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<p>Orgs.: Luciano Coutinho</p><p>Cauê Zaghetto</p><p>Leis Universais:</p><p>da(r) ordem ao caos</p><p>Tanto Mar Editores</p><p>Brasília – DF</p><p>2021</p><p>Tanto Mar Editores, 2021</p><p>Direção Editorial: Luciano Coutinho</p><p>Direção Executiva: Tiago De Carvavalho</p><p>Edição: Luciano Coutinho</p><p>Capa: Alessandro Eloy Braga</p><p>Catalogação na Publicação (CIP)</p><p>Ficha Catalogada Feita pela Tanto Mar Editores</p><p>__________________________________________________</p><p>Coutinho, Luciano; Zaghetto, Cauê, 2021</p><p>Leis Universais: da(r) ordem ao caos – Brasília-DF: Tanto</p><p>Mar Editores, 2021.</p><p>238 p. 14 x 21cm</p><p>ISBN: ????</p><p>1. Filosofia; 2. Ciências Sociais.</p><p>1. Título</p><p>CDD 100. 300</p><p>21-003 CDU 10. 301</p><p>__________________________________________________</p><p>Edição: Julho de 2021</p><p>Tanto Mar Editores</p><p>Brasília – DF</p><p>E-mail: tantomareditores@gmail.com</p><p>Coleção</p><p>Livre-Filosofia</p><p>Sumário</p><p>Prefácio ...................................................................................... 7</p><p>I - As perguntas que nunca serão feitas ..................................... 9</p><p>Cauê Zaghetto</p><p>II - Leis universais: testes da natureza e mente humana .......... 33</p><p>Luciano Coutinho</p><p>III - Ensaio de hermenêtucia tragicômica ............................... 65</p><p>Eryc Leão</p><p>IV - Há uma lei universal nas artes e na literatura: sua</p><p>natureza não-filosófica ........................................................... 111</p><p>Tiago De Carvalho</p><p>V- “Sê plural como o universo”: em defesa do conceito</p><p>de diafonia para uma filosofia simétrica das ciências</p><p>naturais e sociais .................................................................... 151</p><p>Daniel Jatobá</p><p>VI - ???? ................................................................................. 203</p><p>Júlio César</p><p>Sobre os organizadores .......................................................... 237</p><p>7</p><p>Prefácio</p><p>Será feito apenas depois da leitura de todos os</p><p>textos.</p><p>Luciano Coutinho</p><p>Cauê Zaghetto</p><p>8</p><p>As perguntas que nunca serão feitas</p><p>Cauê Zaghetto*</p><p>* É Professor de Física e Tecnologia, Doutor em Engenharia</p><p>Mecatrônica pela Universidade de Brasília (UnB), Mestre em</p><p>Engenharia Mecatrônica pela Universidade de Brasília (UnB) e</p><p>Graduado em Física e em Pedagogia. É também membro fundador</p><p>do Bit-Group – Grupo de Pesquisa em Sistemas Biométricos da</p><p>Universidade de Brasília.</p><p>11</p><p>Introdução – A arte de perguntar é a arte superior do</p><p>pensar</p><p>Por diversas vezes nos perguntamos: será o homem</p><p>capaz de responder esta ou aquela pergunta? Para</p><p>exemplificar, pensemos nas seguintes questões: Qual é a</p><p>origem do Universo? Há vida em outros planetas?</p><p>Seremos capazes de nos teletransportarmos? É possível</p><p>voltar no tempo? O homem tem alma?</p><p>São inúmeras as perguntas intrigantes e instigantes</p><p>que nos fazemos constantemente, mas precisamos</p><p>considerar que há, no entanto, uma questão ainda mais</p><p>fundamental que se apresenta: estamos fazendo as</p><p>perguntas certas? E podemos ir além: somos capazes de</p><p>fazer as perguntas certas?</p><p>Neste texto, pretendo apresentar a ideia de que a</p><p>capacidade do homem em fazer perguntas é o exercício-</p><p>maior da sua cognição. Em conjunto com essa ideia,</p><p>apresento quatro postulados complementares: I) todas as</p><p>perguntas que o homem é capaz de fazer é também capaz</p><p>de responder; II) por uma limitação do conhecimento</p><p>humano atual e também de linguagem1, é possível que o</p><p>1 Linguagem aqui deve ser entendida como toda e qualquer forma</p><p>utilizada para manifestar o pensamento de qualquer entidade</p><p>inteligente (humana ou não humana). A Linguagem é utilizada</p><p>essencialmente para sistematizar e comunicar aquilo que se pensa.</p><p>12</p><p>homem não seja capaz de responder, provisoriamente,</p><p>perguntas que é capaz de fazer; III) existem perguntas</p><p>absurdas que podem ser feitas, mas não terão resposta</p><p>coerentes; e IV) o homem, por uma limitação cognitiva</p><p>congênita, não é capaz de fazer todas as perguntas</p><p>possíveis sobre o Universo2.