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SUMÁRIO Deixando que outro Quatro seja: educação como conhecimento indígena da prática de liberdade natureza e a natureza do 6 conhecimento indígena 68 Um Acesso e proteção de conhecimentos tradicionais e biodiversidade 71 Mundurukando com Cinco Ceiça Almeida 10 A história desse rico bate-papo 13 Entre a cruz e a espada 76 Para começar a conversa: a prática A presença missionária em terra do esquecimento 15 indígena e o Estado laico 79 Filosofia é a amarração do tempo 1549 26 80 Sonhar, ouvir e contar histórias 1757 39 83 1988 85 Dois Missões em terras indígenas: uma afronta ao caráter laico do Estado 86 Educação indígena: do corpo, da mente e do espírito 44 Seis Um país multiétnico 47 Utopias: ensaios políticos- Educar pelo sonhar 48 Educação do corpo, educação poéticos para se viver bem 90 Manifesto dos sentidos 50 93 Educação da mente, educação Trago em mim o sonho de muitos 95 Sobre mérito, dom e merecimento para a vida 97 52 Educação do espírito, educação A esperança como projeto 99 Cidade-teia-educadora 102 para sonhar 54 Comunhão 104 Três A cultura como economia 106 Não somos donos da teia da vida 109 tempo da leitura e a leitura Trabalho, pão e poesia 113 do tempo 58 Um furo no futuro 115 tempo da leitura e a leitura do tempo 61 Referências 118Educação indígena: do corpo, mente e do espíritoEducação indígena: do corpo, mente e do espíritopaís Brasil é um país multiétnico desde seu princípio. No século XVI, neste solo, vi- viam diferentes culturas, quando aportaram os invasores trazendo ganância e cruz. Eram mais de mil povos, segundo alguns, mais de cinco milhões de pessoas, de acordo com outros. Falavam-se cerca de novecentas línguas diferentes. Muitos dos povos daquele tempo não existem mais. Foram devorados pela espada, pela ganância e pelo preconceito. Alguns se esconderam no meio da multidão que se for- mou do encontro, nem sempre amoroso, entre homens e mulheres de diferentes cores. Ou- tros fugiram para a floresta e guardaram enquanto puderam sua memória e suas tradições. Hoje, ainda há diversidade cultural e linguística no Brasil. Há 230 povos e 180 línguas que se mantêm vivos, para desespero dos que pretendem depredar ou piratear a riqueza contida no solo e subsolo brasileiros. São povos que querem apenas sobreviver com dignidade, procurando assegurar uma vida plena para seus filhos. Desejam para si mesmo que seus avós desejavam: paz para andar sobre a terra, sem deixar marcas de sua passagem. Essa diversidade traz uma riqueza inerente à própria concepção de mundo cons- truída ao longo de um processo delicado e contínuo chamado educação. É isso que este texto 1 Texto apresentado no Congresso Internacional Para leer el XXI, realizado em Havana, Cuba, em 28 de outubro de 2007. Minha participação ocorreu graças ao apoio recebido do Ministério da Cultura, pelo Programa de Intercâmbio Cultural e do Instituto C&A. Danieldiscute: uma concepção de homem, de cosmos, de divindade, que foge ao alcance das lentes ocidentais ou que é e isso é grave simplesmente ignorada, ocultada e Educar pelo sonhar Educar é fazer sonhar. Essa forma de falar sobre a educação indígena se cons- truiu à medida que fui refletindo sobre minha infância e adolescência dentro da cultura munduruku. [...] Minha compreensão aumentou quando, em grupo, deitá- vamos sob a luz das estrelas para contemplá-las, procurando imaginar universo imenso diante de nós, que nossos pajés tinham visitado em sonhos. Educação para nós se dava no si- lêncio. Nossos pais nos ensinavam a sonhar com aquilo que de- sejávamos. [...] Aprendi a ser índio, pois aprendi a sonhar. la para outras paragens. Passeava nelas. Aprendia com elas. Percebi que, na sociedade indígena, educar é arrancar de dentro para fora, fazer brotar os sonhos e, às vezes, rir do mistério da vida. (MUN- DURUKU, 1996) A educação indígena é muito concreta, mas é, ao mesmo tempo, mágica. Ela se tinção realiza em diferentes espaços sociais que nos lembram sempre não pode haver dis- entre dia a dia dos afazeres e aprendizados e a mágica da que própria existência que MUNDURUKANDO1se afirma nos sonhos e na busca da harmonia cotidiana. O que pode parecer contraditório à primeira vista segue uma lógica bastante compreensível e não são negações dos vários modos de coexistência, mas um modo de a mente operacionalizar que temos a pensar e viver. Já disse em O banquete dos deuses (MUNDURUKU, 2010) que não é hábito de nossa gente fazer conjecturas filosóficas a respeito da vida. Segundo os princípios que regem existir, a vida é feita para ser vivida com toda a intensidade que momento nos oferece. Essa filosofia se baseia na ideia do presente como um presente que recebemos de nossos ances- trais e na certeza de que somos seres de passagem neste planeta, portanto, sempre desejosos de viver o momento como ele se apresenta a nós. Nessa visão, está implícita uma noção de tempo alicerçada no passado memorial, mas nunca em uma ideia vazia de futuro. O futuro é, pois, um tempo que ainda não se materializou, ainda não se tornou presente e, por isso, é impensável para a lógica que rege nossa existência. É claro que pensar assim dentro de um mundo marcado pela especulação com uma visão utilitarista do tempo leva-nos à uma compreensão dos motivos que marca- ram a relação do ocidente com os povos originários. Foi uma relação impositiva, regida pela secular violência do Estado Colonial e do Cristianismo. Ambos os olhares negavam humanidade à humanidade dos povos indígenas. Negavam a possibilidade de esses po- vos terem construído uma cosmovisão baseada na unidade corpo/mente/espirito, pois isso jogava por terra a doutrina do poder cristão, do rei e da Igreja. Daí a cruz ser trazi- da para ser carregada pelos originários da terra e nunca pelos que a trouxeram; daí a es- pada que atravessou não apenas corpo dos antepassados, mas também seu espírito. (GAMBINI, 2000). Daniel MundurukuAinda que ignorado, negado ou transformado pelos colonizadores, saber que sempre alimentou nossas tradições se manteve fiel a seus princípios fundadores. Isso desnorteou os invasores nos idos de 1500 e continua desnorteando os invasores de nosso tempo, que pretendem destruir as tradições resistentes, com algumas baixas, ao "canto da sereia" do capitalismo, cujo olhar frio concentra-se na fragilidade humana, capaz de vender sua dignidade e ancestralidade em troca de conforto e bem-estar. Essa resistência continua viva. Tais tradições se mantêm especialmente por meio de práticas regidas por uma concepção elaborada não pela academia ocidental - embora ela também já a tenha descrito, mas sem proveito real, como se pode ver nas referências bibliográficas -, mas pela experiência de vida, pela observação meticulosa dos fenôme- nos