareis isso por mim, Narraboth. Sabeis que o fareis por mim. E amanhã, quando eu passar na                                 
minha liteira pela ponte dos compradores de ídolos, olharei para vós através 
  
40 
 
dos véus de musselina, olharei para vós, Narraboth, talvez até vos sorria. Olhai para mim,                             
Narraboth, olhai para mim. Ah! Sabeis que ireis fazer o que vos peço. Sabei­lo bem... não é                                 
verdade?... Eu sei que o fareis. 
  
O JOVEM SÍRIO 
  
Fazendo sinal ao ​TERCEIRO SOLDADO 
  
Trazei o profeta... A Princesa Salomé deseja vê­lo. 
  
SALOMÉ 
  
Ah! 
  
O PAJEM DE HERODIAS 
  
Oh! Que estranho aspecto tem a Lua. Dir­se­ia a mão de uma mulher morta tentando                             
cobrir­se com uma mortalha. 
  
O JOVEM SÍRIO 
  
Tem um aspecto muito estranho! Dir­se­ia uma princesinha com olhos de âmbar. Através de                           
nuvens de musselina ela sorri como uma princesinha. 
  
O profeta sai da cisterna. ​SALOMÉ ​olha para ele e recua 
  
IOKANAAN 
  
Onde está aquele cujo cálice de abominações já está repleto? Onde está aquele que, envolto                             
em vestes de prata, morrerá um dia diante de todo o povo? Dizei­lhe que venha, 
  
43 
 
para que possa ouvir a voz daquele que já clamou nos desertos e nas casas dos reis. 
  
SALOMé 
  
De quem fala ele? 
  
o jovem sírio 
  
Nunca soube, Princesa. 
  
IOKANAAN 
  
Onde está aquela que, tendo visto imagens de homens pintadas na muralha, imagens a cores                             
dos Caldeus, se entregou à luxúria do olhar e enviou embaixadores à Caldeia? 
  
SALOMÉ ’ 
  
É da minha mãe que ele fala. 
  
O JOVEM SÍRIO 
  
Não, Princesa; 
  
SALOMé 
  
; Sim, é da minha mãe. 
  
IOKANAAN 
  
Onde está aquela que se entregou aos Capitães dos Assírios, que usam cinturões sobre os rins                               
e tiaras de diversas cores na cabeça? Onde está aquela que se entregou aos 
  
44 
  
jovens do Egipto, que se vestem de linho e jacinto, usam escudos de ouro, capacetes de prata,                                 
e têm corpos volumosos? Dizei­lhe que se levante do leito da sua lascívia, do seu leito                               
incestuoso, para que possa ouvir as palavras daquele que prepara o caminho do Senhor, para                             
que se possa arrepender dos seus pecados. Mesmo que ela nunca se arrependa e persista nas                               
suas abominações, dizei­lhe que venha, pois o Senhor tem o azorrague na mão. 
  
SALOMÉ 
  
Ele é terrível, ele é terrível! 
  
O JOVEM SÍRIO 
  
Não fiqueis aqui, Princesa, imploro­vos. 
  
SALOMÉ 
  
Os olhos, sobretudo, é que são terríveis. Dir­se­iam buracos negros feitos por archotes numa                           
tapeçaria de Tiro. Dir­se­iam cavernas negras onde habitam dragões, as cavernas negras do                         
Egipto que são covil dos dragões. Dir­se­iam lagos negros perturbados por luas fantásticas...                         
Achais que ele falará de novo? 
  
O JOVEM SÍRIO 
  
Não fiqueis aqui, Princesa! Peço­vos que não fiqueis aqui. 
  
SALOMÉ 
  
Que magro que ele está! Parece uma delgada estatueta de marfim. Dir­se­ia uma imagem de                             
prata. Tenho a cer­ 
  
45 
 
teza de que é casto como a Lua. Parece um raio de prata. A sua carne deve ser fria como o                                           
marfim... Quero vê­lo de perto. 
  
O JOVEM SÍRIO 
  
Não, não, Princesa. 
  
SALOMÉ 
  
Tenho de o ver de perto. 
  
O JOVEM SÍRIO 
  
Princesa! Princesa! 
  
IOKANAAN 
  
Quem é esta mulher que está a olhar para mim? Não quero que ela me olhe. Porque me olha                                     
com os seus olhos de ouro sob pálpebras douradas? Não sei quem é. Nem quero saber.                               
Dizei­lhe que se vá. Não é com ela que quero falar. 
  
SALOMÉ 
  
Sou Salomé, filha de Herodias, Princesa da Judeia. 
  
IOKANAAN 
  
Para trás! Filha da Babilónia! Não vos aproximeis do eleito do Senhor. A tua mãe encheu a                                 
terra com o vinho das suas iniquidades, e o clamor dos seus pecados chegou aos ouvidos de                                 
Deus. 
  
46 
  
SALOMÉ   
  
Fala de novo, Iokanaan. A tua voz inebria­me. 
  
O JOVEM SÍRIO 
  
Princesa! Princesa! Princesa! 
  
SALOMÉ 
  
Fala de novo! Fala de novo, Iokanaan, e diz­me o que devo fazer. 
  
IOKANAAN 
  
Não vos aproximeis, filha de Sodoma. Cobri antes o rosto com um véu, espalhai cinzas sobre                               
a cabeça, e ide para o deserto procurar o filho do Homem. 
  
SALOMÉ 
  
; Quem é ele, o filho do Homem? É tão belo como tu, Iokanaan? 
  
IOKANAAN 
  
Para trás! Para trás! Eu ouço no palácio o bater das asas do anjo da morte. 
  
O JOVEM SÍRIO 
  
Princesa, peço­vos que volteis para dentro. 
  
47 
 
IOKANNAN 
  
Anjo do Senhor, que fazes aqui com a tua espada? Quem procuras neste palácio imundo? O                               
dia daquele que morrerá vestido de prata ainda não chegou. 
  
SALOMÉ 
  
Iokanaan! 
  
Iokanaan 
  
Quem fala? 
  
