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UNIDADE 2 DIREITOS HUMANOS E SOCIEDADE: DIREITOS SOCIAIS, ANTIDISCRIMINAÇÃO E DESENVOLVIMENTO HUMANO INTRODUÇÃO Entre os direitos fundamentais insculpidos na Constituição de 1988, encontramos uma categoria de direitos fundamentais classificados como sociais, previstos no artigo 6° como os direitos a educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, la- zer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados. Os direitos ditos sociais têm por escopo estabelecer condições de igualdade entre os indivíduos, garantindo-lhes mínimo necessário para viver com dignidade. Entretanto, Estado não prioriza adimplir as suas obrigações em relação aos direitos sociais, que resta por causar muito sofrimento e dissabor por aqueles que dependem do Estado naquilo que se considera básico e essencial para a sobrevivência. A partir desta consideração, veremos que a igualdade entre as pessoas é um princípio fundamental que, quando aplicado com ponderação, tem potencial para construir uma sociedade livre, justa e solidária. Entretanto, algumas pessoas e alguns grupos, em razão de diferenças de cor, nacionalidade, origem, religião ou outras diferenças, vêm sofrendo, ao longo da história, desvantagens, explorações ou inferiorizações, que se reflete nas estruturas sociais e na capacidade de enxergar a vida e mundo em que vivemos. Por fim, refletiremos sobre a desigualdade que se mostra como consequência dos pro- blemas apresentados. século XXI traz para a humanidade desafio de viver em um mundo com extrema desigualdade. Milhares de pessoas enfrentam a condição de breza, fome, miséria, de desrespeito a diversidade, que as colocam em uma situação de extrema vulnerabilidade por pertencimento a determinado grupo social ou por condição econômica, em diversos países e regiões no mundo. 1. DIREITOS HUMANOS E DIREITOS SOCIAIS 1.1. SAÚDE COMO DIREITO UNIVERSAL E BEM PÚBLICO Figura 01. Saúde como direito universal Herófilo, antes de Cristo, afirmava: "quando fal- ta a saúde, a sabedoria não se revela, a arte Fonte: 123RF. não se manifesta, a força não luta, a riqueza é inútil e a inteligência inaplicável" (HERO- PHILUS apud LIMA, 2009, p. 6). A Organização Mundial da Saúde (OMS, 1946), na Carta de Princípios de 7 de abril de 1948 (por isso, Dia Mundial da Saúde), diz que saúde é estado do 34mais completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de enfermidade. Sob prisma jurídico, a saúde como direito social (artigo 6°) encontra-se prevista na Constituição Federal desde a sua origem, em 1988. artigo 196 da Carta Constitucional assegura: 2 A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (BRASIL, 1988, [n. p.], grifo nosso). princípio da universalidade da saúde prega que todas as doenças serão cobertas e am- paradas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e todas as pessoas (brasileiros ou estrangei- ros, residentes ou não no Brasil) serão atendidas sem qualquer cobrança pelo poder públi- CO. Assim, além de universal, a saúde é um sistema gratuito de política pública no Brasil. Nessa linha, Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Judiciário, na condição de guardião da Constituição, tem assumido protagonismo no cenário público, consideran- Universidade São Francisco do-se a grande quantidade de decisões judiciais, cuja finalidade é implementar direitos pelo prisma da qualidade de mínimo existencial, ou seja, determinado direito é mínimo para a pessoa humana viver com dignidade, como é caso do direito à saúde. Nesse sentido, em 12/09/2000, Supremo Tribunal Federal, ao analisar fornecimento gratuito de medicamentos a pessoa portadora do vírus HIV sem condições de arcar com os custos do tratamento, afirmou que Estado é obrigado a garantir um mínimo relacionado ao direito à saúde, decorrente do direito à vida: [...] [ao] Poder Público [...] incumbe formular e implementar políticas so- ciais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, acesso universal e igualitário à assistên- cia farmacêutica e médico-hospitalar. O direito à saúde, além de qualificar- -se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas representa consequência constitucional indissociável do direito à vida. Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organi- zação federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. [...](BRASIL, 2000, p. 1.409) Em relação à saúde, percebe-se claramente o conceito de bem comum, no sentido de que objetivo da sociedade não é um bem individual ou de um único indivíduo, mas um bem que se comunica entre todas as pessoas do grupo indistintamente. Não descarta a existência da individualidade, mas também se projeta para coletivo. Tome-se como exemplo alcoolismo e as doenças mentais, com todas as consequên- cias que carregam na sociedade. Elas são consideradas individualmente, mas tem uma dimensão mais coletiva do que individual no aspecto do seu cuidado e do seu tratamen- to e prevenção. Nesse sentido, vale lembrar Sturza e Martini (2017, p. 406): Nesse sentido, é perceptível que direito à saúde não apenas possui um cariz individual, mas é aquele direito que diz respeito a um quadro social, que importa a coletividade, que assume uma característica transcendente àqueles que pertencem a determinada comunidade. Desse ponto de vista, falar de saúde exige olhar para a sociedade: a casa comum onde vivemos, onde os seres humanos constroem relações e suas vidas, também é local Direitos Humanos 35Direitos Humanos e sociedade: direitos sociais, antidiscriminação e desenvolvimento humano em que estes desenvolvem formas de adoecer e bem viver. É preciso que Estado, além de assegurar direito à saúde a todos os cidadãos, assegure respeito às diver- sas formas de vida dos diferentes grupos sociais aqui existentes. 2 1.2. SEGURANÇA ALIMENTAR, MORADIA E TRABALHO DECENTE A Constituição Federal de 1988 não trouxe direito à alimentação como direito social. Somente em 2010, 22 anos após a publicação da nossa Constituição, mediante reforma constitucional, é que direito foi expressamente previsto na Carta Magna. A moradia adequada, por sua vez, somente no ano 2000 foi internalizada e incorporada na Cons- tituição do Brasil, no bojo do artigo 6°, qualificando-se como direito essencial à sadia qualidade de vida das pessoas. Uma moradia inadequada repercute na saúde e nos diversos aspectos da vida das pessoas. DIREITO À SEGURANÇA ALIMENTAR Figura 02. Direito à segurança alimentar Fonte: 123RF. Segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, no seu artigo 25, podemos asseverar que: Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis e direito à segurança em caso de desemprego, doença invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle (UNICEF, 1948, [n. p.], grifo nosso). A Lei n° 11.346/2006, no seu artigo 2°, preceitua: A alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos con- sagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políti- cas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população (BRASIL, 2006, [n. p.]). direito humano à alimentação adequada significa libertar as pessoas da fome e da desnutrição, bem como conferir a todos direito ao acesso a alimentação adequada e saudável. 36Na qualidade de direito fundamental social, direito à alimentação adequada corres- ponde a obrigações do poder público (União, estados e municípios). Isso significa que caberá ao poder público promover políticas públicas que garantam direito à alimen- tação de toda a população, bem como, nas hipóteses de pessoas vítimas de pobreza 2 extrema ou nos casos de calamidades/catástrofes, prover a alimentação. Não podemos falar em direito humano à alimentação adequada sem entender papel fundamental que cada um de nós possui como indivíduos, agentes do Estado ou repre- sentantes da sociedade civil no processo de promoção da realização dele como direito passível de ser exigido em sua realidade local. E onde cidadão poderá exigir direito à alimentação? Nos postos de saúde, no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), centros de referência de assistência social (Cras) etc. Além disso, cidadão poderá Universidade São Francisco buscar auxílio nos órgãos do Ministério Público e da Defensoria Pública. Esses órgãos não fazem parte diretamente do Poder Judiciário, mas podem acionar a Justiça ou co- brar soluções diretamente dos poderes públicos, celebrando, por exemplo, termos de ajustamento de conduta. Além disso, cidadão pode se valer de instrumentos judiciais e políticos, tais como a participação de campanhas de mobilização contra os projetos de leis que violam direito humano à alimentação adequada, e estimular a articulação entre organizações e movimentos sociais que desenvolvem campanhas contra leis e projetos de leis que violam e/ou ameaçam o direito humano à alimentação, tais como: campanha contra os transgênicos; campanha contra uso dos agrotóxicos etc. DIREITO À MORADIA Figura 03. Direito a moradia Fonte: 123RF. No mesmo trecho citado acima, vemos que a habitação foi reconhecida como direito humano em 1948 na Declaração Universal dos Direitos Humanos, tornando-se um di- reito humano universal: Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação (...) (UNICEF, 1948, [n. p.], grifo nosso). Direitos Humanos 37Direitos Humanos e sociedade: direitos sociais, antidiscriminação e desenvolvimento humano Decreto n° 591 de julho de 1992 que internaliza Pacto Internacional de direitos so- ciais, econômicos e culturais da ONU de 1966 internalizou as disposições do tratado em relação ao direito à moradia adequada, nos se- guintes termos: 2 Artigo 11. 