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Digitalizado com CamScanner coleção FUNDAMENTOS DO SABER Max Scheler FILOSOFIA A Posição do Homem Cosmos FORENSE UNIVERSITARIAedição 2003 © Copyright da tradução Editora Forense Universitária Ltda. Capa: Mello & Mayer Editoração eletrônica: Rio Texto CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. S344p Scheler, 1874-1928 A posição do homem no cosmos / Max Scheler; tradução e apresentação Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. (Fundamentos do saber) Apresentação Tradução de: Die Stellung des Menschen im Kosmos Digitalizado com CamScanner ISBN 85-218-0335-4 1. Homem. 2. Alma. 3. Corpo e mente. I. Casanova, Marco Antônio. II. Título. "Um dos mais belos frutos da construção sucessiva da natureza hu- III. Série. mana a partir dos estágios subordinados da existência (...) é que se pode mostrar com que necessidade interna 0 homem, no mesmo ins- 03-1809. CDD 128.5 CDU 128 tante em que se tornou homem através da consciência do mundo e de Proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico ou si próprio e através da objetivação mesma de sua natureza psíquica mecânico, sem permissão expressa do Editor (Lei 9.610, de 19.02.98). traços específicos fundamentais do espírito -, também precisou apreender a idéia maximamente formal de um ser supramundano infini- to e absoluto. Se o homem isto pertence com efeito à sua essência, é ato da própria gênese do homem se destacou um dia do conjunto da natureza e tornou-o seu 'objeto', então ele precisa como que se voltar aterrorizado e perguntar: 'onde me encontro, afinal, mesmo? Qual é, afinal, minha posição?' Ele não pode mais dizer propriamente: 'eu sou uma parte do mundo, sou envolvido por ele' pois 0 ser atual de seu espírito e de sua pessoa é superior até mesmo às formas do ser deste 'mundo' em espaço e tempo". (Max Scheler, A posição do homem no cosmos) Max Ferdinand Scheler (1874-1928) não é um pensador entre ou- tros. Já primeiro contato com sua obra revela-nos um pensador de- Reservados os direitos de propriedade desta edição pela EDITORA FORENSE UNIVERSITÁRIA veras singular. Todavia, a singularidade de seu pensamento não ad- Rio de Janeiro: Rua do Rosário, 100 Centro CEP 20041-002 vém dos meros traços biográficos peculiares de sua existência. A con- Tels./Fax: 2509-3148 / 2509-7395 versão ao catolicismo durante a adolescência, a fama de boêmio que 0 São Paulo: Largo de São 20 Centro CEP 01005-010 Tels./Fax: 3104-2005 / 3104-0396 / 3107-0842 acompanhou por toda a vida, a influência inicial do neokantismo, e-mail: encontro com Edmund Husserl no tempo em que era ainda professor em Jena (1902), a participação no círculo fenomenológico de Muni- que (1907-1910), a atividade docente na efervescente sociedade filo- Impresso no Printed in Brazil sófica de Göttingen (1910-1911), trabalho como professor de filoso-Max Scheler VI A Posição do Homem no Cosmos VII sociologia da Universidade de Colônia entre 1919 e 1928, o fia abandono e do catolicismo na última fase de sua obra, assim como a Dito de maneira explícita, a relação cognitiva com absoluto e com morte provocada por uma estafa profunda em decorrência de uma su- ser repousa sobre uma experiência que tem lugar no próprio pressão quase completa do sono são apenas elementos periféricos de Com isso, temos uma mudança no próprio horizonte de colocação das um caminho que possui um princípio próprio de estruturação. A sin- perguntas filosóficas em geral. decisivo passa a ser agora investigar gularidade da filosofia scheleriana não advém, em outras palavras, não as essências nelas mesmas, mas justamente ponto de conexão desses elementos e precisa ser, com isso, considerada a partir de uma entre a humanidade do homem e ser dos entes. A singularidade de nosso pensador deriva-se diretamente da entrega à força dessa inves- outra perspectiva. Na medida em que essa singularidade está direta- tigação. Logo no prefácio à primeira edição de A posição do homem no mente associada com a sua filosofia, nada mais justo do que buscá-la cosmos (1928), Scheler nos diz: "Desde primeiro despertar de minha Digitalizado com CamScanner no interior desse âmbito em específico. Quanto a esse âmbito, Scheler consciência filosófica, as perguntas que é 0 homem? e qual é a sua posi- nos diz em seu ensaio Vom Wesen der Philosophie (Da essência da filo- ção no interior do ser? me ocuparam mais essencialmente do que qual- sofia): "Segundo a sua essência, a filosofia é uma intelecção rigorosa- quer outra pergunta filosófica." De maneira um tanto sintética, pode- mente evidente, impassível de ser ampliada e de ser aniquilada, válida mos dizer que a pergunta pelo ser do homem e a investigação de seu a priori para tudo que casualmente existe, das essencialidades e lugar próprio em meio à totalidade perfazem cerne da obra schele- nexões essenciais do ente acessíveis a partir de exemplos em todos riana. Dessa afirmação conquistamos simultaneamente uma orienta- nós, e, em verdade, na ordem e no domínio dos níveis nos quais essa ção prévia para a consideração da obra scheleriana. Se quisermos intelecção se encontra em relação com o ente absoluto e com a sua es- acompanhar em linhas gerais a dinâmica de sua filosofia, precisamos sência."¹ antes de mais nada alcançar uma clareza quanto aos diversos modos A definição acima aproxima-nos do coração do pensamento sche- encontrados pelo autor para responder a essa questão e para conduzir leriano e nos abre, ao mesmo tempo, uma via de acesso ao caráter es- essa investigação. No que concerne a esses modos, tende-se normal- mente a dividir a obra de Max Scheler em dois momentos funda- sencial de seu caminho singular. Scheler mantém a princípio expres- samente a relação tradicional da filosofia com o absoluto e com a sua mentais. O primeiro inicia-se com a defesa de sua tese de doutorado, Beiträge zur Feststellung der Beziehungen zwischen den logischen und essência. Além disso, ele continua simplesmente a construir o con- teúdo significativo próprio ao conceito de filosofia em sintonia com a ethischen Prinzipien (Contribuições para a determinação das relações entre os princípios da ética e da lógica 1897), orientada por suposição de que esse conteúdo mesmo é marcado por "uma intelec- Rudolf Eucken (vencedor do prêmio Nobel de literatura em 1908), e ção rigorosamente evidente e a priori das essencialidades e conexões conclui-se mais ou menos com o escrito Vom Ewigen im Menschen (Do essenciais do ente". Assim, não parece haver nenhuma diferença en- eterno no homem 1920-1922); segundo surge justamente a partir tre a sua compreensão e as metafísicas anteriormente vigentes. No dessa obra e se estende até escritos tardios, dos quais faz parte, en- entanto, essa aparência se dissipa ao atentarmos para um elemento tre outros, ensaio aqui traduzido. em específico do trecho supracitado. Tal como aparece aí formulado, a intelecção das essencialidades e a das conexões essenciais não são As perguntas pelo ser do homem e pelo lugar desse ente em especí- assumidas elas sem mais como subsistentes por si mesmas. Ao contrário, fico no interior do ser funcionam como uma espécie de princípio mo- se mostram como enraizadas "a partir de exemplos em todos nós". triz do pensamento scheleriano como um todo. Todavia, modo ini- cial de abordagem dessas perguntas e de condução da investigação possui no autor uma característica particular. Se considerarmos al- Vom ¹Max Scheler, "Vom Wesen der Philosophie" (Da essência da filosofia), em: guns livros dessa primeira fase; se considerarmos especialmente duas Ewigen im Menschen (Do eterno no homem), p. 98.Max Scheler VIII A Posição do Homem no Cosmos IX obras centrais desse primeiro período, Wesen und Formen der Sympat- como "disposição livre para 0 mundo, para Deus e para todas as coisas hie (Essência e formas da simpatia) e Der Formalismus in der Ethik und supremas", ressentimento se revela como ponto máximo de inten- die materiale Wertethik (O formalismo na ética e a ética material dos sificação de uma série de sentimentos que acabam, finalmente, por valores), não será difícil perceber aí a presença de um interesse funda- produzir a inserção de uma animosidade radical no próprio coração da mental pelo que podemos denominar de maneira bastante ampla "fe- realidade e por romper laço afetivo dos homens com 0 ser em geral. nomenologia dos sentimentos". Max Scheler procura sondar inicial- mente caráter intrínseco aos sentimentos e descobre justamente No último parágrafo chegamos a uma apreensão sucinta do modo através de uma tal sondagem a relação dos sentimentos com certas como Max Scheler lida inicialmente com a questão da determinação possibilidades cognitivas do homem. Nessas duas obras, ele questiona do ser do homem e do estabelecimento de seu lugar peculiar no inte- Digitalizado com CamScanner a validade da concepção moderna do homem como subjetividade rior do ente como um todo. Na segunda fase de seu pensamento, esse pura, como eu transcendental, como consciência de si a partir de uma modo inicial de abordagem encontra uma nova inflexão. Há aqui uma demonstração do caráter derivado desses conceitos ante a constitui- paulatina aproximação do autor ante as ciências biológicas e da natu- ção pessoal dos sentimentos. Para Scheler, conhecimento teórico reza de seu tempo, assim como um abandono do catolicismo em nome dos objetos em geral não repousa sobre faculdades cognitivas dadas a de uma profunda reflexão sobre a "relação metafísica do homem com priori: ele pressupõe, sim, necessariamente uma atitude amorosa do fundamento das coisas". Essa aproximação e esse abandono cu- homem em relação ao ser desses objetos. Com isso, 0 homem não se nham um novo horizonte de colocação dos problemas filosóficos, que diferencia dos outros entes pelo fato de ser dotado de uma razão ou de acaba por afastar autor de uma tematização direta dos sentimentos e uma subjetividade. Ao contrário, sua diferencialidade radical aponta de seus conteúdos valorativos. Diante de um tal horizonte, presente para afeto que liga originariamente à totalidade e mobiliza a dinâ- livro possui um caráter paradigmático. Dito de maneira extremamen- mica do conhecimento. Justamente a assunção desse ponto de liga- te sintética, A posição do homem no cosmos tem por intuito fundamen- tal acompanhar resultados alcançados pela biologia no início do sé- ção, porém, projeta seu pensamento para âmbito de constituição do discurso ético-valorativo. No princípio de todas as possibilidades cog- culo XX, exatamente para mostrar como homem não pode ser pen- nitivas do homem está presente uma certa atitude moral diante dos sado simplesmente a partir desses resultados, como a fixação de seu objetos, uma atitude que sempre traz consigo ao mesmo tempo a de- lugar no todo carece necessariamente de uma extensão para interior terminação do valor desses objetos. Por um lado, há sentimentos sen- de uma experiência diversa, metafísica. O livro possui em verdade sentimentos ligados a necessidades, sentimentos voltados para duas partes estruturais. Na primeira parte, autor vai apresentando a vida, sentimentos pessoais e sentimentos relacionados com sagra- sistematicamente níveis que constituem a vida desde âmbito mais do; por outro lado, há valores associados a esses sentimentos e inde- primário até mais complexo. Vamos acompanhando, com isso, a pendentes das coisas em que são sentidos valores sensíveis, valores descrição do impulso afetivo intrínseco às plantas, a exposição dos pragmáticos de utilidade e necessidade, valores vitais, valores men- instintos como determinantes para a dinâmica pulsional dos animais tais e valores intrínsecos à experiência do sagrado. Em cada um desses e a assunção da inteligência associativa como um traço comum aos pares conceituais temos, então, uma maior ou menor abertura homens e aos animais. Todavia, essa descrição mesma acaba por mos- ente como um todo. Um bom exemplo desse modo específico de para trar a insuficiência do horizonte vital para a plena consideração do ser preensão vem à tona por intermédio da análise de dois com- do homem. Tal como texto nos mostra de maneira paradigmática, tratados por Scheler em seu livro Da reviravolta dos valores: sentimentos não podemos estabelecer a diferença entre 0 homem e animal atra- Enquanto amor é descrito aí amor e vés de uma pura menção a uma diversidade qualitativa entre eles, a e signo de uma vida mais elevada, como mais "plenitude forte e mais de rica", ser", uma mera diferença de grau. O homem não é diferente do animal sim-Max Scheler X A Posição do Homem no Cosmos XI plesmente por possuir uma razão mais desenvolvida ou mesmo por ser único ente a possuir Entendida como capacidade de uti- ente que é. Ele ente que pode dizer não" "asceta da por- lização de utensílios com vistas a fins e como intelecção propiciado- que essa possibilidade originária de ascetismo 0 projeta para espaço ra de uma intervenção "técnica" na realidade, a razão não nos per- existencial em que perfaz plenamente a sua humanidade. Homem e mite sustentar até as últimas conseqüências a dita diferença. Ao espírito compertencem, assim, desde princípio. De posse dessa liga- contrário, essa só se deixa conceber por meio do abandono da esfera ção do homem com 0 espírito, surge ao mesmo tempo uma nova via de de conformação da vida e da conquista de um espaço transcendental investigação acerca da posição peculiar do homem no cosmos. A es- em relação a todo vivente. A segunda parte do livro dedica-se essen- sência espiritual do homem faz com que ele habite âmbito sagrado cialmente a esse espaço e ao espírito como elemento que sustenta da transcendência e se veja incessantemente ligado ao divino. Max Scheler faz, com isso, do movimento do conhecimento um caminho Digitalizado com CamScanner seu aparecimento. De acordo com uma formulação presente em A posição do homem no cosmos: "O homem é 0 ser vivo que, por força de de ratificação das relações fundamentais entre homem, mundo e seu espírito, pode se comportar em princípio asceticamente em rela- Deus. Dessas relações surge a virtude última de seu pensamento. Agora é tempo de ir ao encontro dessa virtude. ção à sua vida, à vida que faz estremecer violentamente subju- gando e reprimindo próprios impulsos púlsionais, isto é, recusan- do-lhes alimento através das imagens perceptivas e das representa- ções. Comparado com animal que sempre diz 'sim' ao que é real mesmo aí onde se atemoriza e foge -, homem é aquele 'que pode di- zer não', ele é 'asceta da vida', aquele que protesta eternamente contra toda mera realidade."2 Mas como precisamos entender, afi- nal, a concepção scheleriana do espírito? Quais as conseqüências dessa concepção para ser do homem e a sua posição peculiar no in- terior do ente como um todo? O espírito caracteriza-se aí fundamentalmente pelo ato de trans- cendência em relação à vida. No momento em que entra em cena, ul- trapassa-se imediatamente a esfera de vigência das pulsões e dos im- pulsos afetivos, da inteligência e do entendimento, do ensaio e do erro, em nome de uma articulação com a totalidade do ente. Exata- mente essa ultrapassagem determina, então, a humanidade do ho- mem. homem é ente espiritual por excelência justamente porque pode tomar a totalidade dos entes como objeto de conhecimento, porque pode ente como um todo. Ele é marcado, sim, por uma dimensão vital que compartilha com animais. No entanto, é ape- nas com 0 ato de ideação que ele se descobre radicalmente como 0 3 Scheler, A posição do homem no cosmos, 52. Esse é conceito-chave em jogo na determinação scheleriana do espírito.Sumário Digitalizado com Prefácio à Primeira Edição 1 Prefácio à Sexta Edição 4 Introdução: A Autoproblematização do Homem no Presente 5 I - A Construção do Mundo Psíquico 8 II - A Diferença Essencial entre Homem e Animal 34 III - O Ato da Ideação Como um Ato Especificamente Espiritual 47 IV Crítica da Doutrina Clássica e da Doutrina Negativa do Homem 54 V - A Unidade Corpo-Alma 69 VI - O Homem e Fundamento do Mundo. A Origem da Religião e da Metafísica 85 Anexo - Para a Idéia do Homem 91Prefácio à Primeira Edição Digitalizado com CamScanner Este trabalho apresenta um resumo sucinto e cerrado de nhas intuições sobre alguns pontos capitais da que tenho em mãos há alguns anos e que aparecerá no começo do ano de 1929. Desde primeiro despertar de minha consciência as perguntas: que é homem! e qual é sua posição no do me ocuparam mais essencialmente do que qualquer outra pergunta losófica. Os esforços de muitos anos, em meio aos circundei problema por todos os lados, resumiram-se desde 1922 à elaboração de uma obra maior, dedicada a este questionamento. Além disso, tive a felicidade crescente de ver que a grande parte de todos problemas losóficos de que já tratei coincide mais ou menos nesta pergunta. De muitos lados chegou aos meus ouvidos desejo de que minha conferência "A posição peculiar do homem" (ver Der VIII, 1927), empreendida em abril de 1927 em por ocasião do congresso da Schule der Weisheit,¹ fosse publicada em uma edição se- parada. Com a presente publicação correspondemos a este desejo. Se leitor quiser conhecer os estágios do desenvolvimento de mi- nhas perspectivas sobre este grandioso objeto, eu aconselho a ler, um em seguida ao outro, seguintes trabalhos: 1.0 ensaio Para idéia do homem, que foi primeiramente publicado na revista Summa (1914) posteriormente incluído em meus ensaios e conferências conjuntos sob título Da reviravolta dos valores, 3ª edição, Leipzig, 1923.² Mais além, meu ensaio (1912) ressentimento na construção Literalmente, "escola da (N.T.) 2 Este ensaio aparece traduzido em anexo no presente volume. (N.T.)Max Scheler A Posição do Homem no Cosmos 3 das morais (que se encontra aí mesmo)³ 2. A seção correspondente em minha obra Der formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik ca", apresentei de forma muito mais ampla do que que é funda- (O formalismo na ética e a ética material dos valores, 1913/1916), mentado aqui OS resultados de minha pesquisa de maneira reiterada, edição, Leipzig, Além disto, as seções correspondentes sobre a extensa e minuciosa. especificidade da vida afetiva do homem em meu livro Wesen und For- Tenho a satisfação de constatar que problemas de uma antropo- mem der Sympathie (Essência e formas da simpatia), edição, Bonn, logia filosófica ganharam hoje ponto central de toda a problemática 1926. 3. Quanto à relação do homem com a doutrina da história e filosófica na Alemanha e que, muito para além do círculo dos especia- com a doutrina da sociedade seria interessante realçar meu artigo listas em filosofia, há biólogos, médicos, psicólogos e sociólogos traba- Mensch und Geschichte (Homem e História), publicado na Neue lhando em uma nova imagem da constituição essencial do homem. Digitalizado com CamScanner Rundschau em novembro de 1926 (ele sairá provavelmente em edi- ção avulsa no outono de 1928 pela editora da Neue Rundschau suíça, Independentemente disto, porém, os problemas que homem CO- Zurique), assim como a minha obra Die Wissensformen und die Ge- loca acerca de si mesmo alcançaram no presente ponto máximo re- sellschaft (As formas do saber e a sociedade), Leipzig, 1926. Sobre a re- gistrado em toda a história que nos é conhecida. No momento, como lação entre homem, saber e cultura é bom estabelecer uma compara- o homem admitiu nunca ter estado antes com uma posse tão diminuta ção com meu livro Die Formen des Wissens und die Bildung (As formas de um saber rigoroso sobre seu ser e como nenhuma possibilidade de do saber e a cultura), Bonn, 1925. 4. Eu me expressei sobre as possi- resposta a esta pergunta o assusta mais, a nova coragem para a veraci- bilidades de desenvolvimento do homem em minha conferência Der dade parece ter retornado até ele: a coragem de colocar de uma ma- Mensch im kommenden Zeitalter des Ausgleichs (O homem na era vin- neira nova esta questão essencial, sem a sujeição total, parcial ou só doura do equilíbrio), impresso na coletânea que sairá em seguida e muito pouco consciente a uma tradição teológica, filosófica ou cientí- que terá título Ausgleich als Schicksal und Aufgabe (Equilíbrio en- fico-natural até aqui corrente; a coragem de desenvolver aprovei- quanto destino e tarefa) -, organizada pela Escola Superior Alemã tando ao mesmo tempo ricos tesouros de saber singular conquista- dos através do trabalho das diversas ciências do homem uma nova para Política, na série Política", Berlim, 1928. forma de sua autoconsciência e de sua auto-intuição. Em minhas preleções empreendidas na Universidade de Colônia Frankfurt junto ao Main, fim de abril de 1928. entre os anos de 1922 e 1928 sobre "os fundamentos da so- Max Scheler bre "antropologia do conhecimento" e "metafísi- 3 O volume Da reviravolta dos valores também inclui o ensaio ressentimento na construção das morais. Este volume foi traduzido por mim em 1994 e publi- cado pela editora Vozes. (N.T.) 4 É preciso considerar aqui entre outras coisas as exposições sobre a doutri- na da experiência de realidade e sobre a doutrina da percepção, presentes na seção III, assim como sobre a rejeição das teorias naturalistas do homem na seção V, 4 e 5, sobre as camadas da vida emocional na seção V 8 e sobre a pessoa na seção A partir do índice temático, comparar também as in- dicações que caem sob as palavras-chave "homem", "Plano "Plano Psíquico" etc.Prefácio à Sexta Edição Introdução: A Autoproblematização Digitalizado com CamScanner O escrito A posição do homem no cosmos sai agora em sua sexta edi- do Homem no Presente ção pela editora Francke, na qual as obras completas de Max Scheler também foram publicadas. Os textos da quarta e da quinta edições, Se perguntarmos a um europeu culto no que ele pensa ao escutar a que saíram logo nos primeiros anos depois da Primeira Grande Guerra palavra "homem", quase sempre três esferas de idéias totalmente in- anos difíceis tanto para a publicação quanto para a impressão -, fo- compatíveis entre si começarão a aparecer em sua cabeça em tensão ram revisados e as discrepâncias subjacentes naquele tempo foram umas com as outras. A primeira delas aponta para a esfera de pensa- eliminadas. As indicações de conteúdo (não fornecidas) foram no- mento da tradição judaico-cristã: Adão e Eva, a criação, paraíso e a vamente formuladas para esta nova impressão.⁵ queda. Em segundo lugar, aparece a esfera de pensamento da Anti- Maria Scheler güidade clássica: aqui a autoconsciência do homem elevou-se pela primeira vez no mundo à compreensão de sua posição singular através da tese de que homem é determinado pela posse da "razão", do lógos, da phronesis, da ratio, da mens lógos significa aqui tanto discurso quanto a capacidade de apreender a "qüididade" de todas as coisas; em uma estreita ligação com esta intuição está a doutrina de que uma razão sobre-humana também se encontra na base do Universo intei- ro, uma razão da qual homem e somente O homem dentre todos seres toma parte. A terceira esfera de pensamento é aquela que há muito já se tornou igualmente tradicional: a esfera de pensamento da moderna ciência da natureza e da psicologia genética. Nesta esfera as- sume-se homem como um resultado final e muito tardio da evolu- ção do planeta Terra um ser que só se diferencia de suas formas pré- vias no mundo animal em função do grau de complicação das mistu- ras de energias e capacidades que em si já ocorrem na natureza subu- mana. Falta a estas três esferas de idéias toda e qualquer unidade en- tre si. Neste sentido, possuímos uma antropologia científico-natural, uma antropologia filosófica e uma teológica que não se preocupam umas com as outras. Mas não possuímos uma idéia una do homem. Além 5 Guiamo-nos, nesta tradução, pelo texto da sexta edição corrigida. (N.T.) disto, por mais valiosas que possam ser a pluralidade sempre crescenteMax Scheler 6 A Posição do Homem no Cosmos 7 das ciências especiais que se ocupam com homem sempre encobre a também designa algo totalmente diverso na linguagem do cotidiano, essência do homem muito mais do que a ilumina. De mais a mais, se e, em verdade, em todos os povos civilizados; de modo que quase não levarmos em conta que estas esferas tradicionais de idéias acima cita- se encontra uma outra palavra na linguagem humana junto à qual se das estão hoje amplamente abaladas, e, em particular, a solução dar- apresente uma duplicidade de significações análoga. Esta palavra de- winista do problema da origem do homem, pode-se dizer que em tem- signa simultaneamente cerne do conceito de coisas que se contra- po algum da história 0 homem se tornou tão problemático quanto no põem da maneira mais incisiva possível ao conceito do "animal em ge- presente. ral", e, portanto, também ao conceito de todos os mamíferos e verte- Por isto propus-me a empreender uma nova tentativa de uma an- brados; e esta contraposição dá-se em relação a estes animais tanto Digitalizado com CamScanner tropologia filosófica sobre uma base maximamente ampla. No que se quanto em relação aos infusórios, por mais que quase não se possa de segue são discutidos apenas alguns pontos que dizem respeito à essên- qualquer modo contestar que no ser vivo denominado "homem" há cia do homem em comparação com as plantas e animais, e, mais além, a incomparavelmente mais similitude ante um chimpanzé no que con- posição metafísica peculiar do homem. Além disto, é insinuada uma pe- cerne aos elementos morfológico, fisiológico e psicológico do que há quena parte dos resultados aos quais cheguei. no homem e no chimpanzé diante de um infusório. É claro que este segundo conceito de homem precisa ter um senti- Já 0 termo e conceito "homem" contêm uma ambigüidade insi- do e uma origem completamente diversos do sentido e da origem do diosa. Antes de vislumbrarmos uma tal ambigüidade não estaremos absolutamente em condições de tratar da pergunta pela posição pecu- primeiro.