Prévia do material em texto
1 SOCIOLOGIA RURAL E URBANA 2 3 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................. 4 AULA 1. FUNDAMENTOS DA SOCIOLOGIA RURAL ......................................................................... 9 AULA 2. MODERNIZAÇÃO DO CAMPO E CONFLITOS AGRÁRIOS ................................................ 14 AULA 3. FUNDAMENTOS DA SOCIOLOGIA URBANA .................................................................... 19 AULA 4. PROBLEMAS SOCIAIS URBANOS .................................................................................... 25 AULA 5. INTER-RELAÇÕES ENTRE O RURAL E O URBANO ........................................................... 30 AULA 6 . DESAFIOS E PERSPECTIVAS DA SOCIOLOGIA CONTEMPORÂNEA SOBRE OS TERRITÓRIOS ..................................................................................................................................................... 38 AULA 7. BNCC E SOCIOLOGIA RURAL E URBANA ......................................................................... 43 AULA 8. REFERENCIAIS TEÓRICOS ............................................................................................... 47 José de Souza Martins ............................................................................................................. 47 Henri Lefebvre ......................................................................................................................... 49 Milton Santos .......................................................................................................................... 50 CONCLUSÃO ................................................................................................................................. 54 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................................... 59 3 4 INTRODUÇÃO A sociologia, enquanto ciência voltada à compreensão da vida em sociedade, encontra na análise dos espaços rurais e urbanos um campo privilegiado para observar as transformações sociais, econômicas, políticas e culturais que moldam o comportamento humano. A sociologia rural e urbana busca, nesse sentido, compreender os modos de vida, as relações sociais, as dinâmicas de poder e os desafios enfrentados pelas populações que habitam esses diferentes contextos territoriais. Ao longo da história, as sociedades passaram por processos significativos de urbanização, com impacto direto nas formas de trabalho, na estrutura familiar, na organização das comunidades e nas políticas públicas voltadas ao bem-estar social. As áreas rurais foram historicamente associadas à produção agrícola, à vida comunitária, à religiosidade e a uma menor complexidade nas relações sociais. Por outro lado, os espaços urbanos sempre foram vistos como centros de inovação, diversidade cultural, disputas políticas e dinâmicas econômicas aceleradas. No entanto, essa divisão entre rural e urbano não pode ser entendida de maneira simplista ou excludente. Ambos os contextos se influenciam mutuamente e apresentam uma série de interconexões no mundo contemporâneo globalizado. A expansão das redes de transporte, a difusão da tecnologia e as migrações internas e internacionais contribuem para o surgimento de novas realidades híbridas. A sociologia rural, nesse contexto, não se limita à análise do campo como um espaço isolado, mas busca compreender os processos de transformação do mundo rural frente à modernização agrícola, à expansão do agronegócio, ao êxodo rural e às lutas dos pequenos agricultores. Da mesma forma, a sociologia urbana se debruça sobre as dinâmicas das grandes cidades, abordando temas como desigualdade social, habitação, mobilidade urbana, violência, exclusão e políticas públicas. Ambas as vertentes da sociologia compartilham o objetivo de analisar criticamente os processos sociais e apontar caminhos para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. Nas últimas décadas, o avanço da urbanização em países da América Latina, como o Brasil, impôs novos desafios às políticas públicas e à atuação de movimentos sociais. O crescimento desordenado das cidades, a favelização, a gentrificação e o colapso 5 dos sistemas de mobilidade e saneamento refletem problemas estruturais que precisam ser compreendidos sociologicamente. Por outro lado, as áreas rurais enfrentam o esvaziamento populacional, a precarização do trabalho no campo e o conflito entre diferentes modelos de uso da terra. A interdependência entre cidade e campo se torna cada vez mais evidente, exigindo análises sociológicas integradas. A perspectiva sociológica permite ainda compreender como as identidades e os laços sociais se constituem de forma distinta nos contextos urbanos e rurais. Enquanto nas cidades prevalecem relações mais individualizadas, mediadas por instituições e serviços, no meio rural persiste, em muitos casos, uma forte vinculação entre família, território e trabalho. Essas diferenças impactam na forma como os sujeitos percebem a si mesmos, se organizam politicamente e constroem suas redes de apoio e solidariedade. A compreensão desses aspectos é fundamental para o desenvolvimento de políticas públicas sensíveis às especificidades territoriais. As transformações tecnológicas também provocam alterações nos modos de vida rural e urbano. O acesso à internet, a mecanização do campo, o surgimento de startups no agronegócio e a digitalização dos serviços urbanos são apenas alguns exemplos de como as fronteiras entre rural e urbano se tornam mais tênues. A globalização, por sua vez, insere tanto o campo quanto a cidade em uma lógica de mercado mundial, gerando tensões entre as dinâmicas locais e as pressões internacionais. O papel da sociologia é justamente analisar essas transformações e propor alternativas de desenvolvimento sustentável e equitativo. A seguir, a apostila será estruturada em seis tópicos centrais. No primeiro tópico, discutiremos os fundamentos teóricos da sociologia rural, abordando seus principais autores e conceitos. No segundo, trataremos da modernização do campo, suas implicações sociais e os conflitos agrários. O terceiro tópico será dedicado à sociologia urbana, com destaque para as teorias clássicas e contemporâneas sobre a vida nas cidades. No quarto, analisaremos os problemas sociais urbanos, como habitação, violência e transporte. O quinto tópico tratará das inter-relações entre o rural e o urbano, mostrando como essas realidades se entrelaçam na contemporaneidade. Por fim, o sexto tópico abordará os desafios e perspectivas da sociologia diante das transformações territoriais do século XXI. 6 Cada um desses temas será explorado com profundidade, a fim de oferecer ao estudante uma visão crítica e contextualizada das principais questões que envolvem o espaço rural e urbano. O objetivo é estimular a reflexão, promover o pensamento sociológico e contribuir para a formação de profissionais comprometidos com a transformação social. A abordagem adotada busca articular teoria e prática, valorizando tanto os grandes paradigmas da sociologia quanto as realidades vividas pelas comunidades rurais e urbanas em diferentes partes do Brasil e do mundo. A investigação sociológica sobre os espaços rurais e urbanos exige, desde o início, uma compreensão crítica da maneira como as sociedades organizam seus territórios e estabelecem diferentes modos de convivência, produção e reprodução social. A cidade e o campo são mais do que categorias geográficas: são espaços construídos histórica e socialmente, cuja configuração reflete projetos políticos, relações de poder e modelos econômicos que disputam a hegemonia em diferentes momentos históricos. Por isso, o estudo desses territórios não podecomplexidade, enquanto surtos de doenças rurais, como as zoonoses e endemias, podem impactar a saúde urbana. A pandemia da COVID-19 escancarou essas conexões, ao demonstrar que a circulação de pessoas e produtos entre diferentes territórios exige uma abordagem integrada das políticas sanitárias e de prevenção. A segurança alimentar e nutricional é mais um tema que exige uma perspectiva integrada. O fortalecimento da agricultura familiar e dos circuitos curtos de comercialização pode contribuir para o abastecimento das cidades com alimentos saudáveis, acessíveis e sustentáveis. Programas como o PAA e o PNAE promovem essa articulação, ao adquirir produtos da agricultura familiar para escolas e instituições públicas. Essas iniciativas aproximam campo e cidade por meio de políticas que valorizam o território e a cidadania. Do ponto de vista político, as inter-relações entre rural e urbano se refletem na atuação de movimentos sociais, conselhos populares e redes de resistência. Agricultores familiares, assentados da reforma agrária, indígenas e quilombolas articulam-se com organizações urbanas em defesa de direitos comuns, como acesso à terra, moradia, saúde e cultura. Essa aliança entre campo e cidade fortalece a luta por justiça social, democratização do espaço e soberania popular. As questões ambientais reforçam a necessidade de pensar campo e cidade de forma articulada. A degradação ambiental nas áreas rurais, como o desmatamento e o uso excessivo de agrotóxicos, afeta a qualidade da água, do ar e dos alimentos consumidos nas cidades. Por outro lado, a poluição urbana, o descarte inadequado de resíduos e a pressão por expansão urbana ameaçam os ecossistemas rurais e áreas de preservação. A sustentabilidade exige uma abordagem integrada que reconheça a interdependência entre os territórios. 33 A valorização dos produtos da agroecologia e da economia solidária representa uma estratégia de aproximação entre produtores rurais e consumidores urbanos. As feiras agroecológicas, os grupos de consumo responsável, os cestos de alimentos orgânicos e os sistemas participativos de garantia criam circuitos de confiança e cooperação entre campo e cidade. Essa reconfiguração dos mercados alimentares representa uma mudança paradigmática na relação entre produção e consumo. O turismo rural e o ecoturismo também estabelecem pontes entre os dois mundos. Moradores urbanos procuram no campo experiências de descanso, contato com a natureza e valorização da cultura local. Esse tipo de turismo, quando bem conduzido, pode gerar renda para as comunidades, promover a educação ambiental e fortalecer o sentimento de pertencimento ao território. Contudo, é preciso evitar a exploração predatória e o desrespeito às identidades locais. A arquitetura e o urbanismo também se beneficiam de uma leitura integrada. Projetos de desenvolvimento territorial, habitação rural e infraestrutura comunitária precisam considerar tanto as especificidades locais quanto as dinâmicas regionais. O desafio está em pensar políticas públicas que reconheçam os saberes vernaculares, as formas tradicionais de ocupação do solo e as demandas contemporâneas por qualidade de vida, acessibilidade e sustentabilidade. No plano simbólico, o campo e a cidade coexistem nas representações sociais, nos discursos midiáticos e nas práticas cotidianas. O rural é muitas vezes idealizado como espaço de pureza, tranquilidade e valores tradicionais, enquanto o urbano é associado ao progresso, à liberdade e à modernidade. Essas representações influenciam as escolhas individuais, as políticas públicas e os projetos de vida das pessoas, muitas vezes reforçando estigmas e estereótipos que dificultam a construção de um olhar mais crítico e dialógico. Por fim, as inter-relações entre o rural e o urbano apontam para a necessidade de um novo paradigma de desenvolvimento territorial. Em vez de pensar o progresso como sinônimo de urbanização e consumo, é preciso promover formas de vida mais sustentáveis, solidárias e integradas. A sociologia tem papel fundamental nesse processo, ao fornecer ferramentas para compreender a complexidade das relações sociais, denunciar as desigualdades e inspirar ações transformadoras. 34 As relações entre o rural e o urbano se intensificaram ao longo do século XX, especialmente com a ampliação dos sistemas de transporte e comunicação, a industrialização do campo e a crescente interdependência econômica. Esse fenômeno tornou obsoletas as antigas oposições rígidas entre campo e cidade, mostrando que os dois espaços estão intrinsecamente conectados em múltiplas dimensões, que vão da produção de alimentos à circulação de saberes, culturas e práticas sociais. A interdependência entre rural e urbano pode ser observada nos circuitos de abastecimento alimentar. A maior parte dos alimentos consumidos nas cidades tem origem em áreas rurais, especialmente na agricultura familiar. Esses fluxos contínuos de bens e serviços demonstram que, embora as populações estejam territorialmente separadas, suas existências estão profundamente entrelaçadas. Essa relação é marcada por tensões, mas também por complementaridades que desafiam os planejamentos urbanos e rurais tradicionais. Além dos alimentos, outros recursos naturais, como água, madeira, energia elétrica e minérios, extraídos de zonas rurais ou florestais, são essenciais para o funcionamento das cidades. A pressão urbana sobre os territórios rurais se dá, portanto, também por meio da demanda por insumos estratégicos, o que frequentemente gera conflitos socioambientais, desmatamento e desapropriação de comunidades tradicionais. Esse processo expõe a assimetria nas relações campo-cidade, muitas vezes mediadas por interesses corporativos. No plano cultural, os elementos rurais estão presentes nas festas populares, na culinária, na música e na religiosidade das cidades. A migração rural-urbana transportou consigo práticas e valores que se misturaram com as dinâmicas urbanas, produzindo expressões culturais híbridas. Essa mescla pode ser observada nos mercados, nas feiras livres, nas celebrações religiosas, nas músicas regionais e na oralidade que compõe a identidade urbana de muitas cidades brasileiras. Ao mesmo tempo, os meios urbanos também influenciam a vida rural. O acesso à internet, a presença de aparelhos eletrônicos, as escolas conectadas, o consumo de produtos industrializados e a difusão da cultura midiática são exemplos de como o rural contemporâneo está longe de ser isolado ou alheio às transformações globais. Essa penetração de elementos urbanos no campo, muitas vezes, provoca mudanças nos modos de vida e nos valores das comunidades rurais. 35 Do ponto de vista da mobilidade humana, os fluxos de ida e volta entre campo e cidade tornaram-se frequentes. Muitos trabalhadores rurais passam parte do ano na cidade, buscando emprego temporário ou acesso a serviços de saúde e educação. Outros, mesmo morando na cidade, mantêm vínculos afetivos e econômicos com suas comunidades de origem no interior. Essa circulação permanente constrói redes familiares e sociais que integram os dois territórios. A noção de “rural urbano” ou “rurbano” surgiu para dar conta dessas zonas de transição, onde coexistem características dos dois mundos. Bairros periféricos com plantações, cidades pequenas com feições rurais, municípios conurbados a áreas metropolitanas, vilarejos atravessados por rodovias ou zonas industriais: todos são exemplos de espaços híbridos que desafiam as categorias tradicionais de análise. A sociologia contemporânea tem buscado construir novos conceitos para compreender essas realidades. Os impactos ambientais também evidenciam as interações entre rural e urbano. O avanço das cidades sobre áreas de preservação, o uso intensivo de recursos naturais, a geração de resíduos sólidos e a poluiçãodos rios afetam diretamente os territórios rurais. Por outro lado, a preservação das nascentes, das florestas e da biodiversidade rural é fundamental para a sobrevivência urbana. A gestão ambiental precisa, portanto, de uma abordagem integrada, que considere o ecossistema como um todo. A educação e a saúde são áreas onde se observa claramente a dependência mútua. Muitas escolas rurais são precarizadas ou encerradas, obrigando os estudantes a percorrer longas distâncias até a cidade. Da mesma forma, hospitais e postos de saúde urbanos recebem demandas de moradores das zonas rurais, que não dispõem de atendimento local. Esse desequilíbrio revela a falta de políticas públicas territorializadas e o descaso com as populações do campo. Do ponto de vista político, as alianças entre movimentos sociais urbanos e rurais têm fortalecido lutas comuns, como o direito à moradia, à terra, ao saneamento e à alimentação saudável. A atuação conjunta de movimentos como o MST, MTST, movimentos por alimentação orgânica, redes de economia solidária e coletivos culturais promove uma nova perspectiva de justiça territorial, baseada na solidariedade entre os diferentes sujeitos sociais. 