SALOMÉ 
  
Iokanaan! Estou enamorada do teu corpo. O teu corpo é branco como os lírios de um campo                                 
que nunca foi ceifado por um ceifeiro. O teu corpo é branco como as neves que cobrem as                                   
montanhas da Judeia e descem para os vales. As rosas do jardim da Rainha da Arábia não são                                   
tão brancas como o teu corpo. Nem as rosas do jardim da Rainha da Arábia, nem os pés da                                     
aurora que pisam as folhas, nem o seio da lua quando se reclina sobre o seio do mar... Não há                                       
nada no mundo tão branco como o teu corpo. Deixa­me tocar o teu corpo! 
  
IOKANAAN 
  
Para trás, filha da Babilónia! Foi através da mulher que o mal entrou no mundo. Não faleis                                 
comigo. Não te quero ouvir. Eu só ouço as palavras do Senhor. 
  
48 
  
SALOMÉ 
  
O teu corpo é hediondo. É como o corpo de um leproso. É como um muro de argamassa por                                     
onde se arrastaram víboras, um muro de argamassa onde osescorpiões fizeram ninho. É                           
como um sepulcro caiado e cheio de coisas repelentes. É horrível, o teu corpo é horrível! É                                 
dos teus cabelos que estou enamorada, Iokanaan. Os teus cabelos parecem cachos de uvas,                           
cachos de uvas negras que pendem das vinhas de Edom na terra dos Edomitas. Os teus                               
cabelos são como os cedros do Líbano, os grandes cedros do Líbano que dão sombra aos                               
leões e aos ladrões que se querem esconder durante o dia. As longas noites negras, as noites                                 
em que a lua não se mostra, em que as estrelas têm medo, não são tão negras. O silêncio que                                       
paira na floresta não é tão negro. Não há nada no mundo tão negro como os teus cabelos...                                   
Deixa­me tocar os teus cabelos. 
  
IOKANAAN 
  
Para trás, filha de Sodoma! Não me toqueis. Não se deve profanar o templo do Senhor. 
  
SALOMÉ 
  
Os teus cabelos são horríveis. Estão cobertos de lama e de pó. Dir­se­iam uma coroa de                               
espinhos que te colocaram na fronte. Dir­se­iam um nó de serpentes negras enroscadas em                           
redor do teu pescoço. Não gosto dos teus cabelos... É da tua boca que estou enamorada,                               
Iokanaan. A tua boca é como uma faixa escarlate numa torre de marfim. As flores de                               
romanzeira que florescem no jardim de Tiro e são mais vermelhas do que as rosas, não são                                 
tão vermelhas. Os 
  
49 
 
clangores vermelhos das trombetas que anunciam a chegada dos reis e causam medo ao                           
inimigo, não são tão vermelhos. A tua boca é mais vermelha do que os pés daqueles que                                 
pisam o vinho nos lagares. É mais vermelha do que os pés das pombas que habitam os                                 
templos e são alimentadas pelos sacerdotes. É mais vermelha do que os pés daquele que vem                               
da floresta onde matou um leão e viu tigres dourados. A tua boca é como um ramo de coral                                     
que os pescadores encontraram no crepúsculo do mar, e que guardam para os reis...! É como                               
o vermelhão que os Moabitas encontram nas minas de Moab e de que os reis se apoderam. É                                   
como o arco do Rei dos Persas, pintado de vermelhão e com pontas de coral. Não há nada no                                     
mundo tão vermelho como a tua boca... Deixa­me beijar a tua boca. 
  
IOKANAAN 
  
Nunca, filha da Babilónia! Filha de Sodoma! Nunca. 
  
SALOMÉ 
  
Hei­de beijar a tua boca, Iokanaan. Hei­de beijar a tua boca. 
  
O JOVEM SÍRIO ’ 
  
Princesa, princesa, tu que és como um ramo de mirra, tu que és a pomba de todas as pombas,                                     
não olhes para este homem, não olhes para ele! Não lhe digas essas coisas. Não consigo                               
suportá­las... Princesa, Princesa, não digas essas coisas. 
  
50 
 
SALOMÉ 
  
Hei­de beijar ​a tua boca, Iokanaan. 
  
O JOVEM SÍRIO 
  
Ah! 
  
Mata­se e cai entre ​SALOME ​e ​IOKANAAN 
  
O PAJEM DE HERODIAS 
  
O jovem Sírio matou­se! O jovem Capitão matou­se! Matou­se aquele que era meu amigo!                           
Eu tinha­lhe dado uma caixinha de perfumes e brincos de prata, e agora ele matou­se! Ah,                               
não previu ele que alguma desgraça ia acontecer?... Eu também o previ, e aconteceu. Eu bem                               
sabia que a Lua andava à procura de um morto, mas não sabia que era a ele que procurava.                                     
Ah! Porque não o escondi eu da Lua? Se o tivesse escondido numa caverna, ela não o teria                                   
visto. 
  
PRIMEIRO SOLDADO 
  
Princesa, o jovem capitão acabou de se matar. 
  
SALOMÉ 
  
Deixa­me beijar a tua boca, Iokanaan. 
  
IOKANAAN 
  
Não tendes medo, filha de Herodias? Não vos disse que ouvira no palácio o bater das asas do                                   
anjo da morte, e o anjo não veio? 
  
53 
 
SALOMÉ 
  
Deixa­me beijar a tua boca. ? 
  
IOKANAAN 
  
Filha do adultério, só há um homem que te pode salvar. É aquele de que te falei. Vai                                   
procurá­Lo. Ele está num barco no mar da Galileia falando com os discípulos. Ajoelhai­vos                           
na margem, e chamai­O pelo nome. Quando Ele vier até vós, e Ele vem sempre que O                                 
chamam, rojai­vos a Seus pés e pedi­Lhe a remissão dos vossos pecados. 
  
;, SALOMÉ 
  
Deixa­me beijar a tua boca. 
  
IOKANAAN 
  
Maldita sejas! Filha de uma mãe incestuosa, maldita sejas! 
  
SALOMÉ 
  
Hei­de beijar a tua boca, Iokanaan. 
  
IOKANAAN 
  
Não quero olhar para ti. Não olharei para ti. Tu estás amaldiçoada, Salomé, tu estás                             
amaldiçoada! 
  
Desce para dentro da cisterna 
  
SALOMÉ 
  
Hei­de beijar a tua boca, Iokanaan. Hei­de beijar a tua boca. 
  