⁷ Em contraposição ao primeiro, ao conceito sistemáti- liar do homem. A palavra "homem" deve indicar por um lado os tra- co-natural, gostaria de denominar este segundo conceito conceito es- sencial do homem O nosso tema é seguinte: este segundo conceito, ços peculiares que homem possui morfologicamente enquanto um que concede ao homem como tal uma posição peculiar, incomparável subconjunto dos mamíferos vertebrados. Como quer que venha a pare- com qualquer outra posição peculiar de uma das demais espécies vi- cer resultado desta cunhagem conceitual, é óbvio que ser vivo ventes, se sustenta, afinal, legitimamente? chamado homem não permanece apenas subordinado ao conceito de animal, mas, comparativamente, também perfaz um âmbito muito pequeno do reino animal. Este continua sendo caso mesmo se deno- minarmos homem, tal como faz Linné⁶ (o que, aliás, é objetiva e con- ceitualmente muito discutível), "o ápice da série de mamíferos verte- brados", uma vez que, como todo e qualquer ápice de uma coisa, este também continua pertencendo à coisa de que é ápice. De maneira to- talmente independente de um tal conceito, porém, que sintetiza na unidade do homem andar ereto, a transformação da coluna verte- bral, o equilíbrio do crânio, poderoso desenvolvimento cerebral e as transformações orgânicas que andar ereto teve por conseqüência (como a mão dotada da capacidade de agarrar com polegar opositor, retrocesso do maxilar e dos dentes), a mesma palavra "homem" 7 Cf. quanto a isto ensaio Zur Idee des Menschen (Para a idéia do homem) (1914), em Da reviravolta dos valores. Aí está demonstrado que conceito tra- 6 Karl von Linné, naturalista sueco do século XVIII, conhecido sobretudo por dicional de homem é constituído por imagem e semelhança a Deus; que ele seus trabalhos de botânica. (N.T.) pressupõe, portanto, a idéia de Deus.9 A Posição do Homem no Cosmos também fornece ao mesmo tempo a energia efetiva para atos mais puros de pensamento e para atos mais delicados dos bens luminosos é formado pelo "impulso afetivo" sem consciência, sem sensação e sem representação. Neste impulso, "sensação" e "pulsão" (que en- quanto tal já têm constantemente um direcionamento e uma orienta- ção final específicas para "algo", por exemplo, alimentação, satisfação I sexual) ainda não estão cindidas. Um mero "para por exemplo, para a luz, e um mero "afastar-se de"; um prazer e um padecimento Digitalizado com CamScanner A Construção do Mundo Psíquico desprovidos de objeto são os dois únicos estados preponderantes. Entretanto, impulso afetivo já está agudamente cindido dos centros A posição peculiar do homem só se tornará distinta nós e dos campos de força que se encontram à base das imagens trans- vermos em vista a construção conjunta do mundo biopsíquico. para Com se ti- conscientes que denominamos corpos "inorgânicos". Em sentido al- isto, parto de uma gradação de forças e capacidades psíquicas tal gum podemos atribuir a estes corpos algo como um ser ciência a foi paulatinamente estabelecendo. No que concerne como limite a Já podemos e precisamos imputar à planta este primeiro nível da do psíquico, este coincide com o limite do vivente em geral.⁸ Ao ao lado das evolução anímica, tal como ele se apresenta em meio ao impulso afeti- propriedades objetivas essencialmente fenomenais das coisas que denomi- vo. A impressão de que falta à planta um estado interno provém uni- namos "viventes", tais como o automovimento, a autoformação, a au- camente da lentidão de seus processos vitais; esta impressão desapa- todiferenciação, a autolimitação no aspecto temporal e espacial (pro- rece completamente no momento em que filmamos estes processos e priedades às quais não podemos nos deter aqui), está o fato de seres vemos em uma velocidade maior. Mas as coisas não se dão absolu- vivos não serem apenas objetos para observadores externos, mas tam- tamente do modo como Fechner colocou, atribuindo também às bém possuírem um ser-para-si e um ser íntimo, nos quais eles se tornam plantas "sensação" Quem, como Fechner, conside- íntimos de si mesmos. Este é um traço essencial para eles um traço a Γa a sensação e a consciência como os componentes fundamentais partir do qual se pode mostrar o seguinte: em relação à sua estrutura e à mais elementares do psíquico ilegitimamente precisaria privar a forma de seu decurso, ele possui a comunidade ontológica mais intrín- planta do caráter animado. Em verdade, impulso afetivo da planta já seca com aqueles fenômenos objetivos da vida. Este traço aponta para o está subordinado ao seu meio, ao crescimento no interior deste meio lado psíquico da autonomia, do automovimento etc. do ser vivo em ge- segundo as direções fundamentais "para cima" e "para baixo", ral fenômeno psíquico originário da vida. luz e para a terra. Contudo, esta subordinação refere-se somente para à a talidade não especificada destas direções intrínsecas a seu meio, às resis- Impulso Afetivo (Planta) tências do e realidades efetivas possíveis nelas importantes vida organismo vegetal: ela não se refere a componentes e estímulos para a de- nível mais ínfimo do psíquico vapor, que a tudo impele até terminados do meio ambiente, aos quais corresponderiam qualidades mesmo em meio às alturas mais luminosas da atividade espiritual, sensoriais e elementos imagéticos particulares. Por exemplo, reage especificamente à intensidade dos raios de luz, mas não diferen- a planta 8 A doutrina de que psíquico só começa com a "memória associativa" ou so- mente com o animal ou mesmo somente com o homem (Descartes) mos- 9 res Gustav-Theodor da psicofísica. (N.T.) Fechner (1801-1887), filósofo alemão e um dos fundado- trou-se equivocada. Mas é arbitrário atribuir algo psíquico ao inorgânico.Max Scheler 10 A Posição do Homem no Cosmos 11 temente a cores e direcionamentos dos raios. Segundo as investiga- partir de material orgânico que está até certo ponto simplesmente ções minuciosas que foram feitas mais recentemente pelo botânico dado por toda parte, elas também não têm efetivamente a necessidade holandês Blaauw, não se pode atribuir à planta nenhum tropismo es- de se dirigir como animal para um lugar determinado, a fim de en- pecífico, nenhuma sensação, nem mesmo mais diminutos indícios contrar alimento. Como as plantas não têm movimento locativo es- de um arco reflexo, nenhuma associação e nehum reflexo condicio- pontâneo dos animais, como elas não possuem nenhuma sensação es- nado, e, exatamente por isto, também nenhum tal pecífica, nenhuma pulsão específica, nenhuma associação, nenhum como Haberlandt buscou delimitar. Os fenômenos de movimento 2 reflexo condicionado, nenhum sistema de poder e nenhum sistema provocados por estímulos, fenômenos que foram anteriormente liga- nervoso próprios, há nelas um conjunto de deficiências que precisa ser compreendido clara e distintamente a partir de sua estrutura ontológi- movimentos gerais de crescimento da planta. ca. Pode-se mostrar seguinte: se as plantas tivessem apenas uma des- tas coisas, elas também precisariam ter alguma outra e todas as outras. Perguntemo-nos agora qual é conceito mais universal da "sensa- ção". Nos animais superiores, os estímulos exercidos sobre cérebro desencadeamento concomitante de uma ação motora, também preci- PLANTA Digitalizado com CamScanner dos a este tipo de coisas, mostraram-se como componentes daqueles Uma vez que não há nenhuma sensação sem impulso motor e sem pelas glândulas sangüíneas representariam as sensações mais primiti- sa faltar um sistema de sensações onde falta sistema de poder. A vas e encontrar-se-iam à base tanto das sensações orgânicas quanto multiplicidade de qualidades sensoriais que um organismo animal das sensações procedentes de processos externos. Desta feita, este possui nunca é maior do que a multiplicidade de seus movimentos es- conceito implica inicialmente conceito de uma resposta específica pontâneos e é sempre uma função desta última. de um estado orgânico ou de movimentos instantâneos do ser vivo a centro e uma modificabilidade dos movimentos que sempre A direção essencial da vida que a palavra "vegetativo" designa guem no próximo momento do tempo por força dessa No muitos fenômenos de transição entre as plantas e os animais que já sentido desta determinação a planta não possui nenhuma eram conhecidos por demonstram fato de não lidarmos sensação, nem tampouco nenhuma "memória" específica que se lan- aqui com conceitos empíricos é um impulso dirigido totalmente ce para além da dependência de seus estados vitais em relação ao con- para fora. Por isto, no que concerne às plantas, falo de um impulso afe- junto de sua história anterior e nenhuma capacidade de aprendizado tivo a fim de designar esta falta total de uma resposta dos es- tais como mesmo mais simples infusórios manifestam. Algumas tados orgânicos a um centro, uma resposta que é própria da vida ani- investigações que pretenderam fixar nas plantas reflexos condiciona- mal; falta completamente às plantas uma reversão sobre si mesma, dos e uma certa capacidade de adestramento sem dúvida uma ainda que por demais primitiva de um estado de intimi- alguma, em erro. dade "consciente" mesmo que muito Pois a consciência surge la primeira vez na re-flexio primitiva da sensação, e, em verdade, cons- De tudo isto que denominamos "vida pulsional" nos animais, a tantemente por ocasião das resistências que se opõem ao movimento única presente nas plantas é o impulso para crescimento para a espontâneo originário toda consciência baseia-se em um padeci- Portanto, as plantas demonstram da forma mais clara pos- mento, e todos os níveis mais elevados da consciência, em um pade- que a vida não é essencialmente "vontade de poder". mas que cimento crescente Juntamente com a consciência e com a sensação impulso para a reprodução para a morte é impulso originário de falta às plantas todo "estar desperto" característico da vida, um estar toda vida Elas não escolhem espontaneamente sua alimentação, desperto que só brota a partir da função de vigília da sensação. Mas as se comportam ativamente na fecundação: clas são fecundadas plantas só estão efetivamente em condições de prescindir das sensa- passivamente através do vento, dos pássaros e dos insetos, na medi- ções porque elas maiores químicos dentre seres VIVOS prepa- da em que a alimentação de que é preparada geralmente a12 Max Scheler A Posição do Homem no Cosmos 13 ram material de sua construção orgânica a partir de substâncias inorgânicas. Assim, sua existência reduz-se ao crescimento, à repro- meio às ligações teleoklinas igualmente subsistentes que elas têm com dução e à morte (sem uma duração vital determinada pela espécie). ? a composição inorgânica de seu meio, com insetos, pássaros etc., as Não obstante, já se acha na existência vegetal fenômeno originário plantas testemunhariam em um grau mais elevado do que da expressão, uma certa fisionomia de estados internos, de estados es- unidade da vida em sentido metafísico, da vida que se encontra por de- tabelecidos do impulso afetivo enquanto ser íntimo de sua vida: ele trás de todas as manifestações morfológicas e imagéticas, assim como paulatino caráter deveniente de todos tipos de conformações vi- DA mostra quão débil, vigorosa, exuberante ou pobre ela é. Com efeito, a "expressão" é um fenômeno originário da vida e de modo algum, tais em complexos cerrados de energia e matéria. Tanto para as suas como pensava Darwin, um conjunto de ações atávicas concernentes formas quanto para seus modos de comportar-se fracassa por com- Digitalizado com CamScanner a fins. 0 que falta totalmente às plantas, em contrapartida, são as fun- pleto princípio da utilidade, tão excessivamente superestimado pe- ções informativas que encontramos em todos animais, que deter- los darwinistas e pelos teístas como se as plantas estivessem aí em minam todo trânsito dos animais uns com outros e que já tornam um sentido objetivamente teleológico "para" animais, os animais animal amplamente independente da presença imediata das coisas "para" os homens; como se houvesse uma aspiração concernente a que lhe são vitalmente importantes. No entanto, somente nos ho- fins na natureza que tivesse homem como meta fundamental isto mens instauram-se as funções representacional e designativa de sig- também se mostra como totalmente procedente em relação ao la- marckismo. Em sua plenitude, as formas sobremaneira ricas em suas nos por sobre as funções expressiva e informativa. O duplo princípio do pioneiro e do séquito que é essencial para todos os animais gregá- partes frondosas apontam ainda mais incisivamente do que a plenitu- rios, princípio da instauração de padrões e da repetição destes pa- de das formas e cores dos animais para um princípio que não regula se- drões, não é encontrado no mundo vegetal. não esteticamente e que dá lugar a um jogo imaginativo, para a pre- sença de um tal princípio na raiz desconhecida da vida. Em virtude da inexistência de centralização na vida vegetal, em es- Este primeiro nível do aspecto interior da vida, 0 impulso afetivo, pecial da falta de sistema nervoso, a dependência dos órgãos e das não existe apenas em todos os animais, mas também se encontra funções orgânicas nas plantas é naturalmente mais profunda do que sente no homem. Como veremos, 0 homem reúne em si efetivamente pre- nos animais: em virtude do sistema epitelial das plantas, qualquer todos OS níveis essenciais da existência, e, em particular, da vida, Ao estímulo altera todo estado vital em um grau mais elevado do que é 0 caso nos animais. Com isto, no que diz respeito a um esclarecimen- dade mais concentrada possível de seu ser. Não há nenhuma a uni- menos em suas regiões essenciais, toda a natureza alcança nele to mecânico da vida, as plantas são mais dificilmente acessíveis. E ção, nenhuma percepção, nenhuma representação por detrás sensa- das não mais facilmente acessíveis do que animais (em geral). Pois so- quais já não estivesse impulso obscuro e que este impulso não ali- mente com incremento da centralização do sistema nervoso nos mentasse com seu fogo, 0 fogo que atravessa continuamente tem- animais cresce também a independência de suas reações parciais e, pos de sono e de vigília mesmo a mais simples sensação nunca é com isto, uma certa aproximação do corpo animal em relação à es- de ramente uma conseqüência do estímulo, mas sempre também função me- trutura das máquinas. uma atenção impulso Além disto, a individualização, ou seja, a medida do hermetismo a unidade de todas as pulsões e afetos ricamente articulados apresenta dos ho- espaço-temporal, é muito mais diminuta nas plantas do que nos ani- mens. Segundo pesquisadores mais recentes, ele poderia ser localiza- do no tronco cerebral propriamente dito do homem, que também é mais. Como as plantas não são capazes de nenhuma adaptação ativa provavelmente ponto central para as funções glandulares endócri- ao meio ambiente inanimado e animado, poder-se-ia afirmar que, em nas que intervêm nos processos corporais e anímicos. No homem,14 Max Scheler A Posição do Homem no Cosmos 15 impulso afetivo também é sujeito daquela vivência primária de resis- E tência que é a raiz de toda posse de "realidade", de 10 e, Instinto (Animal) em particular, a raiz da unidade e da impressão da efetividade que pre- cede todas as funções representativas. Representação e pensamento Como a segunda forma anímica essencial que segue ao impulso afe- mediatizável (dedução) nunca podem nos indicar nada além do tivo ekstático e indiferenciado na hieraquia objetiva temos de conside- FEALIDADE "modo de ser" ou do "ser diverso" desta efetividade. Ela mesma en- rar que denominamos "instinto" uma palavra obscura, muito con- quanto "ser efetivo" do que é realmente efetivo só nos é dada em troversa segundo a sua interpretação e segundo seu sentido. Nós es- uma resistência universal ligada com a angústia ou em uma vivência caparemos desta obscuridade nos abstendo inicialmente de toda defi- desta resistência. 11 nição feita com conceitos psicológicos. Com isto, definimos instinto (assim como níveis essenciais subseqüentes) exclusivamente a par- Organologicamente, sistema nervoso vegetativo, que regula an- tir do chamado comportamento do ser vivo. O "comportamento" de tes de tudo a distribuição dos alimentos, representa, como seu próprio um ser vivo é sempre objeto de uma observação exterior e de uma des- nome já diz, caráter vegetal ainda presente no homem. A privação crição possível. Ele é independente das unidades fisiológicas de movi- Digitalizado com CamScanner periódica de energia no sistema animal que regula as relações exter- mento que lhe dão sustentação e é determinável mesmo sem a intro- nas de poder em favor do sistema vegetativo é provavelmente a con- dução de conceitos físicos ou químicos para a sua caracterização. Nós dição fundamental do ritmo dos estados de sono e de vigília. Nesta podemos determinar unidades e transformações do comportamento medida, sonho é um estado relativamente vegetal do homem. Na de um ser vivo em meio a componentes variáveis do que circunda e mulher, em certas linhagens marcadamente de agricultores (em con- antes mesmo de toda explicação causal, seja ela fisiológica ou psicoló- traposição a criadores de animais e a nômades), em toda a Ásia (não gica; daí conquistamos ligações estabelecidas que já estão prenhes de judaica), princípio vegetativo parece ser preponderante no ser hu- sentido, uma vez que portam um caráter inteiramente teleoklino. É um mano. erro dos "behavioristas" admitir já no conceito do comportamento a gênese fisiológica de sua produção. Valioso no conceito é justamente fato de ele ser um conceito psicofisicamente indiferente. Ou seja: todo e qualquer comportamento é sempre também a expressão de estados internos; pois não há nada intra-anímico que não se "expresse" imedia- 10 Max Scheler joga nesta passagem com dois termos alemães sinônimos na ta ou mediatamente em um comportamento, Desta feita, ele pode e linguagem cotidiana: Realität e Wirklichkeit. Estes dois termos dizem funda- precisa ser sempre explicado duplamente, psicológica e fisiologica- mentalmente "realidade". A diferença é que a palavra de origem anglo-saxã mente ao mesmo tempo; é igualmente falso privilegiar a explicação Wirklichkeit traz consigo uma relação com verbo wirken que significa "pro- psicológica ante a fisiológica e a fisiológica ante a psicológica. O duzir um efeito", "atuar sobre". Exatamente por isto, seu campo semântico "comportamento" é campo de observação "intermediário", do qual abarca a noção de efetividade. Há além disto uma vasta tradição respaldando temos de partir. esta diferenciação. Martin Heidegger faz um histórico de uma tal diferencia- Neste sentido, denominamos "instintivo" um comportamento que ção no parágrafo 8 de sua preleção Grundprobleme der Phänomenologie (Pro- possui as seguintes características: em primeiro lugar, ele precisa ser blemas fundamentais da fenomenologia). (N.T.) condizente com sentido, isto é, ser de tal modo que ele seja teleoklino 11 Cf. meu ensaio Erkenntnis und Arbeit (Conhecimento e trabalho) em Die para todo do próprio vivente, para a sua alimentação assim como Wissensformen und die Gesellschaft (As formas do saber e a sociedade) (1926), para a sua reprodução, ou para todo de outros viventes (ou bem ser- assim como Idealismo-realismo em Philosophischen Anzeiger, 2. Ano, Caderno 2 vindo a si próprio ou bem servindo aos outros). Em segundo lugar, ele 3, Bonn, 1927.Max Scheler 16 A Posição do Homem no Cosmos 17 transcorrer segundo um ritmo fixo, invariável. Ele depende do precisa fixo e não, por exemplo, dos órgãos que são utilizados para este arranjo típico e específico das partes possíveis do meio ambiente. En- comportamento ritmo e que podem mudar em meio à retirada deste ou da- quanto conteúdos especiais podem ser trocados mais amplamen- quele órgão; ele também não depende da combinação de movimentos te possível, sem que instinto seja descompensado e conduza a ações singulares que, na mesma tarefa e na mesma realização, sempre po- equivocadas, a mais mínima mudança na estrutura tem como dem mudar a cada vez segundo a situação inicial do corpo animal. A qüência descompensações. É isto que se chama "rigidez" do instinto, natureza não-mecânica do instinto, a impossibilidade de reconduzi-lo em contraposição aos modos de comportamento extremamente ticos que repousam sobre adestramento, auto-adestramento e inteli- a reflexos particulares ou em cadeia (tal como Loeb reconduziu aos gência. Em sua poderosa obra Souvenirs entomologiques, Jean Henri "tropismos"), é assegurada por aí. Os movimentos igualmente signifi- Digitalizado com CamScanner Fabre forneceu-nos com grande precisão uma multiplicidade impo- cativos, adquiridos através de associação, exercício, hábito segundo nente de tais comportamentos instintivos. A esta serventia para a princípio que Jennings denominou "tentativa e erro" -, não pos- espécie corresponde fato de instinto ser em seus traços fundamen- suem um tal ritmo, esta figura temporal. A relação de sentido não pre- tais inato e hereditário; e, em verdade, faculdade comporta- cisa referir-se a situações presentes; ela também pode endereçar-se a mental específica e não apenas como uma faculdade geral de aquisi- situações muito afastadas no tempo e no espaço. Por exemplo, um ção de modos de comportamento, como naturalmente são também animal prepara algo com sentido para inverno ou para a desova, ape- a capacidade de habituar-se, a adestrabilidade e a sensatez. Entretan- sar de se poder provar que ele nunca vivenciou enquanto indivíduo si- to, caráter inato não diz que comportamento a ser denominado tuações similares e que também estão descartadas a tomada de infor- instintivo precisaria ter lugar imediatamente após nascimento, mas mações, a tradição e a imitação. O animal se comporta exatamente significa apenas que ele está subordinado a determinados de como OS elétrons, segundo a teoria quântica, se comportam: "como crescimento e amadurecimento, eventualmente mesmo a diferentes se" ele previsse um estado futuro. formas dos animais (em meio a polimorfismos). Uma outra característica do comportamento instintivo advém do 3 4 Por fim, uma característica muito importante do instinto é ele fato de ele só dizer respeito a tais situações que retornam tipicamente apresentar um comportamento independente do número de tentati- e possuem uma grande significação para a vida da espécie enquanto vas que um animal empreende para fazer frente a uma situação: neste tal, não para a experiência particular do indivíduo. O instinto serve sentido, ele pode ser designado desde princípio como pronto. Assim constantemente à espécie, seja esta a própria espécie ou uma espécie como a própria organização do animal não pode ser pensada como alheia, com a qual a própria espécie se encontra em uma ligação vital tendo surgido através de pequenos passos diferenciais responsáveis importante (como as formigas e seus hóspedes; as formações biliares pela emergência de variações, instinto também não pode ser pensa- das plantas; insetos e pássaros que frutificam as plantas). É esta do como tendo surgido através da adição de movimentos parciais bem-sucedidos. Não há dúvida de que instinto pode especializar-se característica que distingue, em primeiro lugar, incisivamente com- através de experiência e aprendizado; como se vê, por exemplo, em portamento instintivo do "auto-adestramento" através de "tentativa relação aos instintos dos animais de caça, para quais em verdade a e erro", exatamente como de todo aprendizado; em segundo lugar, de todo uso do "entendimento" como veremos, OS dois servem primaria- caça de uma determinada presa é inata, mas não a arte de exercitá-la de maneira bem-sucedida. No entanto, que exercício e a mente ao indivíduo e não à espécie. Com isto, comportamento ins- tintivo jamais se mostra como uma reação aos conteúdos especiais do cia promovem aqui não corresponde senão às variações de uma mes- meio ambiente, variáveis de indivíduo para indivíduo, mas sempre apenas como uma reação a uma estrutura totalmente particular, um 12 Jean Henri Fabre (1823-1915), entomologista francês. (N.T.)Max Scheler A Posição do Homem no Cosmos 19 na to ma já mais melodia, está estreita incorporado não conexão à aquisição à morfogênese com de uma melodia do ser vivo nova. e Portanto, se encontra instin- Toda derivação de modos de comportamento instintivos empreen- cunham Muito pela primeira vez as formas as funções estruturais plasmáticas do corpo fisiológicas dos ativo que dida a partir de tropismos e de tabelas (Loeb) mecanicamente pensa- dos modos de comportamento que são eles mesmos mais simples O atividade fato de das importante OS funções e é órgãos a relação sensoriais, do instinto assim com como as sensações, animais. com a instintos; toda redução destes modos de comportamento à combina- ção de reflexos particulares das vias motoras (o que segundo pesquisas disparar externas fora de questão. O estímulo à experiências sensoriais está instintos só surgirem através de com a mais recentes não há absolutamente; nem ao menos o reflexo patelar ou reflexo do fechamento das pálpebras) e a reflexos em cadeia se minar decurso ritmamente fixo da atividade sensação não faz senão mostrou impossível (Jennings Alverdes). No entanto, também não estímulos modo à como este decurso se dá. Estímulos instintiva, à sem deter- há nenhuma possibilidade de reduzir instinto a uma herança de mo- Digitalizado com CamScanner sensação ótica podem disparar aí a mesma sensação olfativa, dos de comportamento que repousam sobre "hábito" e "auto-ades- cisam tanto, as sensações