1. Os Estados-parte no presente Pacto reconhecem o direito de toda pes- soa a um nível de vida adequado para si próprio e para sua fa- mília, inclusive à ali- mentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados-parte tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação inter- nacional (BRASIL, 1992, [n. p.], grifo nosso) A concentração da terra nas mãos daqueles que detêm poder econômico é uma ca- racterística marcante da história do nosso país, e isso influencia diretamente a situação da moradia inadequada no Brasil. Muitas pessoas não possuem sequer saneamento básico e água potável, que gera doenças e infecções pela contaminação da água. São elevados os índices de déficit habitacional, que representa a situação de moradia em condições inadequadas. Embora a nossa Constituição também assegure que União, estados, Distrito Federal e mu- nicípios deverão combater as causas da pobreza e fatores de marginalização, promoven- do a integração social dos setores desfavorecidos, que vemos no Brasil, na verdade, são pessoas morando em condições desumanas, em favelas ou até mesmo em situação de rua. CURIOSIDADE A origem do termo "favela", por mais estranhamento que possa causar, decorre de uma planta que surgia no Morro da Favela, do episódio da Guerra de Canudos. Posteriormente, passou a designar habitações improvisadas, sem infraestrutura, junto aos morros. Estado tem obrigações com relação ao direito à moradia adequada: a obrigação de se abster de atos que ofendam tal direito, de proteger a moradia contra a intervenção de terceiros e de atuar para sua realização. A moradia integra direito à dignidade da pessoa humana, razão pela qual integra núcleo daquilo que se convenciona chamar de míni- mo existencial. que vemos, na grande parte dos estados brasileiros, é uma prestação insuficiente do direito social à moradia, já que as moradias irregulares aumentam a cada dia, atingindo marco aproximado de 6 milhões. acesso à moradia adequada pode ser uma pré-condição para a realização de vários outros direitos humanos, incluindo direito a trabalho, saúde, segurança social, voto, e educação. Sem comprovante de residência, as pessoas sem- -teto não têm condições de votar, desfrutar de serviços sociais ou de receber cuidados de saúde. A moradia inadequada pode ter repercussões diretas sobre direito à saúde, por exemplo, se as casas e os assentamentos tiverem pouca ou nenhuma água potável e nenhum saneamento, ou se estiverem em locais expostos a resíduos tóxicos em ra- zão dos quais os moradores podem contrair graves doenças. Se não bastasse, em muitos casos, os aluguéis correspondem a 40% da renda familiar, que provoca um grande contingente de inadimplência e consequentes despejos. 38trauma experimentado na sequência de um despejo também pode prejudicar a capaci- dade de uma criança de assistir às aulas, além de interferir na sua saúde mental. DIREITO TRABALHO DECENTE 2 Figura 04. Direito a trabalho decente direito ao trabalho assumiu des- taque entre os direitos sociais, pois, Fonte: 123RF. além da sua previsão clássica no rol dos direitos sociais (artigo 6°, Consti- tuição Federal), também tem previsão espalhada por diversos dispositivos constitucionais. Surpreendentemente, logo no artigo 1°, a Constituição Fe- deral prevê que Brasil é um Estado democrático de direito e tem como Universidade São Francisco fundamento, dentre outros, os valores sociais do trabalho e da livre iniciati- va (artigo 1°, IV, Constituição Federal). Além disso, direito ao trabalho decente transcende os direitos fundamentais, pois trabalho constitui, também, um grande pilar de sustentação da ordem social e econô- mica. Nesse sentido, previu a Constituição Federal (artigo 170, inciso VII) que um dos fundamentos da ordem econômica é a valorização do trabalho humano e como um dos seus princípios a busca do pleno emprego. Na ordem social, a sustentação da previdência social se faz, principalmente, pelas con- tribuições dos segurados, que são aqueles que de alguma forma exercem atividade remunerada e que, no futuro, serão protegidos pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e terão direito aos benefícios previdenciários como aposentadoria, auxílio por incapacidade temporária ("auxilio-doença"), entre outros. São objetivos do trabalho decente (ONU, 2015, [n. p.]): a. respeito aos direitos no trabalho, especialmente aqueles definidos como fundamentais (liberdade sindical, direito de negociação coletiva, eliminação de todas as formas de discriminação em matéria de emprego e ocupação e erradicação de todas as formas de trabalho forçado e trabalho infantil); b. promoção do emprego produtivo e de qualidade; ampliação da proteção social; fortalecimento do diálogo social. A pandemia de covid-19 gera efeitos devastadores no mercado de trabalho mundial e também no Brasil, com maior desigualdade geográfica e demográfica, mais pobreza e menos empregos decentes. Aliadas à falta de empregos, somam-se aos níveis per- sistentes de desemprego a subutilização da mão de obra e as condições precárias de trabalho, situações que já eram vivenciadas em épocas bem anteriores à crise. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) considera que a justiça social é essen- cial para garantir a paz universal e que o crescimento econômico é importante, mas não o suficiente para assegurar a equidade, progresso e a erradicação da pobreza. Direitos Humanos 39Direitos Humanos e sociedade: direitos sociais, antidiscriminação e desenvolvimento humano trabalho decente é aquele cuja preocupação é sistêmica. Identifica-se a importância do trabalho dos jovens e de pessoas com deficiência, da luta contra trabalho infantil e também da legitimidade do trabalho realizado pelos migrantes e refugiados, aqueles 2 que chegam ao nosso país com muitas esperanças e sonhos, tentando uma vida mais digna, e que aqui veem sua mão de obra ser subutilizada e até mesmo exercem ativida- des em condições análogas às de escravo. As Nações Unidas (ONU, 2015, [n. p.]) declararam os objetivos de desenvolvimen- to sustentável (ODS). Entre as metas para desenvolvimento sustentável prevê-se a promoção do crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, do emprego pleno e produtivo, e do trabalho decente para todos. Prevê-se, ainda, até 2030, alcançar emprego pleno e produtivo e trabalho decente a todas as mulheres e todos os homens, inclusive para os jovens e as pessoas com deficiência, e remuneração igual para trabalho de igual valor. Além disso, estabelece como programa de ação: Tomar medidas imediatas e eficazes para erradicar trabalho forçado, Acabar com a escravidão moderna e o tráfico de pessoas, Assegurar a proibição e a eliminação das piores formas de trabalho infantil, incluindo re- crutamento e utilização de crianças-soldado, Acabar, até 2025, com o trabalho infantil em todas as suas formas, Assegurar, por fim, a proteção dos direitos trabalhistas e promover ambientes de trabalho seguros e protegidos para todos os trabalhadores, incluindo os trabalhadores migrantes, em particular as mulheres migrantes, e pessoas em empregos precários. A viabilização dessas políticas relacionadas à proteção do trabalho depende de mudan- ças na legislação e de políticas públicas adequadas estas últimas com importante pa- pel do poder local, por meio dos indicadores de trabalho decente, guias que identificam a realização ou não dos ODS, que vão ao encontro das metas da OIT. Assim, por exemplo, pretendemos reduzir a jornada de trabalho. Hoje temos uma jornada de trabalho semanal de 44 horas, da qual almejamos uma redução para, no máximo, 40 horas. A conquista da redução da jornada de trabalho é um indicador de trabalho decente. Outros indicadores possíveis seriam, por exemplo, a redução dos acidentes e doenças do trabalho, a formalização do trabalho, a diminuição da rotatividade do trabalho, a ampliação da cobertura da previdência social, a igualdade de remuneração entre homens e mulheres. Se pensarmos, exemplificativamente, na meta 8.8 das Nações Unidas (IPEA, 2022), que trata da segurança do trabalho e inclui os trabalhadores migrantes, poderíamos pensar em indicadores que mensurassem as taxas de frequência de lesões ocupacio- nais fatais e não fatais, de acordo com sexo e também a situação de migração. A transformação da realidade do trabalho é capaz de promover uma vida mais digna dentro e fora do espaço do trabalho, mas exige a garantia de que os trabalhadores par- ticipem da construção e da definição dos indicadores, e de que as políticas públicas se- jam sensíveis às necessidades de proteção e implementação de medidas que venham a coibir qualquer forma de trabalho indigno e indecente. Só assim poderemos alcançar 40uma realidade próxima daquilo que nossa Constituição tem buscado para Brasil, a dignidade da pessoa aliada à erradicação da pobreza e da marginalização e à redução das desigualdades sociais e regionais. 