54 
 
PRIMEIRO SOLDADO 
  
Temos de levar o cadáver para outro sítio. O Tetrarca não gosta de ver cadáveres, a não ser os                                     
daqueles que ele próprio matou. 
  
O PAJEM DE HERODIAS 
  
Ele era meu irmão, mais até do que um irmão. Dei­lhe uma caixinha de perfumes e um anel                                   
de ágata que ele trazia sempre no dedo. À noite costumávamos passear junto do rio, por entre                                 
as amendoeiras, e ele contava­me coisas da sua terra. Falava sempre muito baixo. O som da                               
sua voz fazia lembrar o som da flauta de um tocador de flauta. Ele gostava também de se                                   
contemplar nas águas do rio. Eu costumava repreendê­lo por isso. 
  
SEGUNDO SOLDADO 
  
Tendes razão, temos de esconder o cadáver. O Tetrarca não pode vê­lo. 
  
PRIMEIRO SOLDADO 
  
O Tetrarca não virá até aqui. Ele nunca vem ao terraço. Tem demasiado medo do profeta. 
  
Entram ​HERODES, HERODIAS ​e toda a ​CORTE 
  
HERODES 
  
Onde está Salomé? Onde está a Princesa? Porque é que não voltou para o banquete, como lhe                                 
ordenei? Ah! Ali está ela! 
  
57 
  
HERODIAS 
  
Não deveis olhar para ela! Estais sempre a olhar para ela! ­ 
  
HERODES 
  
A Lua tem um ar muito estranho esta noite. Não tem um ar estranho? Dir­se­ia uma mulher                                 
louca, uma mulher louca à procura de amantes por todo o lado. E está nua. Está                               
completamente nua. As nuvens estão a tentar cobri­la, mas ela não quer. Cambaleia através                           
das nuvens como uma mulher embriagada... Tenho a certeza de que anda à procura de                             
amantes. Não cambaleia como uma mulher embriagada? Parece uma mulher louca, não é? 
  
,   HERODIAS 
  
Não. A Lua parece­se com a Lua, mais nada. Voltemos para dentro. Não tendes nada para                               
fazer aqui, 
  
HERODES 
  
Vou ficar aqui! Manasses, estendei carpetes aqui. Acendei os archotes. Trazei as mesas de                           
marfim e as mesas de jaspe. O ar aqui está delicioso. Vou beber vinho com os meus                                 
convidados. Devemos fazer todas as honras aos embaixadores de César. 
  
HERODIAS 
  
Não é por causa deles que ficais. 
  
58 
  
HERODES 
  
Sim, o ar está delicioso. Vinde, Herodias, os nossos convidados aguardam­nos. Ah!                       
Escorreguei! Escorreguei em sangue! É um mau presságio. É um péssimo presságio. Por que                           
razão há aqui sangue? E este cadáver, o que faz ele aqui? Pensais que soucomo o Rei do                                     
Egipto, que sempre que dá uma festa mostra um cadáver aos seus convidados? De quem é,                               
afinal? Não quero olhar para ele. 
  
PRIMEIRO SOLDADO 
  
É o nosso Capitão, Senhor. É o jovem Sírio que vós nomeastes Capitão há apenas três dias. 
  
HERODES 
  
Não dei ordens para o matarem. 
  
SEGUNDO SOLDADO 
  
Ele suicidou­se, Senhor. 
  
HERODES 
  
Porquê? Eu tinha­o feito Capitão. 
  
SEGUNDO SOLDADO 
  
Não sabemos, Senhor. Mas ele matou­se. 
  
HERODES 
  
Acho estranho. Pensava que só os filósofos romanos se matavam. Não é verdade, Tigelino,                           
que em Roma os filósofos se matam? 
  
59 
 
TIGELINO 
  
Alguns matam­se, Senhor. São os Estóicos. São gente muito grosseira. Enfim, são gente                         
ridícula. Eu considero­os perfeitamente ridículos. 
  
HERODES 
  
Eu também. É ridículo uma pessoa matar­se. 
  
TIGELINO 
  
Riem­se muito deles, em Roma. O Imperador escreveu um poema satírico contra eles. É                           
recitado em todo o lado. 
  
HERODES 
  
Ah! Escreveu um poema satírico contra eles? César é maravilhoso. Consegue fazer tudo... É                           
estranho o jovem Sírio ter­se suicidado. Tenho pena. Tenho muita pena, porque ele era belo.                             
Era mesmo muito belo. Tinha uns olhos muito lânguidos. Lembro­me de o ver olhar                           
languidamente para Salomé. Com efeito, até me pareceu que olhava demasiado para ela. 
  
HERODIAS 
  
Há outros que também olham demasiado para ela. 
  
HERODES 
  
O pai dele era Rei. Eu expulsei­o do seu reino. E vós, Herodias, fizestes da mãe dele, que era                                     
Rainha, uma escrava. Por isso ele estava aqui como um hóspede. Foi esse o 
  
60 
 
motivo por que o nomeei Capitão. Tenho pena de que tenha morrido. Mas porque deixastes o                               
corpo aqui? Tendes de o levar para outro lado. Não quero vê­lo... Levem­no. ​(Levam o                             
cadáver.) ​Está frio aqui. Há vento aqui. Não é verdade que há vento? 
  
HERODIAS 
  
Não, não há vento. 
  
HERODES 
  
Há vento, sim... E ouço no ar algo que parece um bater de asas, um bater de asas gigantescas.                                     
Não ouvis? 
  
HERODIAS 
  
Não ouço nada. 
  
HERODES 
  
Também já não ouço. Mas ouvi. Sem dúvida que era o vento. Já passou. Não, não, ouço de                                   
novo. Não ouvis? É tal e qual um bater de asas. 
  
HERODIAS 
  
Digo­vos que não há nada. Estais doente. Voltemos para dentro. 
  
HERODES 
  
Não estou doente. A vossa filha é que está. Tem um ar muito doentio, a vossa filha. Nunca a                                     
vi tão pálida. 
  
63 
 
HERODIAS 
  
Já vos disse que não olheis para ela. 
  
HERODES 
  
Deitai­me vinho. ​(Trazem vinho.) ​Salomé, vinde beber um pouco de vinho comigo. Tenho                         
aqui um vinho raro. Foi o próprio César que mo mandou. Molhai nele os vossos lábios                               
vermelhos, e eu depois esvaziá­lo­ei. 
  