responsáveis por este desencadeamento atividade por- tramento" (Spencer), 13 isto é, que repousam em última instância so- ser sequer sensações da mesma modalidade, não não pre- bre leis associativas e reflexos condicionados, ou mesmo compreen- mesma qualidade. Com certeza, vale muito mais a sentença para inversa: falar da dê-lo como automatização ulterior de um comportamento sensato, que um animal pode representar e sentir é a priori dominado deter- "inteligente" (Wundt). A gênese do instinto de uma espécie é um minado pela ligação de seus instintos inatos com a estrutura do e produto inteiramente parcial da formação da espécie mesma; em "li- ambiente. O mesmo vale para as reproduções de sua memória: elas meio têm nhas puras", instinto é totalmente inalterável. Passos parciais, tais lugar incessantemente no sentido e no âmbito de suas tarefas instinti- como são passos do hábito e do exercício, não estão em condições de alterá-lo nem tampouco "plano de construção" de um animal. vas predominantes, de sua determinação superior, e, somente de uma O instinto é, sem dúvida alguma, uma forma mais primitiva do ser e do maneira secundária, a freqüência das conexões associativas dos refle- acontecer do que as formações dos complexos anímicos determinadas XOS condicionados e dos exercícios possui alguma significação. O ani- através de associações. Estamos em condições de mostrar como de- mal que pode ver e ouvir só vê e ouve significativo para o seu cursos psíquicos, que seguem as leis associativas (habituais), estão comportamento instintivo mesmo junto aos mesmos estímulos e às localizados no sistema nervoso em um ponto acentuadamente mais mesmas condições sensoriais de sensação. Também segundo o aspec- elevado, e, portanto, são geneticamente posteriores aos modos de to histórico de seu desenvolvimento, todas as vias nervosas e órgãos comportamento instintivos. Justamente modos de comportamento de recepção aferentes só se formaram depois da instalação de vias ner- uniformemente sensoriais (pegar uma coisa, cantar uma melodia) po- vosas e de órgãos eferentes voltados para êxito. A pulsão para ver dem ter lugar em meio a manifestações patológicas de pane, onde não ainda se encontra à base do ver no homem, assim como à base da pul- se consegue mais levar a cabo uns poucos elementos articulados sen- são para ver se encontra a pulsão genérica para a vigília; a pulsão sorialmente (movimentos particulares tais como movimento de um dos dedos; ou o canto da escala maior). Estas unidades sensoriais uni- para sono bloqueia órgãos e funções sensoriais. Desta feita, a memó- formes do comportamento são essencialmente condicionadas de ma- ria tanto quanto a vida sensorial estão como que totalmente envolvi- das pelo instinto, mergulhadas nele. As assim chamadas ações "pul- neira subcortical. O córtex cerebral é essencialmente um órgão de dis- sociação diante dos modos de comportamento biologicamente mais sionais" do homem são aí oposto absoluto da ação instintiva, uma vez que, consideradas integralmente, elas podem ser totalmente sem 13 Herbert Spencer (1820-1903), filósofo inglês fundador da escola evolucio- sentido (por exemplo, a avidez por estupefacientes). nista. (N.T.) 14 Gilhelm Wundt (1832-1920), psicólogo e fisiologista alemão. (N.T.)Digitalizado com CamScanner 20 Max Scheler A Posição do Homem no Cosmos 21 ciação. uniformes e mais profundamente localizados não um órgão de asso- dos, mas ao mesmo tempo também mais multiplamente combinável. Nós podemos dizer muito mais o seguinte: se certas sensações Desta feita, fato de os instintos não serem ações arbitrárias e intelec- presentações relativamente particulares se destacam de complexos e re- tivas que se tornaram automáticas faz-nos compreender ao mesmo fusos e experimentam uma conexão associativa, se uma determinada di- tempo porquê de animais articulados, que possuem morfologica- "pulsão" que exige satisfação se destaca de um nexo de mente uma base totalmente diversa e muito mais rígida de sua organi- mento instintivo pleno de sentido, então tanto estas formações comporta- zação do que animais superiores, possuírem instintos da maneira to OS começos da "inteligência" que busca "artificialmente" quan- mais perfeita possível, mas quase não darem mostras de um comporta- ver sentido ao automatismo já desprovido de sentido são, tomados devol- mento sensato (inteligente), e, em contrapartida, também de ho- geneticamente, produtos igualmente originários do desenvolvimento mem enquanto um tipo plástico de mamífero, junto ao qual a inteli- (produtos da decadência não no sentido valorativo) do comporta- gência e não menos a memória associativa estão desenvolvidas, pos- mento instintivo. Em geral eles seguem rigorosamente o mesmo suírem instintos fortemente involuídos. Em todos casos, a forma aní- em relação uns aos outros, em relação à individuação dos seres vivos passo mica fundamental do instinto está ligada radicalmente à forma ani- em relação à emancipação do indivíduo diante da ligação com a espé- e mal, e, em restos atávicos, à forma humana da vida. cie; e caminham também no mesmo passo que a multiplicidade das si- Se tentarmos interpretar comportamento instintivo psiquica- tuações individuais peculiares, nas quais seres vivos podem cair. mente, então ele apresentará uma unidade inseparável de saber prévio Portanto, processo fundamental do desenvolvimento psíquico é a ação, de modo que nunca é dado mais saber do que inserido conco- dissociação criativa, não a associação ou a "síntese" (Wundt) de peda- mitantemente no próximo passo da ação. Em verdade já se apresenta ços singulares. E mesmo vale também fisiologicamente: quanto mais aí o começo da cisão entre sensação e reação (arco reflexo), mas ainda simplesmente organismo é organizado, tanto menos ele equivale subsiste na função a mais estreita conexão entre elas. Além disto, osa- mesmo fisiologicamente a um mecanismo. Todavia, até a entrada em ber que se encontra no instinto não é nem um saber marcado por re- cena da morte e da citomorfose dos órgãos, ele produz sempre mais mentos. Ao contrário, ele consiste em um sentir resistências pensa- presentações e imagens, nem mesmo um saber perpassado por formações e modos de comportamento fenomenalmente similares ao modo de ser do mecanismo. É certo que também se poderia com- damente valorativas e diferenciadas segundo impressões valorativas: acentua- provar o fato de a inteligência não se anexar absolutamente à vida asso- resistências que atraem ou repelem. Com isto, falar de ciativa da alma (e a seu análogo fisiológico, reflexo condicionado) sentido algum. ções inatas" em meio aos instintos, tal como fez Reimarus, 15 não tem apenas em um estágio mais elevado da vida, como pensa, por exem- plo, Karl Bühler; ela se forma muito mais de maneira rigorosamente do para componentes do meio ambiente que tipicamente Em relação ao impulso afetivo, 0 instinto já está em verdade dirigi- simétrica e paralela à vida associativa da alma, e não está, como mostraram recentemente Alverdes e Buytendijk, de maneira alguma com freqüência, mas que são específicos componentes retornam presente somente nos mamíferos superiores, mas já nos infusórios. concerne a ao conteúdo, são diversos, e, desta feita, não são que, dados no que Com isto, tudo se dá como se estivéssemos diante da seguinte situa- ção: que é pleno de sentido no instinto, mas se mostra como rígido e cente do impulso afetivo e de suas qualidades. percepção. O instinto representa como tal uma especialização cres- sem ligado à espécie, se faz móvel e individualizado na inteligência; en- quanto que é automático no instinto torna-se mecânico na associa- ção e no reflexo condicionado, portanto, relativamente livre dos senti- mente 15 Hermann Samuel Reimarus, teólogo alemão que dedicou especifica- à relação entre diversos entes do mundo e se Criador. (N.T.)22 Max Scheler A Posição do Homem no Cosmos 23 Memória Associativa Dentre as duas formas de comportamento que, como vimos, mente, mas de toda a sua história precedente; se quiséssemos dizer vêm originariamente do comportamento instintivo, comportamento pro- que vivente diferentemente do que está (fenomenalmente) morto "habitual" e comportamento "inteligente", 0 comportamento "habi- não possui nenhum estado qualitativo rigorosamente idêntico e tual" a terceira forma psíquica que distinguimos representa 0 que, portanto, não ocorrem aqui as mesmas causas e mesmos efei- digma dos fatos da associação, do reflexo condicionado, isto é, ele para- re- tos. Todavia, esta afirmação seria falsa se pensássemos que modos de comportamento especiais sensoriomotores possuem junto a todo vi- presenta aquela aptidão que designamos como "memória associativa" vente uma influência determinada sobre decurso mais simples de (mneme). Esta aptidão não pertence de maneira alguma a todos OS seres modos de comportamento similares. Pois conjunto da vida vegetal vivos; como Aristóteles já tinha visto, ela não está presente nas plantas. não encerra neste sentido fatos como acima mencionados e tam- Digitalizado com CamScanner Nós precisamos atribuí-la a todo e qualquer ser vivo, cujo comporta- bém não pode, uma vez que, totalmente jogado para fora, não tem mento se modifica lenta e constantemente, em razão de um comporta- aquela resposta dos respectivos estados orgânicos a um centro (= mento anterior do mesmo tipo, de uma maneira útil à vida, e, portanto, sensação) e a um motorium. plena de sentido; isto é, de um modo tal que a medida na qual seu com- A base da memória associativa é que Pavlov chamou "reflexo con- portamento se torna mais significativo se encontra em rigorosa depen- dicionado". Um cachorro, por exemplo, não produz determinados su- dência da quantidade de tentativas ou dos assim chamados movimentos COS gástricos apenas quando a comida alcança seu estômago, mas de prova. O fato de animais fazerem espontaneamente movimentos também ao ver a comida, ou mesmo ao ouvir tão-somente passos de prova (por exemplo, OS movimentos espontâneos que surgem nas do homem que costuma lhe trazer a comida; homem produz sucos brincadeiras de jovens cães e cavalos também podem ser incluídos aí), digestivos até mesmo quando lhe é induzido no sono que ele está ten- fato de eles tenderem além disto a repetir estes movimentos, indiferen- do o alimento em questão. Se deixarmos soar ao mesmo tempo muitas temente de terem prazer ou desprazer como conseqüência, não repousa vezes um sinal junto a um tal comportamento provocado por um estí- sobre a memória, mas é pressuposto de toda reprodução: uma pulsão mulo, comportamento em questão pode entrar em cena mesmo sem ela mesma inata (pulsão à repetição). Entretanto, fato de buscarem o estímulo adequado, simplesmente através do disparo do sinal. Tais repetir posteriormente aqueles movimentos que em seu transcurso ti- fatos e fatos similares denominam-se "reflexos A as- veram sucesso para uma satisfação pulsional positiva qualquer de sim chamada "lei associativa" é apenas a analogia psíquica disto. Se- modo a "fixá-los" em si com maior freqüência do que aqueles que ti- gundo esta lei, a vivência de um complexo conjunto de representa- veram insucesso é justamente o fato fundamental que designamos por ções tende a se reproduzir e a completar elos que faltam quando intermédio do princípio do "ensaio e erro". Onde encontramos tais fa- uma parte deste complexo, por exemplo, uma parte do meio ambien- tos, falamos de "exercício", quando só se trata do elemento quantitati- te, é vivenciada uma vez mais de maneira sensorial ou motora. Se um vo; de "aquisição" de hábitos em um aspecto qualitativo; de acordo complexo se decompõe em muitos fragmentos, então mesmo estas re- com cada caso falamos ainda de auto-adestramento, ou, quando o ho- presentações particulares podem se unir uma vez mais segundo a lei mem intervém, de adestramento do outro. da "contigüidade e da semelhança". As assim chamadas leis de asso- ciação para a reprodução de representações resultam daí. Tão certo Atribuir esta aptidão psíquica e fisiológica a toda a vida orgânica quanto estarmos aqui diante de um aparato de leis característico da (como queriam Hering e Semon) só seria correto se quiséssemos dizer vida psíquica, um aparato que em algumas espécies animais superio- com isto que comportamento de todo vivente nunca é dependente res, especialmente nos animais vertebrados e nos mamíferos, desem- apenas do estado do organismo que imediatamente sucede temporal- penha um papel muito grande, foi-nos certificado pela pesquisa se-guinte: Max Scheler A Posição do Homem no Cosmos 25 associações dade singulares e da que só estão completamente submetidas isto é, à a este rigorosas canismo relativo até submergir completamente no mecanismo no quanto iniciais com um reflexo OS complexos sempre anteriores, idêntico nunca parcial podem se dar representações tão momento em que chega a morte -, nossa vida psíquica também vai produzindo sempre mais ligações de representações e modos de bem localizado, tão pouco mesmo quanto e totalmente isolado de um pouco órgão comportamento puramente consonantes com 0 hábito: à medida que locações tamente proporcial ao estímulo, independentemente uma "pura" sensação estri- envelhece, homem vai se tornando cada vez mais escravo do hábi- matéria pulsionais da memória. alternantes e assim de todas as CO- to. (Além disto, as associações entre representações singulares se- ção a do (Toda e qualquer sensação como de toda guem geneticamente as associações entre complexos que ainda se en- contram algo mais próximas do decurso instintivo.) Exatamente estímulo e da atenção pulsional.) Do mesmo é modo sempre uma fun- como a percepção sóbria de componentes fatuais, sem excesso de Digitalizado com CamScanner não nenhuma "pura" associação. Toda memória ao estímulo, uma há sensação "pura", isolada, estritamente proporcional que não há fantasia ou sem a elaboração mítica, é um fenômeno tardio para to- dos povos toda a vida dos povos em seus períodos joviais mitoló- contra-se sob a força determinante de pulsões, de associativa en- dor). provável que em todas as leis de associação coação só se do adestra- suas tarefas, É das tarefas que as instauram (ou sob a necessidades e de gicos, e não menos a vida anímica da criança, está inteiramente berta pela fantasia espontânea e original da pulsão e do desejo a liga- ção associativa localizada em um âmbito mente como junto às leis naturais da física que dizem respeito trate exata- muito elevado) também é. Ela não é senão um fenômeno elemen- cessos conjuntos unicamente de regularidades estatísticas, a pro- tar com qual se conectariam liames posteriormente sintetizantes por leis elementares da vida anímica (como pensavam Locke, Hume, não Mill de intermédio de um assim chamado "pensamento conector" ou uma e toda a psicologia associativa). Com isto, todos conceitos tais "alma superior". como sensação "pura", reflexo associativo etc. têm caráter de concei- A memória associativa também não é neste caso "pura", uma vez tos limítrofes que só indicam a direção de um certo tipo de alterações que, como se mostrou, não há quase nenhuma associação que seja to- psíquicas ou fisiológicas. Associações aproximadamente puras só se talmente isenta de imiscuição intelectual. Jamais a passagem de uma acham em manifestações totalmente específicas de perda de fatores reação casual associativa para uma reação sensorial cresce constante- mentais superdeterminantes, por exemplo, em associações sonoras mente com a quantidade de tentativas. As curvas mostram quase externas das palavras de uma língua no estado de disfasia. sempre inconstância, e, em verdade, no sentido de que a viragem do acaso para sentido já entra em cena um pouco antes do que puro Este modo de ligação é tão pouco elementar geneticamente que o princípio da "tentativa e erro" permite esperar segundo as regras da decurso anímico da representação só se aproxima cada vez mais do probabilidade assim como se algo do gênero da "intelecção" fosse modelo da associação com o envelhecimento (como conseqüência da desperto através da quantidade de tentativas. diminuição da força e do decréscimo da diferenciação da vida pulsio- nal) como atestam as transformações da escrita, do desenho, da pin- O princípio da memória associativa já atua até um certo grau em tura, da linguagem na idade avançada: elas mantêm todo o caráter todos animais e se apresenta como conseqüência imediata da emer- crescentemente aditivo, não-integral (isto é, aparato das leis da as- gência do arco reflexo, da cisão do sistema sensorial ante sistema mo- sociação equipara-se aproximativamente com a imbecilidade senil). tor. Mas há intensas diferenças na grandeza de sua propagação. Os Analogamente, a sensação da proporcionalidade ao estímulo aproxi- animais tipicamente instintivos (os animais articulados), com uma ma-se com envelhecimento da "pura" sensação. Exatamente como 16 Cf. quanto a isto meu ensaio Erkenntnis und Arbeit (Conhecimento e tra- organismo corporal produz cada vez mais no decurso da vida um me- balho), parágrafo V.Max Scheler grande estrutura animais projetada de uma de maneira organização encadeada, mostram mínimo A Posição do Homem no Cosmos 27 mentos e a extensa partir de possibilidade movimentos de combinação plástica, menos de sempre rígida, com uma pos- jetivos em uma distância temporal determinada: passado nos sugere sociação, brados), Desde mostram-no da reprodução, mais assume agudamente parciais (mamíferos possível. O e princípio animais novos mais na tradição do que que sabemos sobre ele. 17 A transposição da força da tradição prossegue crescentemente na história humana; ela é tamente primeiro instante de sua aparição, no homem a sua maior amplitude. da as- uma realização da razão que constantemente objetiva um conteúdo da expressão à imitação dos afetos da ação e dos e ao sinais movimento este que princípio tem lugar se sobre une estrei- a base herdado em um único e mesmo ato e como que lança de volta para interior do passado ao qual pertence com isto liberando solo para sempre novas descobertas e invenções. A transposição muito lenta da modos aplicada ção" e "cópia" ao comportamento são apenas especializações e à vivência dos alheia, membros daquela da pulsão espécie. à repetição, "Imita- efetividade de todas estas forças que "tornam hábito a ama do ho- mem" é uma parte essencial de toda a história. A pressão que a tradi- Digitalizado com CamScanner Através va e apresenta por assim dizer halo de toda próprias, é ati- de comportamento e das vivências inicialmente a pulsão que, diante dos ção exerce sobre nosso comportamento de maneira pré-consciente diminui tórica. gradualmente na história através do progresso da ciência his- da conexão destas duas manifestações forma-se memória reprodutiva. toda vez uma importante fato da "tradição", que anexa à herança pela primeira Na construção do mundo psíquico, a efetividade do princípio asso- através nova dimensão de determinação do biológica ciativo significa ao mesmo tempo ruína do instinto e de seu tipo de fato do passado da vida dos membros da comportamento espécie. Não animal "sentido", assim como progresso da centralização e da concomitante este precisa ser cindido da maneira mais incisiva obstante, mecanização da vida orgânica. Além disto, ela significa descolamento "lembrança" livremente consciente do que passou (Anamnesis) possível de toda crescente do indivíduo orgânico em relação à sua ligação com a espécie toda tradição estabelecida em função de sinais, fontes, documentos e de e em relação à rigidez inadaptável do instinto. Pois somente através de todo saber histórico. Enquanto estas últimas formas de tradição só e do progresso deste princípio indivíduo consegue se adaptar a situa- são próprias ao homem, aquela tradição já desponta nas hordas, mati- ções sempre novas, não tipicamente ligadas à espécie. Com isto, ele lhas, manadas e nas outras formas de comunidade dos animais: aqui cessa de ser tão-somente um ponto onde se cruzam processos de também rebanho aprende que pioneiros estabelecem como mo- produção. Se em relação à inteligência prática (como veremos) re- delo, conseguindo legar um tal aprendizado às gerações vindouras bito princípio da associação ainda é um princípio relativo à rigidez "um princípio conservador" em relação ao instinto ele e ao há- Com isto, um certo "progresso" já é possível por intermédio da tra- instrumento poderoso de libertação. Ele cria toda uma nova dimensão já é um dição. No entanto, todo desenvolvimento autenticamente humano de possibilidades que a vida tem para enriquecer-se. repousa sobre uma crescente desconstrução da A "lembran- ça" consciente de acontecimentos vivenciados de manei- única, a constante identificação de uma pluralidade de atos de 17 é segundo Schilder, provavelmente também a hipno- lembrança entre si a uma única e mesma coisa que aconteceu são pró- se, um fenômeno já muito difundido também no mundo animal; prias exclusivamente do elas representam constantemente a poderia ter surgido como uma função auxiliadora da cópula servia último dissolução, sim, a própria morte da tradição Todavia, didos de um cujo estado de fato e a relação de sentido mesmos por exem- sugestionamento é um fenômeno primário ante a mente a para fim de transpor a fêmea para estado e de letargia. certa. dos herdados nos são dados como conteúdos eles são temporalmente sem eles se mostram como atuantes bre nosso fazer presente, sem, se tornarem eles mesmos na "compreensão" Esta última compreensão de estados de fato são apreen- que são julgados em uma sentença acha-se apenas no visados28 Max Scheler A Posição do Homem no Cosmos 29 Isto vale também para as pulsões, sentimentos, afetos. A pulsão emancipada do instinto já aparece relativamente em meio aos animais ela sempre insere ao mesmo tempo corretivo para seus riscos nas superiores e com isto certamente também horizonte da imoderação: primeiras disposições desta aptidão. Este corretivo não é outra coisa ela já se torna aqui uma fonte possível de prazer, independentemente senão inteligência prática, em princípio ainda organicamente vinculada, do todo das exigências da vida. Somente na medida em que, por exem- como a queremos denominar a quarta forma essencial da vida plo, impulso sexual é acomodado no ritmo profundo dos cios coimpli- quica. Estreitamente coimplicada com ela está a capacidade de esco- cados nas mudanças da natureza, ele se mostra como um servo incor- e a ação seletiva do mesmo modo ainda vinculadas ruptível da vida. Liberado do ritmo instintivo, ele se torna cada vez mente a capacidade de preferir entre bens e a capacidade de estabe- lecer preferências entre os membros da espécie em meio ao processo DO PRAZER" mais fonte autônoma de prazer e, em meio a animais superiores, espe- Digitalizado com CamScanner cialmente junto aos animais domesticados, já pode cobrir inteira e am- de reprodução (começos do Eros); uma capacidade que se lança para além da mera pulsão genérica. plamente o sentido biológico de sua existência (por exemplo, onanis- mo em macacos e cachorros). Se a vida pulsional, que está originaria- O comportamento "inteligente" também pode ser inicialmente de- mente direcionada inteiramente para modos de comportamento e finido sem consideração dos fenômenos psíquicos. Um ser vivo com- para bens, e, de maneira alguma, para o sentimento de prazer, é utili- porta-se de maneira "inteligente" quando, diante de situações novas, zada em princípio pelo homem como fonte de prazer, como em todo he- nem típicas da espécie nem do indivíduo, empreende um comporta- donismo, então estamos aqui diante de um fenômeno tardio de deca- mento consonante com sentido quer ele seja um comportamento dência da vida humana. A vida direcionada puramente para o prazer "astuto", quer ele seja um comportamento que não atinge em verdade a apresenta uma manifestação expressamente epigonal da vida individual sua meta, isto é, um comportamento "estulto" (só pode ser "estulto" assim como da vida de um povo, tal como o atestam velho bêbado quem é inteligente) e, em verdade, repentinamente e antes de tudo inde- "que saboreia as últimas gotas de álcool" e manifestações análogas no pendentemente da quantidade de tentativas anteriormente feitas de re- âmbito erótico. Da mesma forma, a separação das alegrias oriundas do solver uma tarefa determinada pulsionalmente. Nós falamos de uma exercício das funções psíquicas superiores e inferiores ante o prazer si- inteligência "organicamente vinculada", apesar de 0 comportamento tuacional oriundo da satisfação pulsional e a sobreposição do prazer interno e externo que ser vivo empreende encontrar-se a serviço de situacional às alegrias funcionais vitais e espirituais são uma manifesta- uma mobilização pulsional ou do abrandamento de uma necessidade; e ção epigonal. O "princípio do prazer" não é, portanto, nada originário, denominamos ao mesmo tempo esta inteligência "prática" porque seu como o hedonismo, um irmão do sensualismo, pensa. Ao contrário, ele sentido final é sempre um agir, através do qual organismo alcança (ou somente a conseqüência de uma inteligência associativa elevada. perde) seu fim pulsional. A mesma inteligência pode ser colocada nos Apenas no homem esta isolabilidade da pulsão em relação ao compor- homens a serviço de metas especificamente espirituais; somente então tamento instintivo e a possibilidade de cisão entre prazer funcional e ela se alça para além da astúcia e do ardil. prazer situacional assumem formas maximamente descomunais, de Se passarmos agora para 0 lado psíquico, podemos definir a inteli- modo que se diz com razão que o homem sempre pode ser mais ou menos gência como a intelecção repentinamente emergente de um estado de coi- como um animal, mas nunca pode ser