naturais e pela certeza de que somos fios na teia da vida. A educação indígena só pode, pois, ser compreendida pela indissociabilidade da tríade corpo-mente-espírito, cada um desses polos responsável pelo desabrochar dos sentidos, da experiência e dos sonhos. Educação do corpo, educação dos sentidos Aprendemos na aldeia, desde muito pequenos, que nosso corpo é sagrado. Por isso, temos de cuidar dele com carinho, para que ele cuide de nossas necessidades bási- cas. Aprendemos que nosso corpo é habitado por ausências, e que essas ausências precisam MUNDURUKANDO1ser preenchidas com sentidos construídos por nós. Aprender é, então, conhecer que pode preencher os vazios que moram em nosso corpo. É fazer uso dos sentidos, de todos eles. 51 É necessário, portanto, valorizar O próprio corpo oferecendo a ele os instrumentos para que ele também possa cuidar da gente. É muito importante que cada um aprenda a conviver com seu grupo por ser ele que vai nos "guiar", dar um norte para as descobertas que um corpo infantil precisa fazer. É nessa convivência que a criança indígena vai treinar a vida comunitária como uma necessidade de realização e compreensão do todo. Além disso, vai aprimorar, treinar olhar para mundo à sua volta e descobrir que os sentidos, junto com os comportamentos que ela cria, representam sua única segurança e garantia de sobrevivência contra perigos da natureza. Ao descobrir os vazios que corpo possui, a criança indígena não despreza a necessidade de adquirir conhecimentos complementares. Ao contrário, percebe como é importante deleitar-se com eles em um processo de aprendizagem que passa pela leitura do entorno ambiental. Vai compreendendo, assim, que ambiente a ser observado deixa marcas que orientam seu ser e sua própria vida. Entende que uso dos sentidos atribui sentido às ações: a leitura das pegadas dos animais, o dos pássaros, os sons do vento nas árvores, crepitar do fogo, as vozes da floresta em suas diferentes manifestações. Conscientiza-se de que andar pela mata é muito mais que um passeio de distração ou diversão; que subir nas árvores é mais que um exercício físico; que nadar no rio é mais que brincadeira; que produzir seus brinquedos é mais que um desejo de satisfação; que ficar horas confeccionando utensílios e objetos é mais que uma necessidade. A criança enten- de, aos poucos, que em seu corpo sentido ganha vida e voz. Suas ações são norteadas pelas ausências corporais que precisam ser preenchidas. Daniel MundurukuPor isso ela tem de crescer. Cresce para dar espaço a outras ausências que tam- ém precisam ser preenchidas. Agora, no entanto, as ausências não podem mais ser preenchidas apenas de nodo informal. É preciso formalizar, e, se antes a criança apenas imitava os mais velhos, partir de agora precisa mostrar que seu corpo está amadurecido para o novo. É nesse nomento que ela vai viver conscientemente seus rituais de maioridade: é uma forma en- contrada pelo corpo para construir passo seguinte. Não vou me ater às outras etapas do crescimento, pois não é esse meu objetivo. Basta dizer que, até que um(a) indígena se torne adulto(a) entre 13 e 15 anos -, seu cor- po já estará todo preenchido e saberá encontrar caminhos para sua sobrevivência física. Vai surgir, então, outro alimento que se iniciou junto do mesmo processo, para imunizar seu corpo do vazio da existência: a educação da mente. Educação da mente, educação para a vida Se educar corpo é fundamental para dar importância a seu "estar no mundo", a educação da mente é indispensável para estabelecer e significar esse estar no mundo. Se, no corpo, sentido ganha vida, é na mente que esse sentido é elaborado.Dizia ainda há pouco que, na concepção indígena de tempo, presente é o único tempo real. O passado é memorial, e futuro, mera especulação que praticamente não entra na esfera mental dos povos indígenas. Apresentei a reflexão de como essa nossa cosmovisão se choca com a concepção linear que ocidente desenvolveu acerca do tem- po. Para indígena, tempo é circular, holístico, de modo que, vez ou outra, os aconteci- mentos se encontram sem se chocar. O passado e presente ganham dimensões seme- e se autorreforçam. É por isso que discurso indígena se apossa de elementos aparentemente distantes entre si, mas compreensíveis no contexto em que se encontram. É a lógica da ressignificação dos símbolos, que nos permite passear pelo passado utilizan- do instrumentos do presente e vice-versa. A educação da mente para compreender essa concepção passa pelos contado- res de história. Quem são eles? São os que trazem para presente passado memorial. São aquelas pessoas, homens e mulheres, que assumiram papel relevante de "manter céu suspenso", conforme a compreensão guarani. São os que leem e releem tempo, tornando-o circular. Quase sempre são velhos que já sentiram a passagem do tempo em seus corpos. São os guardiões da memória. Para muitos dos povos originários, esses anciões são como uma enorme biblioteca que guarda a memória ancestral. Daí sua importância para a ma- nutenção da vida e do sentido. Lembro que, para povo munduruku, ter sorte na vida é morrer velho. O motivo é simples: cabe a eles, aos velhos, o privilégio de manter viva a memória do povo com as histórias que carregam consigo, contadas, elas também, por outros antepassados, em uma teia sem fim que se une ao princípio de tudo. Morrer velho é a garantia de que nosso Daniel Mundurukupovo não morrerá. Aos pais cabe a educação do corpo. Aos anciãos cabe a educação da 54 mente, do espírito. É, pois, com o ato de ouvir histórias que nossa gente autoeduca a mente, de modo que indígena vive no corpo tudo que é elaborado pela silenciosa e constante atenção aos símbolos que as histórias nos trazem. O corpo, que vive presente, sustenta- -se, preenche seu vazio com os alimentos que a memória evoca. Não se trata, todavia, de uma vida sem sentido, próxima ao reino animal, como diziam colonizadores. Ao contrário: é uma vivência plena de significações que reverberam no corpo. Nossos povos são leitores atentos dos sentidos da existência. Educa-se, portanto, para a compreensão do mundo exatamente como ele nos foi presenteado pelos espíritos ancestrais. Educa-se para viver essa verdade, plena para nossa gente, e que nos mostra caminho do bem- -estar, da alegria, da liberdade e do sentido. Educação do espírito, educação para sonhar Outro aspecto relevante da vida indígena é sonho. Ele carrega a crença de que liza há outros mundos possíveis de ser encontrados. O sonho é a linguagem que universo uti- para nos lembrar de que somos parentes de todos os seres vivos que habitam conosco MUNDURUKANDO1este planeta. Com a observação e interpretação do sonho, instalamos em nós uma espécie de sistema que atualiza a memória que nos integra a uma coletividade