SALOMÉ 
  
Não tenho sede, Tetrarca. 
  
HERODES 
  
Ouvis como ela me responde, a vossa filha? 
  
HERODIAS 
  
,. Acho que ela tem razão. Porque estais sempre a ​olhar p​ara ela? ?  ,/ ^ 
  
HERODES 
  
Trazei­me fruta. ​(Trazem fruta.) ​Salomé, vinde comer fruta comigo. Adoro ver a marca dos                           
vossos dentinhos num fruto. Mordei um pequeno pedaço deste fruto e eu depois comerei o                             
resto. 
  
SALOMÉ 
  
. Não tenho fome, Tetrarca. 
  
HERODES 
  
para HERODIAS 
  
Vede ​como educastes a vossa filha. 
  
HERODIAS 
  
A minha filha e eu descendemos de uma família real. Quanto a ti, o teu avô era um guardador                                     
de camelos! E era também um salteador! 
  
HERODES 
  
Mentes! 
  
HERODIAS 
  
Sabes bem ​que ​é verdade. 
  
..’..(. HERODES 
  
Salomé, vem sentar­te ao pé de mim. Dar­te­ei o trono da tua mãe. 
  
SALOMÉ 
  
Não estou cansada, Tetrarca. 
  
HERODIAS 
  
Vedes o que ela pensa de vós. 
  
64 
  
HERODES 
  
Trazei­me ­ o que quero eu? Não sei. Ah! Ah! Já me lembro... 
  
A VOZ DE IOKANAAN 
  
Eis que chegou o tempo! Aquilo que eu previ já aconteceu, diz o Senhor. Eis o dia de que eu                                       
falava. 
  
HERODIAS 
  
Mandai­o calar. Não quero ouvir a sua voz. Este homem está sempre a vomitar insultos                             
contra mim. 
  
HERODES 
  
Ele não disse nada contra vós. Além disso, é um grande profeta. 
  
HERODIAS 
  
Não acredito em profetas. Alguém pode dizer o que se vai passar? Ninguém sabe. Além do                               
mais, está sempre a insultar­me. Mas eu acho que tendes medo dele... Sei muito bem que                               
tendes medo dele. 
  
HERODES 
  
Não tenho medo dele. Não tenho medo de ninguém. 
  
HERODIAS 
  
Digo­vos que tendes medo dele. Se não tivésseis medo, porque não o entregaríeis aos Judeus,                             
que há seis meses o reclamam? 
  
66 
  
UM judeu 
  
Na verdade, Senhor, seria melhor entregá­lo a nós. 
  
HERODES 
  
Nem mais uma palavra sobre esse assunto. Já vos dei a minha resposta. Não o entregarei a                                 
vós. É um homem que viu Deus. 
  
UM JUDEU 
  
Isso é impossível. Ninguém viu Deus depois do profeta Elias. Ele foi o último a ver Deus.                                 
Nos nossos dias Deus não se mostra. Ele esconde­se. É por isso que grandes males caíram                               
sobre esta terra. 
  
OUTRO JUDEU 
  
Na verdade, ninguém sabe se o profeta Elias realmente viu Deus. Ele pode ter visto apenas a                                 
sombra de Deus. 
  
UM TERCEIRO JUDEU 
  
Deus nunca se esconde. Ele mostra­se em todos os momentos e em todas as coisas. Ele está                                 
presente no mal, tal como no bem. 
  
UM QUARTO JUDEU 
  
Isso não se diz. É uma ideia muito perigosa. É uma ideia que vem das escolas de Alexandria,                                   
onde se ensina a filosofia grega. E os gregos são pagãos. Nem sequer são circuncidados. 
  
67 
 
UM QUINTO JUDEU 
  
Ninguém sabe como Deus opera, os seus caminhos são misteriosos. Talvez aquilo a que                           
chamamos mal seja o bem, e aquilo a que chamamos bem seja o mal. Nada se sabe. Temos é                                     
que nos submeter a tudo. Deus é muito forte. Ele esmaga os fracos e os fortes. Não poupa                                   
ninguém. 
  
O PRIMEIRO JUDEU 
  
Isso é verdade. Deus é terrível. Esmaga os fracos e os fortes como quem esmaga trigo num                                 
almofariz. Mas este homem nunca viu Deus. Ninguém viu Deus desde o profeta Elias. 
  
HERODIAS 
  
Mandai­os Calar. Eles aborrecem­me. 
  
HERODES 
  
Mas já ouvi dizer que Iokanaan é o ​vosso profeta Elias, 
  
UM JUDEU 
  
Não pode ser. Já passaram mais de trezentos anos desde o tempo do profeta Elias. 
  
HERODES 
  
Há quem diga que ele é o profeta Elias. 
  
UM NAZARENO 
  
Eu tenho a certeza de que ele é o profeta Elias. 
  
68 
  
UM JUDEU 
  
Não, não ​é ​o profeta Elias. 
  
A VOZ DE IOKANAAN 
  
Chegou o dia, o dia do Senhor, e ouço sobre as montanhas os pés d’Aquele que será o                                   
Salvador do mundo. 
  
HERODES 
  
O que significa isso, o Salvador do mundo? 
  
TIGELINO 
  
É um título de César. 
  
HERODES 
  
Mas César não vem à Judeia. Ainda ontem recebi cartas de Roma. Não traziam nada a esse                                 
respeito. E vós, Tigelino, que estivestes em Roma durante o Inverno, não ouvistes nada a esserespeito, pois não? 
  
TIGELINO 
  
De facto, não ouvi falar disso, Senhor. Eu estava só a explicar o título. É um dos títulos de                                     
César. 
  
HERODES 
  
Mas César não pode vir. Ele sofre de gota. Dizem que tem pés de elefante. E há também                                   
razões de Estado. Aquele que deixa Roma, perde Roma. Ele não virá. No entanto, ele é                               
soberano, virá se quiser. Mas penso que não virá. 
  
69 
 
PRIMEIRO NAZARENO 
  
Não era de César que o profeta falava, Senhor 
  
HERODES 
  
Não era de César? 
  
PRIMEIRO NAZARENO 
  
Não, Senhor. 
  
HERODES 
  
De quem é que ele falava, então? 
  