36 Essas articulações têm dado origem a experiências inovadoras, como as feiras de agricultura familiar em zonas urbanas, os grupos de consumo responsável, os sistemas de comercialização direta (como CSA – Comunidade que Sustenta a Agricultura), as hortas comunitárias em periferias e os programas de compras públicas da agricultura familiar. Essas iniciativas aproximam produtores e consumidores, reduzem os intermediários e valorizam práticas sustentáveis. A cultura alimentar urbana tem sido diretamente influenciada pelas práticas e saberes do campo. O interesse crescente por alimentos agroecológicos, sem agrotóxicos, produzidos localmente e com base em práticas justas e sustentáveis, demonstra uma valorização dos modos de produção rural alternativos. Esse fenômeno também desafia o modelo agroindustrial e estimula políticas públicas voltadas para circuitos curtos de comercialização. As festas populares são outro exemplo de interação entre o rural e o urbano. Eventos como festas juninas, romarias, cavalgadas, feiras de artesanato e gastronomia tradicional são formas de trazer o campo para a cidade e de reafirmar identidades que ultrapassam as fronteiras territoriais. Essas expressões culturais ressignificam os espaços urbanos, abrindo brechas para encontros simbólicos entre tradições distintas. No plano simbólico, a valorização do campo como lugar de pureza, tranquilidade e autenticidade tem levado muitos moradores urbanos a buscar experiências rurais. O turismo rural, a permacultura, o voluntariado em ecovilas, a busca por refúgio longe da cidade e a idealização da vida simples refletem essa tendência. No entanto, é preciso cuidado para que essas práticas não resultem em processos de gentrificação do campo ou de apropriação cultural indevida. A pandemia da COVID-19 reforçou a percepção da interdependência entre os territórios. O abastecimento das cidades com alimentos, o isolamento social em áreas rurais e a crise sanitária nas periferias urbanas revelaram as fragilidades de um modelo baseado na separação entre campo e cidade. A necessidade de fortalecer sistemas locais de produção, transporte, saúde e educação se tornou evidente, assim como a importância de políticas articuladas e solidárias. A produção acadêmica também tem avançado na análise dessas inter-relações. Estudos sobre metropolização, ruralidades emergentes, ecossistemas alimentares, migrações internas e redes socioterritoriais têm contribuído para enriquecer o campo da 37 sociologia dos territórios. A abordagem interterritorial tem se mostrado fecunda para compreender a complexidade do Brasil contemporâneo. O espaço rural também abriga novas formas de urbanização, como loteamentos, condomínios de luxo, hotéis-fazenda e centros logísticos. Esses empreendimentos alteram profundamente a paisagem, o modo de vida das comunidades locais e o acesso à terra. A expansão urbana sobre áreas rurais precisa ser regulada com base em princípios de justiça ambiental, direito à moradia, proteção do patrimônio cultural e respeito às populações tradicionais. As cidades, por sua vez, têm incorporado práticas agroecológicas inspiradas no campo. Hortas urbanas, telhados verdes, compostagem, coleta seletiva e ocupações sustentáveis são formas de recriar o vínculo com a terra dentro do espaço urbano. Essas práticas apontam para a possibilidade de uma nova ruralidade urbana, onde o cultivo e o cuidado com o ambiente se tornam parte da vida nas cidades. A juventude é um ator fundamental na construção de pontes entre campo e cidade. Jovens rurais conectados à internet compartilham saberes, mobilizam redes e defendem seus modos de vida. Jovens urbanos se engajam em coletivos agroecológicos, movimentos ambientais e redes de consumo consciente. Essa nova geração tem promovido uma reaproximação entre territórios, baseada na ética do cuidado, na justiça socioambiental e na valorização das culturas locais. A articulação entre territórios também exige uma nova abordagem na formulação de políticas públicas. O planejamento regional, a gestão compartilhada dos recursos naturais, a territorialização das políticas sociais e a governança democrática do território são caminhos para promover a equidade. O Estado deve agir com sensibilidade territorial, escutando as demandas locais e respeitando a diversidade. Por fim, compreender as inter-relações entre o rural e o urbano é reconhecer que não há futuro possível para as cidades se o campo for destruído, e vice-versa. A sustentabilidade dos territórios depende de sua integração, de sua capacidade de coexistência e de sua articulação em torno de projetos coletivos. A sociologia, ao iluminar essas conexões, nos ajuda a enxergar o território como espaço de vida, de conflito e de transformação. 38 AULA 6 . DESAFIOS E PERSPECTIVAS DA SOCIOLOGIA CONTEMPORÂNEA SOBRE OS TERRITÓRIOS A sociologia contemporânea enfrenta o desafio de compreender os territórios a partir de uma abordagem multidimensional, que considere as transformações econômicas, políticas, culturais, tecnológicas e ambientais que redesenham continuamente os espaços sociais. O conceito de território deixou de ser meramente geográfico ou físico, passando a englobar disputas simbólicas, relações de poder e práticas cotidianas que atribuem significados aos lugares. Nesse sentido, entender os territórios rurais e urbanos requer uma análise crítica e integrada, que reconheça suas especificidades e interdependências. No mundo globalizado, os territórios são impactados por fluxos transnacionais de capital, informação, pessoas e mercadorias. Cidades tornam-se hubs financeiros e logísticos, enquanto áreas rurais são incorporadas à lógica de produção em larga escala para atender demandas globais. Essa integração internacional produz dinâmicas contraditórias: de um lado, oportunidades de desenvolvimento econômico; de outro, perda de autonomia, esvaziamento cultural e concentração de riqueza. A sociologia busca desvendar essas tensões, desnaturalizando o discurso do progresso linear e questionando os efeitos da globalização nos territórios locais. A urbanização acelerada é um dos grandes fenômenos do século XXI. Mais de metade da população mundial já vive em áreas urbanas, e esse número tende a crescer. Contudo, a urbanização nem sempre significa melhoria nas condições de vida. Muitas cidades enfrentam desigualdades extremas, precarização do trabalho, segregação socioespacial e violência. A sociologia urbana contemporânea propõe uma leitura crítica dessas contradições, analisando os processos de exclusão, os mecanismos de resistência e as formas de governança que moldam os espaços urbanos.Paralelamente, os territórios rurais passam por transformações significativas. O avanço do agronegócio, a modernização tecnológica e as políticas de infraestrutura impactam diretamente a vida das populações rurais. Comunidades tradicionais, agricultores familiares e povos originários veem seus modos de vida ameaçados por interesses econômicos e pela pressão por produtividade. A sociologia rural 39 contemporânea concentra-se em denunciar essas ameaças e propor alternativas baseadas na agroecologia, na economia solidária e na valorização dos saberes locais. A sustentabilidade emerge como eixo central nas análises territoriais contemporâneas. O esgotamento dos recursos naturais, a crise climática e a degradação ambiental impõem limites ao modelo de desenvolvimento dominante. A sociologia, nesse contexto, contribui com uma leitura crítica das políticas ambientais, apontando os conflitos socioambientais e propondo caminhos para uma gestão participativa e ecologicamente responsável dos territórios. A justiça ambiental, que relaciona desigualdade social e degradação ambiental, torna-se um conceito-chave. O crescimento das metrópoles e a emergência de megacidades também demandam novas abordagens sociológicas. Esses centros urbanos, marcados por complexidade e diversidade, apresentam múltiplas centralidades, redes de mobilidade complexas e alta concentração populacional. Ao mesmo tempo, abrigam profundas desigualdades e tensões. A sociologia urbana contemporânea busca interpretar esses espaços, identificando como se formam as novas periferias, como se estabelecem os vínculos sociais e como se manifesta o direito à cidade em contextos tão densos e fragmentados. As tecnologias digitais representam uma das mais significativas transformações na configuração dos territórios. A conectividade, os aplicativos de mobilidade, os sistemas de geolocalização e as redes sociais modificam a forma como os sujeitos habitam e percebem o espaço. As cidades tornam-se “inteligentes”, mas também vigiadas, e os dados se transformam em mercadorias. A sociologia contemporânea investiga os impactos da digitalização sobre os modos de vida, denunciando a exclusão digital, a vigilância algorítmica e os novos formatos de desigualdade territorial. Outro desafio sociológico contemporâneo é compreender o papel dos movimentos sociais na reconfiguração dos territórios. Em resposta às desigualdades e às exclusões, surgem coletivos urbanos e rurais que reivindicam terra, moradia, saúde, cultura, mobilidade e dignidade. Esses movimentos ressignificam o espaço ao ocupar praças, edifícios abandonados, lotes urbanos e terras improdutivas. A sociologia dá visibilidade a essas lutas, reconhecendo-as como formas legítimas de ação política e de construção de novas territorialidades. 40 As migrações também impõem desafios sociológicos na análise dos territórios. Milhões de pessoas se deslocam anualmente entre países, regiões e cidades, seja por motivos econômicos, políticos ou ambientais. Esses fluxos alteram as dinâmicas territoriais, transformando culturas, economias e estruturas urbanas. A sociologia contemporânea estuda as redes migratórias, os processos de adaptação, os conflitos interculturais e as políticas de acolhimento, propondo abordagens sensíveis à diversidade e aos direitos humanos. A questão da moradia continua a ser um dos grandes temas da sociologia dos territórios. O acesso à moradia digna é negado a milhões de pessoas, especialmente nas grandes cidades, onde a especulação imobiliária e a ausência de políticas habitacionais efetivas criam cenários de exclusão. A informalidade, os despejos forçados e a gentrificação revelam a mercantilização do solo urbano. A sociologia denuncia essas práticas e apoia iniciativas de moradia autogestionada, urbanismo popular e reforma urbana. A governança dos territórios representa outro eixo de análise importante. As formas como o poder público, o setor privado e a sociedade civil se articulam na gestão das cidades e do campo definem os rumos do desenvolvimento. Modelos autoritários, tecnocráticos ou participativos coexistem em diferentes escalas e territórios. A sociologia analisa essas dinâmicas, destacando a importância do controle social, da transparência e da participação cidadã como pilares de uma democracia territorial efetiva. No campo da educação, a territorialização das políticas educacionais é uma perspectiva crescente. Ela considera as especificidades dos territórios na formulação de estratégias pedagógicas, no planejamento das redes escolares e na valorização dos saberes locais. A sociologia da educação contribui para essa perspectiva ao evidenciar as desigualdades territoriais e propor práticas pedagógicas contextualizadas e transformadoras. A cultura, enquanto dimensão estruturante dos territórios, também ganha destaque nas abordagens sociológicas contemporâneas. A produção simbólica dos lugares, a identidade coletiva, as práticas culturais e os rituais de pertencimento são elementos que moldam as relações sociais no espaço. A sociologia investiga como essas expressões culturais são apropriadas, invisibilizadas ou potencializadas nos territórios, e como podem contribuir para a emancipação dos sujeitos. 41 A violência nos territórios é outro aspecto central nas análises sociológicas. Conflitos fundiários, repressão policial, milícias, narcotráfico e violência de gênero são realidades que configuram o cotidiano de muitos espaços. A sociologia contemporânea busca compreender os fatores estruturais que geram essa violência, bem como as formas de resistência e enfrentamento desenvolvidas pelas comunidades afetadas. A pandemia da COVID-19 revelou de maneira trágica as desigualdades territoriais e a importância de políticas públicas integradas. Os territórios mais vulneráveis foram os mais atingidos pela doença e pela crise econômica, evidenciando a fragilidade das redes de proteção social e a centralidade da sociologia na formulação de respostas sociais e políticas. A pandemia impulsionou debates sobre resiliência urbana, saúde pública territorializada e justiça social. As juventudes também representam um campo prioritário de estudo. Os jovens vivem e experimentam os territórios de formas singulares, com práticas culturais próprias, modos de ocupação do espaço e participação política. A sociologia contemporânea reconhece essa diversidade e propõe olhares interseccionais sobre juventude, território e cidadania, valorizando o protagonismo juvenil nas lutas urbanas e rurais. A interseccionalidade, aliás, torna-se ferramenta teórica indispensável para compreender os territórios. Gênero, raça, classe, geração, sexualidade e deficiência se entrecruzam na produção das desigualdades espaciais. A sociologia contemporânea investiga essas articulações, denunciando as opressões múltiplas e construindo alternativas emancipadoras que levem em conta as experiências concretas dos sujeitos nos espaços que habitam. A espiritualidade e as expressões religiosas também exercem influência significativa na configuração dos territórios. Igrejas, terreiros, centros espirituais e celebrações religiosas são parte da paisagem urbana e rural, moldando relações sociais, valores e formas de organização comunitária. A sociologia da religião contribui para o entendimento de como a fé influencia o pertencimento territorial e a resistência frente às adversidades. A produção acadêmica sobre territórios enfrenta, porém, seus próprios desafios. A fragmentação do conhecimento, a desvalorização das pesquisas locais e a hegemonia de paradigmas do Norte Global dificultam a construção de saberes comprometidos com a realidade dos povos do Sul. A sociologia brasileira tem avançado na produção de 42 epistemologias situadas, que partem da experiência concreta dos territórios e dialogam com os saberespopulares e ancestrais. A universidade, enquanto território de conhecimento, também é chamada a rever seus vínculos com a sociedade. É necessário construir pontes entre a academia e os movimentos sociais, entre o saber científico e o saber popular. A extensão universitária, os projetos de pesquisa participativa e a formação crítica dos estudantes são caminhos para aproximar a sociologia das lutas sociais e territoriais. A perspectiva decolonial contribui para o repensar da sociologia dos territórios, ao questionar a centralidade eurocêntrica, a lógica do progresso e a colonialidade do saber. Ela propõe uma valorização das cosmologias indígenas, afrodescendentes e camponesas, e a construção de alternativas de desenvolvimento que respeitem a diversidade cultural, a natureza e os modos de vida tradicionais. Diante de tantas transformações, a sociologia contemporânea reafirma seu compromisso com a justiça social, a democracia e a sustentabilidade. Analisar os territórios é também lutar por eles, reconhecer os sujeitos que os constroem e resistem, e propor formas mais justas de organização social. Os territórios não são neutros; são produtos históricos, arenas de disputa e espaços de vida. Nesse horizonte, a sociologia rural e urbana devem dialogar cada vez mais. As fronteiras entre campo e cidade se dissolvem, dando lugar a novos desafios e possibilidades analíticas. O pensamento sociológico precisa ser flexível, interdisciplinar e comprometido com a transformação social, superando dicotomias e integrando múltiplas vozes e perspectivas. A formação de novos sociólogos exige uma educação que estimule o pensamento crítico, a escuta sensível e o engajamento ético com os territórios e suas populações. A pesquisa sociológica deve ser orientada por perguntas relevantes, metodologias plurais e compromisso com o bem comum. Só assim será possível contribuir para a construção de um mundo mais justo, habitável e plural. 