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Quilombos Pelotenses: Etnocentrismo e Dignidade Humana

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QUILOMBOS PELOTENSES: ETNOCENTRISMO E GRAU DE (IN)EFICÁCIA DO PRINCÍPIO
DA DIGNIDADE HUMANA E DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
QUILOMBOS PELOTENSES: ETHNOCENTRISM AND DEGREE OF (IN)EFFICIENCY OF THE
PRINCIPLE OF HUMAN DIGNITY AND OF FUNDAMENTAL RIGHTS
Ana Clara Correa Henning
RESUMO
A Constituição Federal de 1988 (CF/88) garante a todos direitos fundamentais e afirma o princípio da
dignidade humana como fundamento da República Federativa do Brasil. Reconhece, também, a diversidade
cultural em nossa sociedade e dispõe sobre a preservação da cultura afro-brasileira, concedendo aos
remanescentes de quilombos o direito de propriedade às terras ocupadas por seus ancestrais. Com o objetivo
de investigar a eficácia dessas garantias constitucionais, realizamos uma pesquisa de campo qualitativa em
comunidades quilombolas no interior da cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul. Entrevistamos oito pessoas
utilizando um roteiro semi-estruturado e observamos as condições de vida nesses locais. Tendo como
referencial teórico diversas obras de historiadores, sociólogos, antropólogos e juristas e forte base no
paradigma emergente explicitado por Boaventura de Sousa Santos, constatamos um alto grau de ineficácia
das regras previstas na CF/88, em vista das precárias condições de sobrevivência nessas comunidades e de
práticas etnocêntricas historicamente enraizadas na sociedade brasileira.
PALAVRAS-CHAVES: Quilombos; Paradigma Emergente; Dignidade Humana; Direitos Fundamentais;
Diversidade Cultural.
ABSTRACT
The Federal Constitution of 1988 (CF/88) guarantees all fundamental rights and affirms the principle of
human dignity as the foundation of the Federative Republic of Brazil. It also recognizes the cultural
diversity in our society and provides for the preservation of african-Brazilian culture, giving the remaining
quilombos title to the lands occupied by their ancestors. Aiming to investigate the effectiveness of these
constitutional guarantees, we conducted a qualitative field research in maroon communities within the city
of Pelotas, Rio Grande do Sul. Eight people interviewed using a semi-structured and observed the living
conditions there. The theoretical framework several works of historians, sociologists, anthropologists and
lawyers and a strong base in the emerging paradigm explained by Boaventura de Sousa Santos, found a high
degree of inefficiency of the rules of CF/88, given the precarious living conditions in these communities and
ethnocentric practices historically rooted in Brazilian society.
KEYWORDS: Quilombo; Emerging Paradigm; Human Dignity; Fundamental Rights; Cultural Diversity
 
Introdução
 
O texto a seguir é fruto de um estudo interdisciplinar onde procuramos abranger diversas áreas do
conhecimento tais como antropologia, história, sociologia e direito. Da mesma forma, analisamos dados
coletados em pesquisa de campo em comunidades remanescentes de quilombos, na cidade de Pelotas, Rio
Grande do Sul. Para a realização desse estudo empírico, adotamos o método qualitativo, aplicando a oito
quilombolas um roteiro semi-estruturado composto por quatorze perguntas, em outubro de 2007. Na mesma
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* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8748
ocasião, observamos as instalações, o tipo de alimentação, o acesso a bens materiais e culturais, o cotidiano
dessas pessoas e suas famílias.
Já no início da pesquisa imaginávamos que essas comunidades não possuíam infra-estrutura
básica, encontrando-se expostas a ambientes insalubres e a ofertas de empregos, quando existentes, mal
remunerados. O que nos propúnhamos a fazer era conferir o grau de (in)eficácia do princípio da dignidade
humana e dos direitos humanos constitucionalmente previstos. O que segue é o resultado dessas
investigações.
 
1. Evolucionismo Social, Etnocentrismo e Representação da Etnia Negra
 
A maneira como visualizamos outras pessoas e vivenciamos nossas relações pessoais é fortemente
marcada por paradigmas que organizam a sociedade e que variam no tempo e no espaço. Tais modelos
influenciam, ainda, diversos campos do conhecimento, entre tantos outros, o direito e a antropologia.
A ciência moderna, fruto do iluminismo e da racionalidade linear e matemática, tornou-se o que
Boaventura de Sousa Santos (2006) denomina de paradigma dominante, uma vez que seus postulados
encontram-se na grande maioria dos saberes denominados científicos. Suas características incluem a
relevância das ciências exatas, a segurança científica, a prevalência da cultura européia, o academicismo e a
compartimentalização do conhecimento. No campo do direito, esse modelo teve no positivismo jurídico
kelseniano uma representação que permanece ainda hoje em vigor, traduzindo-se na preponderância da
norma estatal escrita, no monopólio do aparato da justiça pelo Estado, na neutralidade na elaboração das
regras jurídicas e da sua aplicação pelo magistrado. A citação a seguir é de Fábio Ulhoa Coelho (1997, p.
16-17) ao analisar a teorização de Hans Kelsen:
 
Normas valem. Sua existência específica é sua validade. Para que uma norma valha, a vontade do autor
é apenas uma condição, mas não a razão essencial. Esta se localiza na competência normativa do autor,
competência esta conferida por outra norma e assim por diante [...] Cada norma vale não porque seja
justa, ou porque seja eficaz a vontade que a institui, mas porque está ligada a normas superiores por
laços de validade, numa série finita que culmina numa norma fundamental [...] Kelsen, neste sentido,
foi um ardoroso defensor da neutralidade científica aplicada à ciência jurídica. Sempre insistiu na
separação entre o ponto de vista jurídico e o moral e político (itálico no original e negrito nosso).
 
A antropologia, por sua vez, foi uma ciência moldada pelo paradigma dominante desde suas
primeiras teorizações, influenciadas pelas descobertas biológicas de Charles Darwin (século XIX) – onde a
evolução das espécies ocorre através da sobrevivência dos mais fortes e adaptáveis. Nessa esteira, diversos
autores realizaram a transposição da Teoria das Espécies para a organização social, entendendo a evolução e
o progresso das sociedades como fatos indiscutíveis.
O evolucionismo cultural classificava as sociedades de acordo com seu grau de evolução.
Utilizando a civilização européia como padrão, todas as outras civilizações com características diferentes
desse modelo eram consideradas inferiores. Dessa maneira, africanos, americanos e asiáticos eram
diferentes dos europeus, uma vez que esses últimos advinham de uma sociedade evoluída e, portanto,
civilizada (ROULAND, 2003).
O etnocentrismo é uma das características dessa forma de interpretar o mundo. Segundo Everardo
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Rocha (2006, p. 07-09), o etnocentrismo é uma:
 
[...] visão de mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são
pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a
existência [...] a sociedade do “eu” é a melhor, a superior. É representada como espaço da cultura e da
civilização por excelência. É onde existe o saber, o trabalho, o progresso. A sociedade do “outro” é
atrasada. São os selvagens, os bárbaros. São qualquer coisa menos humanos, pois, estes, somos nós
(grifos nossos).
 