um animal. sas e de uma nexo valorativo concatenados no interior do mundo circun- FORMA ESSENCIAL DA dante. Este estado de coisas e este nexo valorativo nem estão dados de VIDA Inteligência Prática maneira diretamente perceptível, nem jamais foram mesmo antes per- cebidos, como se eles estivessem reprodutivamente disponíveis. Como já indiquei anteriormente, onde quer que a natureza deixe Expresso positivamente: ela é a intelecção de um estado de coisas (se- eclodir a partir de si esta nova forma psíquica da memória associativa, gundo a sua existência e seu modo de ser casual) por sobre a base de30 Max Scheler A Posição do Homem no Cosmos 31 uma trama de relações, cujos fundamentos estão dados em parte na ex- periência, em parte de maneira antecipatória na representação; são da qual participaram quase todos os psicólogos. Em minha manei- exemplo, em um determinado estágio da intuição ótica. Para este pen- por ra de ver, Köhler atribui com toda razão aos animais envolvidos em samento não reprodutivo, mas produtivo, a antecipação, ter de ante- suas experiências ações inteligentes maximamente simples, no senti- mão um contexto fatual novo, nunca vivenciado (pro-videntia, astúcia, do definido acima. Outros pesquisadores contestam-no quase todos argúcia, ardil), sempre é, portanto, característica. buscam sustentar com outros fundamentos a antiga doutrina de que os animais não possuem nada além de memória associativa e instinto A diferença entre a inteligência e a memória associativa está mais e de que a inteligência, mesmo como estabelecimento primitivo de do que evidente: a situação a ser apreendida, a situação que precisa ser conclusões (sem sinais), também é um, sim, 0 monopólio do homem. Digitalizado com CamScanner levada em conta praticamente no comportamento não é apenas nova e As experiências köhlerianas consistiam em inserir entre um fim pul- atípica no que concerne à espécie, mas é antes de tudo "nova" também sional (por exemplo, uma fruta) e animal desvios ou obstáculos cres- para indivíduo. Um tal comportamento objetivamente prenhe de sen- centemente intrincados ou ainda objetos que pudessem servir como tido acontece subitamente e, temporalmente, antes de novas tentativas "instrumentos" (caixas, cordas, bastões, muitos bastões que podiam de prova e independentemente do número de tentativas precedentes. Esta ser conectados uns aos outros, bastões que precisavam ser primeira- subitaneidade já ganha voz, por exemplo, na expressão, no brilho dos mente arranjados ou, enquanto tal, preparados etc.). A partir daí pro- olhos do animal; que Wolfgang Köhler interpreta de maneira muito curou-se observar se, como e com que funções supostamente psíqui- plástica como a expressão da vivência de um "Ah!". Além disto: a nova cas o animal conseguia atingir a sua meta pulsional e onde residem representação, a representação que contém uma solução do problema, aqui os limites exatamente determináveis de sua capacidade de reali- não é aqui evocada por ligações entre vivências dadas de maneira con- zação. Segundo minha opinião, as experiências mostraram claramen- comitante ou entre vivências parcialmente idênticas ou similares em te que as capacidades dos animais não podem ser todas derivadas do suas partes; também não são as estruturas fixas do meio ambiente, tipi- instinto e dos processos associativos que aí se anexam (componentes camente retornantes, que disparam o comportamento inteligente. de memória das ligações representacionais presentes): que em alguns Muito ao contrário, a nova representação é antes produzida pelas liga- casos têm lugar muito mais ações autenticamente inteligentes. ções objetivas das partes singulares percebidas do meio ambiente umas O que parece ocorrer em meio a uma tal inteligência vinculada com as outras, ligações determinadas pela meta pulsional e como que se- prático-organicamente pode ser esboçado de maneira sucinta: no que lecionadas por ela: ligações como igual, similar, análogo a X, função de a meta pulsional, por exemplo, uma fruta, reluz oticamente para meio para o atingimento de algo, causa de algo. animal e se realça intensamente e autonomiza ante campo ótico do Impera hoje em dia uma discussão intrincada e ainda pendente, meio ambiente, todos dados que meio ambiente dos animais con- tém se reestruturam de modo peculiar, em particular todo o campo que só pode ser tocada por nós superficialmente, acerca de se o ani- ótico entre o animal e a fruta. Em suas ligações objetivas, ele estrutu- mal, e, em particular antropóides mais elevadamente organizados, ra-se desta forma, mantém um tal relevo relativamente "abstrato", de chimpanzés, alcançaram ou não o estágio aqui descrito da vida psí- modo que as coisas, que percebidas por si aparecem para o animal ou quica. Desde que Wolfgang Köhler publicou as suas experiências fei- bem como indiferentes ou bem como "algo para morder", "algo para tas com chimpanzés durante muitos anos na estação experimental brincar", "algo para dormir", alcançam um caráter de ligação abstrata- alemã em Tenerife e levadas a termo com espantosa paciência, preci- mente dinâmico e passam a vigorar como "coisa para apanhar a fruta"; são e engenhosidade, 18 esta discussão não se calou mais uma discus- portanto, não apenas bastões reais que são similares aos galhos nos quais, em meio à vida normal dos animais nas árvores, as frutas se en- 18 Nos Ensaios da Academia Prussiana das Ciências, Berlim, 1917/18. contram penduradas isto ainda poderia ser interpretado como ins-33 32 Max Scheler A Posição do Homem no Cosmos tinto mas mesmo um pedaço de arame, de cálamo, uma aba de pa- Algo similar acontece com a escolha e com a ação proveniente de lha, uma coberta que animal pega em seu espaço para dormir a fim uma escolha. É errôneo negar a ação proveniente de uma escolha para de trazer para junto de si uma fruta que não se encontra diretamente os animais, e, ao invés disto, pensar que é sempre apenas a pulsão sin- ao seu alcance, fora da jaula: em resumo, tudo que satisfaz a repre- gular cada vez mais forte que mobiliza. animal não é nenhum me- sentação abstrata de maneira e E a dinâmica pulsio- canismo pulsional, tampouco um instintivo e um meca- nal no animal mesmo que começa a se objetivar aqui e a se expandir nismo de associação e reflexo. Seus impulsos pulsionais não são ape- para interior das partes integrantes do meio ambiente. objeto em nas articulados segundo pulsões superiores dirigentes e pulsões subor- questão, objeto que animal utiliza, mantém valor funcional dinadas e auxiliares que realizam exigido, mas já são também articu- Digitalizado com CamScanner mico (aliás, apenas ocasionalmente) de um "instrumento", de "algo lados intensamente segundo pulsões para realizações mais genéricas para a aproximação em relação à fruta"; ele mantém caráter de algo mais especiais. Ademais, os animais conseguem intervir espontanea- direcionado com sentido para a meta onticamente dada, intensamen- mente na constelação pulsional desde centro de suas pulsões (em te reluzente. Para animal, a corda, bastão mesmo parece estar "diri- contraposição às plantas), um centro que corresponde à medida de gido" para a meta, quando não mesmo se movimentar para lá. Em seu sistema nervoso, e, até um certo limite, evitar vantagens que estão meio à flexibilidade muito maior do complexo ótico animal (exata- bem próximas acenando para ele, para alcançar vantagens temporal- mente como da criança e do homem primitivo) para apetites, pul- mente mais distantes e que só podem ser conquistadas através de des- sões, finalidades do desejo, não está excluído fato de este desloca- vios, mas que são maiores. O que animais certamente não possuem mento do impulso pulsional para interior das coisas do meio ambiente é a capacidade de estabelecer preferências entre valores mesmos ("como se estas coisas mesmas quisessem todas se encaminhar para a por exemplo, preferir útil ao agradável, independentemente das coi- fruta" e não apenas animal) também deixar vir à tona fenômenos sas singulares concretas assim como lhes falta a "meditação" estrei- óticos de movimento do bastão em direção à fruta (um fenômeno que tamente ligada com esta capacidade. Em tudo que é afetivo, ani- E. R. Jaensch comprovou em relação às imagens óticas intuitivas das mal se encontra muito mais próximo do homem do que em relação à crianças). O fenômeno causal ou efetivo um fenômeno dinâmico inteligência. Presentear, se mostrar solícito, reconciliar-se e ações si- que não desponta absolutamente em uma sucessão regular, como milares já podem ser encontradas nos animais. Hume supunha pode ser aqui auscultado em sua primeira origem: enquanto um fenômeno que se funda na objetivação da causalidade ine- rente à ação pulsional, uma causalidade vivenciada nas coisas do meio am- biente e que ainda coincide aqui completamente com ser um "meio". Certamente, a reestruturação descrita não tem lugar junto ao animal através de uma atividade consciente, reflexiva, mas através de uma espécie de reorganização intuitiva do que é dado no meio ambiente. No entanto, isto envolve uma inteligência autêntica, invenção, e não apenas instinto hábito. A grande diferença de disposições naturais que animais revelam para um tal comportamento confirma, aliás, caráter inteligente (não instintivo) destas ações. 19 Erich R. Jaensch, psicólogo alemão que trabalhou durante muitos anos na Universidade de Marburgo. (N.T.)A Posição do Homem no Cosmos 35 No que me diz respeito, rejeito as duas doutrinas. Eu sustento que a essência do homem e isto que se pode chamar a sua "posição peculiar" encontram-se muito para além do que se denomina inteligência e ca- pacidade de escolha, e que elas tampouco seriam alcançadas se se re- presentasse esta inteligência e capacidade de escolha de uma maneira quantitativa qualquer, sim, projetada até infinito.²⁰ Mas também seria equivocado pensar novo que torna homem que ele é sim- II plesmente como um outro estágio essencial de funções e capacidades A Diferença Essencial pertencentes a uma esfera psíquica e vital, cujo conhecimento cairia Digitalizado com CamScanner sob a competência da psicologia e da biologia; um estágio que se acres- entre Homem e Animal centaria ao impulso afetivo, ao instinto, à memória associativa, à inte- ligência e à capacidade de escolha. Mas aqui levanta-se a questão decisiva para todo nosso proble- ma: se já advém inteligência ao animal, não existiria em última ins- O novo princípio encontra-se fora de tudo isto que podemos deno- tância mais do que uma diferença de grau entre homem e animal minar "vida" no sentido mais amplo possível. O que torna homem ainda existiria então alguma diferença essencial? Ou será que há ainda homem não é um novo estágio da vida com maior razão tampouco algo totalmente diverso no homem para além dos estágios essenciais apenas um estágio de uma forma de manifestação desta vida, da até aqui tratados, algo que lhe adviria especificamente e que não é de Psyche. Ao contrário, ele é um princípio oposto a toda e a cada vida em maneira alguma tocado e exaurido através de noções tais como a de geral, também à vida no homem: um fato autenticamente novo que não escolha e inteligência em geral? pode ser absolutamente reduzido como tal à "evolução natural da vida", mas, se é que pode ser reduzido a algo, apenas ao fundamento É aqui que OS caminhos se cindem da maneira mais aguda possível. único e supremo das coisas mesmas. Deste fundamento a "vida" é uma Uns querem reservar ao homem inteligência e escolha, negando-as ao grande manifestação. animal: em verdade, eles chegam mesmo a reconhecer uma diferença Os gregos já afirmavam um tal princípio e chamavam-no supraquantitativa, uma diferença essencial, mas afirmam-na onde Nós preferimos usar uma palavra mais abrangente para aquele X, uma segundo meu modo de ver não se apresenta nenhuma diferença es- palavra que certamente abarca concomitantemente conceito de sencial. Os outros, em especial todos OS evolucionistas da escola de "razão", mas que, ao lado do "pensamento das idéias", também abarca Darwin e Lamarck, negam juntamente com Darwin, Gustav Schwal- concomitantemente um determinado tipo de "intuição", a intuição be e mesmo com W. Köhler, uma diferença derradeira entre homem e dos fenômenos originários ou dos conteúdos essenciais, e, mais além, animal; e justamente porque o animal também já possui inteligência; uma determinada classe de atos volitivos e emocionais tais como a bon- eles se atrelam de alguma forma à grande doutrina monista sobre o dade, amor, remorso, a veneração, a ferida espiritual, a bem- homem que chamo de teoria do homo faber e também não conhecem aventurança e desespero, a decisão livre: a palavra "espírito". E de- então obviamente nenhum ser metafísico, nenhuma metafísica do homem, isto é, nenhuma relação insigne que o homem possuiria 20 Entre um chimpanzé arguto e Thomas Edison, este tomado apenas como como tal com fundamento do mundo. um técnico, não subsiste senão uma diferença gradual aliás, muito grande. 21 Comparar Julius Stenzel, Der ursprung des Geistbegriffes bei den Griechen (A origem do conceito de espírito nos gregos), na revista Die Antike.Max Scheler 36 A Posição do Homem no Cosmos 37 signamos das esferas finitas do ser, em uma diferença incisiva em relação a "pessoa" centro ativo no qual espírito aparece no inte- com a realidade exterior assim como consigo mesmo se inverteu em rior todos os centros vitais funcionais que, considerados por dentro, tam- um sentido dinamicamente oposto ao do animal com a inclusão de PESSOA bém se chamam centros "anímicos". sua inteligência. O que é esta "inversão"? Novo Princípio: "Espírito", "Abertura de Mundo", "Autoconsciência" e "Pura Atualidade do Espírito" Junto ao animal quer elevada ou mais baixamente organizado -, toda e qualquer ação, toda e qualquer reação empreendida, mes- Mas que é agora este espírito, este novo e tão decisivo princípio? mo a "inteligente", parte da constituição de um estado fisiológico de Digitalizado com CamScanner Raramente se promoveram tantos disparates com uma palavra quan- seu sistema nervoso, ao qual, do lado psíquico, estão instintos, impulsos motores e percepções sensíveis. O que não é in- to com a palavra espírito uma palavra junto à qual apenas uns pou- teressante para instintos e para as pulsões também não é dado ao chegaram a pensar algo determinado. Se colocarmos no ápice do animal, e que é dado só é dado como centro de resistência para a sua conceito de espírito uma função particular de conhecimento, a espé- requisição e aversão; isto é, para animal enquanto um centro bio- cie de conhecimento que só ele pode dar, então a determinação fun- lógico. Do estado fisiológico-psíquico sempre parte primeiro ato no damental de um ser espiritual, como quer que este venha a ser consti- drama de todo comportamento animal em relação ao seu meio am- tuído psicologicamente, é seu desprendimento existencial do orgânico, biente. De maneira exata e completamente "fechada", a estrutural sua liberdade, sua separabilidade ou ao menos a separabilidade de ambiental é aí ajustada à idiossincrasia fisiológica e indiretamente seu centro existencial ante OS laços, a pressão e a dependência do or- morfológica do animal, à sua estrutura pulsional e sensorial que for- gânico, da "vida" e de tudo que pertence à vida portanto, também ma uma unidade funcional rigorosa. Tudo que animais podem de sua própria "inteligência" pulsional. notar e pegar de seu mundo reside nas barreiras e nos limites seguros Desta maneira, um ser "espiritual" não está mais vinculado a pul- de seu meio ambiente. segundo ato do drama do comportamento sões e ao meio ambiente. Ao contrário, ele está muito mais "livre do animal consiste em produzir uma alteração real no meio ambiente meio ambiente", e, como gostaríamos de denominá-lo, "aberto para o através de uma reação rumo à sua meta pulsional diretriz. a terceiro mundo": um tal ser espiritual tem "mundo". Além disto, ele consegue ato é a constituição de um estado fisiológico-psíquico que é conco- elevar à dignidade de objetos centros de "resistência" e de reação mitantemente alterado através decurso do comportamento de seu meio ambiente, centros que também lhe são dados originaria- animal tem constantemente a forma: mente, enquanto animal não possui nada além destes centros e ne- Pulsão Meio ambiente... les se perde ekstaticamente. Por fim, um tal ser espiritual pode apreen- der em princípio por ele mesmo modo de ser destes objetos, sem a res- Uma coisa completamente diversa se dá com um ser que tem "espí- trição que este mundo objetivo ou seus dados experimentam através rito". Um tal ser é se e até ponto em que ele se serve por assim dizer do sistema pulsional vital e das funções e órgãos sensoriais que se de seu espírito capaz de um comportamento que possui uma forma apresentam previamente neles. de decurso diametralmente oposta. O primeiro ato deste novo drama, 1 do drama humano, é: é"motivado" pelo puro modo Espírito é com isto objetividade, ele é a possibilidade de ser determi- de ser de um complexo representacional e intuitivo alçado à dignidade nado de pelo modo de ser das coisas mesmas. Somente um ser vivo capaz de objeto e isto a princípio independentemente da constituição do es- maneira levar a termo uma tal pertinência às coisas "tem" espírito. Dito de tado fisiológico e psíquico do organismo humano, independentemen- mais incisiva: "portador" de espírito é aquele ser cujo trato te de seus impulsos pulsionais e da exterioridade sensível que reluzMax Scheler A Posição do Homem no Cosmos 39 justamente modal (ótica neles ou e que é determinada constantemente de drama acusticamente e assim por diante). maneira é uma livre inibição de um impulso motor, isto O segundo ato do vos conteúdos sensoriais: ele possui um "esquema corpóreo". No que sional parte do centro da pessoa, ou uma desinibição de um é, uma inibição entanto, diante do meio ambiente, animal continua sempre se com- 3 primeiramente contido (e de uma reação impulso pul- portando ekstaticamente mesmo aí onde ele se comporta de manei- va da objetividade de uma coisa. A forma de um tal e definiti- terceiro ato é uma alteração vivenciada como autovalente correspondente). ra "inteligente". E sua inteligência permanece vinculada orgânico- pulsional-praticamente. ambiente: a forma da "abertura do mundo", do abalo principial comportamento do curso do meio é O ato espiritual, tal como homem pode realizá-lo, está em contra- dição com a simples resposta do esquema corpóreo do animal e com seu conteúdo essencialmente vinculado a uma segunda dimensão e a Digitalizado com CamScanner Homem Mundo um segundo estágio do ato reflexo. Nós gostaríamos de chamar este ato de "reunião", denominando-o juntamente com a sua meta, a meta des- Onde quer que este comportamento se faça presente, ele é te "recolhimento em si", "consciência de si mesmo por parte do centro tureza suscetível de uma expansão ilimitada até onde alcança por na- o espiritual do ato" ou autoconsciência. O animal tem consciência, dife- "mundo" das coisas presentes. rentemente das plantas, mas não tem nenhuma autoconsciência, como já o vira Leibniz. Ele não possui a si mesmo, não detém poder sobre si O homem é X que pode se comportar "abertamente para mundo" em mesmo e por isto também não é consciente de si. uma medida ilimitada. A gênese do homem é a elevação até a abertura do mundo por força do espírito. Reunião, autoconsciência capacidade objetiva de resistência pulsional originária formam uma única estrutura ilacerável que, como O animal não tem nenhum "objeto": ele vive ekstaticamente em tal, só é própria ao homem. meio ao seu mundo, um mundo que, enquanto estrutura, ele carrega Com este tornar-se autoconsciente, com esta nova reflexão e cen- por toda parte para onde vai, exatamente como um caramujo carre- tralização de sua existência que o espírito torna possível, também está ga a sua casa ele não consegue transformar este meio ambiente em segunda característica essencial do homem. Por força de seu es- objeto. O animal não consegue levar a cabo este peculiar afastamen- pírito, o ser que denominamos "homem" não consegue apenas ampliar to, este distanciamento que converte "meio ambiente" em "mun- o meio ambiente até o interior da dimensão da mundaneidade e obje- do" (ou em um símbolo do mundo), um distanciamento de que o ho- tivar resistências, mas ele também consegue e isto é mais espanto- mem é capaz: o animal não consegue empreender a transformação objetivar uma vez mais a sua própria constituição fisiológica e psíqui- NA dos centros de "resistência" afetivos e circunscritos pulsionalmente ca e/cada vivência singular psíquica, cada uma de suas funções vitais em "objetos". Portanto, ser-objeto é a categoria mais formal do lado lógi- mesmas. Apenas por isto ele pode modelar livremente a sua vida. CO do espírito. Gostaria de dizer que o animal se atém por demais es- animal ouve e vê mas sem saber que ouve e vê. A psiche do animal sencialmente à realidade e na realidade vital correspondente a seus funciona, vive mas animal não é nenhum possível psicólogo ou fi- estados orgânicos para apreendê-la a cada vez "objetivamente". É siólogo! Nós precisamos pensar em estados ekstáticos muito raros no certo que animal não vive mais absolutamente ekstático em seu homem em uma hipnose que vai perdendo intensidade, na ingestão meio ambiente (como no caso do impulso afetivo sem sensações, de estupefaciantes, em certas técnicas que tornam conscientemente sem representações e consciência que é característico das plantas (isto é, já com auxílio do espírito) espírito inativo, por exemplo, os em seu meio, sem qualquer resposta retroativa dos estados próprios ci- cultos orgiásticos de todo tipo -, para nos transportarmos em alguma do organismo); ele é como que devolvido a si mesmo por meio da medida para estado normal do animal. O animal não vivencia nem são entre sensório e motor e da constante resposta de seus respecti-40 Max Scheler A Posição do Homem no Cosmos 41 mesmo Até e repulsões seus dinâmicas impulsos pulsionais que partem como das coisas suas pulsões, do meio mas como trações em seu crescimento, ser vivo vegetal é introduzido, sem resposta al- mesmo homem primitivo, que ainda ambiente mesmas. sa", animal mas em sim certas propriedades anímicas, não se encontrava diz "eu detesto próximo do guma de seus diversos estados ao seu centro; mas as plantas possuem um "ser íntimo" em geral, e, com isto, são animadas. Nos animais está CO e que partem das conformações do meio ambiente. só há atrações repulsões "a coisa é tabu". Para a consciência animal, esta coi- presente sensação e consciência, e, ligadas a elas, uma posição central de resposta dos estados variáveis de seu organismo e uma modificabi- dizer que salta repentinamente para cá, e, então, lá, O maca- lidade de seu centro através desta resposta: eles já são dados a si uma homem.) em ekstases completamente pontuais. (Dislexia para vive por assim segunda vez. Por força de seu espírito, porém, homem é dado a si pulsionais O animal não tem uma "vontade" que perdure patológica do ainda uma terceira vez: na autoconsciência e na objetivação de seus Digitalizado com CamScanner meio e às suas mudanças e que possa preservar aos impulsos processos psíquicos e de seu aparato sensoriomotor. A "pessoa" no chega, à modificação de seus estados psicofísicos. Um continuidade animal em homem precisa ser pensada como centro que é superior à oposição por assim dizer, em um lugar diverso do que ele sempre entre organismo e meio ambiente. "homem é animal que pode prometer". te "queria" chegar. Nietzsche diz algo profundo e correto originariamen- ao afirmar que Mas as coisas não se dão como se houvesse uma escala hierárquica, na qual um ser primogênito vai se inclinando cada vez mais sobre si Segundo seu ser íntimo e seu ser próprio, quatro são mesmo em meio à construção do mundo, a fim de tomar ciência de si fundamentais nos quais se apresenta todo ente. Conformações estágios em estágios cada vez mais elevados e sempre em novas dimensões ENTES nicas não têm absolutamente um tal ser íntimo e próprio; eles não têm para finalmente ter e apreender a si mesmo totalmente no homem? centro algum que lhes pertença onticamente. Por isto, também não A partir desta estrutura ontológica do homem a partir de sua au- possuem nenhum meio, nenhum meio ambiente. O que designamos todotação, de sua capacidade de tornar objeto seu meio ambiente e neste mundo de objetos como unidade, incluindo as moléculas, todo seu ser psíquico e físico, assim como estas duas relações causais átomos e elétrons, é exclusivamente dependente de nosso poder de torna-se compreensível uma série de peculiaridades humanas, das dividir os corpos de maneira real ou através do pensamento. Toda e quais menciono sucintamente algumas. qualquer unidade corpórea inorgânica só é relativamente a um deter- minado aparato de leis de sua ação sobre outros corpos. Os centros de Somente homem está de posse das categorias plenamente cunha- força não espaciais, mas posicionadores do fenômeno da extensão no das e concretas de coisa e substância. Os animais não as possuem. Uma tempo, os centros de força que temos de colocar metafisicamente na aranha, que se encontra parada à espreita no entroncamento de sua base das imagens corpóreas são centros de pontos de força que atuam teia, se arremete imediatamente sobre uma mosca que, ao tentar se mutuamente uns sobre outros. Destes centros para interior con- afastar dela, acaba por se enredar em seus fios e cuja presença se lhe vergem as linhas de força de um campo. Em contrapartida, um ser revela provavelmente de uma tacada só através do sentido do tato. No vivo é constantemente um centro ôntico e jamais deixa de formar