43 AULA 7. BNCC E SOCIOLOGIA RURAL E URBANA A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), homologada em 2018, representa um marco na organização do currículo escolar brasileiro, definindo as competências e habilidades essenciais a serem desenvolvidas ao longo da educação básica. No ensino médio, a área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas – na qual a Sociologia está inserida – tem como objetivo formar sujeitos críticos, autônomos, solidários e conscientes de seu papel na sociedade. A sociologia rural e urbana, dentro desse escopo, é um eixo fundamental para compreender as relações sociais nos territórios e promover uma educação contextualizada e transformadora. A BNCC propõe uma formação integral, articulando conhecimentos cognitivos, socioemocionais e éticos. Ao tratar das realidades rurais e urbanas, a Sociologia possibilita que o estudante compreenda as estruturas sociais, as desigualdades territoriais, os processos históricos de urbanização e ruralização, bem como os desafios contemporâneos da vida nas cidades e no campo. Essa abordagem contribui diretamente para o desenvolvimento de competências como a empatia, a argumentação, o pensamento crítico e a responsabilidade cidadã. Um dos principais focos da BNCC na área das Ciências Humanas é a valorização dos diferentes modos de vida e das identidades culturais. Ao trabalhar temas ligados à Sociologia Rural e Urbana, o docente promove a reflexão sobre a pluralidade dos territórios, reconhecendo as especificidades das populações do campo, das periferias urbanas, dos povos tradicionais e das comunidades indígenas. Isso contribui para a formação de uma postura ética e respeitosa frente à diversidade. A BNCC valoriza a construção de conhecimentos a partir de problemas reais e situações do cotidiano. Ao analisar as dinâmicas rurais e urbanas, o estudante é convidado a investigar temas como o acesso à terra, o direito à cidade, os impactos do agronegócio, a mobilidade urbana, a gentrificação, a violência territorial, a migração campo-cidade e as políticas públicas. Esse processo investigativo favorece o protagonismo juvenil, estimula a autonomia intelectual e fortalece o vínculo entre escola e comunidade. Entre as competências gerais da BNCC, destaca-se a Competência 6, que orienta o estudante a “valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e reconhecer a identidade cultural como parte da identidade individual e coletiva.” A Sociologia Rural e 44 Urbana, ao abordar os modos de vida camponeses, a cultura popular das periferias urbanas e as transformações territoriais, contribui diretamente para o desenvolvimento dessa competência, promovendo a valorização dos múltiplos saberes sociais. A Competência 7 da BNCC, que propõe o exercício da argumentação baseada em dados, fatos e evidências, encontra terreno fértil na análise sociológica dos territórios. Ao comparar estatísticas de desigualdade urbana, índices de violência no campo, dados sobre mobilidade, saneamento, moradia ou escolarização, os alunos aprendem a interpretar criticamente a realidade, desenvolver argumentos sólidos e participar de debates fundamentados. A sociologia, no contexto da BNCC, também contribui para a Competência 10, que destaca a importância da ação pessoal e coletiva para a transformação da realidade. Os temas rurais e urbanos estimulam a identificação de problemas locais e a proposição de soluções que valorizem o protagonismo estudantil. Projetos de intervenção, ações comunitárias, pesquisas escolares e iniciativas de educação popular são práticas pedagógicas que consolidam o vínculo entre teoria e prática. A abordagem territorial proposta pela Sociologia Rural e Urbana também favorece o desenvolvimento da Consciência Socioespacial, prevista nas competências específicas da área de Geografia, mas transversais à Sociologia. O reconhecimento de que os espaços são construídos socialmente, que refletem relações de poder e que influenciam diretamente a vida das pessoas é uma base comum que permite o trabalho interdisciplinar entre as áreas das Ciências Humanas. A BNCC incentiva a articulação entre os componentes curriculares por meio dos temas contemporâneos transversais. A sociologia dos territórios permite o diálogo com temas como sustentabilidade, cidadania, ética, direitos humanos, educação para o trânsito, saúde, cultura e trabalho. Ao abordar, por exemplo, o êxodo rural ou a falta de mobilidade nas cidades, é possível integrar conteúdos de Sociologia, Geografia, História e Filosofia em projetos interdisciplinares. A educação contextualizada, prevista na BNCC, exige que os currículos escolares considerem a realidade dos estudantes. Em regiões rurais, torna-se fundamental abordar os desafios enfrentados pelos pequenos agricultores, o acesso à terra, a educação do campo, as políticas de incentivo à agricultura familiar e os direitos dos povos tradicionais. Em contextos urbanos, temas como desigualdade socioespacial, violência, acesso aos 45 serviços públicos e movimentos sociais urbanos ganham centralidade. Essa contextualização amplia o sentido da aprendizagem. Outro aspecto relevante da BNCC é a promoção da cidadania ativa. A sociologia dos territórios oferece ferramentas para que os estudantes se reconheçam como sujeitos históricos, capazes de agir coletivamente na transformação do espaço em que vivem. A leitura crítica da cidade e do campo, aliada ao conhecimento das estruturas sociais e políticas, fortalece a capacidade de reivindicação de direitos e de construção de propostas democráticas e inclusivas. A BNCC também prevê o uso de metodologias ativas, como investigação, resolução de problemas, projetos integradores e uso das tecnologias da informação. A análise dos territórios pode ser realizada por meio de saídas de campo, observação participante, produção de mapas mentais, construção de documentários e entrevistas com moradoresda comunidade. Essas práticas favorecem o envolvimento dos estudantes e estimulam a aprendizagem significativa. A inclusão da Sociologia no currículo do ensino médio, conforme indicado na BNCC, está associada à formação ética, política e científica. Os temas relacionados ao campo e à cidade envolvem questões de justiça social, distribuição de recursos, participação política e organização coletiva. Por isso, devem ser tratados de forma crítica, dialógica e emancipadora, respeitando a pluralidade de visões e promovendo o diálogo entre os diferentes saberes presentes na escola. A discussão sobre os direitos humanos também é central no trabalho com a Sociologia Rural e Urbana. Os conflitos agrários, os despejos forçados, a violência policial nas periferias, a negação do direito à moradia ou à terra são violações que atingem diretamente a dignidade humana. Ao abordar essas temáticas, a escola se torna um espaço de resistência, de formação cidadã e de defesa da democracia. A BNCC estimula a valorização da memória social e cultural. Os territórios são repositórios de histórias, lutas, tradições e significados. Ao estudar as dinâmicas rurais e urbanas, os estudantes têm a oportunidade de conhecer e valorizar o patrimônio cultural material e imaterial de suas comunidades, fortalecendo o sentimento de pertencimento e a identidade coletiva. Além disso, o enfoque na pluralidade dos territórios contribui para combater estigmas e preconceitos. A escola pode desconstruir representações negativas sobre o 46 campo e a cidade, como a ideia de que o rural é atrasado ou que as favelas são sinônimo de violência. Ao valorizar a diversidade e promover o respeito, a sociologia contribui para a construção de uma cultura de paz e de convivência solidária. As transformações tecnológicas e as mudanças no mundo do trabalho, temas da BNCC, também são abordadas na Sociologia Rural e Urbana. O impacto da mecanização na agricultura, a automação nas cidades, o desemprego estrutural e a informalidade são questões que afetam profundamente os territórios e precisam ser discutidas com os estudantes, relacionando teoria e realidade concreta. A BNCC também valoriza o desenvolvimento de projetos de vida. Ao compreender as dinâmicas territoriais, os estudantes podem refletir sobre seus próprios trajetos, desejos e possibilidades de atuação profissional e cidadã. Essa reflexão amplia os horizontes e permite a construção de trajetórias significativas, que dialoguem com os desafios e potencialidades de seus territórios. A abordagem territorial promove ainda o desenvolvimento da leitura crítica do espaço, fundamental para compreender os processos de exclusão e inclusão. Por que certas áreas têm mais acesso a serviços públicos? Quais interesses determinam o uso do solo urbano? Por que há tanta concentração fundiária no campo? Essas perguntas instigam a investigação e o engajamento. A escola deve ser um espaço de articulação entre teoria e prática. A BNCC reconhece essa necessidade ao propor o desenvolvimento de competências aplicadas à vida real. O estudo das relações sociais nos territórios é uma excelente oportunidade para que os alunos se envolvam em projetos sociais, debates, rodas de conversa, produções textuais e ações transformadoras. A valorização das juventudes também está presente na BNCC. A Sociologia Rural e Urbana pode explorar as experiências juvenis nos territórios, suas formas de expressão, seus conflitos e suas formas de organização política. O protagonismo juvenil é essencial para a construção de sociedades mais justas e democráticas. 47 AULA 8. REFERENCIAIS TEÓRICOS José de Souza Martins “O latifúndio não é apenas a grande propriedade da terra: é também uma forma de dominação social” A citação de José de Souza Martins revela uma das teses centrais de sua obra: a compreensão do latifúndio não se limita à sua dimensão fundiária, mas se estende à esfera das relações sociais, econômicas e políticas que ele sustenta. Ao propor essa leitura ampliada, o autor denuncia que a posse da terra em larga escala constitui um instrumento de controle e subordinação dos trabalhadores rurais e camponeses. O latifúndio, nesse sentido, é mais que estrutura agrária: é também um sistema de poder e uma expressão da desigualdade social. Essa perspectiva permite entender que a concentração fundiária no Brasil não é apenas resultado de fatores econômicos, mas de uma lógica de dominação histórica, que remonta ao período colonial. A terra, desde o início, foi apropriada por elites econômicas e políticas que a utilizaram como base para a reprodução de privilégios e o exercício da autoridade sobre populações subalternas. O latifúndio é, portanto, uma instituição social que organiza a vida rural de forma desigual e hierarquizada. O controle sobre a terra garante, ao proprietário, o controle sobre os meios de produção, o trabalho e, frequentemente, sobre as formas de organização comunitária. Isso implica em um tipo de dependência estrutural dos trabalhadores em relação aos donos da terra, o que dificulta a autonomia dos camponeses e a consolidação de alternativas produtivas. A dominação não se dá apenas na exploração do trabalho, mas também na imposição de valores, normas e formas de viver. Martins destaca que a permanência do latifúndio no Brasil contemporâneo revela a força das estruturas arcaicas que coexistem com a modernização. Enquanto os discursos oficiais celebram a produtividade e a inovação no campo, milhões de trabalhadores continuam submetidos a relações sociais marcadas pelo autoritarismo, pelo clientelismo e pela violência simbólica e física. Essa convivência entre o moderno e o arcaico é um dos traços característicos do rural brasileiro. 48 Ao afirmar que o latifúndio é uma forma de dominação social, Martins chama atenção para os aspectos ideológicos que sustentam sua legitimidade. A imagem do grande proprietário como benfeitor da comunidade, o discurso da ordem e da tradição e a invisibilização das lutas camponesas compõem um imaginário que naturaliza a desigualdade. A sociologia, nesse cenário, deve exercer um papel desmistificador, revelando as estruturas de poder ocultas sob o véu da normalidade. A citação escolhida nos convida a pensar o campo como um espaço de conflito e disputa. A propriedade da terra não é apenas um bem econômico, mas um símbolo de status, de pertencimento e de autoridade. A exclusão do acesso à terra implica também na exclusão da cidadania plena, pois impede o exercício de direitos fundamentais como a moradia, a produção de alimentos, a participação política e a construção da identidade coletiva. A luta pela terra, como mostra Martins, é uma luta por dignidade e reconhecimento. Os movimentos sociais que enfrentam o latifúndio, como o MST, não estão apenas reivindicando hectares para cultivo, mas exigindo a superação de uma estrutura de dominação profundamente enraizada. O autor contribui, assim, para legitimar sociologicamente essas lutas e para oferecer uma leitura crítica da realidade agrária brasileira. A citação revela também o caráter estrutural da desigualdade rural. Não se trata de uma questão localizada ou pontual, mas de um modo de organização social que afeta milhões de brasileiros. A dominação exercida pelo latifúndio não se limita ao campo: ela repercute na política, na economia e na cultura nacional, moldando a estrutura de classes e os limites da democracia. O autor ainda mostra que, mesmo quando o latifúndio se transforma em empresa moderna, com uso de tecnologia e inserção no mercado global, suas bases de dominação permanecem. A modernização produtiva não se traduziu necessariamente em modernização social. Ao contrário, muitas vezes serviu para consolidar ainda mais o controle sobre a terra e sobre o trabalho rural, ampliando as formas de exploração e expropriação.Portanto, a leitura de Martins é essencial para compreender que o problema fundiário no Brasil não se resume à distribuição da terra, mas envolve a reconfiguração das relações de poder. O combate ao latifúndio exige não apenas reforma agrária, mas 49 mudanças profundas nas estruturas sociais, políticas e culturais que o sustentam. Trata- se de uma luta por justiça social, por democracia e por um modelo de desenvolvimento verdadeiramente inclusivo. Henri Lefebvre “O direito à cidade não é simplesmente o direito ao que já existe na cidade, mas o direito de transformá-la segundo os desejos coletivos” Henri Lefebvre, ao enunciar o conceito de direito à cidade, propõe uma mudança radical na forma como pensamos o espaço urbano. Para ele, a cidade não é apenas um lugar físico onde ocorrem relações econômicas e sociais, mas uma obra coletiva, continuamente produzida pelos seus habitantes. O direito à cidade, então, não é apenas o direito de estar na cidade, mas o direito de transformá-la, de participar de sua criação, de decidir seus rumos e de compartilhá-la de forma democrática. A citação sublinha a dimensão política do espaço urbano. Lefebvre rompe com a ideia da cidade como produto técnico-administrativo, mostrando que ela é, acima de tudo, espaço de conflito e de negociação. O direito à cidade implica o direito de todas as pessoas – e não apenas das elites – de se apropriar do espaço, de usá-lo conforme suas necessidades, desejos e aspirações. É uma forma de reivindicar a cidade como bem comum. Esse direito é, segundo Lefebvre, um direito coletivo, pois a cidade é uma construção coletiva. Isso significa que ele não pode ser individualizado ou mercantilizado. Quando os espaços públicos são privatizados, quando os bairros populares são expulsos em nome da valorização imobiliária, quando o transporte público se torna inacessível, o direito à cidade é negado. A citação, portanto, é um chamado à resistência e à construção de alternativas urbanas. A transformação desejada por Lefebvre é orientada pelos desejos e necessidades das classes populares. Trata-se de uma transformação contra-hegemônica, que desafia o urbanismo tecnocrático e o planejamento subordinado ao capital. A cidade deve ser pensada a partir da vida cotidiana, da cultura, da sensibilidade e da criatividade dos seus habitantes. É uma proposta de urbanismo radical, que coloca as pessoas no centro do planejamento urbano. 