Integrante da escola evolucionista, Cesare Lombroso sustentava que seguramente era possível
identificar a personalidade criminosa através da aparência, utilizando, para isso, o padrão da fisionomia do
povo europeu (SILVA, 2005). Esse entendimento associou-se fortemente à etnia negra, pois, como salta aos
olhos, seu o físico é distinto do paradigmaocidental. Dessa forma, ela foi vista como raça inferior, o negro
um ser indigno, de cultura primitiva, destinado à escravidão e à submissão. Nesse sentido, Luiz Felipe de
Alencastro (2004, p. 80) faz a seguinte referência:
 
Constatado o número elevado de suicídios entre os escravos – comprovado pela estatística policial da
época – os cientistas passaram a reduzir o ato de desespero e de revolta a uma patologia cerebral
característica dos negros. [...] o dr. Imbert, ex-cirurgião da marinha imperial francesa, vai mais longe.
Segundo ele, o negro diferia do branco não só pela cor como também ‘por uma limitação em sua
organização cerebral, que não lhe permite levar ao mesmo grau a extensão das suas faculdades
intelectuais’. Caracterizados por essa deficiência cerebral, os escravos entregavam-se à libertinagem e
à preguiça, ‘vícios dos negros que produzem as enfermidades’.
 
Exemplo dessa visão etnocêntrica ocorreu durante o período escravagista no Rio Grande do Sul.
Entre os charqueadores mais conhecidos em Pelotas, uma figura proeminente criticou os indivíduos brancos
que mantinham relações amorosas com escravos, argumentando que:
 
[...] vêm de Portugal muitos homens e suposto que alguns deles escapem a praça e queiram casar, devem
não achar com quem celebrar núpcias, pois [...] não restam mulheres para os que vêm de fora e daqui se
seguem celibatários escandalosos pelas misturas com a gente de cor, e em prejuízo desta, resulta uma
população a mais desprezível e uma desmoralização universal (GUTIERREZ, 1993, p. 32).
 
Reflexos atuais desse processo discriminatório são os indicadores sociais que apontam os
afrodescendentes em pior posição onde “[...] o total de brasileiros vivendo abaixo da linha de pobreza
recuou 5 milhões de 1992 a 2001, entre negros, houve aumento de 500 mil” (INSTITUTO
OBSERVATÓRIO SOCIAL), em dados de 2006.
Ainda hoje, portanto, percebe-se a influência da escola evolucionista no cenário brasileiro,
contribuindo para marginalizar a população negra. Nas comunidades quilombolas visitadas percebe-se, sem
esforço, o grau de inferioridade socioeconômica em que vivem seus habitantes. Evidenciamos que todos os
moradores são dotados de relevante conhecimento empírico, mas por falta de oportunidade, muitos não
conseguiram ingressar em escolas ou completar o período de ensino oficial.
 
2. Escravidão no Brasil e no Rio Grande do Sul: Breves Comentários Históricos
 
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A identidade cultural brasileira está irremediavelmente ligada ao instituto da escravidão. A
colonização de nossa terra foi marcada pela prática de escravização de duas das três etnias fundamentais
para a nossa formação: os índios autóctones e os negros transportados de diversas comunidades africanas
para o Brasil. Para Gilberto Freyre (2004, p. 116):
 
Considerada de modo geral, a formação brasileira tem sido, na verdade [...] um processo de equilíbrio
de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A cultura européia e a indígena. A européia
e a africana. A africana e a indígena. A economia agrária e a pastoril. A agrária e a mineira. O católico
e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O paulista e o emboaba. O
pernambucano e o mascate. O grande proprietário e o pária. O bacharel e o analfabeto. Mas
predominando sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo
(grifos nossos).
 
Com o passar do tempo, o tráfico de escravos negros tornou-se extremamente lucrativo aos países
europeus e às elites coloniais, de maneira que:
 
Ao longo dos séculos XVII e XVIII, paulatinamente, escravidão vira sinônimo de escravidão africana.
Fugas, revoltas, epidemias e dizimação de um lado, conflitos entre autoridades, colonos e setores da
Igreja de outro marcam os debates sobre a escravidão dos ‘negros da terra’ [...] Calcula-se em dez
milhões, ou mais, a quantidade de africanos transportados para as várias regiões das Américas entre os
séculos XVI e XIX, tendo o Brasil recebido 40% destes (GOMES, 2008, p. 447-448).
 
Os traficantes de escravos embarcavam nos navios negreiros pessoas de diversas comunidades, por
vezes pertencentes a tribos rivais, com línguas, costumes e crenças diferentes, a fim de coibir motins. Tal
organização vai refletir-se nas plantações de açúcar, café e algodão, nas minas e nas cidades brasileiras,
configurando-se, inicialmente, em um mosaico cultural, para ao fim submeter aquelas pessoas a uma
linguagem comum – a dos dominadores – moldando-lhes a identidade (FREITAS, 1991).
Essa escravidão aqui perpetrada foi um modo de produção estruturante da sociedade. Sua validade
jurídica era garantida pelo direito, instrumento de manutenção da forma de produção que sustentava a
economia. O escravo era, juridicamente, um ser sem alma, apenas uma mercadoria adquirida a um preço
estabelecido entre comprador e vendedor.
O valor desses homens e mulheres coisificados variava entre 30 e 40 libras esterlinas em
Pernambuco, Maranhão, Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais, chegando mesmo perto de 100 libras. Esses
valores eram calculados em razão de idade, sexo, procedência e destino (LEÓN, 1991).
Note-se que apenas em 1850 o Brasil abolirá o tráfico negreiro e em 1888, a escravidão. Ainda
assim, a aparente neutralidade do direito posto se mantinha:
 
É interessante notar como as constituições de 1824 e 1891 excluíram o negro da vida política sem, no
entanto, mencionar a questão racial. A Constituição de 1824 impossibilitou a participação política dos
negros libertos ou mesmo brancos pobres a partir do critério censitário e a Constituição de 1891
impossibilitou também a participação dos negros a partir do impedimento do voto do analfabeto. É
sintomático também que nenhum desses diplomas se refira ao negro enquanto tal, ou seja, a República
dá continuidade a uma estratégia legislativa anti-racista (SILVA, 2005, p. 63).
 
Nesse mesmo entendimento, segue a citação de Fábio Konder Comparato (2009, p. 08-09):
 
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Se lançarmos os olhos para o Brasil, haveremos de reconhecer, sem maior esforço de análise, que as
Constituições aqui promulgadas apresentam-se, invariavelmente, quando vistas pela alma exterior [...]
como indumentárias de gala, exibidas com orgulho aos estrangeiros em comprovação de nosso caráter
civilizado. São vestes litúrgicas, envergadas por doutores e magistrados nas cerimônias do culto
oficial. Para o dia a dia doméstico, contudo, preferimos, como é natural, usar trajes mais simples e
cômodos [...] Logo após a dissolução da Assembléia Constituinte em 1823, o imperador declarou-se
decidido a outorgar à nação uma Constituição “duplicadamente mais liberal” do que aquela que estava
sendo elaborada. A Carta Constitucional, assim dada ao povo brasileiro de cima para baixo, omitiu por
completo a referência, ainda que indireta, à escravidão. Cuidou-se, obviamente, de instituir um
liberalismo de casa grande, ao qual, por razões de elementar decência, não podia ter acesso o “vulgo
vil sem nome” de que falou Camões.
 