universal, fazendo- -nos sair da prisão imposta pelo corpo. É assim que entendemos como saber de um povo é, ao mesmo tempo, local e universal, mesmo que ele não tenha consciência disso. Muitos povos indígenas brasileiros creem em um outro mundo, no qual vivem os espíritos criadores. Acredita-se, também, que as coisas só estão vivas porque, assim como ser humano, possuem uma alma, que as tornam nossas parentas e companheiras na passagem pela vida. Essa compreensão exige que nossos povos ritualizem suas ações, especialmente quando elas têm relação com esses nossos parentes de alma. Dessa forma, a derrubada de uma área para plantio da roça é acompanhada por rituais que nos recor- dam que nada brota sem a ajuda dos ancestrais e que é primordial expressar a gratidão dispensada a eles e aos seres que criaram a vida. Os rituais se processam da mesma maneira na caça e na pesca. A convicção que se apoia no parentesco entre os homens e os demais seres vivos é uma mola propulsora eficaz uma vez que, por crer na existência de relações entre eles, não é permitida e nem justificada a exploração, além da necessidade, do ambiente em que vivem. O fio condutor dessa relação está no sonho. Meu avô dizia que essa é a lingua- gem que nos permite falar com nós mesmos. Dizia, também, que não dormimos para descansar, mas para sonhar e conhecer os desejos desses seres que nos habitam. Para ele, o sonho era nossa garantia da verdade. Para mim, o sonho sempre será lugar em que as histórias se tornam realidade. Resumindo: é no corpo que reverberam os saberes da mente (intelectual) e do espírito (emocional). Educar é, portanto, preparar corpo para sentir, apreender e sonhar. Daniel MundurukuPode ser, também, para sonhar, apreender e sentir. Ou, ainda, apreender, sentir e sonhar. Não importa. É um mesmo movimento. É 0 movimento da circularidade, do encontro, do sentido. Talvez nada disso faça sentido para 0 ocidental, acostumado ao pensamento li- near. Não importa. Nunca fomos compreendidos, e sobrevivemos. Mesmo assim, é impor- tante destacar que, apesar da incompreensão por parte do pensamento ocidental - mais quantitativo e utilitarista -, vivemos um momento em que a diversidade de experiências culturais é nosso maior valor. Daí porque, apesar de incompreendidas, as culturas indíge- nas têm um papel importante a cumprir nessa ágora, em que cada um precisa contar sua história. De resto, a incompreensão e negação dessas culturas redundam, como bem tra Vandana Shiva, na pilhagem e usurpação dos saberes tradicionais que sempre tiveram mos- que dizer e ensinar. Na educação, ensinar a sonhar, certamente, é uma grande lição.Utopias: ensaios para se viver bemM anifesto 93 tirem parte do todo; Tendo nascido em uma sociedade na qual as pessoas são educadas para se sen- Na qual tempo não é linear, impedindo que as pessoas desperdicem suas vidas correndo atrás de riqueza e poder; Na qual cada fase de vida é tratada como um processo que nunca mais se repetirá e, por isso, deve ser vivida em sua plenitude; Na qual a relação com a natureza não é de domínio, mas de convivência; Na qual as pessoas se sentem solidárias umas às outras e capazes de partilhar seu pão e sua poesia; Na qual passado é visto e respeitado como memória e o presente como uma dádiva que precisa ser usufruída e agradecida a todo momento; Na qual as crianças tudo podem, porque são educadas pelos velhos, que tudo sabem; Na qual os saberes são partilhados pelas histórias contadas nas noites sem lua para nos lembrarem que somos partes do mundo e não seus donos; Na qual, enfim, somos, desde que nascemos, e nascemos para sermos inteiros, completos, não no futuro distante, mas no agora, no presente, hoje... Entendo que é preciso valorizar todos os saberes; Respeitar todas as diferenças; Daniel MundurukuEstimular cada vida; Aceitar a diversidade de ideias; Despertar cada vocação; Alimentar cada sonho; E sonhar, sonhar, sonhar. Sonhar um sonho possível de tolerância, respeito, dignidade, direitos. Sonhar um mundo que nos faça ter dignidade por acolher que cada ser é. Sonhar uma realidade que seja composta de alegria, alimentada pela liberdade de ser e de viver sem competir para mostrar mérito sobre outra pessoa. Ah, como tenho desejo de construir uma realidade em que possamos, de fato, sermos mais por sermos Um! Alguém dirá que é utopia. Dirá bem, dirá certo. É. O mais legal é saber que ela é possível. Eu a vivi. Eu vim de lá. É que quero oferecer aqui. Esse é O bem-viver que aprendi de minha gente. É ser Presente. É ser parte. É pertencer. É me importar com meu lugar. É me comprometer com a minha realidade. É não ficar indiferente. É não aceitar que digam que não posso fazer. É ser livre. É entender que minha realização só é possível quando outro também se realiza. É ser solidário, solícito e coletivo. Enfim, é Ser.Trago em mim sonho de muitos Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos sonhos do mundo. Álvaro de Campos (um dos heterônimos de Fernando Pessoa) O que somos, em última análise, é uma somatória de muitas narrativas que vêm sendo contadas ao longo da história humana. Querer imaginar que temos como escapar a essa verdade é colocar-se fora do contexto do humano que mora em nós. Digo isso para lembrar que cada ente, humano ou não, traz inscritas dentro de si as marcas de sua descendência, de seu pertencimento, do seu lugar no mundo. Isso deveria nos comprometer uns com os outros. Deveria fazer que nos olhásse- mos com a seriedade própria de pessoas que se respeitam, se admiram, se motivam e se provocam para que novo nasça constantemente em nós enquanto seres individuais, mas também enquanto coletividade que se sustenta pela coesão e pelo desejo de comun- gar da mesma realidade. Com isso, cada pessoa constrói sua passagem por este mundo sendo alimentada por muitas outras vozes, que podem ser de suas famílias, seus colegas de escola ou de tra- balho, namorados e namoradas, companheiros e companheiras, profissionais de classe, e muitas outras mais. Daniel MundurukuImagino, portanto, que carregamos essas vozes ao construirmos nosso caminho 96 e nos realizarmos como profissionais e cidadãos em interação social com os outros. Do mesmo modo, ocorre quando nos colocamos a serviço da sociedade para de- sempenharmos uma função de poder. Tudo aquilo que acreditamos, defendemos, apren- demos ou aceitamos é trazido conosco. A esse conjunto de ideias e experiências podemos chamar de ideologia, utopia ou quimera, porque elas nos projetam para a construção de nossos sonhos individuais, mas também para sonho do coletivo que mora em nós. Em outras palavras, podemos pensar que a formação que carregamos é, em certa medida, a reverberação no indivíduo dos sonhos de muitos. sujeito político pre- cisa ser fio condutor dessa onda magnética