50 Ao afirmar que o direito à cidade é o direito de transformá-la, Lefebvre nos lembra que a cidade não está pronta: ela é sempre inacabada, aberta à invenção e à ação política. Isso confere aos cidadãos o papel de coautores da cidade, e não apenas de consumidores ou espectadores. A cidade viva é aquela que se reinventa constantemente, que acolhe a diversidade e que permite a emergência de novas formas de convivência. Essa citação também aponta para a centralidade da participação. O direito à cidade pressupõe o envolvimento ativo dos cidadãos nos processos decisórios que afetam seu cotidiano. Significa decidir sobre o transporte, a habitação, o uso do solo, a cultura, o meio ambiente. É, portanto, uma radicalização da democracia, uma ampliação dos espaços de escuta e deliberação. Lefebvre convida a pensar a cidade como um espaço de realização da utopia concreta. A transformação da cidade segundo os desejos coletivos não é um sonho inalcançável, mas uma possibilidade política baseada na ação popular. As ocupações urbanas, os movimentos por moradia, as intervenções artísticas e culturais nos espaços públicos são formas legítimas de reivindicação desse direito. A crítica de Lefebvre ao urbanismo mercantilizado revela a lógica de exclusão e expropriação que caracteriza as cidades contemporâneas. Os processos de gentrificação, expulsão das periferias, elitização dos centros e financeirização do espaço urbano são estratégias de negação do direito à cidade. A citação escolhida é, portanto, uma denúncia e uma proposta. Sua obra nos leva a compreender que o espaço urbano é campo de disputa entre diferentes projetos de cidade: um voltado ao lucro e outro voltado à vida. A sociologia urbana encontra, em Lefebvre, um referencial potente para analisar essas tensões e para construir análises comprometidas com os sujeitos populares. Milton Santos “O espaço não é um palco neutro da ação social, mas uma instância ativa que participa da constituição da sociedade” A citação de Milton Santos propõe uma ruptura definitiva com a ideia de que o espaço é apenas o cenário onde os acontecimentos sociais se desenrolam. Ao afirmar que o espaço participa da constituição da sociedade, o autor atribui-lhe uma dimensão ativa, 51 configurando-o como elemento que interfere, condiciona e, ao mesmo tempo, é moldado pelas relações sociais. Essa concepção inaugura uma leitura dialética do espaço, essencial para compreender as contradições territoriais do mundo contemporâneo. Essa ideia desloca o foco da análise do espaço como mera localização geográfica ou suporte físico para o reconhecimento de sua centralidade nas relações sociais. O espaço, segundo Santos, tem materialidade, mas também tem intencionalidade e historicidade. Ele é produzido por sujeitos sociais inseridos em um contexto de conflitos, interesses e estratégias de dominação ou resistência. Assim, o espaço é produto e produtor da sociedade. O espaço do cidadão, como Milton Santos propõe, é um espaço plural, onde convivem diferentes racionalidades: a racionalidade do mercado e a racionalidade da vida. A primeira busca a eficiência, o lucro, a produtividade. A segunda, a solidariedade, a dignidade, o bem comum. Essa convivência é conflituosa e tende a ser desigual, pois o espaço é frequentemente apropriado pelas forças econômicas que determinam quem pode ou não estar em determinados lugares. Essa leitura crítica do espaço permite compreender os mecanismos de exclusão territorial. A segregação urbana, o deslocamento de comunidades, a concentração de infraestrutura em zonas privilegiadas e a invisibilidade dos pobres nos mapas oficiais são estratégias de organização do espaço que beneficiam certos grupos em detrimento de outros. Assim, o espaço não é apenas reflexo da desigualdade social – ele também a reproduz e a acentua. Milton Santos enfatiza que o espaço é o lócus da vida cotidiana, onde se materializam os direitos e as ausências de direitos. O acesso à água, à mobilidade, à moradia, à saúde e à educação depende de onde o sujeito está inserido no território. As diferenças espaciais condicionam a qualidade de vida e moldam as oportunidades de desenvolvimento individual e coletivo. A citação, nesse sentido, é um alerta para a importância da justiça territorial. O espaço também é mediado pelas relações de poder. Quem detém o controle sobre o espaço – seja pelo capital imobiliário, pelo planejamento urbano ou pelas políticas públicas – detém, em parte, o controle sobre a vida das pessoas. O autor denuncia a colonização dos territórios pela lógica empresarial e propõe uma outra forma de organizar o espaço, baseada na cidadania, na inclusão e na centralidade da vida. 52 A produção do espaço envolve, portanto, uma dimensão técnica, uma dimensão política e uma dimensão ética. Milton Santos articula essas três dimensões para demonstrar que toda intervenção no território implica escolhas que favorecem ou desfavorecem grupos sociais. Não existe neutralidade na organização espacial: há sempre projetos em disputa. O urbanismo, as políticas fundiárias e os investimentos em infraestrutura expressam interesses e visões de mundo. Para o autor, a cidade moderna é marcada por uma fragmentação que distancia os cidadãos da totalidade urbana. A compartimentalização do espaço – em bairros fechados, zonas industriais, áreas comerciais e favelas isoladas – reforça o individualismo,enfraquece o sentimento de pertencimento e compromete a cidadania plena. Reverter esse processo exige políticas que integrem os territórios e valorizem a convivência e o uso comum dos espaços. A citação também nos leva a repensar a forma como ensinamos e compreendemos o espaço nas escolas. Milton Santos propõe uma pedagogia do território, que valorize o lugar de vida dos estudantes, suas experiências, memórias e relações cotidianas. O espaço vivido deve ser ponto de partida para a construção do conhecimento, rompendo com abstrações e discursos distantes da realidade. Essa proposta está em plena sintonia com os princípios da BNCC e da educação contextualizada. Outro ponto fundamental na obra do autor é a crítica à globalização perversa. Para ele, a globalização organiza o espaço de maneira seletiva, priorizando fluxos de capital e mercadorias, enquanto restringe o movimento de pessoas e ignora as necessidades locais. A cidade torna-se vitrine do consumo global, mas exclui seus habitantes reais. A produção do espaço, nesse cenário, é orientada por lógicas exógenas, que ignoram as singularidades dos territórios. A resistência a esse modelo passa por uma reapropriação do espaço pelos cidadãos. Milton Santos aposta na possibilidade de construir outro espaço – o espaço da solidariedade, da cooperação e da justiça. Ele não idealiza os territórios populares, mas reconhece seu potencial de invenção, organização e produção de alternativas ao modelo dominante. O espaço do cidadão é o espaço da esperança concreta. A citação nos instiga a ver o território como construção histórica. Os bairros, as comunidades, as regiões não são dados naturais, mas frutos de escolhas, lutas e 53 processos sociais. Por isso, conhecer o espaço é também conhecer as histórias que ele carrega, os conflitos que o moldaram, as vozes que o compõem. O mapa não é apenas representação, mas narrativa política e instrumento de ação. A dimensão simbólica do espaço também é destacada pelo autor. Os lugares são carregados de significados, afetos, memórias e identidades. Negar o direito à permanência no território é negar o direito à identidade, à ancestralidade e à continuidade da vida. Por isso, o espaço é também um bem cultural e espiritual. A luta pelo território é, muitas vezes, uma luta pela dignidade e pela memória. Milton Santos nos ensina que a sociologia deve dialogar com a geografia crítica para compreender plenamente a realidade social. O espaço não pode ser tratado como um elemento acessório, mas como categoria central da análise. A interdisciplinaridade entre as ciências humanas é essencial para enfrentar os desafios territoriais do século XXI. Ao afirmar que o espaço participa da constituição da sociedade, o autor nos convida a pensar políticas públicas que levem em conta as especificidades territoriais. A padronização das ações governamentais ignora as particularidades locais e reproduz injustiças. A territorialização das políticas é condição para a construção de equidade e efetividade. A citação também nos leva a valorizar os saberes locais e as práticas comunitárias. As populações pobres, camponesas, indígenas e periféricas não são apenas objetos das políticas urbanas e rurais: são sujeitos ativos na produção do espaço. Sua experiência deve ser reconhecida, escutada e incorporada nas decisões que afetam o território. Por fim, Milton Santos nos oferece um horizonte de transformação. Se o espaço é produto da sociedade, ele pode ser reconstruído. A construção de territórios mais justos exige consciência crítica, ação política e solidariedade. A cidade e o campo podem ser reinventados como espaços de vida digna, cultura viva e cidadania ativa. O espaço do cidadão é o espaço onde se afirma o direito à cidade e ao campo, onde se rompe com a lógica da exclusão e se promove o bem comum. É o espaço da democracia territorial, do planejamento participativo e da emancipação social. Essa é a utopia concreta que Milton Santos nos convida a construir. 54 CONCLUSÃO A Sociologia, ao eleger os territórios rurais e urbanos como objeto de reflexão, nos oferece uma chave poderosa para compreender as dinâmicas sociais que estruturam a vida coletiva. Ao longo desta apostila, procuramos evidenciar como a análise dos espaços onde vivemos, produzimos, nos relacionamos e resistimos é indispensável para a formação crítica dos sujeitos e para o fortalecimento da cidadania. O rural e o urbano não são apenas cenários da ação humana; são expressões das relações de poder, das desigualdades históricas, das formas de dominação e também das potências de transformação social. Compreender o campo e a cidade requer muito mais do que observar suas aparências geográficas. Exige investigar como foram historicamente constituídos, como as estruturas sociais influenciam seus modos de organização e como sujeitos diversos, ao longo do tempo, resistem, inventam e reivindicam novos sentidos para o território. Essa perspectiva foi central em nossa abordagem, que buscou superar as dicotomias simplistas e construir uma leitura crítica, complexa e plural dos espaços sociais. Partimos da análise da sociologia rural, reconhecendo que o campo brasileiro não pode ser entendido fora do contexto da concentração fundiária, da herança escravocrata e da permanência de formas arcaicas de exploração. Com o suporte teórico de José de Souza Martins, discutimos como o latifúndio é mais do que uma estrutura agrária: é uma instituição de dominação social, sustentada por ideologias conservadoras e práticas excludentes. A luta pela terra, nesse contexto, aparece como uma disputa por dignidade, memória e pertencimento. No campo, a modernização produtiva nem sempre significou emancipação. Muitas vezes, serviu para aprofundar desigualdades, expulsar populações tradicionais e destruir vínculos comunitários. O avanço do agronegócio, embora promova altos índices de produtividade, está frequentemente associado à degradação ambiental, à precarização do trabalho e à violência contra camponeses. A sociologia rural, ao trazer esses elementos à luz, cumpre um papel fundamental ao desmistificar os discursos dominantes e valorizar as formas alternativas de produção e organização social. A resistência camponesa, os saberes tradicionais, a agroecologia, a cultura popular e os movimentos sociais do campo foram destacados como expressões vivas de uma luta 55 cotidiana pela construção de outro modelo de sociedade. Longe de serem resquícios do passado, esses sujeitos sociais são protagonistas na reinvenção do rural, mostrando que é possível articular desenvolvimento com justiça social e sustentabilidade. No mundo urbano, por sua vez, as transformações ocorridas ao longo do século XX e início do XXI revelam um processo de urbanização desigual e excludente. A cidade brasileira, marcada pela segregação socioespacial, pela concentração de serviços em áreas privilegiadas e pela precariedade nas periferias, expressa as contradições do desenvolvimento capitalista. A análise da sociologia urbana nos ajuda a compreender que a cidade é fruto de disputas, onde se enfrentam interesses do capital e os direitos da população. Com base no pensamento de Henri Lefebvre, discutimos o conceito de direito à cidade como forma de reivindicar a participação ativa dos cidadãos na construção dos espaços urbanos. A cidade não pode ser mercadoria, nem vitrine para o consumo e a especulação imobiliária; ela deve ser obra coletiva, lugar de encontro, de convivência e de expressão da diversidade. Lefebvre nos ensina que transformar a cidade é uma ação política que precisa ser impulsionada pelos desejos coletivos e não pelas imposições do mercado. Os problemas sociais urbanos, como a gentrificação, o déficit habitacional, a violência, a exclusão e a privatização dos espaços públicos, foram analisados à luz dasdesigualdades estruturais. A lógica de produção da cidade neoliberal reforça a fragmentação, a vigilância, a elitização dos centros e a criminalização da pobreza. Contra essa lógica, surgem movimentos urbanos que reivindicam moradia, cultura, mobilidade, segurança e dignidade. Essas experiências revelam a potência dos sujeitos urbanos na luta por justiça territorial. A inter-relação entre o rural e o urbano foi abordada como um aspecto indispensável para compreender a totalidade social. Mostramos como há uma circularidade de fluxos, práticas e sentidos entre campo e cidade, e como essas relações se expressam na produção de alimentos, na mobilidade, na cultura, no trabalho e nas políticas públicas. Superar a fragmentação entre esses dois mundos é tarefa urgente para planejar o desenvolvimento de forma integrada, respeitosa e cooperativa. O pensamento de Milton Santos nos ajudou a compreender o espaço como instância ativa na constituição da sociedade. O espaço não é neutro; ele interfere nas 56 relações sociais, molda comportamentos, distribui ou nega oportunidades e reflete os projetos hegemônicos de sociedade. O autor propõe o conceito de espaço do cidadão como horizonte ético e político, no qual a cidade e o campo devem ser apropriados pelos sujeitos sociais, a partir de seus direitos, suas necessidades e suas experiências. A concepção de território como construção social foi central em todo o nosso percurso. Os territórios são produzidos, apropriados, disputados e significados por diferentes grupos. São espaços de conflito, mas também de pertencimento e identidade. Reconhecer os sujeitos do território – sejam camponeses, favelados, indígenas, quilombolas ou moradores de bairros urbanos – é condição para a construção de políticas públicas verdadeiramente democráticas e emancipatórias. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), discutida em tópico específico, nos ofereceu uma moldura institucional para compreender a importância da sociologia rural e urbana na formação escolar. A BNCC valoriza competências como o pensamento crítico, a argumentação, a empatia, o trabalho em equipe e o protagonismo juvenil – todos aspectos que são diretamente fortalecidos pela análise das dinâmicas territoriais. A escola, nesse contexto, deve ser espaço de leitura do mundo e de ação transformadora. O trabalho com territórios na sala de aula permite que os estudantes investiguem seus bairros, suas comunidades, suas realidades locais. A partir de metodologias ativas, eles podem desenvolver projetos que relacionem teoria e prática, promovendo o diálogo entre saberes acadêmicos e saberes populares. A educação territorializada fortalece a identidade, o pertencimento e a cidadania. A BNCC propõe ainda uma abordagem interdisciplinar, o que torna a sociologia um campo privilegiado de articulação entre diferentes áreas do conhecimento. Ao tratar de temas como moradia, transporte, meio ambiente, cultura e trabalho, a sociologia dos territórios dialoga com a geografia, a história, a filosofia, a matemática, a biologia, a literatura e a arte. Essa perspectiva amplia as possibilidades de aprendizagem e enriquece a formação integral dos estudantes. Os conteúdos abordados nesta apostila não têm apenas valor acadêmico ou didático. Eles constituem uma proposta de formação ética, política e emancipadora. Estudar a realidade rural e urbana é estudar a própria sociedade, suas contradições, suas esperanças e seus desafios. É compreender que as desigualdades não são naturais, mas historicamente construídas – e, portanto, passíveis de transformação. 