Mas não apenas a economia, a política e o direito foram moldados através dela - também a vida
familiar e o cotidiano social. Em fins do século XVIII o Rio de Janeiro – capital do país – tinha-se tornado o
maior porto negreiro da América. A citação a seguir refere-se ao ano de 1849:
 
[...] a corte agregava nessa última data, em números absolutos, a maior concentração urbana de
escravos existente no mundo desde o final do Império Romano: 110 mil escravos para 266 mil
habitantes. No entanto, ao contrário doque sucedia na Antiguidade, o escravismo moderno, e
particularmente o brasileiro, baseava-se na pilhagem de indivíduos de uma só região, de uma única
raça. Em outras palavras, no moderno escravismo do continente americano a oposição senhor/escravo
desdobra-se numa tensão social que impregna toda a sociedade (grifos nossos) (ALENCASTRO, 2004,
p. 24).
 
Essa tensão é, da mesma forma, étnica, em vista de o tráfico ter-se tornado preponderantemente
centrado no comércio de escravos negros, como já referido. Assim, o imaginário social foi moldado dentro
desses parâmetros. O censo de 1872, arbitrariamente, por certo, afirmava que não havia nenhum escravo
branco no país, sendo eles pretos (69%) ou pardos (31%) (ALENCASTRO, 2004).
Símbolos foram convencionados a fim de reforçar a imagem do escravo. Dentre eles, a obrigação
de andar descalço. Diversas fotografias da época demonstram tal dever, ainda que essas imagens apresentem
uma visão amenizada da situação do negro no Brasil, omitindo as marcas dos maus tratos inerentes a
escravidão. Nelas se pode observar homens negros, trajando calça, paletó e chapéu, mas de pés no chão
(CHRISTIANO JR., 1865).
Simbólicos também os rituais funerários, onde negros e brancos eram diferentemente tratados. Por
volta de 1800, apenas aos brancos era permitido o enterro em igrejas. Aos escravos eram destinados os
terrenos baldios ou as valas comuns (GOMES, 2007). Mais adiante, templos foram construídos para o
sepultamento de negros, tal como observa João José Reis (1997, p. 127):
 
Embora as igrejas fossem o local ideal de enterro, havia entre elas e dentro delas
uma geografia de morte que refletia hierarquias sociais e outras formas de
segmentação coletiva. O Convento da Piedade e a igreja da Misericórdia, na Bahia,
se tornaram o lugar de repouso de mortos afluentes. Poucos bancos tinham covas
em igrejas negras. Os que as tinham, quiseram dar provas de grande humildade com
vistas à salvação. Em 1824, por exemplo, um poderoso senhor de engenho baiano
tentou evitar o Inferno pedindo para ser enterrado numa cova da igreja da
Irmandade do Rosário dos Pretos, alegando ser grande devoto da santa dos negros.
Para tanto, deixou em testamento legado de um conto de réis, o preço de três bons
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escravos (grifos nossos).
 
No extremo sul do país os negros escravos começaram a ser utilizados no século XVIII, onde
foram empregados, em grande escala, na indústria do charque. Dados de 1814 explicitam o grande
contingente de escravos nessa região: “Na época, as cidades de Pelotas, Piratini e Porto Alegre
apresentavam uma população negra em maior número do que a população branca [...] Em Pelotas, de 2.419
habitantes, 1.302 eram escravos e 247 eram ‘libertos” (SURITA e BUCHWEITZ, 2007, p. 25).
Não são necessárias grandes abstrações para imaginar o trabalho do negro nas charqueadas, em um
solo coberto de sal e com os pés descalços. Uma vez tendo conhecimento de que a função do sal nas
charqueadas era a de secar a carne para dar origem ao charque torna-se fácil a conclusão do estado que
ficavam os membros inferiores dos escravos após certo tempo de trabalho. O sal que condiciona a carne é o
mesmo que, conseqüentemente, vai secar os pés dos negros, causando-lhes danos irreparáveis à saúde. “Não
era sem razão que se falava que, no norte, seriam feitas ameaças aos negros insubmissos de vendê-los para
as temidas charqueadas de Pelotas, verdadeiras penitenciárias” (LEÓN, 1991, p. 45-46). Dessa forma,
segundo a mesma fonte, na região dessa cidade o escravo não vivia mais do que oito anos na atividade
saladeiril.
O português José Pinto Martins foi o pioneiro no extremo sul a utilizar a técnica do charque,
fundando a charqueada Da Costa, que se situava na margem direita do Arroio Pelotas. Após Pinto Martins,
várias outras charqueadas instalaram-se na região sul. Segundo o historiador Mario Osório Magalhães
(1981) a cidade chegou a comportar cerca de trinta e oito charqueadas numa mesma época, instaladas nas
margens dos Arroios Pelotas, Fragata, Santa Bárbara e Canal São Gonçalo.
Quando não empregados na atividade do charque, de novembro a maio, os negros trabalhavam na
construção civil, nas olarias e em atividades técnicas (pedreiros, padeiros, alfaiates, carpinteiros, doceiras,
vendedores de frutas e legumes, etc.). Em Pelotas, no século XVIII, existiam aproximadamente cinco mil
escravos, utilizados tanto no meio rural como no urbano, inclusive em tarefas domésticas (MAGALHÃES,
1981).
Ligada de forma estreita a essa questão encontra-se a Revolução Farroupilha (1835-1845). Nas
terras do Rio Grande do Sul foi travada uma guerra civil onde os sulistas almejavam desvincular-se do
Império, chegando, mesmo, a ser declarada a República Riograndense. Nessa revolução os escravos tiveram
um importante papel, especialmente no episódio dos Lanceiros Negros. Davi Canabarro, um dos líderes da
Revolução Farroupilha, formou uma tropa composta apenas por homens negros, que combateram com o
objetivo de no pós-guerra conquistar a liberdade. Mesmo depois de várias derrotas impostas ao inimigo, a
Tropa de Lanceiros Negros foi dizimada pelo império, após ser traída e entregue a sorte pelo próprio
comandante, na região de Porongos, na atual cidade de Pinheiro Machado (LEÓN, 1991).
Esse episódio histórico exemplifica, na verdade, uma visão ocidental específica em relação à etnia
negra, marcadamente evolucionista: a de que o negro, por ser biológica e culturalmente inferior, não possui
os mesmos direitos que os representantes da etnia branca.
 