que corre nas veias da sociedade. Ao se propor servir a comunidade, traz consigo utopias e quimeras de todas as pessoas: so- nhos de uma vida mais tranquila, de um trabalho melhor, de mais lazer, cultura e saúde, de cuidado com as crianças e velhos, de respeito ao meio ambiente, de serviços públi- de mobilidade urbana, de planejamento estratégico e de segurança de qualidade, enfim, de vida plena. Servir ao povo não é a mesma coisa que se servir do povo para proveito próprio. A realização pessoal do servidor público eleito deve ser, em última análise, a felicidade de sua gente, de seu povo, de seu lugar. A única riqueza permitida a um cidadão prenhe de desejos de servir a comuni- dade deve ser a felicidade estampada no rosto de seus concidadãos ao perceberem que aquele ser é digno de carregar em si sonho de muitos. É assim que imagino que deva ser construída uma sociedade verdadeira- mente solidária, democrática e participativa. É isso que trago dentro de mim como MUNDURUKANDO1premissa de realização pessoal: ou todo mundo é feliz ou ninguém jamais poderá se 97 dizer feliz. Vamos juntos construir essa realidade? Sobre mérito, dom e merecimento Se você correu, correu, correu tanto e não chegou a lugar nenhum Baby, oh Baby, bem-vinda ao século XXI. Raul Seixas Está cada vez mais comum ouvirmos a palavra "meritocracia" em nossos círculos de amizade. Ela é uma palavra criada para induzir jovens e adultos a se pensarem como indivíduos capazes de "vencer na vida" com sua força de vontade e determinação. Ela nos diz que, se lutarmos bravamente, se nos esforçarmos ao máximo, se soubermos gerir nossas vidas com cuidado e planejamento, nos daremos bem e seremos empresários de sucesso, um case a ser estudado pelas grandes corporações. Poderemos ser, inclusive, considerados coaching de outros empreendedores individuais, que poderão alastrar ain- da mais nossos conceitos. Sei que estou exagerando um pouco. Minha intenção é pensarmos que há algo de errado nesse conceito. Meritocracia é um engodo, talvez maior do que aquele que tentamos combater: excesso de Estado na condução das políticas. Talvez não tenha "caído Daniel MundurukuÉ a ditadura do egoísmo sobre a noção de coletivo. nossa ficha" ao pensarmos que meritocracia é a ditadura do indivíduo sobre outro Quando pensamos que que "vencemos" nos por mérito próprio, estamos negando de todas as outras gerações terra outras antecederam; tantas estamos esquecendo que "para a luta cermos" tivemos de aceitando jogar por ilusão de pessoas que têm o mesmo "direito"à ven- que nós; estamos estamos, enfim, a fazendo que somos do individualmente melhores do que vida letivamente; liderar ele jogo sistema econômico, que precisa que CO- vestindo de opressores para subjugar aquele que nos é mos "fortes" para os que considera "fracos". Sem querer, às vezes, estamos seja- nos A meritocracia é, por conta disso, a negação do dom que trazemos dentro de O dom é sonho que nos acompanha desde que nascemos, mas que vai se revelando nós. medida que vamos nos abrindo para enxergar a realidade que nos cerca, pois ela vai à mostrando onde nossa contribuição é mais eficaz e mais importante para a coletividade nos na qual estamos fixados. Nesse sentido, dom vai nos tornando parte do lugar, pois vai nos comprometendo com as transformações necessárias para que todos tenham vida ple- na, abundante. O dom nos torna, portanto, partes, gerando em nós sentimento de pertenci- mento, pois nos compromete com todo que nos rodeia. Ou seja, a meritocracia pode nos realizar enquanto pessoas egoístas e narcisistas, ao mesmo tempo, somos usados pelo sistema para esquecermos do nosso passado e das lutas sociais e coletivas capazes de realizar o todo em vez do individual. Sei que isso pode parecer confuso, mas não é. É simples. O fato é que, em pleno século XXI, ainda somos escravos de uma forma de pensar que vem ditando nossos MUNDURUKANDO1comportamentos, nossas escolhas, nossos consumos, nossas ideias. Ainda que não demos conta, estamos o tempo todo sendo manipulados e induzidos a comportamentos nos 99 que não escolhemos. Somos tão manipulados que não admitimos que somos. Faz parte da estratégia do manipulador fazer-nos acreditar que quem nos manipula são aqueles que não nos querem "vencedores". Soa estranho, eu sei. O que me parece fato é que a natureza nos ensina quanto o coletivo é mais forte que solitário; que juntos sobrevivemos de modo mais saudável e verdadeiro. A natureza nos aponta, e conta, que os melhores caminhos são os que já foram pisados muitas vezes; que atalhos são importantes quando os caminhos estão interditados; que é preciso estar de olhos abertos e atentos para escolhermos melhor momento de colocarmos dom a serviço da coletividade; que é preciso não ter pressa, mas agir com tranquilidade, paz e perseverança. É bom não esquecer: mérito não é seu. A esperança como projeto Não quero impor sobre as pessoas um sonho que pareça ser apenas meu. Não quero acreditar que que desejo para mim seja o que outro deseja também. Não quero imaginar que belo que mora em mim seja suficiente para aqueles que, vivendo em outras situações, aprenderam a olhar mundo com outros olhos. Não posso impor um modelo de existência para quem quer que seja. Daniel MundurukuPosso, no entanto, propor. Posso sugerir. Posso mostrar que é possível construir 100 uma nova realidade por meio da realidade vivida pelas pessoas. Posso apresentar caminho alternativo e dar alguma garantia de que esse caminho pode ser mais seguro, um confortável e repleto de outras belezas as quais as pessoas ainda não tiveram oportuni- dade de experimentar. Posso, por exemplo, levá-las ao teatro e mostrar como essa arte requer um trei- no do olhar; um ritual a ser seguido; um cerimonial secular. Posso oferecer-lhes uma ida ao cinema e treinar olhar para perceber os encantos da sétima arte que vão além das tramas que as novelas apresentam. Posso conduzi-las a uma biblioteca e revelar-lhes encantos de uma leitura bem-feita, de uma história bem construída, dos contos de fadas. Posso, inclusive, mostrar que a cultura pode render empregos muito bem munerados, e que artistas, produtores, assistentes, roteiristas, escritores, maquiado- re- res e contrarregras podem viver de sua arte sem que isso os diminua como pessoas e cidadãos. Posso sugerir que é possível escolher em que gastar os recursos públicos. Basta, para isso, criar um orçamento participativo no a população decida as prioridades de seus bairros e regiões. As pessoas vão saber que isso nada tem a ver com audiências públicas que já apresentam projetos prontos apenas para aprovarem ou não aquele empreendimento. Estou falando em decidir em que e como gastar. Sabe que isso gera nas pessoas? Pertencimento. Elas se sentirão valorizadas, empoderadas e