PRIMEIRO NAZARENO 
  
Do Messias que já veio. 
  
UM JUDEU 
  
O Messias não veio. 
  
PRIMEIRO NAZARENO 
  
Ele já veio, e faz milagres por todo o lado. 
  
HERODIAS 
  
Oh! Oh! Milagres! Não acredito em milagres. Já vi demasiados. ​(Para o ​PAJEM): O meu                             
leque! 
  
PRIMEIRO NAZARENO 
  
Este homem faz verdadeiros milagres. Assim, numas bodas que tiveram lugar numa pequena                         
cidade da Galileia, 
  
70 
  
uma cidade bastante importante, Ele transformou a água em vinho. Umas pessoas que                         
estavam lá contaram­me. E também curou dois leprosos que estavam sentados em frente da                           
porta de Cafernaum, pelo simples facto de lhes tocar. 
  
SEGUNDO NAZARENO 
  
Não, eram cegos os que ele curou. 
  
PRIMEIRO NAZARENO 
  
Não, eram leprosos. Mas também curou cegos, e foi visto no alto de uma montanha a falar                                 
com anjos. 
  
UM SADUCEU 
  
Não existem anjos. 
  
UM FARISEU 
  
Os anjos existem, mas não acredito que este Homem tenha falado com eles. 
  
PRIMEIRO NAZARENO 
  
Foi visto por uma multidão a falar com anjos. 
  
UM SADUCEU 
  
Com anjos não. 
  
HERODIAS 
  
Como estes homens me cansam! São ridículos! São completamente ridículos. ​(Para o                       
PAJEM): Então, o meu leque! ​(O ​PAJEM ​dá­lhe o leque.) ​Tendes ar de sonhador. 
  
71 
 
Não deveis sonhar. Os sonhadores são doentes. ​{Bate no ​PAJEM ​com o leque.) 
  
SEGUNDO NAZARENO 
  
Há também o milagre da filha de Jairo. 
  
PRIMEIRO NAZARENO 
  
Sim, esse é verdadeiro. Ninguém o ​pode negar. 
  
HERODIAS 
  
Estes homens estão loucos. Olharam ​demasiado para a ​Lua. Ordenai­lhes que se calem. 
  
HERODES 
  
Que milagre é esse, da filha de Jairo? 
  
PRIMEIRO NAZARENO 
  
A filha de Jairo estava morta. Ele ressuscitou­a. 
  
HERODES 
  
Ele ressuscita os mortos? 
  
PRIMEIRO NAZARENO 
  
Sim, Senhor, ele ressuscita os mortos. 
  
HERODES 
  
Eu não quero que Ele faça isso. Proíbo­O de o fazer. Não permito que ressuscitem os mortos.                                 
Têm de encontrar 
  
72 
  
esse Homem e dizer­lhe que O proíbo de ressuscitar os mortos. Onde está esse Homem                             
agora? 
  
SEGUNDO NAZARENO 
  
Ele está em todo o lado, Senhor, mas é difícil encontrá­Lo. 
  
PRIMEIRO NAZARENO 
  
;   Dizem que agora está em Samaria. 
  
UM JUDEU 
  
Vê­se bem que não é o Messias, se está em Samaria. Não é aos Samaritanos que o Messias                                   
há­de aparecer. Os Samaritanos estão amaldiçoados. Eles nunca trazem oferendas ao Templo. 
  
SEGUNDO NAZARENO 
  
Ele saiu de Samaria há alguns dias. Penso que neste momento está nos arredores de                             
Jerusalém. 
  
PRIMEIRO NAZARENO 
  
Não, não está lá. Acabo de chegar de Jerusalém. Há dois meses que não têm notícias d’Ele. 
  
HERODES 
  
Não interessa! Têm de O encontrar e dizer­Lhe da minha parte que não permito que                             
ressuscite os mortos. Transformar a água em vinho, curar os leprosos e os cegos... pode fazer                               
tudo isso, se quiser. Não me oponho. Na verdade até 
  
73 
 
acho uma boa acção curar os leprosos. Mas não permito que ressuscite os mortos... Seria                             
terrível, se os mortos voltassem. 
  
A VOZ DE IOKANAAN 
  
Ah, a lasciva! A prostituta! Ah! A filha da Babilónia com olhos de ouro e pálpebras                               
douradas! Eis o que diz o Senhor. Que o povo agarre em pedras e lhas atire... 
  
HERODIAS 
  
Mandai­o calar. 
  
A VOZ DE IOKANAAN 
  
Que os capitães de guerra a trespassem com as espadas e a esmaguem sob os escudos. 
  
HERODIAS 
  
Mas é infame! 
  
A VOZ DE IOKANAAN 
  
É assim que abolirei os crimes da face da terra, e as* mulheres aprenderão a não imitar as                                   
suas abominações. 
  
HERODIAS 
  
Estais a ouvir o que ele diz contra mim? Deixais ​que ele ​injurie a vossa esposa? 
  
74 
  
HERODES 
  
Mas ele não pronunciou ​o vosso ​nome. 
  
HERODIAS 
  
Que importa? Sabeis que é a mim ​que procura injuriar. ​E eu sou vossa esposa, não sou? 
  
HERODES 
  
Sim, cara e nobre Herodias, sois minha esposa, ​e ​começastes por ser a esposa de meu irmão. 
  
HERODIAS 
  
Fostes vós que me arrancastes dos seus braços. 
  
HERODES 
  
Na verdade, eu era o mais forte... mas não falemos disso. Não desejo falar disso. É essa a                                   
causa das terríveis palavras que o profeta proferiu. Se calhar por essa razão vai acontecer uma                               
desgraça. Não falemos disso. Nobre Herodias, não nos estamos a lembrar dos nossos                         
convidados. Dá­me de beber, minha bem­amada. Enchei de vinho as grandes taças de prata e                             
as grandes taças de cristal. Vou beber à saúde de César. Há aqui Romanos, temos de beber à                                   
saúde de César. 
  
TODOS 
  
César! César! 
  
75 
 
HERODES 
  
Não vedes a vossa filha, como está pálida? 
  
HERODIAS 
  
Que vos interessa se ela está pálida ou não? 
  
HERODES 
  
Nunca a vi tão pálida! 
  