por entanto, se colocarmos a mosca a uma distância compatível com a vi- ele mesmo "sua" unidade e individualidade espaço-temporal; estas gência de sua amplitude visual, a aranha foge imediatamente (ver experimentos com aranhas feitos por H. Volkelts): para ela, trata-se não surgem, como no caso da conformação inorgânica, por obra e gra- de um outro ser que ela vê e que ela sente pelo tato, e ela não está ça de nossa síntese, condicionada biologicamente. Ele é um X que li- em condições de identificar nem O espaço visual e espaço de ação mita a si mesmo; ele tem "individualidade" dividi-lo significa aniqui- promovido pelo tato (espaço cinético), nem tampouco as coisas que lá-lo, suspender sua essência e sua existência. É próprio do impulso se acham aí. Mesmo animais superiores não possuem plenamente a afetivo das plantas um centro e um meio no qual, relativamente livre categoria de coisa. Um macaco, ao qual se dá uma banana semides-42 Max Scheler A Posição do Homem no Cosmos 43 cascada, foge dela, enquanto ele a come quando ela está totalmente descascada, e, quando ela está com a casca, a descasca e então come: através das sensações cinéticas. Isto também aponta para fato de a coisa "banana" não se "alterou" para animal, ela se "transformou" a forma vazia do espaço, ao menos como "espacialidade" ainda informe, muito mais em um outro. Falta evidentemente ao animal um centro, já ser vivenciada no homem antes da tomada de consciência de quais- partir do qual ele pudesse referir a um mesmo núcleo de realidade, a a quer sensações sobre a base dos impulsos motrizes vivenciados e da vi- uma mesma coisa-objeto concreta, as funções psicofísicas de seu ver, vência do poder de produzi-los (pois são, com efeito, aqueles impulsos ouvir, cheirar, pegar, tocar, além das coisas visuais, auditivas, gustati- motrizes que têm como conseqüência em primeiro lugar as sensações vas, olfativas e passíveis de serem sentidas pelo tato, que se apresen- cinéticas). Este espaço primitivo de movimento, a "consciência do tam nessas funções. que está em volta", também continua subsistindo ainda que espaço Digitalizado com CamScanner ótico, no qual unicamente é dado à extensão a multiplicidade cons- Além disto, homem tem desde princípio um espaço próprio. O entre tante e concomitante, seja completamente desconstruído. Na passa que cego de nascença aprende, por exemplo, ao ser operado não é gem do animal para homem deparamo-nos, portanto, com uma um ajuntamento de "espaços" originariamente cindidos, como es- completa inversão entre "vazio" e "cheio", e, em verdade, tanto segun- paço do tato, espaço visual, espaço auditivo, mas apenas a identifi- do tempo quanto segundo espaço. Apesar de OS animais superiores cação de seus dados sensoriais como símbolos e propriedades de uma possuírem multiplicidades espaciais (os mais primitivos só têm com coisa existente em um lugar. Ao animal, porém, falta uma vez mais a certeza impressões temporais), estas não são homogêneas, isto é, elas função central que fornece um espaço homogêneo como uma forma não são de um modo tal que os lugares permanecem fixos na esfera fixa antes das coisas singulares e de sua percepção. Mas antes de tudo: ótica como um sistema de posições previamente dado e se despren- falta aquele tipo particular de autocentralidade que reúne todos dem radicalmente das qualidades e dos movimentos das conforma- dados sensoriais com seus impulsos pulsionais pertinentes e liga a ções do meio ambiente em que estão se realizando. Somente a ótica um "mundo" ordenado substancialmente. Como mostrei detalhada- maximamente elevada do homem (andar ereto!) possui este sistema; mente em um outro lugar, ao animal falta justamente um "espaço de mas ele pode perdê-lo em casos patológicos, de modo que só resta mundo" próprio que permanecesse como um pano de fundo estável "espaço" por assim dizer "originário", a "vivência do à nossa volta". independentemente dos seus movimentos locativos próprios. Fal- O animal não consegue nem desprender as formas vazias do espaço e tam-lhe igualmente as "formas vazias" de tempo e espaço: ao ser trans- do tempo de certas determinidades de conteúdo das coisas do meio posto para interior destas formas, homem apreende primariamen- ambiente, nem destacar "número" de uma "quantidade" que reside te as coisas e os acontecimentos. Elas só são possíveis para um ser (es- nas coisas mesmas como maior ou menor. Ele vive totalmente na rea- piritual) cuja insatisfação pulsional excede constantemente sua satisfa- lidade concreta de seu respectivo presente. Somente quando no ho- ção. Denominamos originariamente "vazio" a permanência irrealiza- mem as expectativas pulsionais que se convertem em impulsos motri- da de nossas expectativas pulsionais primeiro "vazio" é como que o zes assumem a preponderância sobre tudo que é realização pulsional vazio de nosso coração. fática em uma percepção ou sensação, tem lugar fenômeno extre- mamente raro de que "vazio" espacial, e, analogamente, vazio A raiz da intuição espaço-temporal humana que precede todas as temporal, precedendo todos conteúdos possíveis da percepção e do sensações externas reside na possibilidade orgânica espontânea de mundo conjunto das coisas, se mostrem como "basilares". Assim, sem agir e de se movimentar em uma determinada ordem. Como se pôde se dar conta, homem olha para próprio vazio em seu coração como comprovar em fenômenos de perda temporária ou permanente de um "vazio infinito" do espaço e do tempo, como se este vazio perdu- certas funções orgânicas, espaço tátil não está diretamente subordi- rasse mesmo se não houvesse mais coisa alguma! Só muito posterior- nado ao espaço ótico, mas a subordinação só acontece muito mais mente a ciência corrige esta ilusão da visão de mundo natural, ensi-Max Scheler A Posição do Homem no Cosmos 45 nando-nos que o espaço e o tempo são apenas ordens, possibilidades situacionais e de sucessão das coisas, e não possuem nenhuma consis- acima do mundo. Enquanto tal, ele também é capaz da ironia e do hu- tência para além e independentemente delas. mor que constantemente envolvem uma elevação por sobre a própria existência. Como disse, o animal não tem constitutivamente nem mesmo "espaço do mundo". Um cachorro pode viver por anos a fio em um jar- o Mas o centro a partir do qual homem empreende atos de obje- dim e já ter estado freqüentemente em cada lugar deste jardim por tivação de seu corpo e de sua psyche, tornando objetivo mundo em maior ou menor que seja jardim, o cachorro nunca poderá fazer uma sua plenitude espacial e temporal, não pode ser ele mesmo uma "par- imagem conjunta dele e da disposição das árvores, dos arbustos etc., te" deste mundo e também não pode, por conseguinte, possuir ne- independentemente de sua situação corpórea. Para o cachorro só nhum lugar qualquer e nenhum tempo qualquer determinados: ele só Digitalizado com CamScanner existem espaços ambientes que mudam com seus movimentos e ele pode estar colocado no fundamento ontológico mais supremo. não consegue coordenar estes espaços com todo o espaço do jardim, Em sua profunda doutrina da apercepção, Kant já tinha esclareci- independentemente da posição de seu corpo. A razão disto é que o do no essencial aquela nova unidade do cogitare, que é "condição de KANT animal não está em condições de converter seu próprio corpo e o mo- possibilidade de toda experiência possível, e, por isto, também de to- vimento de seu corpo em objeto, de modo a que pudesse incluir a sua dos objetos da experiência" não apenas da experiência externa, própria situação corporal como um momento variável em sua intui- mas também daquela experiência interna, através da qual nos é aces- ção espacial e aprendesse, assim, como que instintivamente a contar sível nossa própria vida interior. Com isso, ele elevou pela primeira com acaso de sua posição, como o homem o faz mesmo sem ciência. vez "espírito" por sobre a psyche e negou explicitamente que espíri- Esta capacidade do homem é apenas o começo do que será em seguida to seja apenas um grupo funcional de uma assim chamada desenvolvido na ciência. A grandeza da ciência humana consiste jus- anímica" cuja suposição fictícia é devida unicamente à coisificação tamente nisto: o homem sempre aprende nela a contar de maneira injustificada da unidade atual do espírito. mais abrangente com sua posição casual no Universo, consigo mesmo Através daí designamos uma terceira determinação importante do e com todo seu aparato físico e psíquico como se fossem uma coisa espírito: o espírito é único ser que é por si mesmo incapaz de ser objeti- estranha que se encontra em conexões causais rigorosas com as outras vado ele é pura atualidade, só tem seu ser na livre realização de seus coisas. Através daí foi possível para o homem conquistar paulatina- atos. O centro do espírito, a pessoa, não é, portanto, nem um ser obje- mente uma imagem do mundo mesmo na qual objetos são comple- tivo, nem um ser coisificado, mas apenas uma estrutura ordenadora de tamente independentes das leis de sua organização psicofísica, de seus atos (essencialmente determinada) que leva a termo constantemente sentidos humanos e dos umbrais destes sentidos, de seus carecimen- a si mesma. A pessoa só é em seus atos e através deles. Algo anímico tos e dos seus interesses nas coisas uma imagem que permanece não realiza a si mesmo: ele é uma série de acontecimentos no tempo, constante em meio à mudança de todas as suas posições no Universo, que de podemos em princípio contemplar justamente a partir do centro de todos OS seus estados, de todas as suas organizações específicas e vi- nosso espírito e que podemos ainda objetivar na percepção e obser- vências sensoriais. vação não internas. Tudo que é anímico é passível de objetivação mas Somente homem uma vez que é pessoa consegue se alçar por o ato espiritual, a intentio, que olha ainda processos anímicos sobre si mesmo enquanto ser vivo -, e, a partir de um centro como mesmos. Nós só podemos nos reunir ao ser de nossa pessoa, nos con- que para além do mundo espaço-temporal, incluindo aí ele mesmo, centrar em sua direção mas não podemos objetivá-lo. Como pes- tornar tudo objeto de seu conhecimento. Desta feita, o homem como soas, não podemos objetivar nem mesmo as outras pessoas. neste ser espiritual é ser que se coloca acima de si mesmo como ser vivo e sentido que Goethe diz de Lili: "eu a amei demais", para que tivesse46 Max Scheler podido "observá"-la Só conseguimos conquistar uma participação nas pessoas se acompanharmos a realização e co-realizarmos seus atos livres. Isto só pode ser alcançado através do que é expresso pela palavra "sequaz" ou através daquela "compreensão" que só é possí- vel em meio à postura do amor espiritual, em meio à identificação com amor, com a vontade de uma pessoa, e, através daí, com ela mesma. Essa compreensão é, por sua vez, o oposto mais extremo de toda obje- tivação. III Digitalizado com CamScanner Mesmo no ato daquele espírito supra-singular um ato que temos de supor em razão da conexão essencial inviolável entre ato e idéia, se O Ato da Ideação Como um Ato supomos acima de tudo uma ordem ideal se realizando neste mundo Especificamente Espiritual independentemente da consciência humana e a atribuímos ao ente originário mesmo como um de seus atributos só podemos conquistar Se quisermos tornar ainda mais clara para nós no detalhe a parti- uma participação através de uma co-realização: em uma ordem essen- cularidade, a singularidade do que chamamos "espírito", então me- cial, se se tratar do espírito cognoscente, em uma ordem valorativa lhor a fazer é nos ligarmos a um ato especificamente espiritual, ato AS objetiva, se se tratar do espírito que ama, em uma ordem final do pro- de ideação. Trata-se de um ato completamente diverso de toda inteli- cesso do mundo, se se tratar do espírito como um ente que quer. A an- gência técnica, de todo "pensamento" indireto, dedutor, cujos pri- tiga filosofia das idéias, reinante desde Santo Agostinho, tinha supos- mórdios já atribuímos ao animal. Um problema próprio à inteligência to a idea ante res, uma "providência" e um plano da criação do mundo seria, por exemplo, seguinte: estou agora com uma dor em meu bra- anteriores à realidade do mundo. Mas as idéias não são "antes", não ço como esta dor surgiu, como ela pode ser afastada? Estabelecer a são "em" e não são "depois" das coisas, mas juntamente com elas: as resposta a estas questões seria a tarefa de uma ciência positiva, da fisio- idéias só são geradas no ato da constante concretização do mundo logia, da psicologia, da medicina. No entanto, em uma postura mais (criatio continua) no espírito eterno. Por isto, a nossa co-realização distanciada, meditativa, contemplativa diante desta mesma vivência, deste ato também não é um mero achado ou uma mera descoberta de também posso tomar a mesma dor como "exemplo" de uma realidade um ente e de um ser independentes de nós, mas uma verdadeira co- essencial sumamente estranha e assombrosa: fato de que este mundo produção, uma co-geração das essências, idéias, valores e metas su- é manchado pela dor, pelo mal e pelo sofrimento; neste caso, sou obri- bordinados ao logos eterno, ao amor eterno e à vontade eterna, a par- gado a colocar a pergunta de outra maneira: que é afinal propria- tir do centro e da origem das coisas mesmas. mente "a dor mesma", abstraindo-se do fato de eu estar aqui e agora com dor e como precisa ser constituído fundamento das coisas para que algo assim como a "dor em geral" seja possível? Um exemplo estupendo para um tal ato ideador nos é dado pela cé- fio lebre história da conversão de Buda: depois de ter se mantido por anos a afastado no palácio do pai de todas as impressões negativas, prínci- pe vê um homem pobre, um homem doente, um homem morto; ele tavam compreende imediatamente aqueles três fatos casuais "que se apresen- aqui e agora de um tal modo" como meros exemplos para umaMax Scheler 48 A Posição do Homem no Cosmos constituição essencial do mundo, uma constituição que é apreensível valem apenas para este mundo realmente existente, mas para todos os junto a eles. Descartes buscou tornar claro para si a essentia do corpo e mundos possíveis. Na linguagem escolar, nós as chamamos a priori. sua construção essencial a partir de um pedaço de cera esta é uma questão diferente de se, por exemplo, um químico examina um corpo Tais conhecimentos essenciais cumprem duas funções muito di- determinado segundo seus componentes. Exemplos incisivos para versas. Para as ciências positivas, cujo campo é rigorosamente circuns- questões de um tipo essencial são dados pela matemática como um crito pela verificabilidade de suas proposições reduzidas, uma verifi- todo. O animal tem vagas representações de quantidade. Entretanto, cabilidade levada a termo por intermédio da observação e da mensu- essas representações permanecem totalmente presas às coisas percebi- ração, eles formam as pressuposições superiores, os axiomas que sem- das, à sua figura, agrupamento etc. Somente homem consegue sepa- pre perfazem a cada vez grupos particulares no interior dos limites da rar do "número concreto" de três coisas "número abstrato" três e ope- lógica mais universal dos objetos para todos os âmbitos, e indicam an- tes de tudo a direção de uma observação, indução e dedução frutíferas Digitalizado com CamScanner rar com este número como com um objeto autônomo, segundo a lei in- terna de geração da série de tais objetos. O que a matemática encontra através de inteligência e de pensamento discursivo. Para a metafísica nas proposições sobre as ligações das multiplicidades não sensíveis que filosófica, porém, cuja meta final é conhecimento do ser que é abso- ela examina pode ser se hoje não, então amanhã estranhamente lutamente, os conhecimentos essenciais formam as "janelas para ab- aplicado da maneira mais rigorosa possível a todas as coisas reais que se soluto", como Hegel diz com uma imagem precisa. Pois toda e qual- encontram na multiplicidade (definida em axiomas). quer essência autêntica que a razão encontre no mundo não pode ser reconduzida nem por si mesma nem pela existência de "algo" de uma Todas estas são perguntas que estão sendo colocadas exatamente tal essência a causas empíricas de um tipo finito. Uma vez que é essên- como espírito as coloca não como a inteligência dedutora, que só cia, ela só pode ser atribuída a um espírito supra-singular, como atri- pode fornecer meios de resolvê-las. O animal não está em condi- buto do ens supra-singular a se, e toda existência de uma tal essência ções de fazer nada deste gênero. em geral só pode ser concebida como um posicionamento do impulso eterno enquanto seu segundo atributo. Independentemente da grandeza e da quantidade de observações que fazemos e das conclusões a que chegamos indutivamente através Esta capacidade de cisão entre essência e existência perfaz traço fun- da inteligência, idear significa sempre co-apreender a cada vez as qua- damental do espírito humano, um traço que funda todos demais. O lidades essenciais e as formas de construção do mundo em meio a um essencial ao homem não é fato de ele possuir saber, como já 0 disse exemplo oriundo da região essencial em questão. Todavia, o saber Leibniz, mas o fato de ele ser capaz de ter ou de alcançar saber a que conquistamos assim, apesar de ser alcançado através de um Não há absolutamente aí uma organização racional "constante", tal exemplo, vale na infinita universalidade de todas as coisas possíveis como Kant a supôs; a organização racional está muito mais submetida que são desta essência, e, de modo totalmente independente de nos- em princípio à mudança histórica. Só a razão mesma é constante en- sentidos humanos ligados ao acaso e do tipo e da medida de sua ex- quanto disposição e aptidão para formar e configurar sempre novas citabilidade, para todos sujeitos dotados de espírito que pensam so- formas de pensamento e intuição, de amor e de valoração através de bre mesmo material. Intelecções que conquistamos desta maneira funcionalização de novas intelecções essenciais intelecções que pio- valem para além dos limites de nossas experiências sensíveis; elas não neiros dirigentes da humanidade encontram junto aos fatos experien- ciáveis e que são acompanhados e realizados concomitantemente 22 Desta feita, homem possui com muita certeza aquele intellectus archetypus pela massa. que Kant, reconhecendo-o apenas como um "conceito limítrofe", constes- tou-lhe mas que Goethe lhe atribui expressamente.50 Max Scheler A Posição do Homem no Cosmos 51 Se quisermos adentrar a partir daqui mais profundamente na es- impulso vital central. Não é uma conclusão que nos leva ao posicio- sência do homem, temos de nos representar a trama dos atos que con- namento real do mundo exterior (que como esfera persiste mesmo em duzem ao ato de ideação. O homem leva a termo aí consciente ou in- sonho), não é O conteúdo intuitivo da percepção (como as "formas", as conscientemente uma técnica que se pode designar (a título de ensaio) "figuras") que nos dá a vivência da realidade, não é a objetividade (que suspensão do caráter de realidade das coisas, do mundo. Nesta tentati- também possui com efeito algo fantasioso), não é a posição fixa no espa- va, nesta técnica de apreensão da essência, logos da essencialidade ço em meio ao movimento da atenção etc. Ao contrário, é a impressão se descortina a partir do mundo concreto e patente das coisas uma vivenciada de resistência aos estágios mais baixos, mais primitivos da vida vez que elas já se tornaram objeto. O animal, nós vimos, vive total- anímica, estágios que, como vimos, advêm mesmo às plantas, ao "im- Digitalizado com CamScanner mente no concreto e na realidade efetiva. Mas toda realidade implica pulso ao nosso centro pulsional ativo que se projeta e atém a uma posição no espaço e uma posição no tempo, um aqui e um agora, todas as direções, sempre, mesmo no sono e nos últimos estágios da au- e, além disto, um ser casualmente do modo como a percepção sensível sência de consciência. Na ordenação rigorosamente regulada de seus apresenta a partir sempre de um certo "aspecto". componentes (cor, figura, extensão etc.), na qual se constrói, tanto ob- Ser homem significa: lançar um vigoroso "não" de encontro a este jetivamente quanto em meio à sua percepção por nós, qualquer coisa tipo de realidade. Buda sabia disto ao dizer: "E maravilhoso ver cada corporal uma ordenação que podemos, por exemplo, estudar em meio coisa e terrível ser cada uma delas." Assim, ele desenvolveu uma téc- ao desmantelamento patológico da capacidade de percepção -, ne- nica de desrealização do mundo e do si-próprio. Platão também o sa- nhum é mais originário do que a realidade ou do que 0 momento viven- bia ao articular a visualização das idéias com um desvio da alma ante ciado de realidade. Deixai esvaecer para uma consciência todas as co- conteúdo sensível das coisas e com uma volta da alma sobre si mesma, res e todas as matérias sensíveis; deixai se dissolver todas as figuras e li- a fim de encontrar aí as "origens" das coisas. E Edmund Husserl não ti- gações; deixai se volatilizar todas as formas de unidade das coisas nha em vista nada além disto ao articular conhecimento da idéia que ainda permanecerá por fim como que nu, livre de todo tipo de qua- com uma "redução fenomenológica", isto é, com um "corte" ou com lidade e solto é a impressão poderosa da realidade, a impressão da efeti- uma "restrição" dos coeficientes casuais da existência das coisas do vidade do mundo. mundo, a fim de conquistar sua essentia. Certamente não posso con- Portanto, a vivência originária da realidade efetiva como vivência cordar no detalhe com a teoria desta redução em Husserl. No entan- da resistência do mundo precede toda toda re presenta- to, posso muito bem admitir que nela é pensado 0 ato que define pró- ção, toda per-cepção. Mesmo a percepção sensível mais impositiva pria e corretamente espírito humano. nunca é meramente condicionada pelo estímulo e pelo processo nor- Se se quiser saber como acontece este ato da redução, precisa-se ini- mal no sistema nervoso: um direcionamento pulsional, quer seja exi- cialmente saber em que consiste propriamente nossa vivência da realida- gências quer seja aversão, precisa estar igualmente presente, se isto deve chegar mesmo apenas à mais simples sensação. Desta feita, se de. Não há uma sensação particular indicável (duro, firme etc.) que corresponda especialmente à impressão de Mesmo a percep- um impulso de nosso ímpeto "vital" condiciona conjuntamente de ção, a lembrança, pensamento e todos os atos perceptivos possíveis maneira incontornável todas as possíveis sensações e percepções, as não conseguem nos proporcionar esta impressão: que eles nos forne- resistências que centros e os campos de força situados à base das cem é sempre apenas modo de ser (casual) das coisas, nunca seu ser-aí imagens corporais do meio ambiente as "imagens sensoriais" mes- (sua existência). que 0 real) nos dá é muito mais a vivên- mas são, com efeito, totalmente ineficazes exercem sobre 0 nosso cia da resistência intrínseca à esfera já aberta do mundo e só há esta re- ímpeto vital já podem ser vivenciadas em um ponto do processo tem- sistência para nossos impulsos, para a nossa vida pulsional, para nos- poral da percepção deveniente possível, onde não se chegou ainda aDA Max Scheler 52 A Posição do Homem no Cosmos 53 da percepção "imagética" consciente. A vivência da realidade não nos uma é dada, com isto, depois de toda a nossa "representação" do mun- gens perceptivas e das representações. Comparado com 0 animal que sempre diz "sim" ao que é real mesmo aí onde ele se atemoriza e foge do, mas antes. homem é aquele "que pode dizer não", ele é 0 "asceta da O que significa, afinal, este "não" de que falei? O que significa aquele que protesta eternamente contra toda mera realidade. E isto é "des-realizar" mundo ou "idear" mundo? Não significa, como pensa totalmente independente de questões de visão de mundo e de ques- Husserl, reter juízo existencial (que já reside em toda e qualquer per- tões valorativas; este fato não se altera quer se busque esta elevação cepção natural); em seu predicado mesmo, juízo "A é real" requer do espírito até a esfera irreal das essências como a meta definitiva (por com efeito uma carga de vivência, se é que "real" não deve ser uma pala- exemplo, no sentido de Buda, que respondeu em todo caso profunda- Digitalizado com CamScanner vra vazia. Idear mundo significa muito mais suspender (para nós) 0 mente a estas perguntas como quase ninguém fez até hoje) porque já próprio momento de realidade a título de ensaio, aniquilar toda aquela se avalia a realidade mesma como mal (omne ens est malum), quer se impressão indivisa e poderosa de realidade com seu correlato afetivo busque voltar sempre novamente a partir da esfera da essência como significa afastar aquela "angústia do terreno" que, como diz Schiller, só tomo como sendo correto para a realidade e para seu ser aqui e "desaparece naquelas regiões onde habitam as formas puras". Pois para agora de um tal modo, a fim de aprimorá-la (assumindo inicialmente cada ser vivente toda realidade efetiva, já por ser realidade efetiva, e de uma postura indiferente ante fato de a existência ser boa ou ruim), maneira totalmente indiferente ante que ela é, sempre exerce de iní- vendo neste ritmo eterno entre realidade e idéia, ímpeto e espírito cio uma pressão inibitiva, acossante, assim como a angústia "pura" no equilíbrio de sua tensão perpétua a verdadeira vida e a verdadeira (sem qualquer objeto) se mostra como seu correlato. Se a existência é determinação do homem. este ato no fundo ascético de desrealização só pode subsis- Em todo caso, em comparação com animal, cuja tir em meio à suspensão, em meio ao desligamento justamente daquele existência é a encarnação do filisteísmo eterno "fausto", a bestia ímpeto vital, em relação ao qual o mundo aparece antes de tudo como cupidissima rerum novarum, que nunca se aquieta com a realidade que resistência, e que é ao mesmo tempo a condição de toda percepção sen- o cerca, sempre ávido por romper as barreiras de seu ser aqui-e-agora sível do que está casualmente aqui-e-agora desta maneira. porque de tal modo, sempre aspirando a transcender a realidade efetiva que pulsão e sentido se compertencem que Platão pensa o filosofar como envolve nesta também a sua própria auto-realidade. É neste sentido uma "aspiração eterna" e é por isto que todo e qualquer racionalismo que Sigmund Freud também vê no homem o "repressor de pulsões". 