donas daque- le espaço. Posso, ainda, demonstrar que saúde tem mais a ver com prevenção, boa ali- mentação, exercícios físicos, lazer, espaços sociais, participação cultural do que com MUNDURUKANDO1construção de hospitais e prontos-socorros; que a assistência social bem conduzida a economizar recursos para outras demandas; que educação não é a mesma coisa pode estudo, mas que a escola é um equipamento fundamental para inserir as crianças no que mundo tecnológico e científico no qual vivemos. Posso lembrar às pessoas que crescimento econômico não acontece quando se tem um polo industrial na cidade. Que economia acontece pelo turismo cultural e reli- gioso, pelo cuidado com meio ambiente, pela valorização da cultura popular, pelos es- petáculos, pelas praças bem cuidadas, pela valorização do comércio de rua, entre outras possibilidades. Não, eu não posso impor um projeto que seja meu, mas posso propor algo que tenha nascido em mim por conta das minhas experiências vividas, os estudos realizados e a compreensão de que é preciso oferecer opções para que as pessoas possam escolher qual caminho desejam seguir. Isso é ter um projeto. Não um projeto qualquer. Isso é ter esperança. Não uma esperança que nunca se alcança. Isso é ter a esperança como projeto. Esperança do verbo "esperançar", como dizia Paulo Freire. Esperançar é estar em movimento. Esperar é acomo- dar-se, aguardar, ficar inerte. A nossa esperança é construção, é audácia, é criatividade, é inovação, é pertencimento, é ousadia. É nossa cidade crescendo com igualdade, respeito, tolerância e alegria. É nossa gente mais realizada, nossos jovens com boas expectativas, trazidas por um sentimento de pertencimento, autoestima, esperança. Sim, nosso projeto éa esperança. Trazemos a esperança como projeto. Daniel MundurukuCidade-teia-educadora Sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha Mas sonho que se sonha junto é Raul Seixas Talvez uma das imagens de que eu mais gosto quando penso em comunidade seja a da teia. A teia de aranha, diga-se. Nascida de um único fio, que vai sendo "gestado" pelo aracnídeo, a teia vai ga- nhando forma ao ser entrelaçada, costurada, construída, arquitetada. A teia é sonho da aranha. Algo que já mora dentro dela e que ela externaliza demonstrando beleza, harmo- nia e praticidade. À medida que a aranha "constrói" seu sonho, toma todos os cuidados para que nenhuma ponta se desarmonize. No fundo, ela sabe que uma teia bem construída é ga- rantia de sobrevivência. Os avós já me diziam, criança ainda que eu era, que somos parte da grande teia da vida. Parte, não donos. Diziam sempre que"o que atinge um único fio atinge a teia inteira". Essa é uma bela descrição para sentido de comunidade, de pertencimento. Cada ser é uma ponta da teia da vida. Cabe zelar para que cada ponta cumpra seu papel, realize seu destino, viva seus sonhos. Talvez por isso eu goste de pensar em uma cidade-teia-educadora. Nela, todos são importantes e nada é deixado para trás. Não há nada desprezível, sejam pessoas, MUNDURUKANDO1matas ou animais; sejam praças, calçadas, roças ou prédios; sejam histórias, direitos ou memórias; sejam melodias, poesias ou escolas; sejam crianças, jovens ou velhos. 103 E, talvez, o mais importante: gosto de pensar que isso tudo "conversa" entre si, como os fios da teia que a formam. Essa é a cidade que mora em mim. É a cidade que sonho construir. Cidade onde "ninguém solta a mão de ninguém"; "ninguém é deixado para trás"; "não há nem um a menos". Em uma cidade assim, seremos todos responsáveis uns pelos outros e teremos verdadeiro sentimento de solidariedade, que é que nos caracteriza como seres humanos. Esse sonho mora dentro de mim como fio que "adormece" dentro da aranha. Ela 0 deixa escapar quando se sente preparada para construir sua teia. Para mim, a hora chegou. Sei, no entanto, que a aranha aqui é apenas uma imagem que uso. Está dentro dela sua teia como uma escrita que a natureza lhe oferece. Imagino quanto nós, hu- manos, cuja escrita é múltipla e criativa, conseguiremos montar: um mosaico colorido, diverso, rico, polivalente, harmonioso e tolerante. Este é meu convite para todos aqueles e aquelas que querem virar aranhas. Homens e mulheres aranhas para construir uma linda teia brotada de dentro de nós e que poderá seguir para muito além do que somos. Vamos? Daniel Munduruku104 Comunhão: partilha, compromisso, solidariedade, companheirismo Gosto da palavra "comunhão" como referência a "troca", "partilha", "compromisso". Gosto da palavra "comunhão" ao pensar que a vida que nos é imposta por uma invisível mão universal só tem sentido quando é partilhada com os outros seres que habitam este planeta no qual nos movemos. Gosto da palavra "comunhão" quando usada no sentido da solidariedade, em que humanos se sentem irmãos uns dos outros e são capazes de sacrifícios para se ajudarem independentemente de condições, classe social, cor da pele ou partido político. Gosto da palavra "comunhão" porque ela revela uma sintonia entre iguais: sinto- nia de pensamento, sentimento e ação. Porque ela irmana as pessoas e as humaniza. Gosto dessa palavra porque ela simboliza algo que nos é muito caro: a fé. A fé é o princípio primeiro que rege nosso estar no mundo. Não falo apenas da fé religiosa, mas penso na fé como princípio de vida: sem ela, a vida seria uma eterna dor, porque estaríamos sempre armados até os dentes de desconfiança e de intolerância. É a fé que temos na capacidade humana que nos faz ter alguma esperança de que possamos viver a vida sem muitos entraves, impasses ou ilusões. Por isso nos relacio- namos, nos casamos, trabalhamos, partilhamos espaços uns com os outros, vamos à de igreja, a clubes e a parques. Isso tudo é movido pela fé que temos, trazida pela ideiaA palavra "comunhão" partilha me faz lembrar de outra de que gosto muito: Significa "aquele que comigo mesmo pão". Em outras palavras: aquele que CO- 105 munga comigo seu alimento. Fabuloso! Comunhão, portanto, é uma palavra sem partido, sem dogma, sem É uma palavra sem dono, sem métrica, sem pátria. O que está por trás dela é, no uma mística que nos permite usá-la para nos lembrar de que somos partes de um todo entanto, nos une ao infinito formando uma teia de responsabilidades uns com os outros. Serve, que inclusive, para questionar a incoerência dos que a usam com sentido religioso, mas cuja vida não condiz com sua mística. Serve para lembrarmos que caridade não é a mesma coisa que partilha. Serve para justificarmos que toda ação política tem de se pautar pela ideia da comum-união. Sonho com uma sociedade da comunhão. Essa sociedade olharia para cada ser humano ou não com olhos da solidariedade, jamais permitindo que alguém fique para trás ou seja tratado sem dignidade. Uma sociedade cujo princípio seria