HERODIAS 
  
Não deveis olhar para ela. 
  
A VOZ DE IOKANAAN 
  
Nesse dia o Sol ficará negro como um saco feito de pêlo, a Lua ficará da cor do sangue, as                                       
estrelas do céu cairão sobre a Terra como figos maduros caindo da figueira, e os reis da Terra                                   
terão medo. 
  
HERODIAS 
  
Ah! Ah! Eu gostava de ver o dia de que ele fala, em que a Lua ficará da cor do sangue e as                                             
estrelas cairão sobre a Terra como figos maduros. Este profeta fala como um bêbedo... Mas                             
não consigo suportar o som da sua voz. Mandai­o calar. 
  
HERODES 
  
Não. Não compreendo o que ele diz, mas pode ser um presságio. 
  
76 
  
HERODIAS 
  
Não acredito em presságios. Ele fala como um bêbedo, 
  
HERODES 
  
Talvez esteja embriagado com o vinho de Deus. 
  
HERODIAS 
  
Que vinho é esse, o vinho de Deus? Em que vinhas é colhido? Em que lagar pode ser                                   
encontrado? 
  
ERODES 
  
Daqui em diante olhando sempre para ​SALOMÉ Tigelino, da última vez que estivestes em                           
Roma, o Imperador falou­vos a respeito de... 
  
TIGELINO 
  
A respeito de quê, Senhor? 
  
HERODES 
  
A respeito de quê? Ah! Fiz­vos uma pergunta, não fiz? Esqueci­me do que ia perguntar. 
  
HERODIAS 
  
Estais de novo a olhar para a minha filha. Não deveis olhar para ela. Eu já disse isso. 
  
HERODES 
  
Não dizeis outra coisa. 
  
77 
  
HERODIAS 
 
Digo­o de novo. 
  
HERODES 
  
E a restauração do Templo, de que tanto têm falado? Irão fazer alguma coisa? Dizem que o                                 
véu do Santuário desapareceu, não dizem? 
  
HERODIAS 
  
Foste tu que o tiraste. Estás a falar ao acaso. Eu não quero ficar aqui. Vamos para dentro. 
  
HERODESSalomé, dançai para mim. 
  
HERODIAS 
  
Não quero que ela dance. 
  
SALOMÉ 
  
Não tenho vontade de dançar, Tetrarca. 
  
HERODES 
  
Salomé, filha de Herodias, dançai para mim. 
  
HERODIAS 
  
Deixai­a em paz. 
  
78 
  
HERODES 
  
Ordeno­vos que danceis, Salomé. 
  
SALOMÉ 
  
Não danço, Tetrarca. 
  
HERODIAS 
Rindo 
  
Eis como ela vos obedece. 
  
HERODES 
  
Que me importa que ela dance ou não? É­me indiferente. Esta noite estou feliz, muito feliz.                               
Nunca estive tão feliz. 
  
PRIMEIRO SOLDADO 
  
O Tetrarca tem um ar sombrio. Não tem um ar sombrio? 
  
SEGUNDO SOLDADO 
  
Sim, tem um ar sombrio. 
  
HERODES 
  
Porque não havia eu de estar feliz? César, que é o senhor do mundo, que é o senhor de todas                                       
as coisas, gosta de mim. Ainda agora me mandou presentes de grande valor. Além disso,                             
prometeu­me chamar a Roma o Rei da Capadócia, que é meu inimigo. Até pode ser que o                                 
crucifique em Roma. César pode fazer tudo o que quiser. Na verdade, ele 
  
79 
 
é o Senhor. Por isso, como vêem, tenho o direito de estar feliz. De facto, estou feliz. Nunca                                   
estive tão feliz. Nada no mundo pode estragar a minha felicidade. 
  
A VOZ DE IOKANAAN 
  
Ele estará sentado no trono. Estará vestido de púrpura e escarlate. Na mão terá uma taça de                                 
ouro cheia com as suas blasfémias. E o anjo do Senhor feri­lo­á. Será devorado pelos vermes. 
  
HERODIAS 
  
Ouvis o que ele diz de vós? Diz que sereis comido pelos vermes. 
  
.; HERODES 
  
Não é de mim que ele fala. Ele nunca fala contra mim. É do Rei da Capadócia que ele fala, do                                         
Rei da Capadócia, que é meu inimigo. Ele é que será comido pelos vermes. Eu não. Nunca                                 
dirigiu uma palavra contra mim, o profeta, excepto que fiz mal em tomar para esposa a                               
esposa de meu irmão. Talvez ele tenha razão. Afinal, sois estéril. 
  
HERODIAS 
  
Sou estéril, eu? Dizeis isso, vós que estais sempre a olhar para a minha filha, vós que queríeis                                   
que ela dançasse para vosso prazer? É ridículo dizer isso. Eu tive uma filha. Vós nunca                               
tivestes filhos, nem sequer das vossas escravas. Vós é que sois estéril, e não eu. 
  
80 
  
HERODES   
  
Calai­vos! Eu digo que sois estéril. Não me destes filhos, e o profeta diz que o nosso                                 
casamento não é um verdadeiro casamento. Ele diz que é um casamento incestuoso, que trará                             
desgraças... E eu receio que ele tenha razão. Tenho a certeza de que tem razão. Mas não é                                   
altura para se falar de tais coisas. Eu quero estar feliz neste momento. Na verdade, estou feliz.                                 
Não me falta nada. 
  
HERODIAS 
  
Ainda bem que estais tão bem­disposto esta noite. Não é costume. Mas já é tarde. Vamos                               
para dentro. Não esqueçais que iremos caçar ao nascer do Sol. Devemos prestar todas as                             
honras aos embaixadores de César, não é verdade? 
  
SEGUNDO SOLDADO 
  
Que ar tão sombrio que tem o Tetrarca! 
  
PRIMEIRO SOLDADO 
  
Sim, tem ​um ar sombrio. 
  
HERODES 
  
Salomé, Salomé, dançai para mim. Imploro­vos que danceis para mim. Estou triste esta noite.                           
Sim, estou triste esta noite. Quando entrei aqui escorreguei em sangue, o que é um mau                               
presságio; e ouvi, tenho a certeza de que ouvi no ar um bater de asas, um bater de asas                                     
gigantescas. Não sei o que isso quer dizer... Estou triste esta noite. Por isso, 
  
81 
 
dançai para mim. Dançai para mim, Salomé, suplico­vos. Se dançardes para mim podeis                         
pedir­me tudo o que quiserdes, e eu dá­lo­ei. Sim, dançai para mim e dar­vos­ei tudo o que                                 
me pedirdes, até metade do meu reino. 
  