23 plenamente estabelecido está fundado no "ideal E somente por ser um tal repressor através deste "não" que não é Mas somente aquele ser que denominamos "espírito" pode execu- ocasional, mas constitutivo à pulsão , homem pode estabelecer seu mundo da percepção como uma superestrutura através de um reino DA tar este ato de desrealização. Somente espírito em sua forma como "vontade" pura pode realizar, através de um ato de vontade e isto ideal de pensamento, e, por outro lado, justamente através daí entre- significa: um ato de inibição -, a desatualização daquele centro do im- gar de maneira crescente ao espírito que habita nele a energia dormi- pulso real. afetivo que reconhecemos como o acesso ao ser real do que é tante nas pulsões reprimidas. Isto é: homem pode "sublimar" sua energia pulsional para uma atividade espiritual. O homem é o ser vivo que, por força de seu espírito, pode se com- portar faz em princípio asceticamente em relação à sua vida, à vida que o impulsos pulsionais, isto é, recusando-lhes alimento através das ima- estremecer violentamente subjugando e reprimindo próprios 23 Comparar Para além do princípio do prazer.Digitalizado com CamScanner 52 53 Max Scheler A Posição do Homem no Cosmos uma percepção "imagética" consciente. A vivência da realidade não nos é dada, com isto, depois de toda a nossa "representação" do mun- gens diz "sim" ao que é real mesmo aí onde ele se atemoriza e foge perceptivas e das representações. Comparado com animal que do, mas antes. sempre homem é aquele "que pode dizer não", ele é "asceta da vida", que significa, afinal, este de que falei? O que significa aquele que protesta eternamente contra toda mera realidade. E isto é "des-realizar" mundo ou "idear" mundo? Não significa, como pensa totalmente independente de questões de visão de mundo e de ques- Husserl, reter juízo existencial (que já reside em toda e qualquer per- tões valorativas; este fato não se altera quer se busque esta elevação cepção natural); em seu predicado mesmo, juízo "A é real" requer do espírito até a esfera irreal das essências como a meta definitiva (por com efeito uma carga de vivência, se é que "real" não deve ser uma pala- exemplo, no sentido de Buda, que respondeu em todo caso profunda- vra vazia. Idear mundo significa muito mais suspender (para nós) mente a estas perguntas como quase ninguém fez até hoje) porque já se avalia a realidade mesma como mal (omne ens est malum), quer se próprio momento de realidade a título de ensaio, aniquilar toda aquela busque voltar sempre novamente a partir da esfera da essência como impressão indivisa e poderosa de realidade com seu correlato afetivo tomo como sendo correto para a realidade e para seu ser aqui e significa afastar aquela "angústia do terreno" que, como diz Schiller, só agora de um tal modo, a fim de aprimorá-la (assumindo inicialmente "desaparece naquelas regiões onde habitam as formas puras". Pois para uma postura indiferente ante fato de a existência ser boa ou ruim), cada ser vivente toda realidade efetiva, já por ser realidade efetiva, e de maneira totalmente indiferente ante que ela é, sempre exerce de iní- vendo neste ritmo eterno entre realidade e idéia, ímpeto e espírito no equilíbrio de sua tensão perpétua a verdadeira vida e a verdadeira cio uma pressão inibitiva, acossante, assim como a angústia "pura" determinação do homem. (sem qualquer objeto) se mostra como 0 seu correlato. Se a existência subsis- é este ato no fundo ascético de desrealização só pode Em todo caso, homemé em comparação com 0 animal, cuja tir em meio à suspensão, em meio ao desligamento justamente tudo daquele como existência é a encarnação do filisteísmo 0 eterno "fausto", a bestia vital, em relação ao qual mundo aparece antes de sen- cupidissima rerum novarum, que nunca se aquieta com a realidade que impeto resistência, e que é ao mesmo tempo a condição de toda percepção E porque 0 cerca, sempre ávido por romper as barreiras de seu ser aqui-e-agora sível do está casualmente aqui-e-agora desta maneira. filosofar como de tal modo, sempre aspirando a transcender a realidade efetiva e que sentido se compertencem que Platão pensa racionalismo envolve nesta também a sua própria auto-realidade. É neste sentido que pulsão uma "aspiração eterna" e é por isto que todo e qualquer que E Sigmund Freud também vê no homem 0 "repressor de pulsões". 23 plenamente estabelecido está fundado no "ideal somente por ser um tal repressor através deste "não" aquele ser que denominamos "espírito" pode forma execu- como ocasional, mundo mas constitutivo à pulsão homem pode estabelecer que não é ideal de da percepção como uma superestrutura através de seu Mas somente ato de desrealização. Somente 0 espírito em de vontade sua e isto gar de pensamento, e, por outro lado, justamente através daí um reino tar este pode realizar, através de um ato do im- "vontade" pura inibição desatualização daquele centro real do que é tante nas maneira crescente ao espírito que habita nele a entre- significa: pulso afetivo um ato que de reconhecemos -, a como 0 acesso ao ser energia pulsões reprimidas. Isto é: homem pode "sublimar" energia dormi- sua pulsional para uma atividade espiritual. real. homem é ser vivo que, por força relação de seu à espírito, sua vida, pode à vida se que com- portar em princípio asceticamente subjugando em e reprimindo os das próprios ima- faz impulsos estremecer pulsionais, violentamente isto é, recusando-lhes alimento através 23 Comparar Para além do do prazer.A Posição do Homem no Cosmos 55 nhada pelos gregos, não atribui ao espírito mesmo apenas uma essencialidade e autonomia peculiares, mas também força e atividade sim, a medida mais elevada possível de poder e força nós a denominamos "teoria clássica" do homem. Ela é parte in- tegrante de uma visão de mundo conjunta que afirma seguinte: ser do mundo que existe desde princípio e se mantém inalterável atra- vés do processo do devir da história (cosmos) é construído de uma tal IV maneira que as formas superiores do ser, desde a divindade até a ma- Crítica da Doutrina Clássica téria bruta, também são OS modos de ser mais poderosos, mais vigoro- Digitalizado com CamScanner e da Doutrina Negativa do Homem portanto, modos de ser causantes. O ponto mais elevado de um tal mundo é 0 deus espiritual e onipotente, deus que é onipotente em Aqui vem à tona uma vez mais uma questão decisiva: espírito só virtude justamente de seu espírito. À segunda doutrina oposta desig- ? namos "teoria negativa". Ela defende inversamente a opinião de que surge através desta ascese, desta repressão, desta sublimação, ou ele espírito mesmo até ponto em que este conceito é em geral admiti- apenas recebe através delas a sua energia? Esta técnica interna em- bora já condicionada pelo próprio non fiat do querer inibidor das pul- do -, de que no mínimo todas as atividades "culturalmente produti- vas" do homem, todos atos lógicos, morais, todos atos que propi- sões é apenas a criação de disposições para a manifestação do espíri- ciam uma visualização estética e uma formação artística, emergem ex- to, ou será que O espírito só surge segundo sua essência, seus princípios clusivamente daquele "não". e suas leis através deste tipo de repressão, de sublimação? Eu rejeito as duas teorias. Eu afirmo que espírito possui em verda- De acordo com a minha ser do espírito não é absoluta- de uma essência e uma legalidade próprias, mas de maneira alguma mente condicionado por aquela atividade negativa, por aquele "não" uma energia originária própria; que através daquele ato negativo do realidade efetiva, por aquela rejeição e desativação dos centros pul- querer inibidor das pulsões (ele mesmo já espiritual) tem lugar a ener- sionais que dão sustentação ao acontecimento de realidade e imagem. gização do espírito em si mesmo impotente e que não consiste senão Ao contrário, uma tal atividade não condiciona senão seu forneci- em um grupo de "intenções" puras. No entanto, não afirmo que ele só mento de energia, e, com isto, capacidade de manifestação. Como já "emergiria" pela primeira vez daí. dissemos, espírito é em última linha um atributo do ente mesmo que se torna manifesto no homem em meio à unidade de concentração da Posso dar alguns exemplos (em si aliás verdadeiramente diversos) pessoa que se "reúne" em si mesmo. Enquanto tal, porém, o espírito da teoria negativa do homem: a doutrina budista da redenção, a doutri- em sua forma "pura" encontra-se originariamente desprovido de qual- na schopenhaueriana da "autonegação da vontade de vida", e, além quer poder, força, atividade. Para conquistar ainda que seja um peque- disto, livro notável de Paul Alsberg Das Menschheitsrätsel (O enigma no grau de força e atividade, aquela ascese, aquela repressão pulsional da humanidade); por fim, também a doutrina tardia de Sigmund e ao mesmo tempo aquela sublimação precisam vir se somar a ele. Freud, particularmente em Para além do princípio do prazer. A partir daqui alcançamos uma intelecção das duas possibilidades Para que reconheceu com uma profundidade incomparável de apreensão do espírito que desempenham um papel fundamental na que 0 próprio modo como a realidade é dada implica padecer da história da idéia do homem. A primeira destas teorias, que foi da resistência, sentido da existência humana finda em sua extinção ação como sujeito do desejo ou na obtenção de um mundo essencial ainda57 Max Scheler 56 A Posição do Homem no Cosmos apenas vislumbrado, ou seja, na obtenção da nadidade, ou expresso lho dos órgãos sensoriais. Alsberg toma a adaptação particularmen- mitologicamente: do "Nirvana". Buda não possui uma idéia positiva te deficiente dos órgãos do homem ao seu meio ambiente como a cau- do espírito, nem no homem nem no fundamento do mundo. Ele só sa do surgimento deste "princípio da humanidade", desta tendência possui uma técnica do conhecimento e do "saber divino" que supera da vida a colocar seus órgãos fora de ação e estabelecer "instru- sofrimento. Ele reconheceu profundamente a ordem causal na qual, mentos" e "sinais" no lugar das funções orgânicas vitais; e, com isto, em meio ao exercício da técnica da desrealização, através da suspen- também como a causa da crescente "cerebralização" do homem em são interna do desejo, disto que ele chama a "sede", mundo da reali- sentido morfológico e fisiológico: a falta de um pé para pegar, de um dade sensível e processos corpóreos e anímicos se desvanecem na pé para escalar, de garras, caninos, penugem etc., ou seja, a falta da- qual as qualidades sensíveis, as figuras, as relações, a espacialidade e a quelas adaptações orgânicas específicas que seus parentes mais pró- Digitalizado com CamScanner temporalidade do ser se suprimem pedaço por pedaço. ximos, OS antropóides, possuem. Para Alsberg, portanto, que se de- nomina "espírito" é apenas um substitutivo surgido tardiamente para Schopenhauer vê traço essencial da diferencialidade entre ani- uma adaptação orgânica deficiente poder-se-ia dizer no sentido de mal e homem exclusivamente no fato de animal não conseguir em- Alfred Adlers, que explica desta maneira certos dons elevados do preender aquela negação "redentora", aquela negação da vontade homem: uma supercompensação pela inferioridade orgânica da es- de vida uma negação que homem pode empreender em seus pécie humana. exemplares supremos. Para Schopenhauer, assim como para seu mestre Bouterwek, aquela negação é a fonte de todas as "formas su- Como disse, a doutrina tardia de Freud também toma parte no cír- periores" da consciência e do saber na metafísica, na arte, no éthos da culo da teoria negativa do homem. Schopenhauer já tinha feito uso expressamente das noções de "repressão às pulsões e aos afetos" para, compaixão. como ele o formula, esclarecer determinadas "formas de loucura". E Alsberg, aluno de Schopenhauer, reconheceu muito correta- conhecido o quão grandiosamente Freud ampliou este pensamento mente que não se pode justificar a geral de que mundo para explicar surgimento da neurose. Segundo Freud, contudo, es- cultural constitui uma diferença essencial entre homem e animal tas mesmas repressões das pulsões, que devem esclarecer em uma cer- nem a partir de um traço morfológico, nem a partir de um traço fisio- ta direção a neurose, no caso em que a energia reprimida das pulsões é lógico, nem a partir de um traço Ele ampliou a sublimada, não deve produzir nada menos do que a capacidade para doutrina de Schopenhauer até a tese de que da humani- cada tipo de configuração cultural mais elevada, sim, como Freud diz dade" reside exclusivamente no fato de homem ter sabido expressamente, a especificidade da constituição humana mesma. É as- seus órgãos da luta pela vida e da tanto do sim que isto se encontra explicitamente formulado: "O desenvolvi- duo quanto da espécie em favor do instrumento, da da mento do homem até aqui não me parece carecer de nenhum outro formação conceitual. No que concerne a esta última, ele a esclarecimento além do esclarecimento dado para animais, e que ao descolamento dos órgãos e funções sensoriais e ao princípio se observa em uma minoria de indivíduos humanos como impulso in- mulado por Mach de uma "economia" máxima de todo conteúdo cansável para aperfeiçoamento ulterior deixa-se compreender na- sensível. Alsberg abdica expressamente de só definir homem atra- turalmente como conseqüência da repressão à pulsão, uma repressão vés do espírito e da A razão que ele erradamente tal como sobre a qual está construído que há de mais valoroso na cultura hu- seu mestre Schopenhauer só conhece como pensamento discursi- Atentou-se ainda muito pouco para fato de Freud tardio, em particular como formação conceitual, é para ele uma conse- da linguagem, não sua raiz; ele considera a linguagem mes- ma como "instrumento imaterial" com vistas à interrupção do traba- 24 Comparar Para além do princípio do prazer (1918), p. 40.58 Max Scheler A Posição do Homem no Cosmos 59 desde a apresentação de sua doutrina dualista das duas pulsões funda- mentais, libido e pulsão de morte, encontrar-se em uma estranha CO- ras? Precisamos perguntar também a Alsberg: 0 que é afinal que em- nexão, que beira em parte a clara consciência, não apenas com Scho- preende desligamento orgânico e que inventa os instrumentos ma- penhauer, mas mesmo diretamente com a doutrina de Buda. Segundo teriais e imateriais? E órgãos são afinal realmente "desligados" e estas duas doutrinas, todas as formas da existência, desde as coisas apenas em virtude dos mesmos valores e metas que também são pró- materiais, passando pelas plantas, animais e homens até sábio prios aos animais: para a preservação individual e da espécie na su- possuidor do "saber divino", são no fundo como que grupos de um perfície da terra? A mera "necessidade", que Lamarck já superesti- cortejo entorpecido que se encaminha para o interior da nadidade mava de maneira tão excessiva para a produção de novos órgãos ao tranqüila, da morte eterna. Ora, segundo Freud que (erroneamente, considerá-la como a causa derradeira também de sua satisfação, não Digitalizado com CamScanner como acredito) atribui ao organismo em geral uma tendência de con- é absolutamente suficiente como esclarecimento. E por que é que esta espécie organicamente tão ruim (a espécie humana) não se ex- servação pura e simples do modo de ser, uma tendência ao descanso, à tinguiu afinal, tal como se extinguiram centenas de outras espécies? proteção do estímulo e à recusa do estímulo -, sistema de poder que Como foi possível que este ser já quase condenado à morte, este ani- se junta no animal (em contraposição às plantas) ao sistema de ali- mal doente, atrasado, sofredor, cuja conduta fundamental é a de en- mentação, de crescimento e de reprodução, e se intercala entre eles e cobrir e proteger seus órgãos mal adaptados, ultravulneráveis, se sal- meio ambiente, já é uma obra relativa da pulsão de morte, no fundo vasse no "princípio da humanidade", e, com isto, na civilização e na sadista, destrutiva, como a nostalgia originária da vida "de voltar para cultura e isto significa de qualquer modo: no princípio de um pro- interior do inorgânico". gresso e de um crescimento objetivos das construções de sentido do Não posso concordar com nenhuma destas teses inerentes à "teo- espírito objetivo? Como ele se salvou deste "beco sem saída" (que ria negativa" do espírito. Elas não passam de meras teses acerca de um admito enquanto tal de maneira totalmente biológica) intrínseco ao "psíquico" unilateral e ligado apenas a valores vitais se é que posso seu direcionamento da vida? Certamente não através da razão, atra- utilizar aqui a antiga diferença entre psíquico e pneumático. Sou até vés do espírito que só deve surgir através de ascese, repressão e desli- mesmo da opinião de que a cultura indiana em seu conjunto não pos- gamento orgânico! Disse-se que homem tem um excesso de pul- suía a categoria especificamente grega e ocidental do "espírito". To- sões como traço originário da espécie, e, por isto, teve de reprimi-lo dos sistemas indianos são biologismos ou bem positivos ou bem ne- (A. Seidel); mas este excesso de pulsões poderia ser muito bem ape- gativos; e tanto diante da peculiaridade do inorgânico quanto ante a nas a conseqüência de uma modificação pulsional já realizada e de peculiaridade do espiritual. Mas isto está dito apenas de passagem. maneira alguma sua causa! Em cada forma em que se apresenta, a teoria negativa já sempre O defeito fundamental de todo e qualquer tipo de teoria negativa pressupõe justamente que deve ser explicado por ela: espírito, a ra- do espírito é não dar nenhuma pista para a resposta às seguintes per- zão, um conjunto de leis próprias autônomas do espírito e a identida- guntas: 0 que nega afinal no homem, que diz não afinal à vontade de parcial de seus princípios com aqueles do ser mesmo. É espírito de vida, o que reprime as pulsões? A partir de que fundamentos di- mesmo que já introduz a repressão à pulsão, na medida em que a "von- versos e derradeiros a energia pulsional reprimida é sublimada em tade" espiritual, já orientada ideal e valorativamente, recusa aos im- um caso em neurose e em outro caso em atividade formadora de cul- pulsos ideais e valorativos conflitantes as representações necessárias tura? Para onde ela é sublimada? E como é que os princípios do espí- para uma ação pulsional, e, por outro lado, coloca diante dos olhos rito concordam (ao menos parcialmente) com OS princípios do ser? como iscas representações adequadas ideal e valorativamente às pul- Por fim: para que é sublimado, reprimido, para que a vontade de vida sões latentes, a fim de coordenar impulsos pulsionais de tal modo é negada em virtude de que valores derradeiros e metas derradei-60 A Posição do Homem no Cosmos 61 Max Scheler que eles levem a termo projeto volitivo estabelecido espiritualmente, rea- Não importa se esta teoria clássica do espírito se apresenta em lizem. Chamamos de a este processo fundamen- tão e em Aristóteles, onde as "idéias" ou as "formas" se mostram ao tal que consiste em uma "inibição" (non fiat) de impulsos pulsionais mesmo tempo como forças configuradoras que formam as coisas do através da vontade espiritual, assim como chamamos "direção" a mundo a partir de um un de um "ser possível" da prima materia; se apresentação como que das idéias e do valor mesmo que sempre só ela se manifesta na forma teísta da religiosidade que se realizam a cada vez através dos movimentos pulsionais. Mas que deixa Deus ser "puro espírito" e lhe atribui enquanto tal não apenas espírito não consegue é seguinte: gerar ou suspender, aumentar ou direção e direcionamento (inibir e desinibir), mas uma vontade cria- DA diminuir por si mesmo uma energia pulsional qualquer. Ele só está em dora positiva, sim até mesmo onipotente; ou mesmo se ela se apresen- Digitalizado com CamScanner condições de evocar a cada vez configurações pulsionais que deixam ta em uma forma mais panteísta, como em Fichte ou no panlogismo justamente organismo realizar através da ação que ele, espírito, de Hegel, segundo qual a história do mundo deve repousar sobre a "quer". Mas não apenas esta regulação pulsional mediada pela regula- auto-explicação da idéia divina segundo uma lei dialética, sendo 0 ção representacional que parte do espírito; mesmo seu fim último é homem em seu cerne tão-somente a autoconsciência deveniente, a uma vez mais algo positivo: a conquista de poder e de atividade por consciência deveniente da liberdade, que a eterna divindade espiri- parte do espírito, tornar-se internamente mais livre e mais autôno- tual conquista por si mesma nele, em sua história. A teoria clássica digamos em resumo: a vivificação do espírito. sempre padece por toda parte do mesmo erro, cujo menosprezo cus- tou à humanidade as mais difíceis a afirmação de que Somente isto merece ser legitimamente chamado "sublimação" espírito e a idéia possuem um poder originário próprio de que, sem da vida em espírito não um processo místico que deve deixar es- ímpeto vital, espírito também é um princípio poderoso, sim, onipo- pírito surgir da repressão à pulsão e que deve criar novas qualidades tente. Aqui vemos em que medida grandes opositores da doutrina espirituais. clássica, dos naturalistas pulsionais, desde Epicuro, Hobbes, Maquia- Com isto retornamos à teoria "clássica" do espírito. Como já disse, vel e Lamettrie até Schopenhauer, Marx e Freud, têm inicialmente ela é tão falsa quanto a teoria negativa. No entanto, uma vez que razão. Todavia, em sua oposição reativa contra a doutrina clássica, mina quase que todo conjunto da filosofia ocidental, seu erro é muito eles abandonaram justamente a verdade que reside nela: a autonomia mais perigoso. Com sua origem no conceito grego de espírito e de do espírito em sua essência e em suas leis, desvalorizando, com isto, idéias, esta teoria aponta para a doutrina da autarquia da idéia, de sua sua própria teoria, assim como toda e qualquer teoria. Pois a autono- força e atividade originárias, de sua capacidade de produzir efeitos a mia do espírito é a pressuposição suprema para a idéia de "yerdade" doutrina que gregos conceberam pela primeira vez e que, através para a sua cognoscibilidade possível deles, se tornou uma concepção fundamental da maior parte da bur- A doutrina clássica apresenta-se antes de tudo em duas formas guesia ocidental 26 principais: na doutrina da substância espiritual da alma no homem e naquelas doutrinas, segundo as quais somente um único espírito exis- 25 termo "direcionamento" possui como correlato no original alemão ter- comparação com qual todos espíritos singulares se mos- mo Este termo significa literalmente dirigir, guiar. Neste sentido, di- tram somente como modos ou como centros de atividade deste espíri- recionamento diz aqui ato de dirigit a vontade para certa direção e não pri- to (Averroes, Espinoza, Kant, Fichte, Hegel, Schelling, Von Hart- meiramente a orientação da vontade para um (N.T.) mann). A doutrina substancial da alma repousa sobre a aplicação in- Sociologicamente falando, a teoria clássica é uma ideologia de classes, justificada da categoria de coisa externa, ou, em sua forma mais an- ideologia de uma classe da burguesia. Cf. meu Probleme emer tiga, sobre a cisão e utilização, inspiradas nos organismos, das cate- des Wissens (Problemas de uma sociologia do saber). gorias de "matéria" e "forma" para explicar a relação entre corpo e62 Max Scheler A Posição do Homem no Cosmos 63 alma (Tomás de Aquino). As duas aplicações de categorias cosmoló- tes da existência das plantas do que 0 contrário: diante do direciona- gicas ao ser central do homem não acertam seu alvo. O centro espi- mento vegetal, direcionamento vital animal não significa apenas ritual do ato, a pessoa do homem, não é nenhuma substância, mas um uma conquista, mas também uma perda, na medida em que este dire- arranjo monárquico de atos, sob quais um deles possui a cada vez a CENTRO cionamento não possui mais trânsito direto com 0 inorgânico que a liderança e a direção e é orientado para aquele valor e para a idéia, planta possui através de seu modo de alimentação. Na história do ho- com quais homem sempre se "identifica". mem, a massa vive como tal em uma independência análoga diante das formas mais elevadas da existência humana; ela encontra-se aí e de Mas deixemos de lado a crítica às configurações singulares desta com as leis próprias de seus movimentos historicamente lentos. Para doutrina. O erro fundamental, do qual provém a teoria "clássica" em os nossos olhos finitos, quase sempre parece apenas um acaso feliz e Digitalizado com CamScanner seu conjunto, é um erro mais profundo, mais principial, que se encon- misericordioso quando a terra ou uma estrela distante qualquer se tor- tra em conexão com toda a imagem de mundo: supor que este mundo na "vitalmente madura": madura para suportar a vida; ou quando em que vivemos é assim ordenado natural e constantemente e que as trem dos movimentos