2 Do que dissemos, podemos entender que os direitos à moradia, trabalho decente e segu- rança alimentar são considerados direitos sociais, fato esse que, incrivelmente, é que provoca todas as injustiças e desigualdades. Isso ocorre porque sociais, entre outros di- reitos, são aqueles direitos para cuja implementação efetiva se exige uma atuação estatal. Assim, para haver educação, é preciso que Estado construa escolas, realize concurso de professores, faça pagamento das remunerações, entre outros. Para que a segurança pú- blica seja efetiva, é preciso que Estado construa presídios, remunere os policiais, adquira armamentos. Para haver moradia, trabalho digno e segurança alimentar, é preciso que Estado assegure condições mínimas necessárias para a fruição desses direitos. Ocorre que essa atuação estatal ativa depende de recursos financeiros e, consequente- Universidade São Francisco mente, da previsão orçamentária, já que vai implicar dispêndio financeiro pelo poder públi- CO. Os recursos públicos, por sua vez, são limitados, razão pela qual se torna necessário fazer escolhas daquilo que realmente importa e deve ser protegido e daquilo que não será amparado. Entretanto, essa escolha não é aleatória, devendo ocorrer conforme os comandos constitucionais, garantindo-se mínimo para a existência das pessoas, aquilo a que se convencionou chamar de mínimo existencial. Não obstante, na prática, exige-se muito mais do que um direito, é preciso haver ação, boa vontade e solidariedade com ser humano, em respeito à sua condição de ser humano e de igualdade aos demais. Figura 05. Direitos sociais TRABALHO DIGNO E VALORIZADO RESERVA DO POSSÍVEL DESEMPREGO COMBATE TRABALHO INFANTIL TRABALHO ESCRAVO DIREITOS SOCIAIS ALIMENTAÇÃO NÃO À FOME E À DESNUTRIÇÃO (ESTADO ALIMENTAÇÃO E MORADIA OBRIGAÇÃO DE MORADIA HABITAÇÃO ADEQUADA (VOTO, FAZER) SAÚDE) UNIVERSAL TODOS TÊM DIREITO MÍNIMO EXISTENCIAL SAÚDE GRATUITO NÃO PRECISA PAGAR Fonte: elaborada pelo autor. LEITURA FUNDAMENTAL Piovesan, FlaviaDireitos sociais, econômicos e culturais e direitos civis e políticos. Sur. Revista Inter- nacional de Direitos Humanos [online]. 2004, V. 1, n. 1 [Acessado 21 Novembro 2022] pp. 20-47. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1806-64452004000100003. Direitos Humanos 41Direitos Humanos e sociedade: direitos sociais, antidiscriminação e desenvolvimento humano artigo aborda os direitos humanos sob a ótica dos direitos sociais e investiga a capacidade de efetivação dos direitos humanos, para que assumam seu papel central na ordem contemporânea. 2 Filme: Cidade de Deus. Direção: Fernando Meirelles, Kátia Lund Sinopse: filme narra a formação do crime organizado no bairro da Zona Oeste carioca en- tre os anos 1960 e 1970. Além da desigualdade social, traz aspectos da violência do Estado pela polícia e pela omissão do Estado no tocante as políticas públicas. Fundamentos da Indicação: fazer aluno entender acerca do papel do Estado na proteção dos direitos humanos sociais, principalmente na implementação de políticas públicas de mo- radia, emprego e outras políticas que envolvem a população. Além disso, verificar que, em vez de garantir a segurança pública da população, Estado abusa da violência policial sob pretexto de garantir a segurança para "restante" da população. Casos de Aplicação: Caso Zara No caso Zara, em junho de 2011, fiscais encontraram ao todo cerca de 50 trabalhadores submetidos a trabalho análogo ao de escravo produzindo roupas para a marca Zara, que pertence ao grupo espanhol Inditex. Nos termos do relatório produzido pela Repórter Brasil e pela Somo, que acompanharam a visita in loco dos inspetores: As oficinas em que os funcionários trabalhavam e residiam eram ambien- tes extremamente degradantes. [...] As janelas eram cobertas com tecidos escuros e os ambientes internos sujos, aba- fados, apertados e com fiação elétrica irregular. Ademais, filhos menores dos trabalhadores transitavam li- vremente pelo local de trabalho, entre máquinas de costura sem segurança nenhuma. (REPÓRTER BRASIL) Leitura complementar ao estudo de caso: Zara é responsabilizada por trabalho escravo e pode entrar na "lista suja". Disponível em: Acesso em: 16 nov. 2021. 2. DIREITOS HUMANOS ANTIDISCRIMINATÓRIOS 2.1. TEORIA DA DISCRIMINAÇÃO: A LÓGICA DISCRIMINATÓRIA Figura 06. Discriminação em razão da cor A Constituição Federal de 1988 assegura que todos são iguais perante a lei, sem distinção Fonte: 123RF. de qualquer natureza (BRASIL, 1988, [n. p.]). A atribuição de vantagens ou desvantagens a um grupo determinado de indivíduos pressu- põe uma relação de poder, ou seja, um grupo (dominador) se vale da possibilidade concreta e efetiva do uso da força. Podemos, por exem- plo, pensar no caso de países que proíbem a 42entrada de estrangeiros de determinada nacionalidade, ou no caso de algumas empresas e comércios que recusam atendimento a pessoas de cor negra. Em ambos os casos há uma intenção direta de estabelecer uma condição desigual ou desvantagem para um grupo determinado de pessoas. No primeiro caso, os estrangeiros; no segundo, os negros. 2 Assim, a discriminação significa um tratamento diferenciado a alguns membros ou grupos da sociedade, por razões injustificáveis. Não se trata simplesmente de julgamentos ou atribuições preconceituosas. A discriminação vai além e atinge comportamento em si, a ação. Discriminar alguém significa agir, de forma consciente ou inconsciente, para trazer privilégios ou vantagens a alguém, e, em contrapartida, desvantagens a outros grupos. Além dessa discriminação explícita, que todos conseguimos ver, existe uma outra forma de realizá-la, que se faz implicitamente na sociedade e que simplesmente ignora as diferenças existentes entre alguns grupos sociais minoritários. Ocorre como se todos fôssemos realmente iguais, sem considerar as diferenças, evitando-se que sejam cor- Universidade São Francisco rigidas as distorções para que se mantenha status quo, ou seja, para que as coisas permaneçam como estão. As discriminações (direta e indireta) são mecanismos "transmitidos" através das gera- ções, passados de pais para filhos e, assim, sucessivamente, fazendo perpetuar a cul- tura da discriminação, que surte efeitos desde campo das relações cotidianas, como a compra no shopping center, até os cargos das estruturas de poder como presidência da República e Congresso Nacional. 