3. Quilombos: Resistência Negra
 
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Contrariando o pensamento evolucionista da submissão e da preguiça ditos inerentes à etnia negra,
estão os inúmeros exemplos locais de resistência à escravidão. Entre eles, a proliferação de quilombos em
terras brasileiras, geralmente em lugares de difícil acesso, instrumentos de luta contra o poder imperial e
contra os senhores de escravos. Aqueles “asilados naqueles matos e naquelas serras, deixavam de ser uma
coisa falante para recobrar a sua dignidade humana” (FREITAS, 1991, p. 36).
Diante do sofrimento acarretado pelo trabalho forçado, pelos castigos físicos, longe de suas casas,
muitos escravos não aceitaram a dominação que lhes foi imposta. Uma das formas de resistência era a fuga
das propriedades de seus donos, a fim de viver em comunidades afastadas dos centros urbanos, criando
nestes locais uma África reinventada (LEÓN, 1991). A citação a seguir pode muito bem ser
recontextualizada no que se refere às comunidades quilombolas:
 
Viver a vida de escravo na América foi, para os africanos, uma experiência dolorosa de ressocialização
em condições adversas. Tais condições permitiram, por vezes, a construção de uma identidade africana
impossível na própria África, unindo malês e iorubas [tribos rivais] na Bahia. Ou possibilitando
reconhecimento de uma identidade lingüística e cultural entre bantos no Rio de Janeiro (CASTRO,
2004, p. 353).
 
Dessa forma, sob a segurança dos quilombos, floresceram relações de parentesco ideológico, não
necessariamente consangüíneo (FREITAS, 1991). Essas sociedades comunitárias partilhavam visões de
mundo culturalmente construídas.
Em âmbito nacional o quilombo de maior destaque foi o Quilombo dos Palmares (devido à densa
floresta de palmeiras onde se localizava), situado onde é atualmente parte dos estados de Alagoas e
Pernambuco, em um território de 260 km de extensão por 132 km de largura (LEÓN, 1991). Líderes como
Ganga-Zumba e Zumbi foram imortalizados e, até hoje, são ícones da culturade resistência negra. Por
diversas vezes atacado, o quilombo resistiu continuadamente ao inimigo - mais de cem anos foram
necessários para a sua destruição definitiva: “Palmares foi considerado destruído em 1695, depois de
investidas maciças de forças repressoras especialmente contratadas, com bandeirantes e a utilização de
canhões para derrubar as paliçadas que os quilombolas tinham construído” (GOMES, 2008, p. 451).
As conseqüências da fuga para os quilombos, dessa forma, eram nefastas. A colonização
portuguesa impunha a submissão através da força e intimidação, como consta na fala a seguir:
 
[...] em março de 1741, em resposta a um pedido dos mineiros da Província de Minas Gerais, a coroa
portuguesa tinha ordenado que todos os negros que fossem achados em quilombos, “estando neles
voluntariamente”, deveriam ser marcados com um F (de foragido) nas costas sobre o ombro. Os
reincidentes teriam, na segunda fuga, uma das orelhas cortadas e, na terceira, seriam condenados à
morte. Apesar disso, as deserções continuaram em grande número. Em 1755, a Câmara Municipal de
Mariana, em Minas Gerais, chegou a propor que os fugitivos que fossem capturados tivessem o tendão
de Aquiles cortado para que não pudessem mais correr, embora continuassem aptos a trabalhar
capengando. A corte achou a medida por demais desumana e anticristã e recusou o pedido (grifos
nossos) (GOMES, 2007, p. 252-253).
 
De todo modo, as penalidades impostas aos escravos sempre foram cruéis – mesmo quando
expressamente revogadas por lei. Como, por exemplo, o caso relatado a seguir:
 
Apesar da expressa proibição constitucional, os cativos foram, até as vésperas da abolição, mais
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precisamente até a Lei de 16 de outubro de 1886, marcados com ferro em brasa, e regularmente
sujeitos à pena de açoite. O mesmo Código Criminal, em seu art. 60, fixava para os escravos o máximo
de cinqüenta açoites por dia. Mas a disposição legal nunca foi respeitada. Era comum o pobre diabo
sofrer até duzentas chibatadas diárias. A lei supracitada só foi votada na Câmara dos Deputados
porque, pouco antes, dois de quatro escravos, condenados a trezentos açoites por um tribunal do júri de
Paraíba do Sul, vieram a falecer (COMPARATO, 2009, p. 11).
 
Em outra parte do território brasileiro, no extremo sul do país, no decorrer da Revolução
Farroupilha (1835-1845) houve um período em que a cidade de Pelotas esvaziou-se, tendo grande parte de
seus moradores migrado para outras localidades, o que incentivou fugas de vários escravos para a região da
Serra dos Tapes. Na tentativa de fugir do opressor, os escravos começaram a se esconder na zona rural,
fundando diversos quilombos. Segundo Rita Surita e Susanne Buchweitz (2007, p. 26):
 
As fugas individuais ou coletivas eram a forma mais comum e mais característica de resistência. O
cerne do núcleo charqueador pelotense, formado pelos matos da Serra dos Tapes, o Arroio Quilombo,
o Passo dos Negros, proporcionava a concentração de um grande número de escravos. A fuga de
cativos que aparecia diariamente nos jornais da época indica a probabilidade de terem existido na
região, em diferentes períodos, diversas concentrações quilombolas.
 
Nessa região, o quilombo mais famoso foi o de Manuel Padeiro, líder da resistência, considerado
pelos seus o enviado de Oxalá. Esse quilombo foi extinto no ano de 1848, pois o término da Revolução
Farroupilha em 1845 possibilitou ao presidente da província condições logísticas de encaminhar um efetivo
militar ao local, onde se estimava haver de 600 a 800 habitantes (LEÓN, 1991).
Designado para destruir o quilombo de Manoel Padeiro, o Segundo Regimento de Cavalaria de
São Leopoldo, composto de alemães voluntários, somou-se à guarda nacional com uma tropa de 200
homens e mais uma milícia local. Efetivada a organização das tropas, deu-se início a marcha para a Serra
dos Tapes, onde foi cometido um verdadeiro genocídio:
 
Crianças berraram. As mães taparam-lhe a boca com as mãos. Quem pôde pegou em armas. Os homens
saíram ao ataque. Vieram mais negros, passaram pelos policiais entre as ramagens e coquiaram-lhes a
cabeça com pauladas. Caiu um, caíram dois, três... Na parede de uma choupana escorregou um preto
baleado. Outro que corria na direção do poço, tombou no meio do caminho. Uma mulher ficou
atocaiada dentro da choupana. Dois soldados vieram um pela janela e outro pela porta e tacaram bala,
ao mesmo tempo, no corpo da negra que rolou no chão sem gritar. A correria era grande (LEÓN, 1991,
p. 75).
 
Esses fatos ocorreram na região em que percorremos para concretizar a pesquisa de campo aqui
enfocada. Em vista do que analisamos, entendemos apropriada a citação de Décio Freitas (1991, p. 55-56):
 
Vimos em conjunto e numa linha de continuidade histórica que cruza o longo período escravista, os
quilombos aparecerem como uma grandiosa epopéia. Não importa que não tenham tido êxito na
tentativa de transformar a sociedade, segundo seus interesses e suas aspirações. Possuem o predicado
específico da epopéia – a ação heróica através da qual o homem se afirma como tal,
independentemente do êxito ou do fracasso. Expressão do comovedor esforço da massa escrava para
resgatar sua humanidade seqüestrada pela escravidão, os quilombos estão incorporados à tradição
revolucionária do povo brasileiro.
 