humanos de massa, este trem dotado de leis formas de ser mais elevadas crescem não apenas em sentido e valor, próprias, acaba por se ver em uma direção, na qual a massa consegue de mas aqui começa erro também em força e poder, quanto mais ele- ao menos tolerar gênio e isto para não falar de conseguir fazer com vadas elas são. Para nós, é um erro igualmente grande pensar as formas que seus interesses e suas paixões acolham as idéias e valores do gênio, de ser mais elevadas por exemplo, a vida ante inorgânico, a cons- a fim de se deixar frutificar por elas. Que raro acaso fortuito se dá ciência diante da vida inconsciente, espírito em relação às formas de quando, neste mundo, que tem boa vontade ética e é bem-intencio- ser subumanas da consciência no homem mesmo e fora do homem nado também tem sucesso este alcança que denominamos "gran- como geneticamente emergentes de processos que pertencem às for- deza isto é, poder considerável de atuação sobre a história! mas de ser mais baixas (materialismo e naturalismo), e, inversamente, Curtos e raros são períodos de florescência da cultura na história do supor que as formas de ser mais elevadas são a causa das mais baixas, homem. Curta e rara é a beleza em sua delicadeza e vulnerabilidade. que haveria, por exemplo, uma força vital, uma atividade de consciên- cia, um espírito ativo em si mesmo poderoso (vitalismo e idealismo) Se O que há de originariamente verdadeiro em todo poder e em toda a teoria negativa conduz a uma falsa explicação mecânica do todo, a efetividade é justamente espírito, quanto mais puramente ele é espí- doutrina clássica conduz ao sem sentido inconsistente de uma assim rito. chamada visão "teleológica" do mundo, tal como esta domina con- O arranjo verdadeiro, originário das ligações que subsistem entre junto da filosofia teísta do ocidente /Nikolai Hartmann expressa de as formas mais elevadas ou mais baixas de ser e as categorias valorati- maneira muito precisa mesmo pensamento que já tinha defendido vas e as forças e poderes nos quais as formas se realizam, é caracteri- em minha Ética: "As categorias ontológicas e valorativas superiores zado pela sentença: "o poderoso é originariamente mais baixo, im- são em si as mais fracas." potente mais elevado". Em relação às formas de ser mais baixas, toda No mundo em que habitamos, a corrente de força e de atuação que a e qualquer forma de ser mais elevada é relativamente desprovida de existência e OS modos casuais de ser conseguem instaurar não trans- força e elas não se realizam através de suas próprias forças, mas atra- corre de cima para baixo, mas de baixo para cima! É mundo inorgâni- vés das forças das mais baixas. O processo da vida si mesmo um CO com suas próprias leis que se encontra aí na mais orgulhosa inde- processo configurador que se dá no tempo com estruturas próprias: mundo pendência contendo em muito poucos pontos algo assim como um ele é realizado exclusivamente pela matéria e pelas forças do "vivente". As plantas e OS animais encontram-se em uma orgulhosa inorgânico. De maneira totalmente analógica, espírito encontra-se ndependência ante 0 homem, e animais são muito mais dependen- em relação à vida. Certamente, espírito pode conquistar poder por64 Max Scheler A Posição do Homem no Cosmos 65 intermédio do processo de sublimação, as pulsões vitais podem se in- as leis ônticas E como no interior da esfera vital, tanto troduzir (ou não se introduzir) em suas leis e na estrutura das idéias e da fisiológica quanto da psicológica, só valem certamente leis do tipo dos sentidos, na estrutura que ele lhe apresenta de maneira diretriz, e, das leis de configuração (apesar de não necessariamente apenas as leis no decurso desta introdução e penetração no indivíduo e na história, materiais da física), conjunto de leis da natureza se de acor- pode-se em-prestar força ao espírito mas em si mesmo e originariamen- do com esta concepção, um conjunto rigorosamente unitário. te espírito não possui nenhuma energia A forma de ser mais ele- vada "determina", por assim dizer, a essência e as regiões essenciais na Mas então não estaria excluída a possibilidade de formalizar con- configuração do mundo mas ela é realizada através de um outro ceito de "sublimação" para todos acontecimentos do mundo. A su- princípio que é tão originariamente próprio ao ente primevo quanto blimação teria então lugar em todo e qualquer processo fundamental, Digitalizado com CamScanner princípio espiritual: através do princípio que determina as imagens pelo qual forças de uma esfera mais baixa do ser seriam criadoras de realidade e as imagens continentes e que nós chamamos te colocadas a serviço de um ser de um devir mais elevadamente "impulso" ou "fantasia impulsiva" criadora de imagens. configurados em meio ao processo do como, por exemplo, forças que perpassam elétrons a serviço da do mais poderoso que há no mundo são centros de força "cegos" ou as forças ativas no interior do mundo inorgânico a serviço da em relação às idéias, às formas e figuras, centros de força caracte- tura da vida. A gênese do homem e a gênese do precisariam ser rísticos do mundo inorgânico como ponto de atuação mais baixo neste caso consideradas como a última ocorrência da sublimo- deste impulso supracitado. Segundo uma concepção que se difunde ção da natureza um movimento que se manifestaria concomitante- cada vez mais intensamente em nossa física teorética atual, estes mente: a) na aplicação cada vez maior das energias externas acolhidas centros parecem não estar submetidos em suas relações mútuas a pelo organismo aos processos mais complicados que conhecemos, nenhum conjunto de leis ônticas, mas apenas a um conjunto de leis processos de excitação do córtex cerebral, e b) na ocorrência contingentes de um gênero estatístico. Somente o homem como ser análoga da sublimação pulsional como conversão da energia pulsio- vivo introduz não a partir de uma necessidade racional, mas a par- nal em atividade "espiritual". tir de uma necessidade biológica, isto é, para poder agir na medida em que seus órgãos e funções sensoriais indicam mais processos Nós encontramos uma vez mais, sob uma forma diversa, a mesma regulares do que os processos irregulares, aquele "conjunto de leis ocorrência da inter-relação entre e vida na história do naturais" que entendimento posteriormente decifra. Não é a lei Certamente não é válida para esta história a afirmação de Hegel de que reside por detrás do caos do acaso e do arbítrio em sentido onto- que ela repousa sobre uma explicação de meras mas muito lógico, mas é caos que se acastela por detrás da lei de um mais a sentença de Marx de que idéias que não têm nenhum interesse mecânico formal! Se a doutrina de que todas as leis naturais só pos- e nenhuma paixão atrás de si e isto significa: poderes que não pro- suem em última instância uma significação estatística, de que todos vêm da esfera pulsional e vital do homem costumam forçosamente se processos naturais (mesmo na esfera micro) já são processos con- "tornar risíveis" na história do mundo. 28 No entanto, a história mos- juntos que resultam da ação recíproca de unidades de força arbitrá- tra em geral uma conquista crescente de autoridade por parte da razão. ria, se impusesse, então toda a nossa imagem conjunta da natureza Esta conquista, porém, só se dá justamente por intermédio e em virtu- experimentaria uma mudança descomunal: as assim chamadas leis de configuração, isto é, leis que prescrevem um certo ritmo temporal 27 Cf. minha exposição no ensaio und Arbeit (Conhecimento e tra- do acontecimento e, independentemente deste ritmo uma vez mais, balho), Seção V. certas figuras estáticas da existência corpórea, se mostrariam como 28 Eu mostrei isto detalhadamente em meu livro Problemen einer Wissenssozio- logie (Problemas de uma sociologia do saber); ver Parte 1.Max Scheler A Posição do Homem no Cosmos 67 de des de tendências uma crescente apropriação de idéias e valores através de tre eles. pulsionais de grupos e da articulação de gran- Como já disse, no âmbito de vigência deste conceito de sublima- Também aqui precisamos adotar uma interesses en- ção, a gênese do homem apresenta a mais elevada sublimação que nos é modesta coisas históricas. da significação do espírito humano e da concepção vontade no muito curso mais das conhecida e, ao mesmo tempo, a mais intrínseca unificação de todas as regiões essenciais. Pois homem reúne em si todos estágios essenciais disse do que "direção" e E isto não mais eu espírito e a vontade do homem nunca podem significar da existência em geral, em particular da vida ao menos segundo as suas regiões essenciais, não segundo a sua casual configuração e ainda não que espírito como tal apresenta idéias para poderes significa pulsionais se- menos segundo a sua distribuição quantitativa. Diante de uma ima- gem de mundo como a que aqui está insinuada, dissipa-se a oposição e que querer proporciona ou priva impulsos pulsionais Digitalizado com CamScanner precisam estar presentes de tais representações que podem que já que durante tantos séculos se mostrou dominante: a oposição entre uma explicação "teleológica" e uma explicação "mecânica" da reali- tizar a realização destas idéias. Portanto, querer espiritual concre- central dade efetiva do mundo. não tem a determinação diretriz originariamente determinante orien- tada para a pulsão mesma, mas para a variação das representações. Este curso de pensamento não pode se interromper nem mesmo Uma luta direta da vontade pura contra poderes pulsionais, isto é, diante do ser supremo, diante do fundamento do mundo. Como um sem que se empreenda uma tal apresentação de idéias ou sem que se ser espiritual, mesmo ser que só é "através de si mesmo" e do qual proporcione ou prive de representações é uma impossibilidade. Onde todo resto depende não pode, uma vez que atributo do "espírito" esta luta é intentada, ela acaba por estimular as pulsões muito mais em lhe é concedido, de maneira alguma possuir um poder ou uma força sua direção unilateral. Com efeito, esta foi a experiência de São Paulo originária. E muito mais aquele outro atributo, a natura naturans no ao dizer que a lei anda à nossa volta como um leão rugindo, a fim de sentido mais elevado possível, "impulso" onipotente, dotado de atacar homem com pecado. (Nos últimos tempos, William James imagens infinitas, que tem de se responsabilizar pela realidade efetiva entre outros fez considerações profundas sobre este ponto.) O que- e pelo modo de ser contingente, jamais determinado unilateralmente rer obtém sempre contrário do que quer, quando, ao invés de buscar através das leis essenciais e das idéias, desta realidade efetiva. Se de- nominarmos deitas atributo puramente espiritual no fundamento um valor mais elevado, cuja realização produz esquecimento do que é mais supremo de todo ser finito, então este atributo, isto que chama- ruim, e de atrair para aí a energia do homem, se dirige para mero mos de "espírito" e de "divin-dade" neste fundamento, carece absolu- combate, para a mera negação de uma pulsão, cuja meta se encontra tamente de toda classe de poder positivo e criador. O pensamento da como "ruim" diante da consciência. Assim, homem também precisa "criação do mundo a partir do nada" desmorona-se diante desta con- aprender a tolerar a si mesmo a tolerar mesmo aquelas inclinações clusão. Se este antagonismo originário do espírito e do impulso for coloca- que reconhece em si como perniciosas e ruins, Ele não pode atacá-las do no "ser que é por si mesmo", então a relação deste ser com mundo em um combate direto, mas precisa aprender a superá-las indireta- precisa ser uma relação diversa. Nós damos a este fato, na medida mente pela colocação em ação de sua energia para tarefas valiosas, em que dizemos: se fundamento das coisas quisesse realizar sua dei- para tarefas que sua consciência reconhece como boas e primorosas e tas, a plenitude ideal e valorativa nela depositada, ele precisaria desi- que lhe são acessíveis. Como Espinosa já expôs de maneira radical- nibir impulso criador de mundo para realizar a si mesmo em meio ao mente profunda, dormita uma grande verdade na doutrina da "não decurso do processo do mundo ele precisaria, por assim dizer, aco- resistência" ao mal. balho). 30 Cf. quanto a isto meu ensaio Erkenntnis und Arbeit (Conhecimento e tra- 29 William James (1842-1910), filósofo pragmatista americano. (N.T.)68 Max Scheler lher processo do mundo para poder realizar a sua essência no e atra- vés do decurso temporal deste processo. E "ser que existe por si" só se tornaria um ser digno de ser denominado uma existência divina se, em meio ao impulso intrínseco à história do mundo, realizasse no ho- mem através do homem a eterna deitas. E este processo em si atem- poral, mas que se apresenta sob forma temporal na vivência finita se aproxima de sua meta, da auto-realização da divindade, na mesma medida em que que denominamos "mundo" se torna corpo perfei- V Digitalizado com CamScanner to da substância eterna. A Unidade Corpo-Alma Somente no movimento desta tempestade violenta que é "mun- do" pode ter lugar uma conciliação das formas de ser e dos valores Nós ascendemos um pouco demais. Retornemos à experiência do com poderes faticamente efetivos, e, inversamente, destes com problema da natureza humana, um problema que reside mais próximo aqueles. Sim, no transcurso deste desenvolvimento pode entrar em de nós. cena uma inversão todo-poderosa da relação originária segundo a qual as formas superiores de ser são as mais fracas, e, as formas mais baixas, Para a modernidade, a teoria clássica do homem encontrou a sua forma mais eficaz na doutrina cartesiana, uma doutrina que só começa- as mais fortes. Dito de outra maneira: a compenetração recíproca entre espírito originariamente impotente e impulso originariamente de- mos propriamente a superar nos últimos tempos. Pelo fato de ter divi- moníaco, isto é, impulso cego ante todas as idéias e valores espiri- dido todas as substâncias em "pensantes" e "extensas" e de ter ensina- tuais: a ideação progressiva e a espiritualização das atribulações que se do que somente homem dentre todos seres é constituído a partir encontram por detrás das imagens das coisas, assim como a simultâ- destas duas substâncias em uma ação recíproca, Descartes introduziu nea dotação de autoridade ao espírito, ou seja, a vivificação do na consciência ocidental todo um exército de equívocos da pior espé- cie acerca da natureza humana. Em razão desta divisão mesma, ele esta é a meta e fim do ser e do acontecimento finitos. O teísmo os precisou acolher absurdo de recusar a todas as plantas e animais a loca falsamente no seu ponto de partida. natureza "psíquica" e explicar a "aparência" do caráter animado de animais e plantas, que todo tempo antes dele tinha tomado por rea- lidade, através da "transposição" antropomórfica de nossos sentimen- tos vitais para interior de imagens externas da natureza orgânica e explicar tudo que não é consciência e pensamento humanos de ma- neira puramente mecânica. A conseqüência não foi apenas con- tra-senso oriundo da exacerbação máxima da "posição peculiar" do homem, sua extração dos braços maternos da natureza através daí, mesmo a categoria fundamental da vida foi simplesmente arrancada do mundo com um único traço. Para Descartes, mundo não consiste senão em pontos "pensantes" e em um mecanismo violento a ser in- vestigado matematicamente Só há uma coisa valiosa na doutrina cartesiana: a nova autonomia e soberania do espírito (aliás, nele reduzi-70 Max Scheler A Posição do Homem no Cosmos 71 do à ratio e esta misturada com a inteligência), reconhecimento da Os fílósofos, médicos, pesquisadores da natureza que se ocu- supremacia do espírito sobre tudo 0 que é orgânico e apenas vivente; uma pam hoje com problema do corpo e da alma convergem cada vez mais supremacia que este não possuía junto à identificação medieval da para a unidade de uma intuição fundamental: é uma e a mesma vida forma corporeitatis com a alma espiritual. Todo resto está envolto no que possui uma configuração formal psíquica em seu ser íntimo, corpó- maior dos equívocos. rea em seu ser para outros. Não se apresenta como argumento con- Uma vez que não há nenhuma substância anímica locativamente tra esta unidade fato de "eu" ser "simples" e uno, enquanto corpo é uma intrincada "república A fisiologia atual desconstruiu determinada, tal como supunha Descartes (glândula pineal), já é ób- completamente a representação de uma república celular, assim vio por esta razão mesma que não há uma posição central nem no cé- Digitalizado com CamScanner como rompeu com a intuição fundamental de que as funções do siste- rebro, nem em qualquer outro lugar no corpo humano, uma posição ma nervoso são determinadas apenas somatoriamente, de que não se para a qual confluíssem todos filamentos nervosos sensíveis e no reuniriam, portanto, em uma totalidade e de que seriam determina- qual se encontrassem todos processos nervosos. Também isto é das a cada vez em seus pontos de partida de maneira estritamente fundamentalmente falso na doutrina de Descartes: a afirmação de cativa e morfológica. Com efeito, tomarmos como Descartes cor- que psíquico consiste apenas na "consciência" e está exclusivamen- po por uma espécie de máquina, e, em verdade, no sentido inflexível te vinculado ao córtex cerebral. Investigações psiquiátricas minucio- da antiga doutrina mecânica da natureza, do tempo de Galileu e New- sas mostraram que as funções psíquicas decisivas para a base do "cará- ton, uma doutrina que foi hoje superada pela física e pela química teo- ter" em particular tudo que diz respeito à vida pulsional e à réticas mesmas e jogada no ferro-velho; se no lado psíquico desconsi- afetividade que reconhecemos com efeito como a forma fundamen- derarmos por outro lado, como Descartes e todos aqueles que segui- tal e originária do psíquico não têm seus processos fisiológicos para- ram, a autonomia e a prioridade (certamente comprovada) do conjun- lelos absolutamente no cérebro, mas na base do encéfalo, por um lado to da vida pulsional e afetiva ante todas as imagens representacionais na massa cinzenta da parte central do terceiro ventrículo, por outro "conscientes"; se limitarmos toda a vida anímica à consciência atual, lado na região central entre dois hemisférios cerebrais (tálamo), que prescindindo das enormes distâncias em que se encontram grupos in- intervém como a própria posição intermediária entre as sensações e a teiros de funções intrínsecas ao acontecimento anímico com relação vida pulsional. Além disto, sistema das glândulas endócrinas (glân- ao eu da consciência, assim como à totalidade uniforme do eu tal dula tireóide, glândula generativa, hipófise, cápsula supra-renal etc.), mo esta se dá em meio aos conhecidos fenômenos de fissuras do eu cujo tipo de função determina a vida pulsional dos homens e a afetivi- consciente (esquizofrenia); se rejeitarmos por fim a repressão afetiva e dade, além do crescimento em altura e em largura, do gigantismo e do não levarmos em conta as amnésias possíveis em todas as fases da vi- ananismo, provavelmente mesmo caracteres étnicos, se mostrou da, então chegaremos com certeza a uma falsa oposição: aqui unidade como verdadeiro intermediário entre organismo como um todo, in- e simplicidade originárias, lá apenas pluralidade de partes corporais clusive sua forma de configuração, e aquela pequena parte atrelada da unidas de maneira secundária e processos fundados nelas; aqui uma vida anímica que denominamos "consciência do Todo substância anímica, lá um número infinitamente grande de substân- corpo e não apenas cérebro tornou-se hoje uma vez mais campo cias corporais singulares. Esta imagem ultracentralista da alma é tão fisiológico paralelo dos acontecimentos Não se pode falar equivocada quanto a imagem ultramecânica do acontecimento fisio- mais absolutamente de modo sério de uma conexão tão extrínseca en- lógico, uma imagem que se tinha na antiga fisiologia. tre uma substância anímica e uma substância corpórea, tal como punha Na mais extrema oposição a todas estas teorias podemos dizer: são em termos ontológicos, processo fisiológico e processo psíquico da vida72 Max Scheler A Posição do Homem no Cosmos 73 fenomenalmente mesmo fenomenalmente, porém, eles são diversos rigorosamente idênticos (como Kant já suspeitara). Eles só são O fosso erigido por Descartes entre corpo e a alma através de seu mente idênticos nas leis estruturais e no ritmo de seu decurso. rigorosa- Os dualismo de extensão e consciência como substâncias fechou-se hoje processos são a-mecânicos, os processos fisiológicos tanto dois quase até a palpabilidade da unidade da vida. Como deduzia toda a psíquicos. Os dois são teleóklinos e conspiram para a quanto Os vida pulsional e afetiva a partir da alma e exigia concomitantemente processos fisiológicos são tanto mais quanto mais baixos (não, uma explicação puramente químico-física dos fenômenos vitais, mes- tanto, quanto mais elevados) são segmentos do sistema nervoso por- mo segundo suas leis estruturais, seria espantoso para Descartes ob- servar que, quando um cachorro vê um pedaço de carne, formam-se nos quais eles se transcorrem; processos psíquicos são tanto mais em função disto determinados sucos gástricos. Por Em primeiro totalizantes e consoantes a fins, quanto mais primitivos eles são. Os lugar, porque ele eliminou no lado anímico impulso pulsional do Digitalizado com CamScanner dois processos não passam de dois lados de um mesmo evento vital su- apetite que, entretanto, é uma condição de possibilidade para a per- pramecânico, considerado segundo sua configuração e segundo a tra- cepção ótica da comida por parte do animal no mesmo sentido em que ma de suas funções. é estímulo externo (estímulo que, aliás, jamais se mostra, como Com isto, que denominamos "fisiológico" e "psicológico" são acredita Descartes, como condição de possibilidade do conteúdo da apenas dois lados da consideração de um e mesmo evento vital. Há uma percepção, mas apenas da percepção-aqui-e-agora deste conteúdo que subsiste como parte da "imagem" corporal de maneira totalmente in- biologia "desde interior" e uma biologia "desde exterior". A biolo- dependente de toda "consciência"); e, em segundo lugar, porque não gia desde exterior progride no conhecimento da estrutura formal do toma no outro lado, no lado fisiológico, a formação do suco gástrico organismo até processos próprios da vida; mas ninguém pode esque- que corresponde ao apetite por um processo vital autêntico, enraizado cer que cada forma vital, desde elementos celulares derradeira- na unidade funcional fisiológica e em sua estrutura, mas sim por um mente diferenciáveis, passando pelas células, pelo tecido, pelos ór- processo que transcorre totalmente independente do sistema nervoso gãos e até todo do organismo, é dinamicamente suportada e nova- central, de maneira puramente química no estômago, logo que pra- mente formada a cada instante pelo processo vital, e que, no desenvol- to de comida chega até aí. Mas que Descartes diria se levássemos ao vimento, são somente as "funções conformadoras", as funções que seu conhecimento a constatação de Heyder de que até mesmo mero precisam ser radicalmente separadas das funções reguladoras do fun- sugestionamento do prato de comida pode provocar mesmo efeito cionamento dos órgãos, que produzem as formas estáticas (anatômi- que a comida real? Vê-se erro erro fundamental de Descartes: cas) da matéria orgânica, contando sempre com a influência da "si- não levar absolutamente em conta sistema pulsional no homem e no tuação" químico-física. Com razão, o anatomista de Heidelberg H. animal (apesar de seu escrito sobre as "paixões"), sistema que perfaz Braus e, no campo da fisiologia, A. V. Tschermak colocaram este pen- justamente a unidade e que forma a mediação entre cada movimento samento no centro de suas pesquisas. Pode-se dizer que esta concep- celé- vital autêntico e conteúdo de Ele e toda a fisiologia bre problema. O antigo "paralelismo psicomecânico" entre "alma da ção se impõe hoje em todas as ciências que têm a ver com o nosso e mais antiga tomam a unidade funcional fisiológica como um aconte- cimento que sempre se inicia a cada vez ponto por ponto no sentido corpo" pertence hoje ao ferro-velho, exatamente como a "doutrina da de um princípio mecânico formal de atuação por proximidade de par- ação recíproca" renovada por Lotze³¹ ou a doutrina escolástica tes morfológicas quaisquer já completamente determinadas e inflexí- veis do corpo orgânico e que é determinado quase que totalmente de alma como forma corporeitatis. maneira mecânica. No entanto, justamente isto essa unidade não é. Segundo seu conceito fundamental, a "função" fisiológica é uma figu- 31 Rudolf Hermann Lotze (1817-1881), filósofo e fisiologista alemão, um dos ra de decurso autônomo e rítmico, uma figura temporal dinâmica, que pais da psicofisiologia. (N.T.)75 74 Max Scheler A Posição do Homem no Cosmos não está por natureza de modo algum fixamente vinculada a um lugar processo vital que tem lugar pela via da consciência e que tem lu- e que pode muito mais destacar, sim, antes de tudo configurar para si pela via da estimulação exterior (P. Schilder) -, de tal modo que amplamente seu campo funcional junto aos substratos celulares gar venhamos a economizar uma estimulação na mesma medida em que presentes. Uma reação orgânica aditiva e rígida tampouco subsiste em empregamos mais a outra. Excitação sexual pode ser provocada tanto meio àquelas funções fisiológicas que não possuem nenhum correlato através da utilização de certos medicamentos quanto através de ima- de consciência; sim, como se mostrou recentemente, ela não subsiste gens e leituras obscenas. Mesmo