2.2. TEORIA DO LUGAR DE FALA E DO DECOLONIALISMO. RACISMO ESTRUTURAL E A TEORIA DO COLORISMO Entender racismo estrutural constitui elemento central, ponto de partida e também de chegada de uma sociedade mais justa e sem discriminação. A estrutura do racismo decorre do colonialismo, imposto por um grupo de povos sobre outros, de cores diferentes. A partir disso se constrói um discurso de que, quanto mais próximo do preto, mais discriminada e desgraçada será a vida da pessoa, que dá ensejo à teoria do colorismo. Para quebrar essa estrutura preconceituosa e discriminatória, é necessária muita atuação, na qual se faz presente lugar de fala, que indica os diversos pontos de vista na questão da discriminação em razão da cor, incluindo ponto de vista do grupo dominante, essencial para debate democrático e para uma evolução da sociedade no combate da discriminação. Teoria do Lugar de Fala Figura 07. Lugar de fala como lugar de inclusão Nas discussões sobre temas sociais ligados aos grupos minoritários, um termo bastan- Fonte: 123RF. te utilizado é lugar de fala. que é lugar de fala? No senso comum, lugar de fala é percebido com o sentido de desqualificar e afastar pessoas do debate por não fazerem parte do grupo minoritário, indicando, por exemplo, que racismo só pode ser discuti- do por negros. Direitos Humanos 43Direitos Humanos e sociedade: direitos sociais, antidiscriminação e desenvolvimento humano Entretanto, é relevante saber que o termo "lugar de fala" é plural e indica que existem diversos pontos de vista de acordo com grupo de que a pessoa faz parte. Nesse con- texto, é importante que qualquer grupo se manifeste, mas tenha consciência do lugar de 2 onde fala. Assim, negros e brancos terão percepções diferentes do racismo, em razão dos lugares de fala diversos, porém ambos podem e devem participar das discussões e têm muito a contribuir. Se somente os negros tivessem lugar de fala na discussão do racismo, haveria uma visão distorcida do próprio significado de racismo, uma vez que ele envolve sentimento da dignidade da pessoa humana, qualidade presente no ser humano, independentemente de sua etnia. Por isso, não se pode excluir grupo domi- nante nem grupo dominado (discriminado) desse debate nas escolas, nas universida- des, nas redes sociais, na mídia, na política etc. Ademais, "lugar de fala" se refere ao grupo (coletividade), e não a um indivíduo isola- damente. Caso contrário, poderíamos considerar válido argumento de um indivíduo negro e preconceituoso que expusesse inexistir racismo na sociedade, em razão de seu lugar de fala de negro. Ora, se racismo foi implantado na sociedade pelas pessoas brancas, com a finalidade de subjugar as pessoas em razão da cor, inferiorizando aquelas que fossem negras, então essas pessoas brancas têm um lugar de fala muito relevante no contexto da des- construção do conceito e da estrutura do racismo na sociedade. Em suma, negros e brancos têm próprio lugar de fala e, com base nisso, um papel muito importante no combate ao racismo, mediante ações e comportamentos cotidianos capazes de reverberar os efeitos para um futuro mais justo. B. Teoria do decolonialismo Figura 08. colonialismo e a dominação século XV foi um período marcado pelas grandes navegações que acompanharam a Fonte: 123RF. era dos descobrimentos de terras até então COLONIALISM desconhecidas por países localizados no con- tinente europeu. Colonizadores europeus ocu- param e dominaram os povos da América, da Ásia, da África e da Oceania. Além da domina- ção econômica, impuseram os seus saberes e fazeres a milhares de povos, destruindo e des- construindo a sua essência originária. Trata-se do processo denominado colonialismo. No Brasil, processo de colonialismo ou dominação ocorreu em relação aos índios e aos negros. Como efeito, foram construídos sistemas jurídicos, políticos, ideológicos e culturais que justificassem a hierarquização entre os povos em razão de raça, em razão dos quais impuseram atrocidades. Mesmo após fim da era do colonialismo, permanece uma estrutura de dominação ou padrão de poder que se encontra enraizada em nossa sociedade, mesmo após fim das relações coloniais clássicas. Trata-se da chamada colonialidade. 44Decolonialismo é a antítese do colonialismo. fim do colonialismo formal não im- plicou extinção do colonialismo material, ou seja, fim de suas práticas e ações na sociedade. Daí a importância de falar de decolonialismo: superar a colonialidade e toda sua estrutura e suas práticas sociais na composição do espaço e do imaginário social, 2 visando superar toda a desigualdade histórica e estrutural. Eis que a realidade que conhecemos e vivemos no Brasil é a síntese do pensamento branco, masculino e europeu. A ideia do decolonialismo é rever ou revisitar teses e ver- dades para uma nova compreensão do mundo, com base em outras nuances e outras realidades, sob diversos olhares ou pontos de vista, sem excluir nem mesmo ponto de vista dos colonizadores. Assim, decolonialismo não representa uma aversão ou repulsa ao colonialismo, mas sim, e tão somente, a abertura para diferentes visões de mundo, além do colonialismo, sob a perspectiva de outros povos não colonizadores. Racismo estrutural Universidade São Francisco Figura 09. Uma estrutura social desigual racismo estrutural é um termo utilizado para explicar as estruturas que perpetu- Fonte: 123RF. am racismo na sociedade. No século XVII, os negros e povos originários eram considerados bens semoventes, seme- aos cavalos, aos cachorros etc. Também não podiam frequentar escolas públicas. Padrões racistas vão além do indivíduo e atingem toda a relação de poder e dominação de um grupo sobre outro. racismo passa a fazer parte do funcionamento normal da vida cotidiana. problema é que a sociedade tem se desenvolvido historicamente com a reprodução dessa relação de poder dos brancos sobre os negros. A estrutura social é racista, e racismo está implícito no modo de organização da sociedade. Para minimizar esse cenário, é preciso que Estado adote mecanismos de promoção da igualdade, realizando mudanças nas ordens social, jurídica e econômica da socie- dade. Como não conseguimos enxergar o racismo estrutural, muitos de nós não damos a devida importância ao tema. Basta assistir a uma sessão do Congresso Nacional para perceber racismo estrutural. No Brasil, onde 52% da população se declara negra, os espaços de poder e decisão são ocupados na quase totalidade pelos brancos. Sob olhar de Silvio Almeida (2021, p. 51), é como se a sociedade fosse uma máquina reprodutora de desigualdade social. Nesse sentido, as práticas antirracistas assu- mem relevo na sociedade. Com base no exposto, em resumo, racismo estrutural é aquela prática anormal, mas natural, de desigualdade na sociedade, a qual se transmite entre as gerações. Direitos Humanos 45Direitos Humanos e sociedade: direitos sociais, antidiscriminação e desenvolvimento humano D. Teoria do colorismo Figura 10. As cores e as condições de vida tom da pele estaria associado às di- 2 ficuldades e às discriminações enfren- Fonte: 123RF. tadas por uma pessoa? Quanto mais escuro for tom da pele de uma pes- soa, maiores serão as chances de ela enfrentar várias formas de dificuldades e obstáculos na vida? Com base nisso, criou-se uma hierarquia baseada na cor da pele. Desse ponto de vista, uma pessoa branca de olhos azuis seria mais amada e aceita na sociedade que um negro, em comparação ao qual pode ter uma vida melhor por exemplo, ela pode ter mais facilidade para conseguir um emprego. Nesse sentido, a miscigenação traria a evolução pelo branqueamento e avanço de melhores chances de uma vida digna. Disso surgiram expressões como "café com leite", "marrom bombom", "morena cor de jambo" etc. problema da teoria do colorismo é que ela cria uma subcultura negra, es- tabelecendo uma hierarquização de cores entre os negros, de forma que se estabelece uma rivalidade entre os negros de cor clara e os negros de cor escura. 2.3. COMBATE A TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO A Constituição do Brasil (BRASIL, 1988, [n. p.]), no artigo 3°, inciso IV, preceitua que constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, entre outros, "promo- ver bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de racismo é um problema estrutural, e não uma questão pontual ou casual de precon- ceito ou discriminação. Quando falamos em estrutura, estamos incluindo até mesmo os organismos estatais, responsáveis pelo combate ao racismo e à discriminação, os quais muitas vezes se omitem no sentido de não permitir que os negros ocupem um lugar de destaque na sociedade, como ocorre com os brancos. É dever constitucional do Estado coibir toda forma de discriminação contra as pessoas. A população negra, evidentemente, apresenta piores condições de vida em relação aos brancos, uma vez que foi historica- mente desvalorizada, que se reflete nos salários, nos cargos públicos e privados, entre outras situações, como número de vítimas de violência, níveis de escolaridade etc. SAIBA MAIS Vale citar mapa de violência em relação as pessoas negras em 2021: Disponível em: https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/a-violencia-contra- pessoas-negras-no-brasil-2021/ 46A discriminação é alimento do racismo estrutural. A manutenção do estado atual so- mente é capaz de perpetuar, fazendo-a permanecer, a situação atual de descaso, humi- pobreza e tratamento inferiorizado das pessoas negras. 