4. Paradigma Emergente e Reconhecimento do Multiculturalismo pelo Direito
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Em combate ao pensamento evolucionista e à exploração de um grupo étnico-social por outro,
várias vozes se fizeram ouvir. Entre elas, Boaventura de Sousa Santos, sociólogo e jurista português, o qual
realiza fortes críticas à ciência moderna e ao paradigma dominante. As características dessa ciência são,
entre outras, a neutralidade científica, a valorização das ciências exatas, a centralização dos saberes
acadêmicos em determinados grupos sociais e a preponderância da cultura ocidental sobre as demais. O
antropólogo jurídico Norbert Rouland (2003, p. 233-234) faz a seguir uma crítica a essa forma de
imposição:
 
Se, no século XIX, a antropologia jurídica nascente cedeu à tentação evolucionista e cometeu tantos
erros (entre os mais brejeiros: a pretensa ignorância, pelos primitivos, do contrato, da família conjugal,
da propriedade individual, da punição penal etc.) foi porque o juízo de valores no qual se
fundamentava – a superioridade da cultura ocidental sobre todas as outras – era em muitos pontos
errôneo [...] Pois das duas uma. Ou há efetivamente uma evolução que ocorre num sentido de um
maior progresso, cujo resultado hoje é a modernidade ocidental: isto justificaria que posasse como
modelo perante outras culturas [...] Ou nenhuma cultura é profeticamente investida da missão de
realizar o progresso. Este só poderia nascer da comparação das experiências realizadas no tempo e no
espaço pelas diversas sociedades: cabe a cada uma delas contribuir para a grande obra, à sua maneira e
segundo seus critérios. Mas não se pode tolerar que uma única cultura – fosse ela a dos papuas, dos
ianomânis ou dos americanos – se veja reconhecer o exorbitante privilégio de decidir por todas as
outras, na medida em que, até agora, em nenhuma sociedade os homens vivem como deuses (grifos
nossos).
 
Santos (2006) entende que vivemos em um momento de transição nessa forma de construir
conhecimento. O paradigma emergente oportuniza uma nova forma de interpretar o mundo, em uma ciência
construída autonomamente, através dos valores próprios das comunidades locais, de forma transdisciplinar e
multicultural,onde os estudos humanísticos e o conhecimento do senso comum, cotidiano, formariam novas
características científicas.
Importante característica do paradigma emergente é a de que “todo o conhecimento científico visa
constituir-se em senso comum”, ou seja, os saberes devem ser construídos a partir das experiências
cotidianas, levando em consideração outros tipos de conhecimento, inclusive os do senso comum. Neste
contexto, a pesquisa de campo por nós realizada permitiu apreender experiências de vida de um grupo
étnico que vive em territórios remanescentes de quilombos e que, pela ciência moderna, tem sua
importância diminuída e descaracterizada.
Além disso, nesse paradigma “todo o conhecimento é total e local”. O conhecimento é construído
a partir de temas, compostos por inúmeras variantes - o objeto de estudo é apreendido sob os mais variados
ângulos: “a fragmentação pós-moderna não é disciplinar e sim temática. Os temas são galerias por onde os
conhecimentos progridem ao encontro uns dos outros” (SANTOS, 2006, p. 48). Ressaltamos, aqui, o
entendimento do constitucionalista português Jorge Miranda (2002, p. 14-15):
 
De resto, o Direito é uma realidade cultural, indesligável das demais experiências humanas, e existe
uma comunicação constante e dialéctica entre normas e factos [...] No que à nossa disciplina em
especial importa, haverá que contar com a directa relação entre a Constituição e aquilo que se tem
chamado realidade constitucional, ou realidade política, económica, social e cultural que lhe subjaz, a
que pretende aplicar-se e de que depende, em maior ou menor medida, o seu modo de vigorar (itálico
no original, negrito nosso).
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Mas, ao mesmo tempo em que defende a totalidade do conhecimento, Santos (2006) advoga a sua
localidade, evidenciando a importância de estudos sobre temas próximos ao pesquisador, a fim deste
compreender o mundo que o cerca, através de um aporte sócio-cultural. Daí nota-se a influência dessa
teorização na estruturação de nossa pesquisa, especialmente quando se percebe esta prática como forma de
proporcionar uma transição do modelo kelseniano, anteriormente referido, que privilegia a neutralidade
legal e o dogmatismo, para outro, conectado à realidade social e objetivando a sua transformação. Nesse
sentido, Henry Giroux (1995, p. 97):
 
A teoria precisa ser traduzida em uma prática que faça diferença, que assegure que as pessoas vivam
suas vidas com dignidade e esperança [...] Levar em consideração a prática da vida cotidiana não
significa privilegiar o pragmático em oposição à teoria, mas ver essa prática como inspirada por
considerações teóricas reflexivas e, ao mesmo tempo, como transformando a teoria (grifos nossos).
 
Essa transição paradigmática suscita o reconhecimento da pluralidade cultural e, até mesmo,
jurídica em nossas sociedades. Não compreendiam os evolucionistas que as tradições africanas, por
exemplo, eram adequadas à realidade social e ao direito que as garantia naquele território e não práticas
exóticas e desprovidas de sentido e racionalidade meramente transportadas para o Brasil.
O paradigma emergente entende o direito como instrumento a ser direcionado ao alcance do bem
comum visto como “uma estrutura social na qual sejam possíveis formas de participação e de comunicação
de todos os indivíduos e grupos” (REALE, 2007, p. 59). Nessa obra, Miguel Reale afirma que o sistema
jurídico deve ser estruturado sobre o Princípio da Proporcionalidade: os direitos que prevê devem objetivar,
proporcionalmente, os diferentes grupos sociais. Aí reside a essência da democracia: a participação e
convivência de diversos grupos e culturas na mesma sociedade. O Supremo Tribunal Federal, em voto do
Ministro Moreira Alves, assim se pronunciou:
 
No estado de direito democrático devem ser intransigentemente respeitados os princípios que garantem
a prevalência dos direitos humanos. Jamais podem se apagar da memória dos povos que se pretendam
justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos
raciais de torpeza inominável (grifos nossos).
 
No que concerne ao tema aqui analisado, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
(CF/88) traz o reconhecimento dessa pluralidade cultural. Os arts. 215 e 216 dispõem:
 
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da
cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de
outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
§ 2º - A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes
segmentos étnicos nacionais.
§ 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao
desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à:
I - defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro;
II - produção, promoção e difusão de bens culturais;
III - formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões;
IV - democratização do acesso aos bens de cultura;
V - valorização da diversidade étnica e regional.
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Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-
culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico,
paleontológico, ecológico e científico.
§ 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio
cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de
outras formas de acautelamento e preservação.
§ 2º - Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as
providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.
§ 3º - A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais.
§ 4º - Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.
§ 5º - Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos
antigos quilombos.
[...] (grifos nossos)
 
Mais adiante nesse mesmo texto legal, o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
(ADTC), em seu art. 68, estabelece: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam
ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos
respectivos.”
Entretanto, de que forma conjugar juridicamente o princípio constitucional da igualdade – “todos
são iguais perante a lei” (art. 5º, caput, CF/88) – com o reconhecimento do multiculturalismo e com as
normatizações legais que concedem direitos diferenciados a determinados grupos sociais?
 