SALOMÉ 
Erguendo­se 
  
Dar­me­eis tudo o que vos pedir, Tetrarca? 
  
HERODIAS 
  
Não danceis, minha filha. 
  
HERODES 
  
Tudo, até metade do meu reino. 
  
SALOMÉ 
  
Jurais, Tetrarca? 
  
HERODES 
  
Juro, Salomé. 
  
HERODIAS 
  
Minha filha, não danceis. 
  
SALOMÉ 
  
Jurais por quê, Tetrarca? 
  
HERODES 
  
Pela minha vida, pela minha coroa, pelos meus deuses. Seja o que for que desejardes,                             
dar­vos­ei, até metade do meu reino, desde que danceis para mim. Oh Salomé, Salomé,                           
dançai para mim! 
  
SALOMÉ 
  
Vós jurastes, Tetrarca. 
  
HERODES 
  
Jurei, Salomé. 
  
SALOMÉ 
  
Tudo o que eu pedir, até metade do vosso reino? 
  
HERODIAS 
  
Não danceis, minha filha. 
  
HERODES 
  
Até metade do meu reino. Como Rainha serias muito bela, Salomé, se quisesses pedir metade                             
do meu reino. Não seria bela como Rainha? Ah! Está frio aqui! Está um vento gelado, e                                 
ouço... Porque ouvirei eu no ar este bater de asas? Ah! Dir­se­ia um pássaro, um enorme                               
pássaro preto pairando sobre o terraço. Porque não consigo eu ver esse pássaro? O bater das                               
suas asas é terrível. O vento que vem das suas asas é terrível. É um vento frio. Não, mas não                                       
está 
  
82 
  
frio. Pelo contrário, está calor. Está muito calor. Estou a sufocar. Deitai­me água nas mãos.                             
Dai­me neve para comer. Desapertai­me o manto. Rápido, rápido, desapertai­me o manto.                       
Não, deixai ficar. É a minha coroa que me magoa, a minha coroa de rosas. Estas flores                                 
parecem feitas de fogo. Queimaram­me a fronte. ​(Arranca a coroa da cabeça e atira­a para                             
cima da mesa.) ​Ah! Agora consigo respirar. Que vermelhas que são estas pétalas! Dir­se­iam                           
manchas de sangue na toalha. Não interessa. Não se deve procurar símbolos em tudo o que se                                 
vê. Isso torna a vida impossível. Seria melhor dizer que as manchas de sangue são tão belas                                 
como pétalas de rosa. Seria muito melhor dizer isso... Mas não falemos disso. Agora estou                             
feliz, estou muito feliz. Tenho o direito de estar feliz, não é verdade? A vossa filha vai dançar                                   
para mim. Não ides dançar para mim, Salomé? Prometestes dançar para mim. 
  
HERODIAS 
  
Não quero que ela dance. 
  
SALOMÉ 
  
Dançarei para vós, Tetrarca. 
  
HERODES 
  
Ouvis o que diz a vossa filha. Vai dançar para mim. Fazeis bem em dançar para mim,                                 
Salomé. E quando tiverdes dançado, não esqueçais de me pedir o que quiserdes. Seja o que                               
for, dar­vos­ei, até metade do meu reino. Eu jurei, não foi? 
  
84 
 
SALOMÉ 
  
Vós jurastes, Tetrarca. 
  
HERODES 
  
E nunca faltei à minha palavra. Não sou daqueles que faltam à sua palavra. Eu não sei mentir.                                   
Sou escravo da minha palavra, e a minha palavra é de rei. O Rei da Capadócia está sempre a                                     
mentir, mas ele não é um verdadeiro rei. É um cobarde. Além de que me deve dinheiro que                                   
não quer pagar. Chegou a insultar os meus embaixadores. Pronunciou palavras ofensivas.                       
Mas César crucificá­lo­á quando ele for a Roma. Tenho a certeza de que César o crucificará.                               
Se não, morrerá comido pelos vermes. O profeta previu­o.Então, Salomé, porque esperais? 
  
SALOMÉ 
  
Estou à espera de que as escravas me tragam perfumes e os sete véus, e me tirem as sandálias.                                     
(As escravas trazem perfumes e os sete véus e tiram as sandálias a ​SALOMÉ.) 
  
HERODES 
  
Ah, ides dançar descalça. Muito bem! Muito bem! Os vossos pezinhos serão como pombas                           
brancas. Parecerão florinhas brancas a dançar sobre as árvores... Não, não, ela vai dançar                           
sobre sangue. Há sangue espalhado no chão. Não quero que ela dance sobre sangue. Seria um                               
péssimo presságio. 
  
87 
 
HERODIAS 
  
Que vos importa que ela dance sobre sangue? Estais farto de mergulhar nele... 
  
HERODES 
  
Que me importa? Ah! Olhai para a Lua! Ficou vermelha. Ficou vermelha como sangue.»Ah!                           
O profeta acertou na profecia. Ele previu que a Lua ficaria vermelha como sangue. Não                             
previu? Todos vós o ouvistes. E agora a Lua ficou vermelha como sangue. Não vedes? 
  
HERODIAS 
  
Vejo muito bem, e as estrelas estão a cair como figos maduros, não estão? E o Sol está a ficar                                       
negro como um saco feito de pêlo, e os reis da terra têm medo. Isso pelo menos pode­se ver.                                     
O profeta, uma vez na vida, teve razão: os reis da terra estão com medo... Enfim, vamos para                                   
dentro. Estais doente. Em Roma dirão que estais louco. Vamos para dentro, já disse. 
  
! A VOZ DE IOKANAAN 
  
Quem é este que vem de Edom, que vem de Bosra, com as vestes pintadas de púrpura; que                                   
brilha na beleza dos seus trajos e caminha com uma força poderosa? Porque estão as vossas                               
vestes pintadas de escarlate? 
  