57 A educação crítica não se limita a transmitir conteúdos: ela forma sujeitos capazes de intervir em sua realidade. A sociologia rural e urbana oferece os instrumentos analíticos para que estudantes compreendam seu papel na sociedade, leiam o território em que vivem e assumam sua responsabilidade na construção de um mundo mais justo. Essa formação é a base de uma democracia ativa e consciente. A valorização dos autores clássicos e contemporâneos discutidos ao longo da apostila reforça a importância de construir um repertório teórico sólido e comprometido. Martins, Lefebvre e Santos não são apenas referências acadêmicas; são vozes que desafiam o conformismo, denunciam as estruturas de dominação e apontam caminhos de resistência. Seus escritos iluminam as lutas sociais e inspiram novas práticas de justiça territorial. A educação sociológica deve ser, também, uma educação para o engajamento. É preciso ir além da análise crítica e cultivar o envolvimento com as causas sociais. A cidade e o campo são construídos todos os dias por ações individuais e coletivas. Participar dessas construções é tarefa que exige consciência, solidariedade, coragem e compromisso. A juventude, em especial, tem papel central nesse processo. Jovens de diferentes territórios são protagonistas de mudanças significativas em suas comunidades. Por meio da arte, da cultura, da organização política, da comunicação e da educação popular, eles transformam o espaço que habitam e criam novas formas de viver em coletivo. Valorizar essas experiências é fortalecer o direito à cidade e ao campo como direito à vida digna. Ao final deste percurso, reafirmamos que a sociologia rural e urbana não são campos estanques, mas complementares. A cidade está no campo e o campo está na cidade. A migração, o abastecimento, a cultura, os afetos e as memórias conectam os territórios de forma profunda. Reconhecer essa interdependência é passo fundamental para construir políticas integradas, planejamento territorial participativo e justiça socioespacial. O espaço social é, ao mesmo tempo, campo de dominação e de possibilidade. Ele pode ser usado para excluir, vigiar, controlar – mas também para acolher, proteger, cuidar. O tipo de espaço que queremos depende das escolhas políticas que fazemos. E essas escolhas devem ser orientadas pelo compromisso com a equidade, a democracia, a diversidade e a vida. 58 A cidade e o campo não são apenas estruturas físicas. São lugares de encontro, de cultura, de trabalho, de festa, de luta e de esperança. A transformação desses espaços exige que deixemos de ser apenas observadores e nos tornemos sujeitos ativos. Como dizia Lefebvre, o direito à cidade é o direito de reinventá-la. E esse direito precisa ser estendido ao campo, às florestas, às margens e às periferias. A luta por territórios justos não é apenas uma luta por infraestrutura ou serviços. É uma luta por reconhecimento, por visibilidade e por respeito. É uma luta contra o racismo ambiental, contra o machismo territorializado, contra a homofobia urbana, contra todas as formas de opressão que se expressam no espaço. Educar para o território é educar para a justiça. É ensinar a ver o que está escondido, a ouvir o que foi silenciado, a caminhar por onde nos disseram que não era possível. É reconstruir os laços entre as pessoas e os lugares. É reconectar o presente à história e o futuro à esperança. Por isso, encerramos esta apostila com um convite: que cada estudante, educador e leitor continue esse percurso fora das páginas, nas ruas, nas comunidades, nas escolas, nas terras, nos bairros e nas praças. Que cada um contribua, à sua maneira, para construir um território onde todos e todas possam viver com dignidade, liberdade e pertencimento. Esse é o verdadeiro sentido da sociologia: entender o mundo para transformá-lo. 59 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS HARVEY, David. Condição pós-moderna. 21. ed. São Paulo: Loyola, 2020. LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001. MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2010. SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. 6. ed. São Paulo: Edusp, 2006. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 19. ed.Rio de Janeiro: Record, 2019. SANTOS, Milton; SILVEIRA, Maria Laura. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. 16. ed. Rio de Janeiro: Record, 2010. WIRTH, Louis. O urbanismo como modo de vida. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1973. p. 89–104. 60se limitar à observação das paisagens ou ao registro das diferenças entre estilos de vida. É preciso compreender as estruturas que os constituem e os sujeitos que os disputam. Os processos de urbanização e ruralização não se deram de forma homogênea em todas as partes do mundo. No Brasil, em particular, a urbanização acelerada do século XX ocorreu de maneira desigual, com pouca ou nenhuma infraestrutura planejada para atender à crescente população que migrava do campo para os centros urbanos. Ao mesmo tempo, o campo foi sendo esvaziado de sua população ativa, mas não de sua importância econômica, principalmente com o avanço do agronegócio. Essas transformações impuseram novos desafios à sociologia brasileira, que passou a se debruçar com mais intensidade sobre os conflitos fundiários, os problemas habitacionais, a segregação urbana e a crise da vida comunitária. Outro aspecto relevante é o modo como o campo e a cidade têm sido imaginados no discurso público e nos meios de comunicação. Muitas vezes, o campo é idealizado como espaço de pureza, tradição e ordem, ao passo que a cidade é associada à modernidade, diversidade e dinamismo. Essa oposição simbólica, embora simplista, influencia políticas públicas, projetos educacionais e estratégias de desenvolvimento. A sociologia se propõe a romper com essas idealizações, mostrando que ambos os espaços são atravessados por conflitos, exclusões e possibilidades de emancipação. 7 O campo, longe de ser homogêneo, abriga uma pluralidade de sujeitos: agricultores familiares, comunidades quilombolas, povos indígenas, assentados da reforma agrária, ribeirinhos, entre outros. Essas populações vivem tensões constantes entre a preservação de suas formas de vida e as pressões do capital agrário, das grandes obras de infraestrutura e das políticas de Estado. Compreender essa diversidade é fundamental para evitar generalizações e promover uma abordagem sensível às especificidades locais. As cidades, por sua vez, não podem ser vistas apenas como centros administrativos e produtivos. Elas são territórios de vida, de cultura e de luta. Em suas periferias, surgem experiências inovadoras de organização social, práticas culturais ricas e redes de solidariedade que muitas vezes escapam às análises convencionais. A sociologia urbana contemporânea tem se dedicado a resgatar essas experiências, valorizando o saber local e as resistências cotidianas às formas de exclusão. A interdependência entre rural e urbano tornou-se ainda mais evidente com a globalização e os avanços das tecnologias da informação e da comunicação. Produtos agrícolas abastecem mercados urbanos, trabalhadores do campo dependem de políticas formuladas nas cidades, e habitantes urbanos encontram no campo uma alternativa de refúgio e reconexão com formas de vida mais sustentáveis. Essa inter-relação exige um olhar que ultrapasse os limites disciplinares tradicionais, integrando sociologia, geografia, antropologia, economia e outras áreas do saber. Do ponto de vista metodológico, o estudo da sociologia rural e urbana exige o uso combinado de instrumentos quantitativos e qualitativos. As estatísticas sobre mobilidade, habitação, produção agrícola e renda são fundamentais, mas precisam ser complementadas por estudos de caso, entrevistas, observações de campo e análises culturais. Somente assim é possível captar a complexidade das relações sociais que estruturam os territórios e dar visibilidade às vozes muitas vezes silenciadas. A escolha dos autores referenciais desta apostila se deu justamente pela capacidade que têm de iluminar, a partir de distintas perspectivas, as tensões que atravessam o campo e a cidade. José de Souza Martins nos oferece uma leitura crítica das estruturas agrárias brasileiras e do papel do latifúndio na reprodução das desigualdades rurais. Henri Lefebvre propõe uma teoria do espaço urbano como campo de disputa, introduzindo o conceito de direito à cidade como horizonte político de transformação. 8 Milton Santos, por sua vez, articula espaço, cidadania e justiça social numa abordagem inovadora e profundamente comprometida com os territórios populares. O trabalho com a sociologia rural e urbana, especialmente em contexto educacional, fortalece a consciência crítica dos estudantes e amplia sua capacidade de leitura do mundo. Ao analisar a realidade que os cerca, os jovens compreendem que os problemas que enfrentam – como o acesso ao transporte, à moradia, à terra e aos serviços – são resultado de escolhas políticas e de processos históricos. Essa compreensão os transforma em sujeitos ativos, capazes de intervir em suas comunidades e propor mudanças. A educação voltada para os territórios também estimula o protagonismo estudantil e o vínculo entre escola e comunidade. Projetos de mapeamento social, visitas de campo, entrevistas com moradores, feiras culturais e ações solidárias são exemplos de práticas pedagógicas que conectam o conteúdo escolar à realidade vivida pelos alunos. Essas atividades valorizam o saber local, fortalecem o sentimento de pertencimento e promovem a aprendizagem significativa. Os territórios, como espaços de produção da vida social, são também lugares de disputa simbólica. A forma como são nomeados, representados e narrados interfere nas políticas públicas e na autoestima dos grupos que neles habitam. Por isso, é fundamental desenvolver nos estudantes a capacidade de questionar as representações dominantes sobre os territórios rurais e urbanos, promovendo uma leitura crítica das mídias, dos discursos oficiais e dos currículos escolares. O desenvolvimento sustentável, um dos temas transversais presentes na BNCC, ganha novo sentido quando articulado às realidades territoriais. A sustentabilidade não pode ser pensada apenas em termos ambientais ou econômicos, mas deve incluir a dimensão social e cultural. Isso significa respeitar os modos de vida locais, garantir o acesso equitativo aos recursos e fortalecer a capacidade das comunidades de decidir sobre seus próprios destinos. Ao iniciar a jornada de estudo da sociologia rural e urbana, é essencial que o estudante se posicione não apenas como observador, mas como sujeito envolvido. Os conhecimentos aqui sistematizados não devem ser vistos como verdades distantes, mas como ferramentas para compreender e transformar o cotidiano. 9 AULA 1. FUNDAMENTOS DA SOCIOLOGIA RURAL A sociologia rural é uma subárea da sociologia que se dedica ao estudo das estruturas sociais, das dinâmicas culturais e econômicas, e dos modos de vida existentes nas zonas rurais. Surgida no final do século XIX, especialmente nos Estados Unidos e na Europa, ela tem como propósito compreender como as relações sociais se configuram no campo, e de que maneira essas relações são influenciadas por fatores como a posse da terra, os sistemas de produção agrícola, a tradição cultural e os processos de modernização. O campo é visto, nesse contexto, não apenas como espaço geográfico, mas como território social marcado por interações simbólicas, econômicas e políticas específicas. Um dos aspectos centrais da sociologia rural é a análise da estrutura fundiária. A distribuição desigual da terra tem sido historicamente um dos principais fatores de conflito no meio rural, gerando tensões entre grandes proprietários, pequenos agricultores, camponeses sem-terra e comunidades tradicionais. O latifúndio, por exemplo, é uma forma concentrada de propriedade fundiária que favorece a monocultura e a exportação agrícola, enquanto o minifúndio é caracterizado por pequenas parcelas de terra que, muitas vezes, não garantem a subsistência da família rural. A compreensão dessas formas de propriedade é fundamental para o entendimento das desigualdades sociais no campo. Autores como Karl Marx e Max Weber forneceram importantes contribuições teóricaspara a compreensão das relações sociais rurais. Marx, ao analisar a questão agrária, destacou a exploração da força de trabalho camponesa, o papel do capital na agricultura e a alienação do trabalhador rural. Já Weber, por sua vez, trouxe elementos da ação social e da racionalidade que ajudam a entender como os agricultores tomam decisões em contextos de modernização. Outro nome importante é Emile Durkheim, que analisou a coesão social em comunidades tradicionais, muitas vezes presentes no meio rural, onde predomina a solidariedade mecânica. No Brasil, a sociologia rural teve grande impulso a partir da década de 1950, com os estudos desenvolvidos por sociólogos como Alberto Passos Guimarães, Octavio Ianni e Maria Isaura Pereira de Queiroz. Esses autores buscaram compreender as especificidades do mundo rural brasileiro, marcado por uma combinação de estruturas 10 arcaicas com processos modernos. Guimarães analisou o campesinato como classe social em luta pela reforma agrária, enquanto Ianni investigou a articulação entre o agronegócio e a política nacional. Já Maria Isaura trouxe importantes reflexões sobre a cultura rural e as festas populares como elementos de identidade camponesa. A sociologia rural também se debruça sobre os modos de produção predominantes no campo. Entre eles, destaca-se o modo de produção camponês, baseado na propriedade familiar, na autossuficiência e na cooperação entre membros da comunidade. Em contraposição, o modo de produção capitalista prioriza a lógica do lucro, a mecanização, a divisão do trabalho e a inserção no mercado global. As tensões entre esses dois modelos geram conflitos que afetam diretamente a organização do trabalho, a sustentabilidade ambiental e a qualidade de vida das populações rurais. A modernização agrícola, impulsionada pela chamada Revolução Verde, transformou radicalmente o cenário rural em muitos países. Com a introdução de tecnologias como sementes geneticamente modificadas, fertilizantes químicos e maquinário pesado, houve um aumento significativo na produtividade agrícola. No entanto, esse processo também trouxe consequências negativas, como a degradação ambiental, o endividamento dos pequenos produtores e o êxodo rural. A sociologia rural analisa criticamente essas mudanças, buscando entender seus impactos nas comunidades e nas relações sociais no campo. Outro campo de interesse da sociologia rural é a análise dos movimentos sociais do campo, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), as organizações de agricultores familiares, as comunidades quilombolas e os povos indígenas. Esses movimentos lutam por direitos territoriais, reconhecimento cultural, acesso à educação, saúde e condições dignas de produção. A atuação desses sujeitos coletivos tem contribuído para a construção de uma nova consciência política no meio rural, pautada pela justiça social, pela soberania alimentar e pela agroecologia. A questão da identidade rural também é um tema relevante. A identidade camponesa está profundamente ligada ao território, à tradição familiar, ao modo de vida coletivo e à relação simbiótica com a natureza. A globalização e a urbanização crescente têm provocado mudanças nesse sentido, levando à descaracterização de algumas práticas culturais, mas também à ressignificação de tradições. Muitos jovens, por exemplo, deixam 11 o campo em busca de melhores oportunidades nas cidades, enquanto outros decidem permanecer e revalorizar o modo de vida rural com novas perspectivas. A relação entre gênero e ruralidade tem sido objeto de crescente atenção na sociologia rural. As mulheres camponesas desempenham papel fundamental na produção de alimentos, na gestão da economia doméstica e na manutenção das tradições culturais. No entanto, enfrentam inúmeras formas de invisibilidade, desigualdade e violência. Estudos feministas têm contribuído para evidenciar a importância do protagonismo feminino nas lutas sociais do campo, bem como para promover políticas públicas voltadas à equidade de gênero nas zonas rurais. Do ponto de vista metodológico, a sociologia rural utiliza diferentes técnicas de pesquisa para compreender as realidades do campo, como entrevistas, observação participante, estudos de caso e levantamento estatístico. A complexidade do mundo rural exige abordagens interdisciplinares, que articulem dados quantitativos e qualitativos, bem como o diálogo com outras áreas do conhecimento, como a geografia, a economia, a antropologia e as ciências ambientais. O trabalho de campo é essencial para captar as nuances das relações sociais, os valores culturais e os projetos de vida das comunidades rurais. Outro conceito fundamental é o de comunidade rural. As comunidades no campo são, muitas vezes, organizadas com base em relações de parentesco, vizinhança e solidariedade, configurando