da partilha em que, mesmo que alguns pudessem ter mais, não seria permitido que outros tivessem muito menos. Uma sociedade que compreendesse a vida como um processo de autorrealização, na qual as crianças pudessem ser apenas crianças, jovens apenas jovens, adultos plena- mente adultos e os velhos virassem referência para os mais jovens. Uma sociedade-teia na qual cada pessoa se sentisse parte importante em seu equilíbrio. Uma sociedade que não ficasse julgando outro por conta de sua orientação sexual, da marca de sua vestimenta, da cor de sua pele ou do time de futebol. Isso não condiz com a sociedade da comunhão. Aliás, contrário disso já existe e está aí para percebermos que a sociedade da exclusão não está mais dando certo. Temos de caminhar para a sociedade da comunhão. Daniel Mundurukuum sonho? Uma quimera? Uma utopia? Sim, mas também é a esperança no que ha de mais humano em nós. A cultura como economia A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte. A gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte. Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer, Sérgio Britto; interpretada pelos Titãs Quando penso em como a sociedade moderna se organiza, me dá a triste sen- sação de que algo está errado. Talvez pense isso porque vejo que ela se organiza tendo como referência indivíduo e sua incapacidade de transformar ambiente em um lugar que acolha todas as manifestações humanas que existem. Sei que isso acontece porque homem ocidental mediano foi educado para pensar de forma linear. Ou seja, ele pensa que a felicidade que ele tanto busca nunca está onde ele se encontra. Para isso, lhe é oferecida uma garantia: se esse cidadão se comportar direito, se for disciplinado, se souber poupar dinheiro que ganha, se trabalhar, trabalhar e trabalhar, seu futuro A estará garantido pelo fundo da felicidade que ele deixou depositado no banco. e sociedade bancária organiza a vida do cidadão para que ele se sinta protegido, A garantido felicidade assim, um dia, será finalmente feliz. Essa é a visão linear da história mora no futuro e toda a nossa vida é pautada por essa "verdade universal e e da divina". vida. MUNDURUKANDO:Pensando e vivendo assim não nos damos conta de que passamos pela vida 107 endurecidos e infelizes. Os números da economia e da bolsa de valores, as estatísticas e as variações cambiais, os rendimentos e as crises financeiras, os investimentos e os em- préstimos vão nos dando a tônica da existência. Por conta disso, não vemos nossos filhos crescerem, já não nos divertimos mais, abrimos mão do passeio em família, recusamos adquirir um livro ou assistir a um filme no cinema. Não aceitamos as escolhas dos jovens quando dizem querer cursar teatro, cinema ou ser educador. Enfim, endurecemos es- pírito para as artes, que podem nos proporcionar a paz necessária para sentirmos a brisa da vida. Aqui, volto meu pensamento para os povos originários novamente. São sociedades que educam suas crianças para serem homens e mulheres completos, plenos, realizados. Fazem isso porque sabem que não se pode dividir a vida entre festa ou trabalho; vida ou morte; mérito ou sorte; belo ou feio. Entendem a experiência de existir como um princípio único, que pode e precisa ser movido pela completude do ser. Quando é que ser é completo? Quando ele pode vivenciar todas as experiên- cias que a vida oferece e não fica alienado a uma única visão. Quando pode se lançar na vida sem medo, sem competição, sem ser menospre- zado pelas outras pessoas. Quando não precisa ter vergonha de dançar, cantar, pular, falar, pensar, refletir, sugerir, aprender. Isso tudo como um movimento de circularidades em que os saberes não competem entre si, mas se complementam. O mais importante disso é imaginar que é possível experimentar tal movimento e ainda fazer girar a roda da economia. À medida que todos os saberes interagem, criam um círculo de troca fazendo com que aquilo que foi produzido gere um consumidor que, Daniel Mundurukusua vez, trará novos produtos para o círculo. Isso faz com que a economia faça parte 108 da por cultura de um povo. Penso, acredito e advogo que a melhor forma de gerar emprego, trabalho, renda economia é deixar que os talentos tomem conta das cidades. A musicalidade rende tra- balho e (basta olhar para o tanto de profissionais que essa arte movimenta); a teatralidade rende trabalho (é só dar uma olhada no comércio que isso gira); a literatura rende trabalho (basta ver as feiras de livros, os festivais literários e as bienais); esporte como espetáculo e seus milhões de rendimentos também rendem trabalhos, que se desdobram no comér- cio formal e informal e em demandas ao setor hoteleiro, por exemplo. Pensar futuro como o estamos traçando hoje é pensar uma economia linear em que apenas alguns terão acesso aos bens culturais e viverão tristes em suas mansões cercadas por cercas elétricas. Todavia, pensar presente de maneira diferente ao que status quo costuma nos apresentar é pensar que a felicidade gera milhões, distribui melhor as riquezas produzidas, transforma a vida das pessoas... Enfim, nos proporciona uma vida mais plena de sentido, porque esse sentido quebra gelo das agruras exis- tenciais, alimenta nossas utopias, expande nossa criatividade e liberta da prisão que 0 futuro nos oferece. É assim que penso a cultura. É assim que imagino que é possível transformar a realidade. É assim que olho mundo em que vivo: uma teia de relações que acontecem na circularidade da vida na qual cada ser humano pode ser que desejar ser sem podar desejo do outro. No desejo de compartilhar saberes, vive a realização do Ser. É preciso reconstruir esse mundo para que cada cidadão seja pleno. Vamos reconstruí-lo juntos?Não somos donos da teia da vida 109 Meu avô costumava dizer que tudo está interligado e que nada escapa da da vida. Ele costumava levar a mim e as outras crianças para uma abertura da floresta, trama então, deitava-se sob o céu, apontava para os pássaros em pleno e nos dizia que eles escreviam uma mensagem para nós. "Nenhum pássaro voa em vão. Eles trazem sempre uma mensagem do lugar onde todos nos encontraremos", dizia ele em um tom de simpli- cidade, simplicidade dos sábios. Outras vezes, nos colocava em contato com as estrelas e nos contava a origem delas, suas histórias. Fazia isso apontando para elas como um maestro que comanda uma orquestra. Meus irmãos, primos e eu ficávamos sempre enfeitiçados pela doçura das lavras que saíam de sua boca. Era um encantamento que nos enchia de alegria e de uma satisfação impossível de não ser notada. Confesso que não entendia direito que ele queria nos dizer, mas o acompanhava para todos os lugares só para ouvir a poesia presente em sua maneira simples de falar da vida. Em uma certa ocasião, ele disse que cada