HERODIAS 
  
Vamos para dentro. A voz deste homem exaspera­me. Não quero que a minha filha dance                             
enquanto ele grita desse 
  
88 
 
modo. Não quero que ela dance enquanto olhais para èla desse modo. Em suma, não quero                               
que ela dance. 
  
HERODES 
  
Não te levantes, minha esposa, minha rainha, é inútil. Não irei para dentro enquanto ela não                               
dançar. Dançai, Salomé, dançai para mim. 
  
HERODIAS 
  
Não danceis, minha filha. 
  
SALOMÉ 
  
Estou pronta, Tetrarca. 
  
(SALOMÉ ​executa a dança dos sete véus) 
  
HERODES 
  
Ah! Que maravilha! Que maravilha! Vistes como ela dançou para mim, a vossa filha.                           
Aproximai­vos, Salomé, aproximai­vos, para que vos possa dar a recompensa. Ah! Eu pago                         
bem às bailarinas. A ti, pagar­te­ei muito bem. Dar­te­ei tudo o que tu quiseres. O que                               
queres? Dize. 
  
SALOMÉ ​Ajoelhando 
  
Quero que me tragam agora numa bandeja de prata... 
  
91 
 
HERODES 
Rindo 
  
Numa bandeja de prata? Claro, numa bandeja de prata. É encantadora, não é? Que quereis                             
que vos tragam numa bandeja de prata, doce e bela Salomé, vós que sois a mais bela de todas                                     
as filhas da Judeia? Que quereis que vos tragam numa bandeja de prata? Dizei. Seja o que                                 
for, ser­vos­á dado. Os meus tesouros pertencem­vos. O que é, Salomé? 
  
SALOMÉ 
Erguendo­se 
  
A cabeça de Iokanaan. 
  
HERODIAS 
  
Ah! Muito bem dito, minha filha! 
  
HERODES 
  
Não,”,não! 
  
HERODIAS 
  
Muito bem dito, minha filha! 
  
HERODES 
  
Não, não, Salomé. Isso não. Não deis ouvidos à vossa mãe. Ela está sempre a dar­vos maus                                 
conselhos. Não a escuteis. 
  
92 
  
SALOMÉ 
  
Eu não escuto a minha mãe. É para meu próprio prazer que peço a cabeça de Iokanaan numa                                   
bandeja de prata. Vós jurastes, Herodes. Não esqueçais que fizestes um juramento. 
  
HERODES 
  
Eu sei. Jurei pelos meus deuses. Sei muito bem. Mas suplico­vos, Salomé, pedi­me qualquer                           
outra coisa. Pedi­me metade do meu reino, e dar­vos­ei. Mas não aquilo que me pedistes. 
  
SALOMÉ 
  
Peço­vos a cabeça de Iokanaan. 
  
HERODES 
  
Não, não, não quero. 
  
SALOMÉ 
  
Jurastes, Herodes. 
  
HERODIAS 
  
Sim, jurastes. Toda a gente vos ouviu. Jurastes perante toda a gente. 
  
HERODES 
  
Calai­vos! Não é convosco que estou a falar. 
  
93 
 
HERODIAS 
  
A minha filha fez bem em pedir a cabeça deste homem. Ele cobriu­me de insultos. Disse                               
coisas monstruosas contra mim. Pode­se ver como ela ama a sua mãe. Não cedais, minha                             
filha. Ele jurou, ele jurou. 
  
HERODES 
  
Calai­vos, não me digais nada...! Vamos, Salomé, é preciso ser razoável, não é verdade? Não                             
é verdade que é preciso ser razoável? Eu nunca vos tratei mal. Sempre vos amei... Talvez vos                                 
tenha amado demais. Por isso, não me exijais tal coisa. É horrível, é pavoroso esse pedido.                               
No fundo, não acredito que estejais a falar a sério. A cabeça de um homem decapitado é algo                                   
muito feio, não é? Não é uma coisa que deva ser vista por uma virgem. Que prazer é que isso                                       
vos poderia dar? Nenhum. Não, não, não é isso que quereis. Ouvi­me por um instante. Eu                               
tenho uma esmeralda, uma enorme esmeralda redonda que o favorito de César me mandou.                           
Olhando através desta esmeralda poderíeis ver coisas que acontecem a uma grande distância.                         
O próprio César leva uma parecida quando vai ao circo. Mas a minha é maior. Sei muito bem                                   
que é maior. É a maior esmeralda do mundo. Gostaríeis de a ter, não é verdade? Pedi­ma e                                   
dar­vo­la­ei. 
  
SALOMÉ 
  
Exijo a cabeça de Iokanaan. 
  
HERODES 
  
Não me estais a ouvir, não me estais a ouvir. Então, deixai­me falar, Salomé. 
  
94 
  
SALOMÉ 
  
A cabeça de Iokanaan. 
  
HERODES 
  
Não, não, não é isso que quereis. Dizeis isso só para me perturbar, porque estive a olhar para                                   
vós durante toda a noite. Sim, de facto estive a olhar para vós durante toda a noite. A vossa                                     
beleza perturbou­me. A vossa beleza perturbou­me terrivelmente, e olhei demasiado para vós.                       
Mas não voltarei a fazê­lo. Não se deve olhar nem para as coisas nem para as pessoas. Só se                                     
deve olhar para os espelhos, porque os espelhos só nos mostram máscaras. Oh! Oh! Trazei                             
vinho! Tenho sede... Salomé, Salomé, sejamos amigos. Enfim, vede... Ah! O que ia eu a                             
dizer? O que era? Ah! Já me lembro...! Salomé! Não, aproximai­vos; tenho medo de que não                               
me ouçais... Salomé, conheceis os meus pavões brancos, os meus lindos pavões brancos que                           
passeiam no jardim entre os mirtos e os altos ciprestes. Têm bicos dourados e os grãos que                                 
comem também são dourados, e as patas são cor de púrpura... Quando eles gritam a chuva                               
cai, e a lua mostra­se nos céus quando eles abrem as caudas. Passeiam aos pares por entre os                                   
ciprestes e os mirtos negros, e cada um tem um escravo para o tratar. Por vezes voam por                                   
entre as árvores e outras vezes deitam­se na relva e à volta do lago. Não há no mundo aves                                     
mais belas. Nenhum rei no mundo inteiro possui aves tão belas. Tenho

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