</p><p>Nas próximas seções do texto pretendo esmiuçar os</p><p>argumentos que me levaram a propor as cinco ideias</p><p>(ideia principal e os quatro postulados) recém</p><p>apresentadas. Mas preciso convidar antecipadamente o</p><p>leitor para uma provocação que deve ficar ecoando</p><p>permanentemente em sua cabeça caso queira viajar as</p><p>próximas seções comigo: será que já fizemos alguma</p><p>pergunta legítima? Responder é fácil, difícil é fazer uma</p><p>pergunta sequer.</p><p>1 - As perguntas que somos capazes de fazer</p><p>Antes de tratar diretamente sobre o assunto desta</p><p>seção, preciso destacar um ponto importante. Não</p><p>Exemplo de linguagens: palavras, gestos e símbolos que podem ou</p><p>não estar conectados entre si.</p><p>2 Aqui a palavra Universo está sendo empregada em um sentido</p><p>amplo. Deve-se entender por Universo tudo aquilo que existe,</p><p>mesmo que não percebido pelo homem.</p><p>13</p><p>pretendo que o ensaio apresentado tenha pretensões à</p><p>verdade. Os pensamentos e ideias levantados devem ser</p><p>entendidos pelo leitor crítico, em última análise, como</p><p>devaneios do autor – ainda que eu acredite que as</p><p>melhores ideias surjam de devaneios. Adianto também</p><p>que não irei buscar citações ou autores que corroborem</p><p>as ideias apresentadas. E, naturalmente, me desculpo</p><p>caso apresente uma ideia já pensada por outrem. Não</p><p>faço por mal! Ou faço, porque pensei igual, ou porque</p><p>desconheço o original.</p><p>Agora voltemos ao nosso assunto principal. Afinal,</p><p>quais são as perguntas que somos capazes de fazer?</p><p>Percebam que isso é uma pergunta e, se somos capazes</p><p>de fazê-la, segundo o postulado complementar “I”3,</p><p>podemos respondê-la ainda que, segundo o postulado</p><p>“II”, seja possível que não consigamos oferecer uma</p><p>resposta coerente. Precisamos ainda considerar o</p><p>postulado III. Talvez essa pergunta nem faça sentido e</p><p>estejamos todos perdendo tempo. De toda forma, para</p><p>que o meu texto não se encerre aqui, vou considerar que</p><p>a pergunta levantada faz sentido e que sou capaz de</p><p>respondê-la, mesmo que de forma parcial.</p><p>3 Os Postulados de I a IV são apresentados no final da introdução e</p><p>serão referenciados em alguns pontos do texto.</p><p>14</p><p>Para iniciar a reflexão, precisamos fazer uma</p><p>consideração importante: o homem possui um limite</p><p>cognitivo definido, mesmo que desconhecido pela</p><p>ciência. Assim como um cachorro nunca irá se perguntar</p><p>qual é a raiz cúbica de vinte sete, ou como uma iguana</p><p>jamais iria se perguntar qual é o melhor projeto de</p><p>governo para o seu país, o homem também jamais irá</p><p>perguntar uma infinidade de coisas (possivelmente</p><p>importantes). O problema é que como o homem possui</p><p>um material cognitivo com inteligência superior4 aos</p><p>demais seres vivos, parece tão óbvio para si que</p><p>cachorros, iguanas, formigas e qualquer outro ser vivo</p><p>tenham limitações cognitivas congênitas que restringem</p><p>sua capacidade de observação do Mundo5 e, como</p><p>consequência, as perguntas que são capazes de fazer.</p><p>Ocorre que, por analogia simples, parece óbvio que</p><p>o homem, como ser vivo limitado que é, também possua</p><p>capacidade cognitiva finita e, portanto, não seja capaz de</p><p>perguntar todas as perguntas. Precisa, então, o homem</p><p>admitir – embora seja um exercício não habitual e árduo</p><p>de humildade – que é limitado e que não apenas</p><p>desconhece uma parcela significativa do Universo, mas</p><p>4 Superior no sentido de exercer capacidade de abstração e reflexão.</p><p>Não pretendo entrar em detalhes.</p><p>5 Utilizado como sinônimo de Universo pelo autor.</p><p>15</p><p>que sempre irá desconhecer uma parcela significativa</p><p>deste Universo, visto que sequer tem condições de</p><p>elaborar perguntas sobre o “eterno</p><p>(2009). Para o contexto da dialética na história</p><p>da ciência moderna em geral, de recorrência intercalada de períodos</p><p>de estabilidade e crise, bem como do caráter central ou periférico de</p><p>determinados problemas sociais em diferentes períodos</p><p>paradigmáticos, veja-se Kuhn (2013): <<(…) uma comunidade</p><p>científica, ao adquirir um paradigma, adquire igualmente um critério</p><p>para a escolha de problemas que, enquanto o paradigma for aceito</p><p>podem ser considerados como dotados de uma solução possível.