coisa criada está em sintonia com criador e que cada ser, inclusive o homem, precisa compreender que seu lugar na natureza não é de senhor, mas de um parceiro, alguém que tem a missão de manter mundo equilibrado, em perfeita harmonia para que o mundo nunca despenque de seu lugar. "Enquanto houver um único pajé sacudindo seu maracá, haverá sempre a certeza de que mundo estará a salvo da destruição." Assim nos falava nosso velho avô, Daniel Mundurukufôssemos eu, meus irmãos, primos e amigos capazes de entender a força de 110 como palavras se e de sua visão esperançosa sobre a humanidade. Ele tinha uma suas grande no poder transformador do ser humano. Isso ele deixava transparecer nos momentos muito de nos lembrar de que somos partes da grande teia da vida. Só bem mais tarde, homem adulto, conhecedor de muitas outras culturas, pude começar a compreender a enormidade daquele conhecimento saído da boca de um ve- lho que nunca tinha sequer visitado a cidade ao longo de seus mais de 80 anos. Percebi, então, que meu avô era um homem com uma visão muito ampla da realidade e que nós éramos privilegiados por termos convivido com ele. Essas lembranças sempre me vêm à mente quando penso na diversidade, na dife- rença étnica e social, na vida dos seres não humanos que compartilham mesmo espaço conosco. Penso nisso e me deparo com a compreensão de mundo dos povos tradicionais. É uma concepção na qual tudo está em harmonia com tudo, tudo está em tudo, e cada um é responsável por essa harmonia. É uma concepção que não exclui nada e não dá toda a importância a um único elemento, pois todos são passageiros de uma mesma realidade, são, portanto, iguais. No entanto, não se pode pensar que essa igualdade signifique uni- formidade. Todos esses elementos são diferentes entre si, têm uma personalidade própria, uma identidade própria. Por intermédio de minhas leituras e viagens fui compreendendo, aos poucos, aquilo que o meu avô dizia sobre a sabedoria que existe em cada um e em todos os seres do planeta. Descobri que não precisa ser xamã ou pajé para chacoalhar o maracá, basta colocar-se na atitude harmônica com todo, como se estivéssemos seguindo o fluxo do rio, que não tem pressa, mas sabe onde quer chegar. Foi assim que descobri os sábios MUNDURUKANDO1orientais, os monges cristãos, as freiras de Madre Teresa, os mulçumanos, os evangélicos, 111 os pajés da Sibéria e dos Estados Unidos, os ainus do Japão, os pigmeus, os educadores e mestres... Descobri que todas essas pessoas, em qualquer parte do mundo, praticando suas ações buscando equilíbrio do universo, estão batendo seu maracá. Entendi, então, a lógica da teia. Entendi que cada um dos elementos vivos segura uma ponta do fio da vida, e que fere e machuca a Terra machuca também a todos nós, os filhos da Terra. Foi aí que entendi que a diversidade dos povos, das etnias e dos pensamentos é imprescindível para colorir a teia, do mesmo modo que é preciso sol e a água para dar forma ao arco-íris. Sei que trazer esse tipo de saber para homens e mulheres modernos pode pa- recer antiquado e fora de moda. Sei que defender a circularidade do pensamento ances- tral contra um mundo que pensa dentro de um quadrado e é alimentado pelo sistema econômico, que precisa devorar tudo o que encontra à sua frente para se alimentar, tem alguma temeridade. Os saberes ancestrais têm, no entanto, uma existência própria que vai além do tempo e dos sistemas políticos e econômicos. Por isso se caracterizam, por serem saberes. Ou seja, são um modo próprio de compreender a existência; um modo próprio de lembrar às pessoas que as outras existências importam; um modo próprio de lembrar que existir é mais que consumir coisas, possuir riquezas, acumular bens; um modo de lembrarmos que a vida é passageira e que as riquezas estéticas que nos foram dadas de presente formam um mosaico para colorir a paisagem existencial em que nos movemos. Detonar, destruir, Daniel Mundurukuexplorar, extirpar cada centímetro dessa beleza fere a nossa condição de hu- 112 manos dilapidar, conscientes, uma vez que nosso papel é subjetivar a experiência de Não creio que mundo esteja no fim. Sequer penso em avaliar essa Sei que mundo é movimento e é assim que ele se molda para continuar nos ensinando a sermos partes do que ele de fato é. A natureza é cíclica para nos lembrar de que também somos. Desobedientes, fazemos ouvidos moucos para nos colocarmos como rebeldes Por conta disso, criamos cidades, construímos pontes, barramos rios, cortamos árvores, caçamos beija-flores, ocupamos território, produzimos guerras, matamos pessoas, acumulamos riquezas além do que podemos consumir, abandonamos crianças e maltratamos velhos, inventamos tecnologias e nos envenenamos com agrotóxicos. Isso tudo fazemos por nos pensarmos rebeldes ou, que é pior, deuses. Observando atentamente, a natureza acolhe, produz pureza, lança um ar respirável, mantém as riquezas biológicas, reproduz sistemas orgânicos, muda a cada estação para nos lembrar sua circularidade. Impassível, porém nunca pacífica, a Grande-Mãe acredita na nos- sa capacidade regeneradora, porque sabe que fomos criados com a mesma essência celular. Ela sabe que podemos mudar porque é isso que ela observa acontecendo quando percebe homens e mulheres se unindo em torno dos valores ancestrais; mulheres e homens que defen- dem a vida, todas as vidas; quando percebe que ainda há solidariedade entre humanos e, es- pecialmente, quando vê que há homens e mulheres que nunca esqueceram de onde vieram e continuam uma luta silenciosa e solidária para manter a Teia-Vida equilibrada e céu suspenso. MUNDURUKANDO1Trabalho, pão e poesia 113 E sem seu trabalho, um homem não tem honra e sem a sua honra se morre, se mata. Não dá pra ser feliz, não dá pra ser feliz. Gonzaguinha Gosto muito de pensar nos temas trabalho e cultura como dois direitos inerentes aos seres humanos. Inerentes e essenciais para que o humano em nós possa ganhar di- mensão, ganhar significado, ganhar luz. O trabalho, potencialmente, pode contribuir para que nós nos realizemos como pessoas. Por vezes, ele proporciona satisfação ao corpo; por outras, preenche nossa verve criativa. E, nesse rastro, ouvimos e ecoamos: trabalho dignifica e enobrece homem". Esse ditado, repetido pelos pais aos filhos, serve como um alerta sobre a necessidade de escolhermos o tipo de trabalho que queremos, desejamos ou temos vocação para realizar. Essa é uma das condições para nos realizarmos como pessoas, que anda junto a sermos bem vistos pela sociedade e encontrarmos uma boa companhia para a vida. Contudo, para que ser humano se realize plenamente, também é necessário desen- volver a criatividade, a sensibilidade, a fantasia, a alma; só assim encontrará uma satisfação pes- soal completa. Precisamos alimentar