2 A Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988, [n. p.]), quando dispõe sobre os prin- cípios das relações internacionais, estabelece com veemência repúdio ao racismo (artigo 4°, VIII). Em comparação às legislações anteriores, a nossa Constituição representa um grande avanço, uma vez que traz mandamentos que visam coibir qualquer prática discrimina- tória e preconceituosa em relação a raça e a cor. Além disso, ela indica um caminho a ser cumprido pelos aplicadores do Direito e, principalmente, por toda a sociedade, no processo de maturação da igualdade de raça e cor. 2.4. CRIMES RESULTANTES DE DISCRIMINAÇÃO E PRECONCEITO Universidade São Francisco (ORIGEM, RAÇA, GÊNERO, COR, IDADE, DISCURSO DE ÓDIO) Passados cerca de 488 anos de discriminação racial, foi com a Constituição Federal de 1988 que Brasil reconheceu racismo como crime. A Magna Carta (BRASIL, 1988, [n. p.]), no artigo 5°, inciso XLII, reconhece que a prática do racismo constitui crime inafian- çável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei. Aquele que comete crime de racismo pode ser processado pelo Estado e condenado por esse crime a qualquer tempo, pois não existe prazo de prescrição nesse caso. Além disso, quem pratica o crime de racismo não poderá ser beneficiado pela fiança para ob- ter liberdade. Além da proibição constitucional, a repulsa ao racismo encontra previsão no âmbito da legislação penal, mais propriamente na Lei n° 7.716/1989. Injúria Racial: mudanças e implicações trazidas pela Lei 14.532/2023 Figura 11. Racismo e injúria racial: uma questão de justiça LEI VEREDITO TRIBUNAL LIBERDADE CORTE Fonte: Elaborado pelo autor. LITÍGIO JUSTIÇA LEI CORTE LITIGIO CRIME VEREDITO A injúria racial, anteriormente prevista no artigo 140, parágrafo 3°, do Código Penal, corresponde ao ato de ofender a dignidade ou decoro pela utilização de elementos de raça, cor e etnia de um determinado indivíduo. No geral, tal crime associa-se ao uso de palavras Direitos Humanos 47Direitos Humanos e sociedade: direitos sociais, antidiscriminação e desenvolvimento humano depreciativas referentes à raça ou à cor com a intenção de ofender a honra da vítima. Assim, a injúria racial era um crime prescritível, que tinha como previsão, em caso de condenação, a pena de um a três anos de prisão e multa, além da correspondente à violência. 2 No entanto, com a sanção da Lei 14.532, em 12 de janeiro de 2023, a prática de injúria racial tornou-se uma modalidade de crime de racismo, consequentemente, passou a ser tratada segundo as previsões trazidas na Lei 7.716/1989. Em outras palavras, a lei extraiu tipo penal de injúria racial do rol de crimes contra a honra do Código Penal e a depositou na Lei 7.716/1989, que define os crimes resultantes do preconceito de raça ou de cor. A injúria racial ao ser reconhecida como racismo, tornou-se inafiançável e imprescritível. Ou seja, aqueles que cometem essa conduta não mais podem responder em liberdade, mediante pagamento de fiança arbitrada pelo delegado de polícia que antes era possível. Além disso, como citado, crime de injúria racial tornou-se imprescritível, qual seja, independentemente de quando crime for praticado, quem cometeu poderá ser investigado, processado, e se con- denado, poderá receber penas de dois a cinco anos de reclusão - antes era de um a três anos. Por fim, importante registrar que também houve alteração no que se refere ao tratamento do chamado racismo recreativo, que, de forma sucinta, consiste em proferir ofensas sob a alcunha de serem "piadas" ou "brincadeiras", em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação, mas que tenham caráter racista. Nesses casos, houve aumento da pena de um terço até a metade, além da possibilidade de aplicação da causa de aumento quando cometida ou difundida por meio de redes sociais, da rede mundial de computadores ou publicações de qualquer natureza. Portanto, a equiparação da injúria racial ao crime de racismo registra não apenas a altera- ção do local da capitulação criminal, mas demarca a direção que se busca seguir quando se trata do combate ao racismo no país. Há um longo caminho a ser percorrido, mas essa mudança é um passo até lá. 2.5. POLÍTICAS PÚBLICAS COTAS E AÇÕES AFIRMATIVAS Figura 12. Ações afirmativas e o combate As ações afirmativas são ações destinadas ao racismo estrutural a corrigir injustiças, distorções ou discrimina- ções. É uma forma consciente de combater a Fonte: 123RF. desigualdade de oportunidades causada pelo racismo estrutural. Affirmative Há ações desenvolvidas por instituições, por Action exemplo, quando escolas e faculdades parti- culares oferecem bolsas de estudo específica para negros. As ações podem ser realizadas também pelo Estado mediante políticas públi- cas, por exemplo, quando aprova uma lei que determina que ensino da história da África seja conteúdo obrigatório dos livros de História utilizados no ensino básico, ou até mesmo quando promove a política de cotas em universidades e concursos públicos. 48A política de cotas representa uma ação estatal para garantir acesso de pessoas ne- gras, historicamente discriminadas e excluídas, a condições isonômicas para disputar mercado de trabalho e acesso delas às escolas e universidades. No Brasil, negros e pardos representam 53,6% da população (MERELES, 2020, [n. p.]). Apenas de 12% a 2 13% da população negra tem ensino superior. Por outro lado, entre brancos os números chegam a 30%. No ano de 2012, Supremo Tribunal Federal (JUSBRASIL, 2021, [n. p.]), quando pro- vocado para dizer sobre a necessidade das cotas para reparar as desigualdades ra- ciais, reconheceu que as cotas são necessárias para reduzir desigualdade e têm como objetivo reparar a desigualdade histórica entre negros e brancos. Entretanto, é preciso lembrar que STF reforçou caráter provisório das cotas, tendo em vista que, se elas se tornarem definitivas, a suposta reparabilidade histórica da desigualdade se transformaria em nova desigualdade. Universidade São Francisco Assim, do que dissemos, entendemos que racismo, embora seja uma prática ainda presente na sociedade, já pode ser visto como um aspecto de desigualdade e discrimi- nação. E isso já representa um avanço. Historicamente, os negros foram relegados a raças inferiores, que gerou escravidão e discriminação de muitas pessoas em razão da cor. As pessoas, então, foram se classificando em cores diversas do negro na tenta- tiva de obtenção de melhores chances na sociedade, naquilo que passou a se chamar de colorismo. racismo é comportamento que transcende a ação individual para atingir a estrutura social. Tanto é assim que algumas pessoas se valem de comportamentos racistas até mesmo de forma inconsciente, como reprodução de comportamentos das gerações antecedentes. É natural que não nos espantemos com poucas vagas ocupadas por ne- gros no Congresso Nacional, no Supremo Tribunal Federal e nos cargos, por exemplo, de presidente da República, governador e prefeito. Isso mostra que racismo faz parte de uma estrutura embutida na sociedade que causa desajustes naturais. Para isso, Estado encontrou alguns instrumentos de correção ou mitigação dessas distorções funcionais da sociedade, denominadas de políticas de ações afirmativas, como as cotas que reservam vagas para negros em universidades públicas e concur- públicos. As ações afirmativas são um grande instrumento para a reparabilidade das injustiças históricas provocadas aos negros, mas não são suficientes para garantir a manutenção da igualdade no futuro. nesse passo, a educação assume um papel imprescindível no sentido de promover a justa reparação, identificando os seus respon- sáveis e apontando um caminho no decorrer do qual a justiça e a solidariedade sejam valores sentidos por todos, independentemente de raça, de cor. Direitos Humanos 49Direitos Humanos e sociedade: direitos sociais, antidiscriminação e desenvolvimento humano Figura 13. Direitos Humanos Antidiscriminatórios Grupo X indivíduo LUGAR DE FALA Fala do preto e do branco 2 Desconstrução Estrutura de dominação DECOLONIALISMO COLONIALISMO = Colonialidade DOMINAÇÃO Revisão de teses e Ideias dos colonizadores verdades (nova compreensão do mundo) RACISMO DIREITOS HUMANOS AN- ESTRUTURAL TIDISCRIMINATÓRIOS Máquina reprodutora de desigualdades (sociedade) Hierarquia baseada na COLORISMO Sistema de desigualdades cor da pele Racismo como funcio- Subcultura negra namento normal da vida Hierarquização de cores coletiva RACISMO X INJÚRIA entre os pretos RACIAL Crimes diversos com penas diversas Maior gravidade do racismo Ambos os crimes imprescrití- AÇÕES AFIRMATIVAS veis (STF) Correção de distorções históricas Cotas em universidades e concursos Fonte: elaborada pelo autor. Recomendação de vídeo História da discriminação racial na educação brasileira - Silvio Almeida Escola da Vila 2018. Vídeo: Fundamentos da indicação: fazer o aluno entender racismo estrutural, dando ênfase à forma normal de tratamento diferenciado dos negros na sociedade, inferiorizados em sua mais essencial natureza. Pretende-se buscar a compreensão acerca da normalidade das estruturas de poder composta por brancos, que decidem destino e a vida dos negros. Texto Complementar: Ribeiro, Darcy. Povo Brasileiro: a formação e sentido do Brasil. Editora Global, 2017. Link: Recomendação de leitura: Relatório IBGE 2019: Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. Disponível em: https:// Acesso em: 28 nov. 2021. Artigo que trata da desigualdade social no Brasil conforme a divisão de raça ou cor. artigo é dividido nas seguintes partes: 50Introdução; Capítulo 1: Mercado de trabalho; Capítulo 2: Distribuição de rendimentos e con- dições de moradia; Capítulo 3: Educação; Capítulo 4: Violência; Capítulo 5: Representação política; Capítulo 6: Comentários finais. 