evento fundamental da vida, nem mesmo para reflexos tão simples quanto reflexo patelar (refle- evento que se chama morte, pode ser provocado tanto por um repen- XO da rótula). O organismo pode alcançar com efeito, fisiologicamen- tino choque afetivo quanto por um tiro de pistola. Todos estes não são te, as mesmas metas em meio à troca ampla das estruturas corporais e senão modos diversos de acesso, que temos em nossa experiência e em Digitalizado com CamScanner dos substratos com quais trabalha; mesmo em meio ao desvio pro- nosso direcionamento, a um e mesmo processo vital onticamente unitá- vocado por uma nova causa. Além disto, procedimento fisiológico é rio. Mesmo as funções psíquicas mais elevadas, como assim chama- fenomenologicamente tão "pleno de sentido" quanto procedimento do pensamento produtor de ligações, não se esquivam de uma parale- psíquico ou decursos conscientes; e estes são com freqüência exa- lização fisiológica rigorosa. E, por fim, segundo nossa doutrina, tam- tamente tão "estúpidos" quanto os decursos orgânicos. Se tomarmos bém os atos espirituais sempre possuem um elemento paralelo fisioló- como exemplo fato de por vezes surgirem duas nódoas ao invés de gico e psíquico, uma vez que retiram da esfera da vida pulsional toda a uma em meio a processos de regeneração do organismo em um ponto energia empregada em atividades e que, sem qualquer "energia", não que foi ferido, não será difícil perceber como a mesma coisa se dá em podem se manifestar para a nossa experiência, nem tampouco para a casos de reprodução de um complexo psíquico. Após ter se dado uma sua própria. O fato de a ciência ocidental do homem como ciência na- parte deste complexo, na cega pulsão para a repetição, por exemplo, tural e como medicina se ocupar antes de tudo com lado corporal do tende-se a produzir sempre uma vez mais cenas análogas (o homem homem; fato de ela ter procurado influenciar processos vitais em constantemente "malogrado", a eterna "vítima" etc.). primeira linha através da via que vem de fora é uma manifestação par- cial do interesse extremamente unilateral que é próprio à técnica oci- Segundo a minha opinião é preciso que se coloque hoje como tema dental em geral. Se processos vitais nos parecem desde fora tanto de investigação justamente a finalidade metódica de provar na medida mais acessíveis do que sobre a via da consciência, então isto não preci- mais ampla possível até que ponto mesmos modos de comporta- sa repousar justamente sobre a relação factual entre psyche e physis, mento do indivíduo podem ser provocados e alterados de fora, por um mas pode estar fundado em um interesse há séculos estabelecido uni- lado por estímulos químico-físicos, por outro lado por uma estimula- lateralmente. A medicina indiana, por exemplo, mostra a posição psí- ção psíquica: sugestionamento, hipnose, todo tipo de psicoterapia, quica oposta, não menos unilateral. transformação da atmosfera social (da qual depende um número mui- to maior de doenças do que se imagina). Evitemos, portanto, ao máxi- A vida psicofísica é una³² e esta unidade é um fato que vale para mo uma falsa exacerbação de explicações exclusivamente fisiológi- todos seres vivos; portanto, também para os homens. Se considerar- cas. De acordo com a nossa experiência atual, uma úlcera estomacal mos assim apenas a vida anímica, não há a menor razão para cindir pode ser tanto condicionada psiquicamente quanto por um homem do animal mais do que gradualmente, para atribuir à sua alma cesso e não apenas doenças nervosas, mas também corpórea uma e espécie particular de proveniência e um destino futuro, patologias orgânicas têm sempre correlatos psíquicos totalmente de- terminados. Também podemos mensurar quantitativamente os dois tipos de nossa influência sobre processo vital propriamente unitário 32 Eu preciso recusar a mim mesmo aqui um aprofundamento filosófico derra- deiro desta teoria.76 Max Scheler A Posição do Homem no Cosmos 77 tal como fazem criacionismo teísta e a doutrina tradicional da psíquico seguinte. Como as excitações no cérebro nunca cessam, nem imortalidade. As leis de Mendel têm tanta consistência para a cons- mesmo no sono, e os elementos estruturais são erigidos a cada instan- trução do caráter psíquico quanto para qualquer traço As te novamente, então temos de esperar também psicologicamente um diversidades presentes entre o homem e o animal no decurso das fun- poderoso transbordamento de fantasia um transbordamento que se- ções psíquicas são, aliás, muito acentuadas. No entanto, muito acen- gue fluindo mesmo sem um estímulo externo, que vem à tona imedia- tuadas, e, em verdade, muito mais acentuadas do que as diferenças tamente em meio à desconstrução da consciência desperta e de sua morfológicas entre animal e homem são as diferenças fisiológicas. Na censura (Freud), e que, além disto, como mostrei em um outro formação da substância nervosa, o homem consome uma parte in- gar,³⁴ tem de ser considerado como totalmente originário e só é cres- Digitalizado com CamScanner comparavelmente maior do material conjunto de assimilação do que centemente limitado pela percepção sensorial, mas não produzido por o animal. Todavia, rendimento deste material para a cunhagem da ela: a corrente anímica segue tão contínua (não interrompida como a forma e da estrutura de unidades anatomicamente visíveis é aí evi- consciência desperta) quanto a corrente fisiológica de excitação, dentemente diminuto: uma parte muito grande deste material, uma através do ritmo dos estados do sono e da vigília. No homem, cére- parte muito grande em comparação com animal, converte-se em bro também parece ser órgão propriamente da morte em uma medi- energia cerebral puramente funcional. Mas ora vejamos: este proces- da mais elevada do que no animal; como era de se esperar, dado que representa correlato fisiológico do mesmo processo no homem que no homem é muito mais intensa a centralização e a vinculação de to- denominamos em linguagem psicológica e "sublimação". dos seus processos vitais na atividade cerebral. De qualquer modo, Enquanto organismo humano não é essencialmente superior ao ani- porém, graças a uma série de investigações, sabemos que cachorro ou cavalo lobotomizados artificialmente ainda podem desempenhar mal em suas funções sensoriomotoras, a distribuição de energia entre seu cérebro e todos outros sistemas orgânicos é completamente uma série de realizações que não entram em questão para homem diversa. O cérebro humano desfruta de uma preferência incondicio- neste estado. Estes fatos e outros similares são explicados de maneira nada na alimentação, em uma medida muito mais extensa do que completamente suficiente pela unidade elevada da vida anímica hu- mana diante da vida anímica animal, sem que se tivesse de supor para cérebro animal ele desfruta desta preferência na medida em que tanto uma substância anímica particular no homem. possui as mais variadas e intensas descargas de energia, assim como uma forma de transcurso de suas excitações que é circunscrita de ma- Neste sentido, não são a corporeidade e a alma ou corpo e a alma neira muito menos fixa em termos puramente locativos (Goldstein). ou o cérebro e a alma no homem que cunham uma oposição ôntica Em meio à inibição genérica da assimilação, cérebro é último a ser entre animal e homem. A oposição que encontramos no homem inibido, e, comparado com outros órgãos, que é menos inibido. e que é vivenciada como tal mesmo subjetivamente é de uma ordem córtex do cérebro humano conserva e concentra toda a ia da muito mais elevada e muito mais profunda: ela é a oposição entre vida do organismo, assim como sua pré-história. Como todo e qual- to e vida. Esta oposição alcança mesmo muito mais profundamente 0 quer decurso particular das excitações no cérebro sempre modifica cerne do fundamento de todas as coisas do que a oposição entre a vida toda a estrutura da excitação, "o mesmo" transcurso nunca pode re- e inorgânico; uma oposição que, recentemente, em particular por at tornar fisiologicamente um estado de fato que corresponde exata- Hans Driesch, foi excessivamente acentuada de uma maneira falsa. mente a uma lei fundamental da causalidade psíquica: à lei de que so- mente toda a corrente de vivências no passado, nunca apenas o even- to singular temporalmente antecedente, explica acontecimento 34 Cf. Erkenntnis und Arbeit (Conhecimento e trabalho), Seção 35 Podemos dizer hoje que o problema da corporeidade e da alma, que se sus- tentou por tantos séculos, perdeu a sua dignidade metafísica. 33 Gregor Mendel (1822-1884), teólogo e botânico austríaco. (N.T.)78 Max Scheler A Posição do Homem no Cosmos Se tomarmos psíquico e o fisiológico como apenas dois lados de Elas aparecem na história universal sob duas formas. A primeira vem um e do mesmo processo vital, aos quais correspondem dois modos de da Antigüidade, das doutrinas de um Demócrito, de um Epicuro, de consideração do mesmo processo, então X que leva a cabo justamen- um Lucrécio Carus, e encontrou a sua representação mais perfeita te estes dois modos de consideração precisa ser superior à oposição en- certamente no l'homme machine de Lamettrie;³⁶ no qual, como tre corpo e alma. Este X não é nada além do espírito que, como vimos, nome do livro já diz, se busca reconduzir as manifestações psíquicas, nunca se torna ele mesmo objetivo, mas a tudo "objetiva". Se a vida é sem cindi-las do âmbito espiritual, a manifestações paralelas das leis um ser não-espacial, mas certamente temporal "o organismo é um físico-químicas vigentes no organismo. A outra forma está estabeleci- processo", observou Jennings de maneira primorosa, e toda forma da da maneira mais acentuada possível no sensualismo inglês: Tra- Digitalizado com CamScanner aparentemente inerte do corpo é suportada e mantida por este pro- tado sobre a natureza humana de Hume apresenta sua cunhagem mais cesso vital a cada instante -, então que denominamos "espírito" não perfeita. No tempo mais recente, Ernst Mach foi 0 que mais se aproxi- é apenas supra-espacial, mas também supratemporal. As intenções do mou de uma tal concepção do homem, na medida em que concebe espírito cortam por assim dizer curso temporal da vida. Apenas indi- eu como um entroncamento, no qual elementos do mundo senso- retamente ato espiritual também é, uma vez que reivindica uma ati- rial se conectam com uma densidade particular. Nas duas doutrinas, vidade, dependente de um processo vital temporal e está como que aqui como lá, princípio formal-mecânico é impelido ao seu ápice acomodado nele. mais extremo, apenas com a diferença de que uma vez os processos de constituição das sensações são compreendidos a partir de processos Por mais essencialmente diversos que sejam "vida" e que transcorrem segundo princípios da mecânica física, enquanto eles são dois princípios que se encontram no homem co-referidos: da outra vez conceitos fundamentais da ciência inorgânica da na- espírito idealiza a vida mas somente a vida consegue colocar espírito em tureza são deduzidos antes de tudo das informações das sensações vi- atividade e realizá-lo desde a sua mais simples mobilização para a ação gentes como dados derradeiros e das leis de associação das representa- até a consecução de uma obra. ções (com a inclusão de todos os conceitos de substância e de causa). No entanto, erro destes dois tipos de teoria mecânica é desconside- Crítica às Doutrinas Naturalistas do Homem rar a essência da vida em sua peculiaridade e legitimidade próprias. e à Doutrina de Ludwig Klages Em contraposição ao tipo formal-mecânico, a segunda subespécie da teoria naturalista, a teoria vitalista, transforma a categoria da "vida" Todo um grupo de concepções filosóficas fundamentais do homem na categoria originária da concepção total do homem, e, com isto, tam- não conseguiu enxergar e desconsiderou mesmo a relação entre espírito bém do espírito superestimando em muito a amplitude do princípio e vida tal como a transcrevemos aqui. vital. O espírito humano deve se deixar compreender em última ins- Caracterizemos inicialmente de maneira sucinta todas aquelas tância a partir da vida pulsional humana como "produto" tardio do teorias do homem que se podem designar como teorias "naturalistas". seu "desenvolvimento". Assim, pragmatismo anglo-americano quer No interior destas teorias podemos diferenciar dois tipos fundamen- (primeiramente Charles Sanders Peirce, e, então, William James, F. tais estabelecidos de modo igualmente unilateral: uma concepção C. Schiller e John Dewey) derivar as formas e leis de pensamento a formal-mecânica do comportamento humano e uma vitalista. partir das respectivas formas de trabalho do homem (homo faber). Às concepções formal-mecânicas da relação entre espírito e vida passa despercebida em primeiro lugar a peculiaridade da categoria da 36 (N.T.) Julien de Lamettrie (1709-1751), médico e filósofo materialista francês. vida. Por isto, elas também acabam por compreender mal espírito.80 Max Scheler A Posição do Homem no Cosmos 81 Assim, a partir da pulsão de poder da vida, Nietzsche quer tornar com- primado da pulsão de validade. A terceira concepção naturalista pos- preensível em seu conceito "Vontade de Poder" as formas de pensa- sível é aquela que toma a vida espiritual como forma de uma libido su- mento como funções necessárias importantes para a vida; Hans Vai- blimada, como a sua dimensão simbólica e como a sua superestrutura hinger seguiu neste ponto de uma maneira um pouco etérea, e, com isto, considera toda a cultura humana e suas realizações Se se considera conjunto das concepções aí pertencentes, então se como produtos de uma libido reprimida e sublimada. Schopenhauer encontram três subtipos desta idéia do homem naturalista-vitalista, já tinha designado amor sexual como "foco da vontade de viver", sempre de acordo com a questão sobre se é sistema das pulsões de ali- sem decair porém completamente no naturalismo sua teoria negati- mentação, sistema das pulsões de reprodução e sistema das pulsões va do homem impedia de uma tal decadência. primeiro Freud, em Digitalizado com CamScanner sexuais ou sistema das pulsões de poder que são tomados como os sis- contrapartida, que ainda não assumia nenhuma pulsão de morte au- temas originários e diretrizes da vida pulsional humana em geral. Vogt tônoma, ampliou esta concepção do homem até as mais extremas esclareceu de maneira bastante rudimentar que homem é que Incomparavelmente aprofundado e elaborado no interior da Precisamos rejeitar completamente todas estas doutrinas natura- doutrina hegeliana da história, Karl Marx, em particular, defendeu a listas, sejam elas do tipo mecânico ou do tipo vitalista. Em verdade, concepção análoga de que homem não faz tanto a história, mas de cabe ao tipo vitalista mérito elevado de ter propiciado reconheci- que é muito mais a história que dá ao homem formas diversas, e, em mento de que que é vigorosamente criador no homem em sentido verdade, em primeiro lugar a história econômica, a história das "rela- próprio não é que denominamos "espírito" (e as formas superiores ções materiais de produção". Segundo esta concepção, a história das da consciência), mas obscuros poderes pulsionais subconscientes produções espirituais na arte, na ciência, na filosofia, no direito etc. da alma, e de que a formação do destino humano tanto dos seres sin- não possui uma lógica interna própria e uma continuidade em geral. gulares quanto dos grupos depende antes de tudo da continuidade Esta continuidade e esta causalidade próprias são transpostas total- destes processos e de seus correlatos simbólicos imagéticos assim mente para interior do decurso das formas econômicas; segundo como mito obscuro não é tanto um produto da história, mas muito Marx, cada forma histórica cunhada tem por conseqüência um mun- mais elemento que determina em grande medida curso da história. do espiritual peculiar, a sua conhecida "superestrutura".39 A concep- Não obstante, todas estas teorias se equivocam, na medida em que ção do homem como um ser primariamente dominado pela pulsão de querem derivar não apenas a atividade, a conquista de força por parte poder e pela pulsão de validade surgiu historicamente com Maquiavel, do espírito e de suas idéias e valores, mas também estas idéias mesmas com Thomas Hobbes e com grandes políticos do Estado absoluto, segundo a consistência significativa de seu conteúdo, e, ainda além, tendo encontrado seu prosseguimento na atualidade em meio à dou- as leis do espírito e seu crescimento interior a partir destes poderes trina de Friedrich Nietzsche sobre poder, e, mais em direção ao lado pulsionais. Se erro do idealismo ocidental na teoria "clássica" foi não médico-psicológico, em meio à doutrina de Alfred Adler acerca do ter se dado conta, com a sua enorme superestimação do espírito, da verdade profunda de Espinosa de que a razão é incapaz de regular as paixões, a não ser que ela mesma por força da "sublimação", tal 37 Cf. quanto a isto meu ensaio Erkenntnis und Arbeit (Conhecimento e tra- como a denominaríamos hoje se torne uma paixão, então assim balho). chamado naturalismo menosprezou por seu lado completamente a 38 Há um certo jogo de palavras nesta expressão, uma vez que a terceira pes- originariedade e a autonomia do espírito. soa do singular dos verbos comer e ser em alemão são homófonas: ist e isst. (N.T.) 39 Cf. minha crítica ao materialismo histórico em Probleme einer Soziologie des 40 Cf. minha crítica à teoria freudiana do amor em meu livro Wesen und For- Wissens (Problemas de uma sociologia do saber). men der Sympathie (Essência e formas da simpatia).83 82 Max Scheler A Posição do Homem no Cosmos Em oposição a todas estas teorias, um escritor mais recente, um es- Neste estado de luta, espírito aparece como princípio cada vez critor impetuoso, mas não sem profundidade, procurou compreender mais profundamente destruidor da vida e da alma no interior da histó- homem (de maneira similar a nós mesmos), 41 segundo as duas cate- ria humana, de modo que essa história vem à tona como uma décaden- gorias irredutíveis "da vida e do espírito" tenho em vista aqui Lud- ce, sim, como uma manifestação de um adoecimento progressivo da wig Klages. Foi ele antes de qualquer outro que fundou filosoficamen- vida, que está representado no homem. Se Klages fosse totalmente te na Alemanha aquele modo de pensar panromântico sobre a essência conseqüente que ele não é, uma vez que faz com que espírito "ir- do homem, que encontramos hoje em tantos pesquisadores das mais rompa" estranhamente depois da gênese do homem em um ponto de- diversas ciências, por exemplo, Edgar Dacqué, Leo Frobenius, G. terminado da história, de modo que à história do homo sapiens já pre- Digitalizado com CamScanner Jung, Hans Prinzhorn, Theodor Lessing,⁴² e, em uma certa direção, cede uma pré-história violenta que é vista com olhos "bachofêni- também em Oswald Spengler. A peculiaridade desta concepção, da -, ele precisaria transpor começo desta "tragédia" da vida qual não podemos nos aproximar agora mais minuciosamente, consis- que, para ele, homem é, para interior da própria gênese do homem. te antes de tudo em dois pontos. O espírito é em verdade assumido O fato de não advir ao espírito enquanto tal em geral nenhuma for- como originário, mas integralmente equiparado, como no caso dos ça e nenhum poder, nenhuma energia originária para a atividade, positivistas e dos pragmatistas, à inteligência e à capacidade de esco- através da qual ele pudesse antes de tudo levar a termo esta "destrui- lha. Klages não reconhece O fato de que espírito não objetiva apenas ção", já nos impede de assumir uma tal oposição dinâmica e hostil en- primariamente, mas também intui idéias e essencialidades sobre a tre a vida e espírito. As manifestações realmente deploráveis de uma base de uma certa desrealização. O espírito, desprovido assim de sua cultura historicamente epigonal, que Klages cita em seus escritos essência e de seu cerne próprios, é em seguida completamente desva- ricos em observações sutis, não devem ser imputadas ao "espírito", lorizado por ele. Segundo Klages, ele acha-se em um estado de guerra mas, em realidade, reduzidas a um processo que denomino "hiper- originário e principial com a vida e com tudo que lhe diz respeito, sublimação" a um estado de tão excessiva cerebralização do homem com toda a vida anímica que possui uma "expressão" pura e simples- que em razão dele e como reação a ele sempre tem lugar uma fuga mente automática não em uma relação de locupletação mútua. conscientemente romântica para interior de um estado (na maioria das vezes supostamente encontrado na história), no qual esta hi- 41 A cisão entre "espírito" e "vida" já se encontra à base de meu primeiro escri- per-sublimação, em particular excesso da atividade intelectual dis- to, Die transzendentale und die psychologische Methode (O método transcen- cursiva, ainda não se deu. O movimento dionisíaco na Grécia já foi um dental e método psicológico 1899), e, para além deste escrito, em minha tal movimento de fuga, assim como foi também a dogmática helenis- Ética. Ela não se confunde com conceitos de Klages, uma vez que Klages es- ta que viu a Grécia clássica com quase mesmos olhos com que o ro- tabelece espírito "inteligência", "eu", "querer" mantismo alemão viu a Idade Média. Klages parece-me não apreciar 42 Th. Lessing dá ao pensamento fundamental de sua teoria no livro Ges- suficientemente o fato de tais imagens da história repousarem da ma- chichte als Sinngebung des Sinnlosen (História como dotação de sentido ao sem- de neira mais ampla possível sobre uma nostalgia de "juventude e primiti- sentido): "Assim cristaliza-se cada vez mais meu pensamento fundamental vidade" nascida da própria hiperintelectualização, mas de nunca con- que mundo do espírito e de sua norma não é senão imprescindível mundo salva- cordarem com a realidade histórica. Ele também desconhece que substitutivo de uma vida adoecida do homem, não é senão o meio para a onde quer o dionisíaco e a forma dionisíaca da existência humana se ção de um gênero que afundou sem deixar rastros depois de um curto período ciência mostrem como originários e ingênuos (naiv) e isto eles nunca são de consciência desperta e que se tornou em si questionável através da de macacos de rapina que se tornaram megalômanos" (comparar 4a edição, 43 Referente a Joham Jakob Bachofen. (N.T.) Leipzig, 1927, 28).84 Max Scheler completamente, uma vez que, nós vimos, tanto a desinibição pulsio- nal expressa quanto a ascese pulsional racional (o animal não conhece um tal estado desinibidor) são introduzidas a partir do espírito es- tado dionisíaco mesmo repousa sobre uma técnica da vontade com- plicada e consciente, ou seja, trabalha com mesmo "espírito" que deve ser posto fora de jogo. Um outro grupo de fenômenos que Klages vê como conseqüência Digitalizado com CamScanner do poder destrutivo do espírito consiste no seguinte: onde quer que VI apareçam atividades espirituais contrapostas a atividades da alma vi- tal que transcorrem de maneira pura e simplesmente automática, es- Homem e 0 Fundamento do Mundo. tas últimas são amplamente perturbadas. Sintomas fundamentais A Origem da Religião e da Metafísica simples de um tal tipo são, por exemplo, a perturbação da batida car- díaca, da respiração e de outras atividades total ou semi-automáticas É tarefa de uma antropologia filosófica mostrar exatamente como através da atenção; além de perturbações que surgem quando a von- emergem a partir da estrutura fundamental do ser homem, tal como tade se dirige diretamente contra impulso pulsional, ao invés de pro- ela foi transcrita de maneira apenas resumida em nossas exposições, porcionar para si sempre novos conteúdos valorativamente acentua- todos os monopólios específicos, as realizações e obras do homem: as- dos. No entanto, que Klages denomina aqui "espírito" não é em rea- sim a linguagem, a voz da consciência, instrumento, as armas, as lidade espírito, mas apenas a "inteligência técnica" complicada (no idéias de certo e errado, estado, governo, as funções representati- sentido de nossa exposição precedente). Justamente ele que é oposi- vas das artes, do mito, da religião, da ciência, da historicidade e da so- tor mais incisivo de toda concepção positivista do homem, de toda ciabilidade. Nós não podemos adentrar aqui minuciosamente neste concepção do homem como homo faber, torna-se neste ponto funda- ponto. O olhar ainda deve ser antes dirigido às do que mental um aluno acrítico da intuição fundamental que ele no resto foi dito para a relação metafísica do homem com fundamento das coisas. combate tão agudamente. Um dos mais belos frutos da construção sucessiva da natureza hu- Espírito e vida estão mutuamente coordenados é um erro fundamen- mana a partir dos estágios subordinados da existência, tal como tal colocá-los em uma hostilidade originária, em um estado de luta mos fornecer aqui, é que se pode mostrar com que necessidade inter- originário. na homem, no mesmo instante em que se homem através da "Quem pensa no que há de mais profundo ama que há de mais vi- consciência do mundo e de si próprio e através da objetivação mesma tal." (Hölderlin) de sua natureza psíquica os traços específicos fundamentais do rito -, também precisou apreender a idéia maximamente formal de um ser supramundano infinito e absoluto. Se homem isto pertence com efeito à sua essência, é 0 ato da própria gênese do homem se desta- cou um dia do conjunto da natureza e tornou-o seu então ele precisa como que se voltar aterrorizado e perguntar: "Onde me en- contro afinal? Qual é em verdade a minha posição?" Ele não pode mais dizer propriamente: "Eu sou uma parte do mundo, sou envolvido

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