5. Princípios Constitucionais da Igualdade e da Dignidade Humana e o Multiculturalismo Social
 
Norbert Rouland (2003, p. 204) procura equacionar essa questão da seguinte forma:
 
Sejamos claros. Não há mais que duas maneiras de alcançar a unidade em sociedades em que se afirmaa pluriculturalidade. Quer se decrete a uniformidade (a laicidade seria então compreendida como a
proibição de qualquer manifestação de pertencer a uma religião). O que pode ser necessário nos casos
em que as diferenças são interpretadas mais em termos de antagonismos do que de
complementaridades. Quer se prefira a via mais difícil, porém infinitamente menos primitiva, da
unidade na diversidade. Pois eis os que os partidários da uniformidade querem ou fingem ignorar: a
diversidade não é necessariamente sinal de desunião... contanto que se queira, enquanto a
uniformidade pode conduzir a ela (itálico no original, negrito nosso).
 
Em uma rápida avaliação, o princípio da igualdade pretende o tratamento idêntico para todas as
pessoas que se encontrem em nosso território nacional. Entretanto, a interpretação do dispositivo
constitucional, segundo Alexandre de Moraes (2005, p. 31), deve levar em consideração que:
 
[...] o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento
desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio
conceito de Justiça, pois o que realmente protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o
princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade
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acolhida pelo direito, sem que se esqueça, porém, como ressalvado por Fábio Konder Comparato, que
as chamadas liberdades materiais têm por objetivo a igualdade de condições sociais, meta a ser
alcançada, não só por meio de leis, mas também pela aplicação de políticas ou programas de ação
estatal (grifos nossos).
 
Por sua vez, o princípio da dignidade humana está previsto no art. 1º, inciso III, da Constituição,
elencado entre seus princípios fundamentais. Ele é assim descrito por Ingo Sarlet (2002, p. 62):
 
[É] um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e
qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais
mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável
nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.
 
Segundo o autor acima citado, os direitos fundamentais – no Brasil, previstos na CF/88 em
diversos dispositivos e, especialmente, no Título II – estão indissociavelmente conectados ao princípio da
dignidade humana, concretizando-o das mais variadas formas. Localiza-se nesse título o art. 5º, garantidor
do princípio da igualdade, que deverá, como referido acima, reconhecer a multiculturalidade, a diferença
entre grupos sociais, “na medida em que se desigualem”.
Antônio Carlos Wolkmer (2006, p. 118) afirma que: “em uma sociedade composta por
comunidades e culturas diversas, o pluralismo fundado numa democracia expressa o reconhecimento dos
valores coletivos materializados na dimensão cultural de cada grupo e de cada comunidade.” A diversidade
cultural brasileira advém, especialmente, da sua formação histórica, como já observamos anteriormente. O
outro, cuja demarcação é aguçada pelo etnocentrismo, não se encontra em territórios distantes e exóticos,
mas se configura nos mais variados grupos sociais. A contemporaneidade traduz múltiplas identidades:
mulheres, idosos, comunidades indígenas e quilombolas são apenas exemplos desse caleidoscópio social.
Hoje, segundo Stephen Stöer, Antônio Magalhães e David Rodrigues (2004), presencia-se a
oposição ao modelo ocidental de homogenização cultural, política e epistemológica. Grupos assumem e
fazem ouvir suas vozes, denunciando uma chamada normalidade. O que ocorre é uma reconfiguração da
cidadania, a qual não mais se sustenta nas semelhanças entre as pessoas, mas na convivência multicultural.
Os autores denominam o primeiro tipo de cidadania de cidadania atribuída, decorrente da igualdade formal
concedida pelo racionalismo da ciência moderna ocidental. A segunda, de cidadania reclamada, oriunda
dessas rebeliões, a qual está relacionada com o princípio da proporcionalidade, de Miguel Reale (2007), já
observado – o direito deverá levar em consideração os diferentes grupos sociais que visa regulamentar.
Exemplo disso é o reconhecimento de propriedade às comunidades quilombolas. Fora do direito estatal, os
direitos locais, construídos pelas comunidades, em sua auto-organização. A citação a seguir fala a esse
respeito:
 
[...] os modos de vida alternativos e o factor étnico parecem estar a emergir como importantes
estruturadores da cidadania: em nome do local e da pertença étnica ou a partir de dadas escolhas de
estilo de vida ou outras, os indivíduos reivindicam formas renovadas de cidadania, a qual, então, passa
a ser pensada a partir das diferenças, isto é, daquilo que distingue ou não através das características
comuns (STÖER, MAGALHÃES e RODRIGUES, 2004, p. 85).
 
A temática que envolve diferença, dignidade humana e direitos fundamentais possui grande
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relevância para a questão quilombola, foco desta pesquisa. O exercício da cidadania por esses grupos sociais
passa pela garantia estatal desses direitos constitucionais. Nas palavras de Jorge Miranda (2002, p. 195):
 
Está em causa, antes de mais, o reconhecimento aos cidadãos pertencentes a uma minoria dos mesmos
direitos e das mesmas condições de exercício dos direitos dos demais cidadãos. Mas não basta evitar
ou superar a discriminação. É necessário assegurar o respeito da identidade do grupo e propiciar-lhe
meios de preservação e de livre desenvolvimento. Donde, a atribuição de direitos particulares – de
direitos fundamentais próprios desses grupos, de carácter individual ou institucional – e a prescrição
ao Estado de correspondentes incumbências (grifos nossos).
 
A eficácia do cumprimento da legislação concernente às comunidades remanescentes de
quilombos pelo Estado, sejam normas gerais relativas aos direitos humanos, sejam regras específicas criadas
para esses grupos, foi a questão de pesquisa que procuramos responder em nossa investigação empírica.
 
6. Direitos Fundamentais e Dignidade Humana nas Comunidades Remanescentes de Quilombos Pelotenses
 
Segundo orientação doutrinária (MORAES, 2005), os direitos fundamentais recebem uma
classificação de direitos de primeira, segunda e terceira geração. Os de primeira geração abrangem os
direitos e garantias individuais e políticos conectados com os limites de imposições estatais sobre os
cidadãos - liberdades negativas -, tais como a liberdade religiosa e a propriedade; os de segunda geração
estão relacionados com as liberdades positivas, com os direitos sociais, econômicos e culturais – direito à
saúde e à educação, por exemplo. Por fim, os direitos de terceira geração dizem respeito à solidariedade
entre os entes sociais, tais como o direito ao meio ambiente saudável, à qualidade de vida e preservação do
patrimônio cultural.
O Supremo Tribunal Federal já se manifestou nesse sentido, tal como segue na fala do Ministro
Celso de Mello:
 
Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) - que compreendem as liberdades
clássicas, negativas ou formais - realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração
(direitos econômicos, sociais e culturais) - que se identifica com as liberdades positivas, reais ou
concretas - acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam
poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o
princípio dasolidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento,
expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais
indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade.
 