2 Casos de Aplicação: Morte de George Floyd No dia 25 de maio de 2020, estadunidense George Floyd, homem negro, morreu asfixiado após ser imobilizado por um policial branco, na cidade de Minneapolis. Esse assassinato repercutiu nos EUA e no mundo, tendo iniciado uma onda de protestos antirracistas em meio à situação de pandemia do coronavírus. A violência policial levou ao assassinato de 5.804 pessoas em 2019 no Brasil. Estudos estimam que cerca de 75% dessas mortes por interven- ção policial eram de negros (Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019). racismo, como vimos até aqui, é estrutural e precisa ser combatido em todas as ações cidadãs, não apenas quando assunto está em alta. A proposta do caso pretende despertar nos alunos a realidade do racismo estrutural e as formas de combater e evitar esse tipo de comportamento Universidade São Francisco na sociedade, seja aquele praticado pelos cidadãos, sejam aqueles praticados pelo próprio Estado, como seria caso proposto para análise. Propõe-se também uma análise compara- tiva, no caso brasileiro, dos processos seletivos realizados por diversas empresas no ano de 2020, que reservaram 100% das vagas aos negros. Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019. Disponível em: https:// www.forumseguranca. NAL_21.10.19.pdf. Acesso em: 28 nov. 2021. 3. DIREITOS HUMANOS E DESENVOLVIMENTO: IGUALDADE E DESIGUALDADE NO SÉCULO XXI Estima-se que, atualmente, mais de 1,3 bilhão de pessoas se encontram na condição de extrema pobreza e são expostas a grave violação de direitos humanos, sem acesso a educação, água potável, saneamento, dentre outros direitos humanos básicos essen- ciais para viver uma vida com dignidade (UNDP-OPHI, 2021, p. 5) Desse grupo, destaca-se, no relatório do Índice de Pobreza Multidimensional (MPI, UN- DP-OPHI, 2021) global, que metade tem menos de 18 anos, ou seja, são crianças, grande parte pertence a grupos étnicos e/ou vive em países de renda média e ainda suporta a desigualdade de condição em razão do gênero, posto que dois terços das pessoas mais vulneráveis vivem em moradias em que nenhuma menina completou seis anos de estudo: 85% vive na África subsaariana (556 milhões) ou no sul da Ásia (532 milhões). SAIBA MAIS Índice de Pobreza Multidimensional (MPI, na sigla em inglês) global, é elaborado pelo Programa das Nações Unidades para desenvolvimento (PNUD) e pela Oxford Poverty and Human Development Initiative (OPHI), da Universidade de Oxford. Analisando a vida de 5,9 bilhões de pessoas localizadas em 109 países, percebe a pobreza com base em privações nos acessos a saúde, educação e, ainda, pelo baixo padrão de vida. relatório pode ser acessado nas versões inglês, francês e espanhol, na íntegra, no link seguinte. Disponível em: http://hdr.undp.org/en/2021-MPI. Acesso em: 4 mar. 2022. Direitos Humanos 51Direitos Humanos e sociedade: direitos sociais, antidiscriminação e desenvolvimento humano No Brasil, observa-se especialmente a desigualdade estrutural fruto do colonialismo e do longo período de escravidão, bem como desrespeito à cultura indígena e à pre- servação das etnias no território nacional, além da marginalização pela condição de 2 gênero. Assim, a desigualdade é manifesta aos grupos de pessoas pretas e pardas, índios e mulheres, especialmente de pessoas oriundas do Norte e do Nordeste do País. Esse desequilíbrio manifesto revela ofensa ao princípio da igualdade e do direito ao desenvolvimento. Nesse sentido, é preciso compreender conceito de desenvolvimento a fim de certificar que esse de direito se efetiva de forma concreta em nossa sociedade com base no re- conhecimento dos valores consagrados em tratados internacionais de direitos humanos e normais nacionais que garantam a todo ser humano a condição de viver e ter acesso a suas necessidades materiais e existenciais, de forma universal e indivisível. Assim, se ser humano é privado das mais diversas condições que lhe proporcione uma existência legítima de direitos, ele viverá em uma sociedade que lhe nega direito ao desenvolvimento. Amarthya Sen (2010, p. 16) adverte: desenvolvimento requer que se removam as principais fontes de privação de liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerân- cia ou interferência excessiva de Estados repressivos. No entanto, não se verifica combate à ausência de desenvolvimento sem políticas pú- blicas que promovam a igualdade nos cenários nacional e internacional. Nesse sentido, são necessárias a universalidade e a implementação dos direitos humanos na prática. No plano internacional, passados os horrores da Segunda Guerra Mundial, houve mo- vimentação de ações e agendas que procuraram reprimir grave cenário de crise e desigualdade dos países no mundo. No âmbito das Nações Unidas, por exemplo, em 1963, houve a criação do Instituto das Nações Unidas de Pesquisas sobre Desenvolvimento (UNRISD), cujo objetivo era am- pliar essa percepção sobre desenvolvimento. Neste agir objetivando estruturar uma política internacional, em 1965, é criado já citado Programa das Nações Unidas para Desenvolvimento (PNUD), uma agência especializada em combater a pobreza bem como em promover hu- mano de forma global. Apesar dos inúmeros esforços e debates sobre tema, é somente a partir de 1986 que o desenvolvimento tem seu reconhecimento formal como um direito humano inaliená- vel, com a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (Resolução n° 41/128 em 04 de dezembro de 1986). Incorporando aos Estados dever de cooperar uns com os outros para assegurar desenvolvimento e eliminar os obstáculos ao desenvolvimento, em seu artigo 3.3, essa declaração afirma que os Estados deveriam realizar seus direitos e cumprir suas obrigações a fim de promover uma nova ordem econômica internacional baseada em 52igualdade, soberania, interdependência, interesse mútuo e cooperação, assim como de encorajar a observância e a realização dos direitos humanos. Nesse mesmo sentido, anos após, em 1993, ocorreu a Conferência Mundial de Direitos 2 Humanos, da qual resultou a elaboração de uma Declaração e um Programa de Ação de Viena (1993), que afirma a necessidade de promoção da democracia, o desenvol- vimento e o respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais como conceitos interdependentes que se reforçam mutuamente. Estas passam a ser percebidas como liberdades fundamentais nos cenários nacionais e internacionais. Sen (2010, p.17) afirma que mundo atual nega liberdades, em uma opulência global, constatando que há um grande número de pessoas cuja ausência de liberdades subs- tantivas relaciona-se diretamente com a pobreza econômica, impedindo-as de saciar a fome, de obter uma nutrição satisfatória ou remédios para doenças tratáveis, de vestir- -se ou morar de modo apropriado, de ter acesso a água tratada ou saneamento básico. Universidade São Francisco No entanto, a percepção da pobreza e da ausência de desenvolvimento, na perspectiva de um mundo desigual, deve ocorrer não apenas pela ausência de renda econômica que sustente ser humano, mas também com base em uma multiplicidade de fatores que proporcionam às pessoas exercício usufruir de direitos humanos fundamentais e de viver com dignidade. Assim, dentre as causas apontadas da desigualdade social existente podemos indicar que, muitas vezes, pertencimento a grupo étnico ou gênero, desemprego, a ausên- cia de acesso a serviços de natureza essencial à condição de ser humano, como saúde, educação, moradia, a ocupação de espaços geográficos com forte concentração de renda por poucos, os graves conflitos, as mudanças climáticas que assolam planeta, bem como manifesto desequilíbrio na concentração de renda por parte da população mundial e a condição de subdesenvolvimento enfrentada por alguns países, especial- mente no sul global levam à negação do direito ao desenvolvimento. Piovesan (2021, p. 240) observa que direito ao desenvolvimento demanda assim uma globalização ética e solidária. Assim, não há como haver a concretização do direito ao desenvolvimento sem a divisão de forma igualitária das condições de acesso a direitos humanos por todos em uma so- ciedade, com a promoção do desenvolvimento econômico e social de forma equânime por todos os países do norte ao sul. 3.1. COMPREENDENDO ÍNDICE DE DESENVOLVIMENTO HUMANO (IDH) IDH é um dos índices usados para medir grau de desenvolvimento de uma socieda- de. Ele foi criado e desenvolvido por Mahbub ul Haq, com a colaboração do economista e ganhador do prêmio Nobel de economia em 1998, Amathya Sen, que perceberam que indicador de renda per capita como medida de percepção do desenvolvimento não era suficiente. Nesse sentido, os autores reforçaram a ideia de que era necessário mais que renda, um fator de ordem econômica, para reconhecimento e a promoção do desen- volvimento e medição do processo de determinada sociedade (PNUD). Direitos Humanos 53Direitos Humanos e sociedade: direitos sociais, antidiscriminação e desenvolvimento humano Assim, entendeu-se que uma medida para resumir grau de desenvolvimento de uma sociedade deveria considerar três dimensões básicas do desenvolvimento humanos, a saber: a renda, a saúde e a educação. 