formas de vida mais coesas e interdependentes do que nas cidades. Essa coesão social pode ser um fator de resistência frente às pressões externas, mas também pode dificultar a aceitação de mudanças e a inclusão de grupos minoritários. A sociologia rural analisa esses aspectos de forma crítica, buscando compreender como se dá a reprodução social das comunidades e quais são seus mecanismos de exclusão e inclusão. A análise das políticas públicas voltadas ao meio rural é também central nos estudos sociológicos. Programas como o PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) e o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) representam iniciativas importantes de apoio aos pequenos agricultores, mas sua efetividade depende de diversos fatores, como a atuação dos governos locais, o acesso à informação e a organização dos produtores. A sociologia 12 rural avalia os impactos dessas políticas na melhoria das condições de vida e na promoção da justiça agrária. A questão ambiental é uma preocupação crescente nos estudos sobre o campo. A expansão do agronegócio tem provocado desmatamento, uso intensivo de agrotóxicos, contaminação dos rios e perda da biodiversidade. Em contrapartida, movimentos ligados à agroecologia propõem modelos sustentáveis de produção, baseados na diversidade, no respeito ao meio ambiente e na valorização dos saberes tradicionais. A sociologia rural contribui para essa discussão ao analisar as práticas socioambientais dos agricultores e os desafios para a transição agroecológica. A migração rural-urbana é outro fenômeno que desafia a sociologia rural. Historicamente, a busca por melhores condições de vida, emprego e acesso a serviços básicos tem levado milhares de pessoas a deixarem o campo em direção às cidades. Esse movimento provoca o esvaziamento das áreas rurais, a concentração fundiária e o envelhecimento da população do campo. Por outro lado, também há movimentos de retorno ao campo, motivados por projetos de vida alternativos, busca por qualidade de vida ou novas formas de produção. A sociologia rural investiga essas dinâmicas e suas implicações sociais. Além disso, o campo brasileiro é marcado por uma enorme diversidade cultural e étnica. Povos indígenas, comunidades quilombolas, ribeirinhos, sertanejos e caiçaras compartilham modos de vida únicos, saberes ancestrais e relações distintas com o território. A sociologia rural reconhece a importância de valorizar essa diversidade, rompendo com visões homogêneas e estigmatizantes sobre o meio rural. A valorização da pluralidade cultural é essencial para a construção de políticas públicas inclusivas e respeitosas às especificidades locais. A educação no campo é outro tema crucial. Historicamente marginalizadas, as populações rurais enfrentam dificuldades de acesso à educação de qualidade, infraestrutura escolar precária e currículos descontextualizados. Movimentos sociais e educadores têm lutado por uma educaçãodo campo que respeite os saberes locais, promova a cidadania e fortaleça os vínculos comunitários. A sociologia rural analisa essas demandas e contribui para a formulação de práticas pedagógicas que dialoguem com a realidade dos estudantes do campo. 13 A religiosidade também exerce papel significativo na vida das comunidades rurais. Igrejas católicas, evangélicas e manifestações religiosas afro-brasileiras ou indígenas são parte integrante da identidade das populações do campo. As práticas religiosas influenciam os ritos de passagem, as relações de poder e as formas de organização comunitária. A sociologia rural estuda essas expressões de fé não apenas como fenômenos espirituais, mas como componentes sociais e culturais que estruturam a vida coletiva. Por fim, a sociologia rural se coloca como um instrumento de análise crítica e de transformação social. Ao investigar as relações de poder, as desigualdades estruturais e os processos de resistência no campo, ela oferece subsídios para o fortalecimento das comunidades rurais, a promoção da justiça agrária e a construção de um modelo de desenvolvimento mais equitativo e sustentável. Trata-se de uma área do conhecimento que articula teoria, pesquisa e ação social, contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa, plural e democrática. Além disso, é fundamental compreender que o rural brasileiro não é homogêneo, tampouco estático. As transformações provocadas pelas políticas públicas, pelos avanços tecnológicos e pelas lutas sociais produzem novas territorialidades, que combinam elementos tradicionais com práticas modernas. Por isso, a sociologia rural contemporânea precisa ser capaz de captar essas dinâmicas emergentes, sem perder de vista os processos históricos que moldaram a estrutura fundiária, a cultura camponesa e as formas de resistência. O rural não é apenas o que resta da tradição, mas também o espaço onde se constroem alternativas de futuro, como as experiências de produção agroecológica, de educação do campo e de economia solidária. Outro ponto relevante diz respeito à presença do Estado nas áreas rurais. A sua atuação, marcada por contradições, revela tanto momentos de ausência como de presença seletiva. Em muitos casos, o Estado atua para proteger os interesses do agronegócio, financiar grandes projetos ou reprimir movimentos sociais, enquanto negligencia os direitos básicos das populações camponesas, como acesso à saúde, à educação e à terra. A sociologia rural, ao analisar criticamente essas intervenções, contribui para a formulação de políticas públicas mais justas e inclusivas, que considerem a diversidade dos sujeitos do campo e suas múltiplas formas de organização e existência. 14 AULA 2. MODERNIZAÇÃO DO CAMPO E CONFLITOS AGRÁRIOS A modernização do campo foi um processo histórico que transformou profundamente as formas de produção agrícola e as relações sociais no meio rural. Iniciada com maior intensidade a partir da segunda metade do século XX, especialmente com a chamada Revolução Verde, essa modernização teve como objetivo aumentar a produtividade agrícola por meio da introdução de novas tecnologias, insumos industriais e práticas de gestão empresarial. No entanto, as consequências desse processo foram ambíguas, gerando tanto ganhos econômicos quanto sérias desigualdades sociais e impactos ambientais. A Revolução Verde, termo utilizado para descrever o conjunto de inovações tecnológicas aplicadas à agricultura, foi implementada em diversos países como estratégia para combater a fome e aumentar a produção de alimentos. Entre as principais tecnologias introduzidas estão as sementes híbridas de alto rendimento, os fertilizantes químicos, os defensivos agrícolas (agrotóxicos), a mecanização do campo e o uso intensivo da irrigação. Esse modelo foi incentivado por instituições internacionais como o Banco Mundial e a FAO, e contou com a adesão de governos nacionais que viam na modernização agrícola uma forma de impulsionar o crescimento econômico. No entanto, os benefícios da modernização agrícola não foram distribuídos de maneira equitativa. Os grandes proprietários de terra e empresas do agronegócio foram os principais beneficiados, pois tinham acesso ao crédito, à assistência técnica e aos mercados consumidores. Já os pequenos agricultores, camponeses e trabalhadores rurais enfrentaram sérias dificuldades para competir nesse novo cenário. Muitos foram obrigados a vender suas terras, migrar para as cidades ou se tornar mão de obra assalariada em condições precárias. O resultado foi a intensificação da concentração fundiária e a exclusão social no campo. A modernização também impactou as relações de trabalho no meio rural. O uso de máquinas agrícolas reduziu a demanda por mão de obra, o que contribuiu para o desemprego e a precarização das condições de vida dos trabalhadores rurais. A lógica da produtividade passou a dominar o ambiente agrícola, substituindo práticas tradicionais de cultivo por métodos padronizados e intensivos. Com isso, muitas comunidades 15 perderam sua autonomia produtiva e se tornaram dependentes de grandes empresas fornecedoras de sementes, insumos e equipamentos. O modelo de produção baseado na Revolução Verde também gerou importantes consequências ambientais. A utilização intensiva de fertilizantes e agrotóxicos contaminou o solo, os rios e os alimentos, comprometendo a saúde dos trabalhadores e das populações vizinhas. A monocultura, característica do agronegócio, levou à perda da biodiversidade, à degradação dos ecossistemas e ao esgotamento dos recursos naturais. A expansão das fronteiras agrícolas, especialmente na Amazônia e no Cerrado brasileiros, resultou em desmatamento em larga escala, contribuindo para as mudanças climáticas globais. Diante dessas contradições, surgiram no Brasil diversos movimentos sociais do campo que passaram a lutar por reforma agrária, soberania alimentar, justiça ambiental e reconhecimento dos direitos dos povos tradicionais. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é um dos mais emblemáticos exemplos dessa resistência. Fundado em 1984, o MST articula ocupações de terra improdutiva, criação de assentamentos, produção agroecológica e educação popular como formas de enfrentamento às desigualdades estruturais do campo. A reforma agrária é, nesse sentido, uma das principais bandeiras dos movimentos sociais rurais. Ela visa redistribuir a terra de forma mais equitativa, garantindo acesso a meios de produção para famílias camponesas e promovendo a justiça social no campo. No entanto, a reforma agrária enfrenta forte resistência de setores conservadores, principalmente do agronegócio e do sistema político que o representa. As políticas públicas voltadas para a reforma agrária têm oscilado ao longo dos governos, ora sendo incentivadas, ora sendo paralisadas ou desestruturadas. A disputa pela terra no Brasil é marcada por uma longa história de violência. Conflitos agrários envolvem desde ocupações de terra e despejos forçados até assassinatos de lideranças rurais, intimidações e destruição de plantações. A Comissão Pastoral da Terra (CPT) é uma das instituições que documenta esses conflitos, denunciando a impunidade e a conivência de agentes públicos com interesses privados. Muitas vezes, empresas do agronegócio, madeireiras, mineradoras e grileiros se apropriam ilegalmente de terras públicas ou tradicionais, colocando em risco comunidades inteiras. 16 Além das disputas por terra, a modernização do campo também gerou conflitos em torno do modelo de desenvolvimento adotado. O agronegócio, voltado para a exportação de commodities como soja, milho, algodão e carne, prioriza grandes extensões de terra, uso intensivo de insumos químicos e mecanização. Em contrapartida, a agricultura familiar, que responde por grande parte daprodução de alimentos consumidos no mercado interno, adota práticas mais diversificadas, sustentáveis e voltadas ao consumo local. A tensão entre esses dois modelos expressa diferentes visões de sociedade, natureza e economia. A agroecologia emerge como alternativa ao modelo do agronegócio. Baseada na diversidade de culturas, na reciclagem de nutrientes, no respeito aos saberes tradicionais e na valorização da produção local, a agroecologia propõe um modelo de agricultura sustentável do ponto de vista social, econômico e ambiental. Experiências agroecológicas vêm sendo desenvolvidas por assentamentos da reforma agrária, cooperativas de agricultores familiares, quilombolas, povos indígenas e ONGs. A sociologia rural estuda essas experiências como formas de resistência e inovação no campo. Outro aspecto importante é a relação entre a modernização agrícola e a segurança alimentar. Embora a produtividade tenha aumentado, isso não se traduziu necessariamente em melhor alimentação para todos. Muitos países, inclusive o Brasil, enfrentam paradoxos como a coexistência de produção em larga escala com fome e desnutrição. A produção voltada para exportação reduz a disponibilidade de alimentos saudáveis no mercado interno, e o uso de agrotóxicos compromete a qualidade dos produtos consumidos pela população. A sociologia rural critica esse modelo e propõe alternativas baseadas na soberania alimentar. A educação no campo também foi profundamente afetada pela modernização agrícola. A lógica do agronegócio contribuiu para a marginalização das escolas rurais, o fechamento de unidades escolares e a migração de jovens para as cidades. Em resposta, movimentos sociais passaram a defender uma educação do campo que respeite as especificidades territoriais, valorize os saberes locais e forme sujeitos críticos e comprometidos com suas comunidades. O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) é um exemplo de iniciativa que busca garantir o direito à educação para as populações rurais. 17 O papel do Estado na mediação dos conflitos agrários é outro ponto crucial. Por um lado, o Estado pode atuar como promotor de políticas públicas que garantam direitos, redistribuam a terra e incentivem a agricultura familiar. Por outro, muitas vezes o Estado age como aliado dos grandes interesses econômicos, criminalizando os movimentos sociais, privatizando terras públicas e negligenciando denúncias de violência. A atuação estatal reflete os embates de forças políticas e econômicas presentes na sociedade brasileira e é objeto de constante análise da sociologia rural. As relações internacionais também influenciam a modernização do campo. A demanda global por alimentos e biocombustíveis, a atuação de empresas multinacionais e os acordos comerciais moldam as políticas agrícolas dos países e afetam diretamente os produtores locais. O Brasil, como grande exportador agrícola, está inserido em uma cadeia global de produção e consumo que impacta suas políticas ambientais, sociais e econômicas. A sociologia rural busca compreender essas conexões globais e suas implicações locais. A atuação das empresas transnacionais no campo brasileiro representa uma nova etapa da modernização agrícola. Empresas de sementes, fertilizantes, agroquímicos e maquinário têm grande influência sobre o modelo de produção adotado pelos agricultores. Além disso, empresas do setor financeiro e de tecnologia também passaram a investir no agronegócio, promovendo a chamada agricultura 4.0. Essa nova fase da modernização traz desafios quanto à concentração de poder, à dependência tecnológica e à exclusão de pequenos produtores que não conseguem acompanhar as inovações. A tecnocracia no campo – ou seja, a gestão agrícola baseada em dados, algoritmos e plataformas digitais – redefine as formas de produzir, comercializar e controlar a atividade agrícola. Embora possa trazer ganhos de eficiência, essa lógica tecnológica tende a favorecer os grandes produtores e dificultar a autonomia dos pequenos agricultores. O controle da informação, a propriedade intelectual sobre sementes e a regulação dos dados agrícolas são temas cada vez mais relevantes nos estudos da sociologia rural. A crescente urbanização do campo é outra face da modernização. Com a instalação de fábricas, usinas, rodovias e centros logísticos, o espaço rural vem se urbanizando, alterando as formas de habitar, trabalhar e se relacionar com o território. Esse fenômeno, conhecido como ruralização da cidade e urbanização do campo, aponta 18 para a superação de dicotomias clássicas e para a emergência de novas formas de sociabilidade rural. A sociologia rural analisa essas mudanças e propõe novas categorias analíticas para compreender as zonas de transição rural-urbana. A participação política das populações rurais também se transformou com a modernização do campo. A organização em sindicatos, cooperativas, associações e movimentos sociais fortaleceu a capacidade de mobilização e incidência política dos camponeses. No entanto, a representação política ainda é limitada, e os interesses do agronegócio costumam prevalecer nas agendas governamentais. A disputa por narrativas, recursos e reconhecimento é permanente e exige a ampliação do debate público sobre a função social da terra e o papel do campesinato na sociedade contemporânea. Um aspecto frequentemente negligenciado na análise da modernização do campo é o impacto sobre as relações culturais e simbólicas dos trabalhadores rurais com a terra. A terra, para muitos camponeses, não é apenas um bem produtivo ou mercadoria: ela representa ancestralidade, identidade e pertencimento. Quando os processos de modernização impõem uma lógica estritamente econômica e utilitária, há uma ruptura com esses significados profundos, o que provoca não apenas deslocamentos geográficos, mas também desestruturações subjetivas e comunitárias. A perda da terra, nesse contexto, é também a perda de uma forma de vida, de uma memória coletiva e de uma relação específica com o território. Por fim, a modernização do campo não deve ser vista como processo homogêneo ou inevitável. Há múltiplas experiências em curso, com diferentes graus de resistência, adaptação e inovação. A sociologia rural desempenha um papel fundamental ao revelar essas complexidades, dar voz aos sujeitos históricos do campo e propor alternativas ao modelo dominante. É preciso pensar em formas de desenvolvimento rural que sejam justas, solidárias e sustentáveis, respeitando as pessoas, os territórios e a natureza. Esse é um dos grandes desafios sociológicos do nosso tempo. 