Contrapondo os resultados da pesquisa empírica com a teorização e os dispositivos legais relativos
ao tema ora analisado, iniciamos nossa análise sobre direitos de primeira geração. Pudemos constatar que os
entrevistados praticam livremente suas crenças, apesar de termos nos surpreendido com o fato de que seis
dos oito entrevistados freqüentavam a igreja evangélica, e os outros dois, a igreja católica. Não encontramos
sinais de religiões de origem africana, o que pode ser um indicador do distanciamento histórico-cultural
dessas comunidades.
Quanto ao direito de propriedade, sua previsão encontra-se no caput do art. 5º da CF/88. Esse
direito nem sempre foi garantido a todos. Antes do término da escravidão, a Lei da Terra (1850)
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impossibilitava o negro de possuir terras em seu nome, pois estabelecia que para ser proprietário deveria
comprá-las de particulares ou do governo. Entretanto, após trabalhar de maneira gratuita a maior parte de
sua vida, mesmo após sua alforria, dificilmente conseguiria comprar terras de alguém e tornar-se
proprietário.
Após a extinção legal da escravidão no Brasil, o direito de propriedade foi formalmente previsto de
uma maneira ampla para todos os cidadãos. Mais tarde, a função social da propriedade rural foi
especificada, em pormenores, no artigo 2º, §1º do Estatuto da Terra (1964), que estabelece:
 
É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função
social, na forma prevista nesta Lei.
§ 1° A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente:
a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas
famílias;
b) mantém níveis satisfatórios de produtividade;
c) assegura a conservação dos recursos naturais;
d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a
cultivem.
 
No caso específico dos quilombolas, a CF/88, no ADCT, em seu art. 68, prevê aos remanescentes
de quilombos o reconhecimento de que são proprietários das terras que ocupam, in verbis: “Aos
remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a
propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.” O Decreto n. 4.887, de 20 de
novembro de 2003, é direcionado para o cumprimento desse artigo, delegando ao INCRA (Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária) a responsabilidade de gerenciar todo o processo
administrativo de identificação, reconhecimento, delimitação e demarcação da propriedade ocupada pelos
remanescentes dos quilombos, que, diante dessa obrigação, formulou a Instrução Normativa n. 20 (que
aborda todas as etapas para o procedimento decorrente do art. 68 ADCT). Participa também, de forma direta
no processo administrativo, a Fundação Cultural dos Palmares.
Da mesma forma, no Estado do Rio Grande do Sul existe uma série de normatizações que regulam
a questão: Lei n. 11.731/02 (regulamentação fundiárias das terras ocupadas por quilombolas), Decreto n.
41.498/02 (procedimento administrativo de reconhecimento, demarcação e titulação das terras das
comunidades remanescentes de quilombos) e Decreto n. 42.952/04 (instituindo o comitê permanente de
coordenações das ações relativas às comunidades quilombolas no estado).
Os resultados da pesquisa empírica, entretanto, foram desanimadores. Apesar de todo esse aparato
legal e da teorização sobre direitos humanos vista anteriormente, o que se constatou foi uma realidade muito
aquém da preconizada constitucionalmente: remanescentes de quilombos sobrevivendo em terras que, por
direito estatal, seriam suas, como posseiros, sem lograr êxito no processo de escrituração dos imóveis. Dos
oito entrevistados, apenas um possuía a propriedade da terra. Nessa questão é nítida a ineficácia do direito
estatal.
Quanto aos os direitos políticos, cada núcleo quilombola se reúne para discutir e debater soluções
para questões locais. Muitas vezes a iniciativa do debate é da Emater (Empresa de Assistência Técnica e
Extensão Rural, órgão governamental), a qual, segundo relatos das comunidades quilombolas, repassa
valores para a compra de materiais de construção, oriundos do governo federal.
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Ressaltamos a capacidade de auto-organização política e jurídica dessas localidades, pois, muitas
vezes, são seus habitantes mais velhos que solucionam problemas entre os moradores. Dessa forma,
pudemos observar a força que o pluralismo jurídico e a mediação possuem nesses locais (ROULAND, 2003
e SANTOS, 2006).
Por outro lado, os entrevistados afirmaram que os representantes políticos somente procuram
aquelas comunidades em época de campanha eleitoral, com o intuito, por certo, de angariar votos. Dessa
forma, cabe aqui o alerta de Mariza Peirano (2006, p. 134):
 
[...] a ampliação dos direitos, por exemplo, desejável sob o ponto de vista da justiça social, não cria,
automaticamente, indivíduos que se concebem como cidadãos, segundo o modelo clássico. Da mesma
forma, é indesejável, e mesmo condenável, forçar esse mesmo valor sem que os direitos
correspondentes sejam oferecidos [...] Devem, por outro lado, acautelar-se os administradores e
políticos para o logro que significa fazer com que a população se sinta participante quando seu poder
de ser efetivamente ouvida é mínimo ou inexistente (itálico no original, negrito nosso).
 
Os quilombolas em sua grande maioria vivem da agricultura de subsistência - o excedente é
vendido para a obtenção de renda extra às famílias. Assim, no que diz respeito aos direitos sociais e
econômicos – de segunda geração -, muitos trabalham sem, em sua grande maioria, possuir carteira
assinada, sendo pagos com alimentação ou recebendo salários irrisórios. A ausência de concretização desse
direito trabalhista é sintomática:
 
A carteira de trabalho não assume tal importância no vazio: a existência de valores sociais relativos ao
trabalho – tornando o indivíduo digno perante a sociedade – favoreceu a legitimidade que ela logo
alcançou para a população em geral. Nesse contexto, a carteira de trabalho é o passaporte para a
sociedade de direito, partilhando com o passaporte convencional o formato de livreto no qual se anota
a trajetória profissional do cidadão (PEIRANO, 2006, p. 139).
 
A autora, o referir as conseqüências da falta de documentação legal pelos cidadãos, comenta:
 
O documento legaliza e oficializa o cidadão e o torna visível, passível de controle, e legítimo para o
Estado. O documento faz o cidadão em termos performativos e compulsórios. Essa obrigatoriedade
legal tem o seu lado inverso: o de impedir o reconhecimento social do indivíduo que não tenha
documento (PEIRANO, 2006, p. 137).
 
Quando perguntados sobre a diferença entre trabalhador com carteira assinada e trabalhador
escravo, sete dentre os oito entrevistados não souberam indicar a diferença. Um único morador afirma que
ainda existe a escravidão pelo fato de alguns colonos brancos pagarem pela mão de obra dos remanescentes
de quilombos com pedaços de toicinho. Correlato a essa questão está o fato de que a grande maioria dos
entrevistados desconhece a própria história, uma vez que seus antepassados pouco falavam sobre a
escravidão.
Os direitos de segunda geração incluem, também, prestaçõesefetivas do Estado aos cidadãos,
visando a garantia de um mínimo de suporte econômico para a sobrevivência. A pesquisa comprovou uma
grande ineficácia desses direitos. A rede de energia elétrica passa a cerca de 50 metros de uma das
comunidades - esse local, entretanto, não possui luz. Tal situação pôde ser verificada nas demais
comunidades que visitamos.
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Por sua vez, o direito à saúde é precário. Os postos de saúde se localizam longe e encontram-se
mal estruturados para prestar socorro. Não há nas propriedades visitadas água encanada e saneamento
básico. Além disso, tivemos oportunidade de observar o preparo da alimentação para uma família
constituída por treze pessoas: uma carcaça de um porco sendo cozinhada em local insalubre e em
quantidade evidentemente inferior ao número de comensais.
Da mesma forma, o direito a educação não faz parte da vida dos cidadãos mais velhos das
comunidades quilombolas. Dos oito entrevistados somente dois freqüentaram a escola, onde um estudou até
a segunda série e o outro até a quarta série, ambos no ensino fundamental. Percebemos que é disponibilizada
pela prefeitura uma viatura para conduzir as crianças até os estabelecimentos de ensino – situados em locais
distantes das comunidades. Mas a totalidade dos entrevistados afirma que, ao concluir a quarta série do
ensino fundamental, é chegado o momento de se dedicarem integralmente aos trabalhos rurais.
Diante dessas constatações, percebe-se que esses moradores vivem excluídos da estrutura social,
em condições de extrema miséria, aonde não chegam, em grande parte, os recursos necessários para uma
vida digna, em uma realidade muito diferente daquela garantida pela CF/88 e pela legislação
infraconstitucional. Nas palavras de Ingo Sarlet (2002, p. 127):
 