2 Nesse sentindo, de acordo com PNUD, é Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) uma medida geral com objetivo de ampliar a perspectiva sobre desenvolvimento hu- mano e progresso de determinada sociedade, muito embora não possa estar limitada a tal, como medida substitutiva do produto interno bruto (PIB) per capita. Assim, índice observa expectativa de vida, nível de escolaridade e renda nacional per capita. Vale ressaltar que mesmo IDH não possui uma aplicação universalmente aceita dadas as diferenças culturais, econômicas e sociais dos países e seus povos, portante existem outros índices de utilidade complementar. SAIBA MAIS Países como a Noruega, a Irlanda, a Suíça, a Região Administrativa Especial de Hong Kong, a Islândia, a Alemanha, a Suécia, a Austrália, a Holanda e a Dinamarca encontram-se no topo dos países com os melhores índices de desenvolvimento humano para se viver. Por outro lado, países como Nigéria, Burquina Fasso, Serra Leoa, Mali, Burundi, Sudão do Sul, Chade e República Centro-Africana figuram entre os piores índices de desenvolvimento humano. Bra- sil, nesse ranking, encontra-se na posição 87ª (em 2020) posição de uma lista de 189 países (RDS/PNUD). Outros índices acerca dessa avaliação são destaque no cenário internacional e no Bra- sil, como é caso do índice Gini, apontado por Jubilut, Rei, Garcez (2017, p. 240). Se- gundo os autores, esse índice foi desenvolvido por Corrado Gini, foi publicado em 1912 no documento e mutabilidade" (GINI, 1912) e varia de 0 a 1, em que representa situação de igualdade; e "1", extrema desigualdade. Assim, ele compara os 20% mais pobres da população com os 20% mais ricos, tendo sido adotado por organis- mos internacionais, como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento nômico (OCDE) e, no Brasil, pelo Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais (Ipea). 3.2. FORMAS DE ERRADICAÇÃO E COMBATE À POBREZA E À FOME Um dos grandes desafios da humanidade para essa geração e as próximas é a neces- sidade de erradicação e combate à pobreza e à fome. Amathya Sen (2010, p. 120) entende que a pobreza deve ser vista como privação das capacidades básicas, sem descartar também que a renda baixa é uma de suas causas principais, embora não possa ser considerada a razão primordial. Muitas pesquisas e muitos estudos na atualidade preocupam-se em desenvolver con- ceito de pobreza e sua percepção de forma multidimensional, como nos trabalhos de Townsend, D. Gordon, J. Mack, S. Lansley e S. Nandy. A privação de direitos importa para a manutenção de uma condição de natureza individual mas de responsabilidade social, a todo e qualquer indivíduo que esteja nessa situação. As medidas de combate à extrema pobreza e pela promoção do direito ao desenvolvimen- to também impulsionaram debate em conferências mundiais com grande participação 54ativa países na busca pela promoção de políticas e ações que visem solucionar problema. Nesse sentindo, em 2000, realizou-se na sede da ONU uma conferência que resultou 2 na Declaração do Milênio, que trazia para a humanidade e todos os países participantes a missão de promover os Objetivos Sustentáveis do Milênio, segundo Quadro 01. Quadro 01. Objetivos do desenvolvimento do milênio 1. Acabar com a fome e a miséria. 2. Oferecer educação básica de qualidade para todos. 3. Promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres. 4. Reduzir a mortalidade infantil. 5. Melhorar a saúde das gestantes. 6. Combater a Aids, a malária e outras doenças. Universidade São Francisco 7. Garantir qualidade de vida e respeito ao meio ambiente. 8. Estabelecer parcerias para o desenvolvimento. Fonte: elaborado pela autora com base nos dados da OMS. No caminho do que propõe a Declaração do Milênio, diversas conferências foram re- alizadas em Estocolmo (1972), Rio de Janeiro (1992), Johanesburgo (2002) e Rio+20 (2012), incorporando uma agenda global com mesmo propósito. Assim, em revisão, em 2015, a Declaração passa por nova reformulação na Cúpula para Desenvolvimento Sustentável, em Nova York, ampliando e incorporando novos te- mas para que houvesse a promoção de novos objetivos de desenvolvimento, traçando metas a serem alcançadas até 2030. Nesse sentido, com base no que ficou conhecido como Agenda 2030, que traz a incor- poração de 17 objetivos de desenvolvimento sustentável, há uma preocupação com cinco pilares: pessoas, planeta, prosperidade, paz e parcerias. A preocupação com as pessoas objetiva erradicar a pobreza e combater a fome ex- trema da mesma forma, pensando no planeta, a agenda propõe a atenção com meio ambiente equilibrado e saudável, com um sistema de menor consumo de maneira sustentável e com a redução dos impactos das mudanças climáticas. Além disso, pre- tende-se que todos tenham acesso a uma vida próspera, com qualidade em todas as suas dimensões, e também que haja paz, promovendo a diminuição da violência e do medo, por meio de desenvolvimento de sociedades pacíficas. As metas e os objetivos devem ser alcançados, de acordo com a Agenda 2030, por meio de uma parceria global revitalizada que propõe desenvolvimento com base em uma solidariedade global. Cabe pensar em uma das peças chaves promovidas pela Agenda, que é a necessidade de financiamento e parcerias privadas para alcance dos objetivos, algo que desde ponto de vista de proteção e cumprimento de direitos humanos não é universalmente aceito sequer como possível. plano de ação traça, assim, 17 objetivos de desenvolvimento sustentável, com base na visão de que não bastam emprego do desenvolvimento e a preocupação com ele Direitos Humanos 55Direitos Humanos e sociedade: direitos sociais, antidiscriminação e desenvolvimento humano apenas se considerando os aspectos econômicos, uma vez que estes têm de estar em harmonia e equilíbrio com um planeta mais sustentável, viabilizando a concretização dos direitos humanos básicos para todos. 2 Dentre os pontos relevantes dos 17 objetivos sustentáveis, Piovesan (2018, 280) destaca, especialmente, a erradicação da pobreza, a agricultura sustentável, a saúde e bem-estar, a educação de qualidade, a igualdade de gênero, a água potável e saneamento, a energia limpa, trabalho decente, a redução das desigualdades, as cidades e comunidades sustentáveis, consumo e as produções responsáveis, a ação contra a mudança global do clima, e a paz, a justiça e as instituições eficazes. A autora, com isso, percebe a mudança da arena para uma perspectiva mais global, que abrange ospaíses em desenvolvimento e os desenvolvidos em uma ação conjunta. SAIBA MAIS Para ler texto do plano de ação "Transformando nosso mundo: a Agenda 2030 para de- senvolvimento sustentável" e todos os objetivos com as respectivas definições, acesse o link seguinte. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/91863-agenda-2030-para-o-desenvolvimento- sustentavel. Acesso em: 9 dez. 2021 Para conferir os 17 objetivos, verifique a Figura 14. Figura 14. Objetivos do Desenvolvimento Sustentável Fonte:123RF. 17 1 16 2 15 3 14 4 ODS 13 5 12 6 11 7 10 9 8 56Quadro 02. ODS Objetivo 1. Acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares; Objetivo 2. Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e a melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável; 2 Objetivo 3. Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades; Objetivo 4. Assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos; Objetivo 5. Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas; Objetivo 6. Assegurar a disponibilidade e a gestão sustentável da água e saneamento para todos; Objetivo 7. Assegurar o acesso confiável, sustentável, moderno e a preço acessível à energia para todos; Objetivo 8. Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e pro- dutivo e trabalho decente para todos; Objetivo 9. Construir infraestruturas resilientes, promover a industrialização inclusiva e sustentável e Universidade São Francisco fomentar a inovação; Objetivo 10. Reduzir a desigualdade dentro dos países e entre eles; Objetivo 11. Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentá- veis; Objetivo 12. Assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis; Objetivo 13. Tomar medidas urgentes para combater a mudança climática e seus impactos; Objetivo 14. Conservação e uso sustentável dos oceanos, dos mares e dos recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável; Objetivo 15. Proteger, recuperar e promover uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, deter e reverter a degradação da terra e deter a perda de biodiversidade; Objetivo 16. Promover sociedades pacíficas e inclusivas para desenvolvimento sustentável, pro- porcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis; Objetivo 17. Fortalecer os meios de implementação e revitalizar a parceria global para o desenvolvimen- to sustentável. Fonte: elaborado pela autora com base em ONU (2021, [n. p.]). No que se refere ao primeiro objetivo acabar com a pobreza -, reforça-se a necessi- dade de os países erradicarem a pobreza extrema para todas as pessoas, utilizando-se como medida as pessoas que vivam com pelo menos UU$1,90 por dia. A meta objetiva ainda, até 2030, reduzir pela metade a proporção de homens, mulheres e crianças que vivam na pobreza, implementar medidas e sistemas de proteção social, garantindo que todos tenham direitos iguais aos recursos econômicos, acesso a serviços básicos, propriedade e controle sobre a terra e outras formas de propriedade, herança, recursos naturais, novas tecnologias apropriadas e serviços financeiros, incluindo microfinanças, dentre outras ações importantes (ONU, 2021). Com relação à fome, a meta principal é promover fim da fome e garantir acesso de todas as pessoas a alimentos seguros, nutritivos e suficientes durante todo ano, propiciando uma agricultura sustentável, que ajudem a manter os ecossistemas, que fortaleçam a capacidade de adaptação às mudanças climáticas, bem como a promoção Direitos Humanos 57Direitos Humanos e sociedade: direitos sociais, antidiscriminação e desenvolvimento humano de recursos suficientes para investimentos e desenvolvimento de novas tecnologias para estimular a alimentação, dentre outras medidas necessárias (ONU, 2015, [n. p.]). 2 3.3. PROMOÇÃO DE UMA SOCIEDADE QUE IMPLEMENTA NA PRÁTICA os DIREITOS HUMANOS Ao perceber na leitura conceito de pobreza e a sua relação com direito ao desen- volvimento, é importante entender que não há efetividade dos direitos humanos sem medidas práticas que de fato erradiquem a pobreza e garantam desenvolvimento, de forma universal e de forma indivisível. Nesse sentido, Piovesan (2018, p. 216), reforçando a característica da historicidade dos direitos humanos, afirma que estes devem ser reivindicados com base em um espaço simbólico de luta e ação social para a promoção de políticas públicas que os implemen- tem no dia a dia de toda a população. Uma sociedade que implementa os direitos humanos traz à população a condição de desenvolvimento. É preciso entender que essa medida não nasce sem mecanismos efetivos de justiça social, que promovem a todos, de forma equânime e solidária, acesso aos direitos mais básicos, como saúde, educação, moradia, cultura, lazer, trans- porte público de qualidade e oportunidade de renda a todos de forma equitativa e sem concentração. Por sua vez, a busca pela igualdade e desenvolvimento sem é complementada e reforçada por um regime de participação democrática na decisão das políticas públicas. processo democrático não pode nem deve se limitar a escolha dos políticos, mas em medidas que tragam a possibilidade à população de ser atendidas as suas reivindica- ções sociais, sem privilégios e benefícios a determinado grupo social. Nesse sentido, Bauman (2015, p. 47) observa que abismo crescente que separa os pobres que sofrem com os efeitos colaterais da má distribuição de riqueza tem como principal fonte a democracia, tornando-se objeto de rivalidades cruelmente sangrentas entre os bem-providos e os necessitados e abandonados. Figura 15. Pobreza e desenvolvimento Percebe-se que a promoção de uma so- ciedade que implemente os direitos hu- Fonte:123RF. manos na prática se traduz em desafio de natureza social, cultural, econômico, ambiental e político, na qual os anseios da população podem e devem ser con- cretizados a partir de uma educação de qualidade, a fim de possam ter consci- ência e promovam democraticamente direitos de elegibilidade de políticas pú- blicas que as tragam, de forma efetiva, o direito de usar e dispor do acesso de direitos que os garanta uma vida com 58dignidade, especialmente de uma educação de qualidade, água, alimentação adequa- da, lazer, saneamento e sobretudo com fruição do direito a felicidade com acessos as estruturas vitais básicas para ser titular de direitos humanos. 2 Vamos compreender melhor o que diz respeito à equidade, pois se a liber- dade é o cume, a equidade é a base; [...] civilmente, ela é todas as aptidões tendo iguais oportunidades; politicamente, todos os votos tendo o mesmo peso; religiosamente, todas as consciências tendo direitos iguais. (Victor Hugo, Os Miseráveis, 2017) Figura 16. Os 5 Ps PESSOAS PROSPERIDADE PAZ Universidade São Francisco PARCERIA PLANETA Fonte: elaborada pela autora. A AGENDA 2030 E 5PS 1 PESSOAS Erradicar a pobreza e a fome de todas as pessoas de todas as maneiras e garantir a dignidade humana. 2 PROSPERIDADE Garantir vidas prosperas e plenas em harmonia com a natureza. 3 PAZ Promover sociedades pacíficas, justas e inclusivas. 4 PARCERIAS Implementar a agenda por meio deu uma parceria global sólida. 5 PLANETA Proteger os recursos naturais e o clima do nosso planeta para as futuras gerações. Fonte: elaborada pela autora com base nos dados de pesquisa ONU BRASIL. Assim, entendemos que os direitos sociais se relacionam diretamente ao desenvol- vimento humano este, que passa por desafios políticos e sociais. A erradicação da pobreza e da fome está entre os maiores desafios globais do século XXI. Essa meta, embora determinada pelos países pela Agenda 2030 e os seus 17 objetivos sustentá- veis, não poderá ser efetuada sem a parceria de uma sociedade que busque equilibro e a promoção dos direitos humanos a fim de garantir a todos uma vida com qualidade e dignidade e acesso equânime. Por sua vez, desenvolvimento sem a concretização, garantida por Estados, de uma sociabilidade que respeite os seus limites naturais do planeta, com políticas e medidas globais de re-educação de consumo e com metas de sustentabilidade econômica, torna essa meta para ano de 2030 uma grande utopia. Direitos Humanos 59Direitos Humanos e sociedade: direitos sociais, antidiscriminação e desenvolvimento humano Os desafios certamente virão, como as mudanças climáticas, as crises econômicas, as epidemias sanitárias e as mudanças nos comportamentos sociais. A pandemia do coronavírus comprova que foi acima afirmado. A crise sanitária enfren- 2 tada a partir de 2020 só intensificou a desigualdade presente nos países. Isso sinaliza para mundo que é preciso repensar as formas de distribuição de renda, de concen- tração de poder, de equilíbrio no sistema, de formas de consumo, preservação do meio ambiente e, principalmente, de promoção uma solidariedade global presente entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento, para que habitemos um mundo interco- nectado que não admita mais ausência de justiça social. Link "Condições de vida, desigualdade e pobreza". za.html. Acesso em: 6 mar. 2022. Links recomendados 1. Living on one dollar (2013) Direção de Zach Ingrasci, Chris Temple, Sean Leonard Premiações: Melhor documentário no Sonoma International Film Festival filme aborda a experiência de pesquisa de quatros jovens universitários americanos, na Guatemala, que passam a viver com apenas 1 dólar por dia, vivendo as incertezas e difi- culdades da população local a fim de compreender de forma empírica a pobreza e suas consequências, trazendo profundas reflexões sobre desigualdade, oportunidades, consumo e desumanidade. 2. Fim do Sonho Americano Noam Chomsky (2018) [Requiem for the Ame- rican dream] 1h18min / documentário, biografia Direção: Kelly Nyks, Jared P. Scott Roteiro Peter D. Hutchi- son, Kelly Nyks Elenco: Noam Chomsky Sinopse: Com base em diversas entrevistas realizadas com linguista, filósofo e sociólogo Noam Chomsky, documentário reflete a questão da concentração do poder e a destruição do mito do sonho americano, demonstrando que a desigualdade social é um dos maiores desafios da humanidade no Século XXI. Disponível em: https://youtu.be/_FtpgDvWjkQ 60