19 AULA 3. FUNDAMENTOS DA SOCIOLOGIA URBANA A sociologia urbana é o ramo da sociologia que se ocupa do estudo das dinâmicas sociais, políticas, culturais e econômicas nos espaços urbanos. Seu surgimento está profundamente ligado à consolidação da sociedade industrial e à rápida urbanização iniciada no século XIX, especialmente na Europa. Com o crescimento das cidades, emergiram novos desafios e formas de organização social, que passaram a ser objeto de análise dos primeiros sociólogos. Esses estudiosos procuraram compreender como o ambiente urbano molda as interações humanas, os conflitos sociais e as formas de pertencimento e exclusão. Entre os principais teóricos da sociologia urbana, destaca-se Georg Simmel, que em seu ensaio “As Grandes Cidades e a Vida do Espírito” analisou como a vida nas metrópoles influencia a percepção do tempo, o ritmo das relações sociais e o comportamento individual. Para Simmel, o ambiente urbano estimula uma atitude de reserva e racionalidade, pois o excesso de estímulos sensoriais exige uma espécie de autoproteção psíquica. Essa análise revelou a dimensão subjetiva da vida urbana e abriu caminho para estudos sobre alienação, anonimato e individualismo nas cidades. Outro autor fundamentalé Louis Wirth, sociólogo da Escola de Chicago, que definiu a urbanização como um “modo de vida”. Para Wirth, as cidades são caracterizadas por três elementos centrais: grande densidade populacional, heterogeneidade social e impessoalidade nas relações. Essas características geram novos padrões de convivência, ruptura de laços comunitários e maior complexidade organizacional. A partir dessas ideias, a sociologia urbana passou a investigar como a configuração física das cidades afeta os comportamentos sociais e institucionais. A Escola de Chicago teve papel decisivo no desenvolvimento da sociologia urbana, especialmente entre as décadas de 1920 e 1940. Seus pesquisadores realizaram estudos empíricos em bairros de Chicago, utilizando métodos como a observação participante e os mapas sociais. Investigaram temas como segregação étnica, delinquência juvenil, pobreza, processos de assimilação cultural e organização espacial. A cidade foi compreendida como um ecossistema social, no qual diferentes grupos competem por espaço e recursos, criando zonas urbanas com características próprias. 20 A perspectiva ecológica da Escola de Chicago propôs que as cidades se organizam de forma análoga a ecossistemas naturais, com áreas centrais, zonas de transição e bairros residenciais periféricos. Embora essa abordagem tenha sido criticada por simplificar a complexidade urbana e ignorar os fatores históricos e políticos, ela foi importante para a criação de modelos analíticos e para a consolidação da sociologia urbana como campo científico. A partir dessa base, novas correntes teóricas buscaram aprofundar a compreensão crítica dos processos urbanos. Com o avanço do capitalismo e da globalização, as cidades passaram a ser vistas não apenas como lugares de residência e trabalho, mas como centros de consumo, produção simbólica e controle social. A sociologia urbana contemporânea analisa as cidades como arenas de conflito entre interesses econômicos, sociais e culturais distintos. O espaço urbano é constantemente disputado, seja por empresas, governos, movimentos sociais ou populações marginalizadas. Essa disputa se expressa na gentrificação, na privatização de espaços públicos e na segregação socioespacial. Henri Lefebvre, sociólogo francês, foi um dos principais pensadores da cidade moderna. Em sua obra “O Direito à Cidade”, ele argumenta que o espaço urbano é uma construção social e política, e que todos os cidadãos devem ter o direito de participar ativamente de sua produção e uso. Para Lefebvre, o urbanismo não pode ser reduzido à lógica mercantil, pois o espaço urbano é também lugar de encontros, criatividade e experimentação. Suas ideias inspiraram movimentos urbanos em diversas partes do mundo e continuam influentes nas reflexões sobre justiça espacial e cidadania. David Harvey, outro autor central, propõe uma leitura crítica do espaço urbano a partir do marxismo. Em suas análises, Harvey destaca como o capital molda as cidades, produzindo desigualdades estruturais e exclusões sistemáticas. As cidades são, segundo ele, mecanismos de reprodução do capital, nos quais o espaço é mercantilizado e os pobres são constantemente deslocados. Para Harvey, lutar por cidades mais justas implica transformar as relações econômicas que sustentam a desigualdade urbana. Essa abordagem fortalece a perspectiva crítica da sociologia urbana. No Brasil, a sociologia urbana ganhou força nas décadas de 1960 e 1970, com estudos voltados para as periferias, os cortiços, os movimentos de favelas e os impactos do crescimento urbano desordenado. Autores como Florestan Fernandes, Erminia Maricato, Milton Santos e Raquel Rolnik contribuíram para uma compreensão mais 21 abrangente da cidade brasileira, marcada pela segregação, pela ausência do Estado nas áreas populares e pela violência estrutural. Esses estudiosos mostraram como a urbanização no país ocorreu sem planejamento adequado, aprofundando desigualdades e violações de direitos. Milton Santos, geógrafo e sociólogo, desenvolveu uma visão crítica da urbanização brasileira a partir da noção de “meio técnico-científico-informacional”. Para ele, as cidades são construídas por lógicas distintas: uma voltada ao mercado e outra às necessidades populares. Santos denunciava a dualidade urbana, na qual coexistem uma cidade legal, bem servida de infraestrutura, e uma cidade marginalizada, excluída das políticas públicas. Essa leitura é essencial para compreender os processos de exclusão e resistência nos centros urbanos. A sociologia urbana brasileira também se debruça sobre as formas de moradia popular, como as favelas, os loteamentos informais e as ocupações urbanas. Esses espaços não são apenas marcados pela carência de infraestrutura, mas também por intensa vida comunitária, redes de solidariedade e criatividade urbana. As populações das periferias constroem cotidianamente sua cidade, muitas vezes em confronto com políticas excludentes e práticas violentas de urbanismo. A compreensão sociológica dessas realidades exige sensibilidade, escuta e valorização dos saberes populares. A mobilidade urbana é outro tema fundamental na sociologia urbana. O acesso ao transporte público, a qualidade das vias, a segurança no deslocamento e a distribuição dos equipamentos urbanos determinam a possibilidade de participação social dos indivíduos. Em muitas cidades brasileiras, a mobilidade é um dos principais fatores de exclusão, pois os trabalhadores da periferia enfrentam longas jornadas diárias, gastos elevados e insegurança no transporte. A luta por transporte público de qualidade tem mobilizado movimentos sociais, como o Passe Livre, que denunciam a lógica privatista da mobilidade. A violência urbana também é objeto central da sociologia urbana. A concentração de pobreza, a ausência de políticas públicas, o racismo estrutural e a militarização das periferias criam um cenário de constante tensão e insegurança. A criminalização da pobreza e a atuação seletiva das forças policiais aprofundam as desigualdades e violam os direitos humanos. A sociologia urbana busca entender essas 22 dinâmicas, questionar as políticas de segurança pública e propor alternativas baseadas em justiça social e direitos. As cidades também são palco de resistência, criatividade e cultura. Movimentos culturais urbanos, como o hip hop, o grafite, o funk, os saraus periféricos e as ocupações culturais, expressam formas de enfrentamento à exclusão e à opressão. A cidade é vivida e reinventada diariamente pelos seus habitantes, que criam espaços de convivência, lazer e expressão política. A sociologia urbana reconhece esses fenômenos como elementos centrais para compreender a vitalidade urbana e a luta por dignidade e pertencimento. A diversidade urbana é uma característica fundamental das grandes cidades. Elas reúnem pessoas de diferentes origens, etnias, religiões, classes sociais e orientações sexuais. Essa heterogeneidade pode gerar tanto conflitos quanto oportunidades de diálogo e convivência. A sociologia urbana estuda os processos de inclusão e exclusão, de construção de identidades e de formação de redes de solidariedade em contextos urbanos diversos. A luta por reconhecimento, visibilidade e direito à cidade é parte constitutiva das dinâmicas urbanas contemporâneas. A globalização também afeta profundamente as cidades. Muitas se tornaram “cidades globais”, concentrando serviços financeiros, centros de decisão e infraestrutura de ponta. No entanto, essa centralidade global convive com profundas desigualdades internas, com bolsões de miséria e precariedade. A sociologia urbana busca compreender essa dualidade, analisando como o capital global reorganiza o espaço urbano, desloca populações e redefine as prioridades de investimento público. A sociologia urbana também contribui para o debate sobre políticas públicasurbanas. Planejamento urbano, habitação, saneamento, cultura, meio ambiente e participação cidadã são temas centrais para pensar cidades mais justas. A atuação dos conselhos municipais, dos fóruns populares e das conferências urbanas revela a importância da democracia participativa na construção de políticas inclusivas. A sociologia oferece ferramentas analíticas para avaliar essas políticas, identificar seus limites e apontar caminhos de transformação. O direito à cidade, conceito central na sociologia urbana crítica, implica garantir o acesso universal aos bens urbanos, à moradia digna, à mobilidade, à cultura, à saúde e à educação. Mais do que o direito de estar na cidade, trata-se do direito de transformá- la, de decidir coletivamente seus rumos e de usufruir de seus benefícios. A luta pelo 23 direito à cidade mobiliza movimentos sociais, acadêmicos e cidadãos que desejam construir cidades menos desiguais e mais humanas. Em síntese, a sociologia urbana é um campo fértil de investigação e ação social. Ao analisar as contradições, os conflitos e as potencialidades das cidades, ela contribui para a construção de sociedades mais justas, democráticas e sustentáveis. O espaço urbano é palco de disputas, mas também de esperança e reinvenção. Compreender suas dinâmicas é essencial para quem deseja atuar de forma crítica e transformadora no mundo contemporâneo. A consolidação da sociologia urbana como campo de estudo específico ocorre em um contexto de transformações profundas nas cidades industriais, especialmente a partir do final do século XIX. A emergência de novos modos de produção, o crescimento demográfico, a ampliação dos transportes e das comunicações e a mudança nos padrões de moradia exigiram novos marcos teóricos capazes de compreender as especificidades da vida urbana. A cidade passou a ser percebida não apenas como palco dos fenômenos sociais, mas como elemento ativo na constituição das relações humanas, moldando comportamentos, valores e estruturas de poder. A cidade moderna torna-se o lugar privilegiado da diversidade, da multiplicidade de experiências e do entrecruzamento de culturas. Ao mesmo tempo, é também o espaço da desigualdade mais visível, onde a pobreza e a opulência convivem lado a lado, ainda que segregadas por muros simbólicos e físicos. A sociologia urbana nasce, assim, como uma ferramenta para compreender essas contradições, estudando como os sujeitos produzem e são produzidos pelos espaços que habitam. A ideia de que a cidade é fruto de disputas territoriais e simbólicas aparece com força nos estudos críticos da urbanização. A lógica da acumulação capitalista reconfigura constantemente o espaço urbano, transformando-o em ativo financeiro e instrumento de valorização. Com isso, surge uma cidade cada vez mais funcional ao mercado, mas cada vez menos habitável para os setores populares. A expansão dos condomínios fechados, a verticalização desordenada e a especulação imobiliária são manifestações concretas dessa lógica excludente. As periferias urbanas tornam-se, nesse cenário, espaços de resistência e de criação. Apesar da ausência sistemática do Estado e das carências de infraestrutura, saúde e educação, as populações periféricas constroem formas alternativas de organização social, cultural e política. A sociologia urbana deve valorizar essas experiências como 24 saberes e práticas legítimas, que desafiam a ordem dominante e apontam para novas possibilidades de viver a cidade. A análise da violência urbana, por sua vez, exige uma leitura que vá além da criminalização da pobreza. A violência não pode ser entendida apenas como fenômeno isolado, mas como resultado das desigualdades estruturais, da omissão do poder público e da atuação seletiva dos aparelhos repressivos. A sociologia urbana, nesse contexto, denuncia a militarização dos territórios populares e os processos de criminalização racial e territorial que afetam, em especial, a juventude negra e periférica. A cidade também é território de luta por direitos e por reconhecimento. Movimentos por moradia, ocupações urbanas, coletivos culturais, fóruns populares e iniciativas de urbanismo participativo têm ganhado força nos últimos anos. Essas ações coletivas reivindicam não apenas melhorias materiais, mas o direito de decidir sobre o espaço urbano, de participar da vida pública e de romper com a invisibilidade imposta às periferias. A cidade é, portanto, também campo de disputa política. O conceito de direito à cidade, formulado por Henri Lefebvre, tem sido apropriado por diversos movimentos e políticas públicas como princípio orientador de uma urbanização mais justa. Ele pressupõe o acesso universal aos bens e serviços urbanos, mas também o poder de transformar a cidade conforme os desejos e necessidades de seus habitantes. O direito à cidade envolve, portanto, uma nova ética urbana, baseada na solidariedade, na equidade e na participação democrática. Do ponto de vista cultural, a cidade é palco de múltiplas expressões artísticas e linguagens simbólicas. A arte de rua, os saraus, as batalhas de rima, o grafite e as festas populares representam formas de ocupação do espaço e de afirmação identitária. A sociologia urbana precisa considerar essas manifestações como práticas políticas e culturais de resistência, que disputam os sentidos da cidade e reafirmam o pertencimento dos sujeitos marginalizados. Outro ponto relevante é o debate sobre acessibilidade e mobilidade urbana. As cidades brasileiras, em sua maioria, foram planejadas para os automóveis e não para as pessoas. Essa escolha política tem consequências diretas sobre a qualidade de vida, o meio ambiente e a inclusão social. A sociologia urbana contribui com propostas que defendem a mobilidade como direito, promovendo o transporte público acessível, a mobilidade ativa e o planejamento territorial integrado. 