[...] ninguém será capaz de negar que entre nós – e lamentavelmente cada vez mais – a dignidade da
pessoa humana (de alguns humanos mais do que outros) é desconsiderada, desrespeitada, violada e
desprotegida, seja pelo incremento assustador da violência contra a pessoa, seja pela carência social,
econômica e cultural e grave comprometimento das condições existenciais mínimas para uma vida
com dignidade e, neste passo, de uma existência com sabor de dignidade.
 
A existência digna, por vezes, está relacionada com a realidade fática e inegável da morte. Os
rituais de passagem são representativos do cotidiano da vida social. Na região por nós pesquisada encontra-
se localizado o Cemitério do Algodão, espaço onde os negros escravos eram enterrados e onde, ainda hoje,
são sepultados seus descendentes. Indagada sobre o fato de haver cemitérios separados para brancos e
negros, uma quilombola afirmou: “Mas se vivemos a vida inteira separados, não vai ser a morte que vai nos
unir...”. Tal constatação remonta a geografia da morte, anteriormente observada, onde “os negros, é claro,
não se enterravam envolvidos em sedas e flores, nem dentro das igrejas. Enrolavam-se seus cadáveres em
esteiras; e perto da capela do engenho ficava o cemitério dos escravos, com cruzes de pau preto assinalando
as sepulturas” (FREYRE, 2004, p. 527).
Assim, em relação especifica a comunidade quilombola, pode-se afirmar que os direitos de
primeira e segunda geração não se encontram plenamente garantidos, como o que segue:
 
Não ocorreu uma reforma do Estado que atendesse ao que está definido pelas próprias leis e criou-se
uma ilusão de contemplação desses direitos étnicos. Há uma distância entre os direitos garantidos pela
lei e os direitos efetivados. A afirmação da identidade quilombola mostra-se, nesse sentido, uma via de
acesso a viabilização de políticas que reconheçam esses direitos, em especial o direito a uma
territorialidade específica (itálico no original) (MARTINS, 2009).
 
A constitucionalização do direito civil afeta, diretamente, a propriedade, que hoje se encontra
classificada por alguns autores em propriedade privada, pública e coletiva (DIAS, 2007). A preservação do
patrimônio cultural e o tombamento dos sítios remanescentes de quilombos – tal como o previsto nos art.
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215 e 216 da CF/88 acima transcritos – é garantia da identidade não apenas das comunidades quilombolas,
mas de toda a sociedade. É por isso que os direitos de terceira geração, conectados à solidariedade,
abrangem também a preservação do patrimônio histórico-cultural o qual, nesse caso, devido à construção de
nossa identidade nacional, interessa a todos:
 
Os remanescentes de quilombos são hoje comunidades negras que guardam um patrimônio cultural e
histórico específico de origem afro-brasileira [...] Há traços da cultura afro em todas as manifestações
culturais brasileiras e tal permanência está intimamente relacionada à reafirmação de sua identidade na
luta pela resistência. O negro não apenas povoou o Brasil e deu-lhe prosperidade econômica por meio
do seu trabalho. Trouxe também as suas culturas, que deram as características fundamentais da atual
cultura brasileira (BENNET, 2008, p. 24-27).
 
No que diz respeito aos direitos fundamentais, portanto, há que se compreender que o princípio da
dignidade humana estará, de uma forma ou de outra, inerente na sua aplicação:
 
Até mesmo o direito de propriedade – inclusive e especialmente tendo presente o seu conteúdo social
consagrado no constitucionalismo pátrio – se constitui em dimensão inerente à dignidade da pessoa,
considerando que a falta de uma moradia decente ou mesmo de um espaço físico adequado para o
exercício da atividade profissional evidentemente acaba, em muitos casos, comprometendo
gravemente – senão definitivamente – os pressupostos básicos para uma vida com dignidade [...] Os
direitos sociais de cunho prestacional (direitos a prestações fáticas e jurídicas) encontram-se, por sua
vez, a serviço da igualdade e da liberdade material, objetivando, em última análise, a proteção da
pessoa contra as necessidades de ordem material e à garantia de uma existência com dignidade
(SARLET, 2002, p. 93 e 95).
 
Conclusão
 
No texto ora apresentado procuramos realizar uma abordagem interdisciplinar sobre a eficácia dos
direitos fundamentais e do princípio da dignidade humana em relação às comunidades remanescentes de
quilombos investigadas no interior da cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul.
A formação histórico-cultural e o desenvolvimento do Brasil ocorreram através da migração
forçada de escravos oriundos da África para trabalharem no cultivo da cana de açúcar, café e outras culturas.
Em nossa região, o trabalho escravo foi importantíssimo para o crescimento econômico da nossa cidade - as
atividades nas charqueadas trouxeram prestígio e riqueza para os aristocratas do charque. Trabalhar na
charqueada era considerado desumano, especialmente pela falta de perspectiva de sobrevivência ao trabalho
e aos castigos a que eram submetidos os escravos. Nestas circunstâncias não restavam alternativas aos
cativos - fugiam em direção a denominada Serra dos Tapes (zona rural de Pelotas) formando quilombos,
dentre eles o mais importante, o Quilombo de Manoel Padeiro. Após a abolição muitos permaneceram em
seus antigos quilombos sendo reconhecido a seus descendentes a propriedade dessas terras pela CF/88.
As vozes por nós ouvidas, no calor das entrevistas, relataram fatos que chamaram a atenção: o
desconhecimento da história dos seus antecedentes; a falta da titulação das terras, contrariando a previsão
legal do art. 68 do ADCT; o baixo grau de escolaridade dos moradores locais; o abandono estatal a essas
comunidades no que diz respeito à saúde, à rede deenergia elétrica e ao saneamento básico; a grande
desigualdade existente entre essas comunidades e outras de origem branca. Por tudo isso a conclusão
principal desse estudo é a da expressiva ineficácia da normatização constitucional relativa aos direitos
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humanos e ao princípio da dignidade humana no que concerne aos remanescentes de quilombos.
A propriedade definitiva das terras e a concretização desses direitos constituiriam um passo
significativo para diminuir as desigualdades sociais, políticas e econômicas, evitando, assim, a migração dos
remanescentes para a zona urbana e o aumento da população carente nas áreas marginalizadas das cidades,
eliminando conflitos e injustiças historicamente impostas à etnia negra.
 
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