nosso lado poético, nosso lado lúdico, nosso ser espiritual. corpo, alimentado pelo pão gerado pelo esforço laboral, precisa da poesia para que tal esforço ganhe sentido. A interação dessas duas dimensões (ser e ter) é que nos traz felicidade. Ser feliz não é simplesmente possuir coisas. Ser feliz é ter as coisas que nos Daniel MundurukuSer. ser só se realiza na sua própria inteireza, ou com seja, a arte quando somos capazes 114 permitam sentido ao trabalho desenvolvido na convivência que a vida nos pro- de dar Isso acontece quando podemos ler a poesia que está no mundo e nos livros; quando porciona. podemos ir ao cinema ou ao teatro sem ter de ficar contando trocados ou quando podemos ir a uma livraria e sentar para folhear os livros sem medo de ser expulsos dali. E isso tudo só é possível quando entendemos que trabalho e lazer são direitos essenciais. Aqui não falo do lazer como uma visita ao shopping center, ou um banho na fonte da praça pública, ou mesmo futebol com os amigos aos finais de semana. Isso tudo vale, mas estou falando do direito que nasce no momento em que temos condições para frequentar os lugares que sempre nos negaram. Portanto, nasce de um trabalho bem remunerado e que nos prepare para usar as novas tecnologias, por exemplo. Parece que a coisa é fácil assim mas não é. A situação vivida pela maioria das pessoas é de total impossibilidade de pensar que o lazer como direito é privilégio de uma minoria que detém capital financeiro. É para essa elite que é pensada a cultura do lazer porque é essa mesma elite que sempre esteve organizando as políticas públicas. E essas políticas marginalizam a cultura da periferia e as expressões da cultura popular. Você já parou para pensar que a cultura popular só aparece quando essa elite "deixa"? Quando permite? Quando organiza? É como se essas pessoas nos dissessem: "ve- nham dançar para a gente ver", "venham cantar para nós porque somos bonzinhos e gostamos de vocês", "venham nos divertir". Alguns incautos vão dizer que estou exagerando e semeando discórdia entre é classes sociais. Quem pensa assim não percebe que só o fato de existirem classes sociais já a prova incontestável dessas práticas históricas de marginalização. MUNDURUKANDO1Um mundo assim não me atrai. Gosto de pensar na junção entre trabalho e lazer; 115 entre trabalho e esporte; entre trabalho e cultura; entre pão e poesia. É nisso que creio e é isso que busco. Alguns hão de chamar de comunismo, marxismo-leninismo, marxismo utópico, quimera delirante. Talvez pensem que é anarquismo ou mesmo distopia. Acho mesmo que pode ser tudo isso. Mas, se quiserem chamar por uma palavra mais bonita ou mais agradável, chamem de humanismo. m furo no futuro O hoje é apenas um furo no futuro por onde passado começa a jorrar. Raul Seixas Como descendente de um povo originário, aprendi, desde cedo, que é preciso valorizar o passado como um mestre que pode nos ensinar a viver bem o agora, presente. Os velhos contam a importância de nos colocarmos como aprendizes, apreendedores. Nem sempre entendi direito que queriam ensinar, porque existem coisas que só quando ouvimos muitas vezes conseguimos chegar às raízes. As palavras têm raízes especialmente quando conseguimos deixar que elas adentrem em nosso corpo e nele façam um caminho. São como um rio que corre demarcando território da memória ancestral. Daniel Mundurukuas palavras vão ganhando corpo até conseguirem fazer morada 116 0 fato sentidos. é que Nesse momento, passam a habitar corpo, a mente e e fortalecer forma e, finalmente, passam a fazer sentido. Isso exige tempo, observação, elas dão Exige coragem, destreza e tranquilidade. Exige pertencimento, compromisso, atuação. paciência. Exige que sejamos seres do presente, do hoje, do agora, do Alguém pode querer entender essas afirmações imaginando que é impossível vivermos apenas do presente, sem planejar que há de vir pela frente. Há quem vá con- siderar essas afirmações como uma prisão à qual estamos submetidos e querer justificar que devemos olhar para a frente como a única possibilidade de existirmos. Talvez seja aí que more a grande sacada dos povos originários: passado não é prisão. Ao contrário, é liberdade. O futuro sim é uma prisão, pois ele nos condena a viver sem sentido. Apenas presente nos compromete com uma existência fértil e criativa, porque nos obriga a estarmos atentos ao cotidiano e a buscarmos respostas aos dramas do existir. Nas sociedades indígenas, isso se apresenta pelo cuidado com os mais velhos memórias do passado e com as crianças possibilidades da continuidade dessas memórias. Dessa forma, a vida vai sendo vivida de maneira integral, sem precisar abrir mão do que se é. Viver presente é usufruir os benefícios que a vida oferece no momento atual, no agora. É viver presente como um presente que se ganha, que se usufrui e que nos faz felizes. Se imaginarmos que é possível construir uma sociedade com esses princípios de do convivência, respeito, harmonia, comprometimento e pertencimento, estaremos acreditan- na maior das utopias humanas. Se também acreditarmos que as sociedades originárias MUNDURUKANDO1do Brasil já vivem em uma sociedade assim e querem mantê-la, podemos supor que 117 há outras maneiras de compreender a vida para além do que sistema econômico nos obriga a acreditar nos dias atuais. Particularmente, acho ser possível sonhar com uma sociedade capaz de viver feliz sabendo presentificar sua experiência. Creio ser possível valorizar presente à medida que damos papel ímpar ao passado que nos forjou. Para isso é preciso contar essa histó- ria vivida pelos diferentes ângulos. Fazer resgate da memória ancestral e valorizar cada uma das vozes que a com- põem seria primeiro passo para avançarmos em direção ao que virá. É importante não esquecer que que nos lança para a frente é passado. O futuro é apenas a especulação que nos arranca do agora e nos faz pensar que que é bom ainda estar por vir. Essa é a ilusão gerada pelo sistema, que nos estimula a consumir para enriquecer apenas a parcela privilegiada da população, aquela população que detém a riqueza e pode pagar pela for- ça de trabalho dos mais fracos e humildes. Tenho a convicção de que o que nos torna felizes enquanto humanos é hoje, porque ele é único momento que de fato temos para sorrir, abraçar, cantar, dançar, amar, viver. É tempo que temos para relembrar nossos ancestrais, festejar os ciclos da nature- za, agradecer a vida dos filhos, netos, amigos e companheiros. O futuro à morte nos leva. presente nos dá a alegria. É disso que é feita nossa existência. Tão somente disso. Ou tão semente disso. De resto, fica a palavra de nosso eterno Maluco Beleza:"o hoje é apenas um furo no futuro por onde passado começa a jorrar". Quem puder entender, que entenda. Daniel Munduruku