25 AULA 4. PROBLEMAS SOCIAIS URBANOS As cidades contemporâneas, ao mesmo tempo que simbolizam o progresso, a diversidade e a inovação, também concentram uma série de problemas sociais que afetam diretamente a qualidade de vida de seus habitantes. O crescimento acelerado e desordenado dos centros urbanos, impulsionado pela industrialização e pela migração em massa, resultou em desafios estruturais como pobreza, desemprego, déficit habitacional, violência, exclusão social e precariedade nos serviços públicos. Esses problemas não são homogêneos, variando de acordo com o contexto histórico, político e econômico de cada sociedade. Um dos principais problemas enfrentados pelas cidades é o déficit habitacional. A ausência de políticas públicas eficazes de moradia levou milhões de pessoas a ocuparem terrenos irregulares, construírem moradias precárias ou se instalarem em favelas e cortiços. Essas formas de habitação, muitas vezes localizadas em áreas de risco, são resultado da incapacidade do Estado de garantir o direito constitucional à moradia digna. O processo de favelização revela a segregação socioespacial e o abismo existente entre o centro e a periferia das grandes cidades. A segregação urbana é uma manifestação concreta da desigualdade social. Cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Cidade do México ou Joanesburgo apresentam contrastes visíveis entre bairros ricos, com infraestrutura completa, e bairros pobres, onde faltam serviços básicos. Essa separação não é apenas geográfica, mas também simbólica e política. A divisão do espaço urbano reproduz e reforça hierarquias sociais, limitando o acesso de determinadas populações aos bens públicos e restringindo sua participação na vida urbana. O transporte urbano constitui outro grande desafio. O modelo rodoviário predominante, baseado no uso do automóvel individual, contribui para congestionamentos, poluição do ar e exclusão das populações periféricas. A ineficiência do transporte públicocompromete o direito à cidade, dificultando o acesso ao trabalho, à escola, à saúde e ao lazer. Além disso, o tempo gasto nos deslocamentos afeta o bem- estar físico e mental dos cidadãos, ampliando as desigualdades sociais e espaciais. A violência urbana é um fenômeno multifacetado que envolve desde a criminalidade organizada até a violência institucional praticada pelo Estado. Os altos 26 índices de homicídios, especialmente entre jovens negros e periféricos, refletem um contexto de vulnerabilidade social, ausência de políticas públicas eficazes e racismo estrutural. A militarização das favelas e a repressão policial seletiva agravam a situação, criando um ambiente de medo e insegurança que compromete os direitos fundamentais dos cidadãos. O desemprego e a informalidade são também problemas urbanos centrais. Com a concentração de oportunidades econômicas nas cidades, milhões de pessoas migram em busca de trabalho, mas encontram mercados saturados e políticas insuficientes de inclusão produtiva. O resultado é o crescimento de atividades informais, como ambulantes, recicladores e prestadores de serviços autônomos, que atuam à margem da legislação trabalhista, sem direitos ou proteção social. Essa realidade evidencia a fragilidade do modelo de desenvolvimento urbano vigente. A pobreza urbana vai além da insuficiência de renda. Trata-se de um fenômeno multidimensional, que inclui a carência de acesso à educação, à saúde, ao saneamento, à cultura e à participação política. Nas periferias urbanas, a pobreza se manifesta de forma concentrada, criando ciclos intergeracionais de exclusão social. A superação desse quadro exige políticas públicas integradas e sensíveis às especificidades territoriais, bem como a valorização do protagonismo comunitário e das redes de solidariedade locais. A crise ambiental urbana é outro aspecto que merece atenção. A poluição do ar, dos rios e do solo, a escassez de áreas verdes, o descarte inadequado de resíduos e os eventos climáticos extremos são resultado de um modelo de urbanização que ignora os limites ecológicos. A expansão das cidades sobre áreas de preservação, a impermeabilização do solo e a verticalização desordenada contribuem para enchentes, deslizamentos e ilhas de calor. A população mais vulnerável é a que mais sofre com esses impactos, revelando a injustiça ambiental nas metrópoles. A saúde pública nas cidades enfrenta inúmeros desafios. A superlotação dos hospitais, a falta de profissionais, a distância entre moradia e unidades de saúde e a precariedade da atenção básica dificultam o acesso universal e igualitário aos serviços de saúde. Nas áreas periféricas, a presença do Estado é limitada, e muitas comunidades dependem de práticas de autocuidado e redes solidárias. A pandemia da COVID-19 evidenciou de forma dramática essas desigualdades, afetando desproporcionalmente as populações urbanas pobres. 27 A educação urbana também é marcada por desigualdades estruturais. Escolas localizadas em regiões centrais tendem a ter melhor infraestrutura, professores mais qualificados e maior acesso a recursos tecnológicos. Já nas periferias, a realidade é outra: prédios precários, falta de materiais didáticos, rotatividade docente e violência no entorno escolar. Essas disparidades comprometem o direito à educação de qualidade e aprofundam as desigualdades sociais. A valorização da escola pública, do professor e da comunidade escolar é essencial para reverter esse quadro. A falta de acesso à cultura e ao lazer também configura um problema urbano relevante. Em muitas regiões periféricas, há escassez de bibliotecas, centros culturais, teatros, cinemas e espaços de convivência. O acesso à cultura é um direito fundamental, pois permite o exercício da cidadania, a construção de identidades e o fortalecimento do tecido social. Iniciativas de ocupação cultural, como saraus, coletivos artísticos e festivais comunitários, têm buscado democratizar o acesso à cultura nas periferias urbanas. A discriminação racial, de gênero e de orientação sexual nas cidades configura formas específicas de exclusão e violência. A população negra, as mulheres, as pessoas LGBTQIA+ e os imigrantes enfrentam barreiras no acesso ao trabalho, à moradia, à saúde e à educação. Além disso, são frequentemente alvo de discriminação e violência nos espaços públicos e privados. A sociologia urbana denuncia essas desigualdades e propõe políticas afirmativas que promovam equidade, respeito à diversidade e justiça social. As populações em situação de rua representam um drama urbano cada vez mais visível. A falta de moradia, combinada à exclusão social, ao desemprego e à ausência de políticas integradas, leva milhares de pessoas a viver nas ruas, em condições de extrema vulnerabilidade. A presença de moradores de rua nas cidades é frequentemente tratada como problema de ordem pública, e não como questão social. É necessário romper com essa lógica repressiva e construir políticas de acolhimento, reinserção e dignidade. A gentrificação é outro fenômeno urbano que merece atenção. Trata-se de um processo de valorização de áreas urbanas que leva à expulsão das populações mais pobres, substituídas por grupos de maior poder aquisitivo. A gentrificação é promovida por investimentos públicos e privados, e resulta em deslocamento forçado, perda de vínculos comunitários e elitização do espaço urbano. Esse processo revela a lógica excludente da cidade neoliberal, onde o valor de uso do território é subordinado ao valor de troca. 28 A privatização do espaço público é uma tendência crescente nas cidades contemporâneas. Shoppings, condomínios fechados, parques administrados por empresas e áreas de lazer controladas por regras restritivas limitam o acesso universal aos bens urbanos. O espaço público, que deveria ser lugar de encontro, convivência e cidadania, transforma-se em mercadoria. A sociologia urbana critica essa mercantilização da cidade e defende o direito de todos os cidadãos ao espaço público democrático e acessível. A fragmentação urbana é um traço marcante das grandes cidades. A expansão horizontal, os condomínios de luxo, os bairros murados e os centros empresariais criam bolhas de exclusividade que rompem a continuidade do tecido urbano. Essa fragmentação compromete a coesão social, dificulta a mobilidade e reforça os processos de segregação. Planejar a cidade de forma integrada, conectada e inclusiva é um dos grandes desafios da gestão urbana contemporânea. A ausência de participação popular nas decisões sobre a cidade é um fator que contribui para a persistência dos problemas urbanos. Muitas vezes, as políticas públicas são elaboradas de forma tecnocrática, sem diálogo com as comunidades afetadas. A construção de uma cidade democrática exige processos de escuta, deliberação e controle social. Os conselhos municipais, as audiências públicas e os fóruns territoriais são espaços importantes, mas ainda pouco valorizados ou efetivamente implementados. A sociologia urbana contribui para a análise crítica desses problemas, ao compreender como as estruturas de poder, os interesses econômicos e as relações sociais se articulam na produção do espaço urbano. Ela também aponta caminhos para a transformação, ao valorizar as experiências de resistência, solidariedade e inovação que emergem nas periferias urbanas. A cidade, apesar de seus desafios, é também espaço de esperança e reconstrução. Diante de tantos desafios, torna-se urgente repensar o modelo de urbanização predominante. Cidades mais justas, democráticas e sustentáveis exigem políticas públicas inclusivas, investimentos em infraestrutura social, valorização da cultura popular e fortalecimento da participação cidadã. A construção de uma nova cidade passa pela escuta das vozes silenciadas, pelo reconhecimento das diversidades e pela luta por direitos.29 As soluções para os problemas sociais urbanos não podem ser reduzidas a medidas técnicas ou pontuais. Elas exigem uma abordagem sistêmica, intersetorial e comprometida com a justiça social. A cidade deve ser pensada como espaço de vida, e não apenas de lucro. O planejamento urbano precisa se orientar pelo bem comum, pela solidariedade e pelo direito de todos ao espaço urbano. Nesse contexto, a educação urbana desempenha papel central na formação de cidadãos críticos e atuantes. As escolas, universidades, centros culturais e movimentos sociais são espaços de construção do saber urbano. É preciso formar sujeitos capazes de compreender a cidade, intervir em seus problemas e construir coletivamente alternativas. A sociologia urbana tem muito a contribuir nesse processo. Um dos desafios mais complexos no enfrentamento dos problemas sociais urbanos está na fragmentação institucional das políticas públicas. Em muitas cidades, há sobreposição de ações entre diferentes esferas do poder público, falta de continuidade administrativa e ausência de planejamento integrado. Essa desarticulação contribui para a perpetuação das desigualdades e para a ineficiência na prestação de serviços essenciais. A sociologia urbana, ao identificar essas falhas estruturais, propõe a necessidade de uma gestão participativa, territorializada e intersetorial, que envolva a população na construção das soluções e que leve em conta as especificidades de cada território. Outro aspecto crucial está na democratização da informação e na construção de dados confiáveis sobre as realidades urbanas. Muitas comunidades periféricas não são devidamente mapeadas ou sequer reconhecidas oficialmente, o que dificulta o acesso a direitos básicos e impede a formulação de políticas públicas adequadas. A produção de conhecimento sobre as favelas, ocupações, cortiços e zonas populares precisa ser feita com participação ativa dos próprios moradores, valorizando seus saberes e suas práticas de resistência. A sociologia, ao lado de outras ciências sociais, desempenha papel estratégico na escuta qualificada desses territórios e na denúncia das formas sutis de exclusão institucional. Por fim, é fundamental reafirmar o direito à cidade como horizonte ético e político da vida urbana. Isso significa garantir acesso à moradia, ao transporte, à saúde, à educação, à cultura, à segurança e à participação. 30 AULA 5. INTER-RELAÇÕES ENTRE O RURAL E O URBANO A tradicional separação entre o mundo rural e o mundo urbano, embora útil para fins analíticos, revela-se cada vez mais insuficiente diante das complexas inter-relações que caracterizam o mundo contemporâneo. A dicotomia entre campo e cidade vem sendo substituída por uma compreensão mais integrada, que reconhece a existência de fluxos constantes, trocas materiais e simbólicas, influências recíprocas e territórios híbridos onde o rural e o urbano se entrelaçam. Essas inter-relações envolvem dimensões econômicas, sociais, culturais e ambientais que desafiam os limites conceituais e políticos que historicamente os separaram. Historicamente, o campo foi associado à produção agrícola, ao trabalho manual, à tradição e à vida em comunidade. A cidade, por outro lado, passou a ser identificada com a indústria, o comércio, a modernidade e a diversidade cultural. No entanto, a realidade demonstra que essas categorias não são estanques. Muitas atividades urbanas dependem diretamente da produção rural, enquanto aspectos do modo de vida urbano estão cada vez mais presentes no campo. Essa interdependência exige novas abordagens teóricas e metodológicas. A agricultura familiar, por exemplo, desempenha papel fundamental no abastecimento das cidades com alimentos frescos e diversificados. Frutas, legumes, hortaliças, leite e outros produtos provenientes do campo chegam diariamente às feiras, mercados e supermercados urbanos. Essa cadeia de produção e consumo evidencia a interconexão entre os dois territórios. Sem o campo, a cidade não se alimenta; sem a cidade, o campo não encontra escoamento para sua produção. Do ponto de vista da mobilidade populacional, é possível observar um fluxo constante entre zonas rurais e urbanas. Milhões de trabalhadores rurais migram para as cidades em busca de emprego, educação e serviços, enquanto muitos moradores urbanos buscam no campo refúgio, lazer ou mesmo novas formas de vida baseadas em valores de sustentabilidade e proximidade com a natureza. Esse vai e vem cria redes sociais interterritoriais, nas quais os vínculos familiares, econômicos e culturais são mantidos a despeito da distância física. As tecnologias de comunicação e transporte têm um papel central na aproximação entre o rural e o urbano. A internet, os smartphones, as redes sociais e os 31 aplicativos de comércio permitem que agricultores comercializem diretamente com consumidores urbanos, promovam seus produtos e acessem informação. Por sua vez, moradores das cidades podem consumir alimentos orgânicos, visitar propriedades rurais, participar de redes de consumo solidário e se conectar com iniciativas de base comunitária no campo. Os territórios rururbanos, isto é, aqueles que apresentam características tanto do meio rural quanto do urbano, são exemplos concretos dessa hibridização. Em muitas regiões metropolitanas, há bairros ou comunidades que preservam práticas agrícolas, relações de vizinhança e paisagens naturais típicas do campo, ao mesmo tempo que estão inseridos na lógica urbana. Esses espaços apresentam desafios específicos de gestão, planejamento e inclusão social, exigindo políticas públicas adequadas à sua complexidade. A urbanização do campo é outro fenômeno que reflete essas inter-relações. A introdução de infraestrutura urbana como água encanada, eletricidade, telefonia móvel, escolas, postos de saúde e centros comunitários modifica os padrões de vida e os valores culturais dos habitantes rurais. O acesso a bens de consumo, entretenimento e serviços públicos cria novas expectativas e redesenha a sociabilidade rural. Por outro lado, é preciso garantir que essas transformações não desrespeitem os saberes tradicionais e os vínculos comunitários. No campo da cultura, os intercâmbios entre rural e urbano são visíveis nas festas populares, nos produtos midiáticos, na música e na arte. As tradições rurais são reinterpretadas nos espaços urbanos por meio de manifestações culturais como o forró, a quadrilha junina, o repente e a culinária típica. Ao mesmo tempo, os habitantes do campo consomem telenovelas, filmes, redes sociais e produtos culturais urbanos, criando uma mistura que desafia fronteiras identitárias fixas. A educação é outro campo onde se observa a inter-relação entre o rural e o urbano. Escolas do campo têm buscado adaptar seus currículos e metodologias para dialogar com a realidade local, mas também com os conteúdos universais. O desafio é garantir uma educação contextualizada e crítica, que valorize a cultura camponesa sem negligenciar o acesso ao conhecimento científico e tecnológico. Iniciativas como a pedagogia da alternância, os projetos de extensão universitária e os programas de educação do campo são exemplos de articulação entre os dois espaços. 32 Do ponto de vista econômico, as cadeias produtivas agroindustriais conectam diretamente o campo à cidade. A produção rural é processada, embalada, distribuída e consumida nos centros urbanos, movimentando um amplo setor de serviços, transporte, armazenamento e comércio. Essas relações econômicas envolvem também uma disputa de poder entre grandes corporações, produtores independentes e consumidores organizados, refletindo assimetrias que a sociologia busca analisar e problematizar. A saúde pública também revela essa interdependência. Muitas comunidades rurais dependem de hospitais urbanos para tratamento de média e alta