</p><p>Numa larga medida, esses são os únicos problemas que a</p><p>comunidade admitirá como científicos ou encorajará seus membros a</p><p>resolver. Outros problemas, mesmo muitos dos que eram</p><p>anteriormente aceitos, passam a ser rejeitados como metafísicos ou</p><p>como parte de outra disciplina. Podem ainda ser rejeitados como</p><p>demasiado problemáticos para merecerem o dispêndio de tempo.</p><p>Assim, um paradigma pode até mesmo afastar uma comunidade</p><p>daqueles problemas sociais relevantes que não são redutíveis à forma</p><p>74</p><p>74</p><p>4 - Kharma brotoisin</p><p>Em uma das mais belas cenas olímpicas da Ilíada,</p><p>em que a deusa Hera seduz Zeus e o põe para dormir com</p><p>a ajuda de Afrodite e do deus Sono (hipnos), Zeus diz</p><p>jamais ter sido arrebatado por tamanho desejo, por deusa</p><p>ou mortal, e em meio à enumeração de casos, cita a</p><p>relação com Sêmele e o rebento gerado dela: “Sêmele</p><p>deu à luz Dioniso, alegria dos mortais”. Epítetos</p><p>geralmente apontam de forma mais direta para um</p><p>de quebra-cabeças, pois não podem ser enunciados nos termos</p><p>compatíveis com os instrumentos e conceitos proporcionados pelo</p><p>paradigma.>> (Kuhn, 2013, p.106). Eutychía/Dystychía (Gr.:</p><p>εὐτυχία/δυστυχία): Ressalte-se a nuance difícil de traduzir desse par,</p><p>ligada ao paralelismo das formas de afirmação (eu, εὐ) e negação</p><p>(dys, δυς). Ligados a -tychía (-τυχία), “εὐ” e “δυς” afirmam e negam</p><p>a tyché (τύχή), grego para “sorte, destino; acaso; acontecimento</p><p>governado pelo destino, podendo ser satisfatório ou desfavorável.”</p><p>Está, portanto, implícito na formação da palavra, pelo acento dado</p><p>pela ideia de tyché, que o sucesso ou insucesso não é de domínio</p><p>individual, e poderiam ser melhor traduzidos pelas ideias de</p><p>“tentativa bem sucedida” e “tentativa mal sucedida”, ou pela</p><p>metáfora do arqueiro em “Tentar acertar o alvo e acertar” e “tentar</p><p>acertar o alvo e errar”. Veja-se a esse respeito, Fialho (2014). Cf.</p><p>também Aristóteles (Poética, 1453a13-16) acerca da definição da</p><p>mímesis trágica: <<[…] e que a mudança se verifique, não da</p><p>infelicidade (dystychía) para a ventura (eutychía), mas, pelo</p><p>contrário, da prosperidade (eutychía) para a desgraça (dystychía), e</p><p>não por efeito da perversidade, mas de um erro (hamartia) grave >></p><p>Aristóteles (2011). Do original: <<[…] καὶ µεταβάλλειν οὐκ εἰς</p><p>εὐτυχίαν ἐκ δυστυχίας ἀλλὰ τοὐναντίον ἐξ εὐτυχίας εἰς δυστυχίαν µὴ</p><p>διὰ µοχθηρίαν ἀλλὰ δι’ ἁµαρτίαν µεγάλην>>.</p><p>75</p><p>75</p><p>aspecto do deus, e é digno de nota que a descrição de</p><p>Dioniso seja feita em referência aos mortais, onde o deus,</p><p>por arrebatamento, se manifesta. O epíteto utilizado para</p><p>Dioniso é “alegria dos mortais”, em grego</p><p>“kharma brotoisin”. O termo para alegria, kharma, vem</p><p>do verbo khairo (χαίρω), usado pelos gregos como</p><p>primeiro cumprimento, como “oi”. Assim se</p><p>cumprimentavam os gregos: diziam literalmente “Alegra-</p><p>te!”. Portanto, “Dioniso, alegria dos mortais” é tanto</p><p>expressão daquilo que os humanos desejam uns aos</p><p>outros já no primeiro encontro, como também a fonte</p><p>do espírito humano considerado como divino, o da</p><p>alegria, da embriaguês, do entusiasmo excessivo, que</p><p>provoca tanto a ruína de quem é excessivamente tomado</p><p>de alegria, quanto o riso extremo de quem fica alegre</p><p>acima da medida, alegre em uma medida divina. Mas</p><p>como quem fica alegre não são humanos mortais, e sim o</p><p>deus que toma cada mortal pelo entusiasmo, os gregos</p><p>resolvem o problema da impiedade por esse tipo</p><p>de hybris, e se protegem da inveja e represália implacável</p><p>dos deuses, ritualizando o tipo de excesso permitido e</p><p>repetido e tão característico do motivo de querer estar</p><p>vivo, que é a busca por momentos de excesso de alegria</p><p>que encham de ânimo cada um ao longo da batalha da</p><p>vida. Daí ser Dioniso um deus tão importante para a</p><p>76</p><p>76</p><p>cultura grega, pois sua participação na vida dos gregos</p><p>pelo entusiasmo ritualiza um tipo de hybris que não</p><p>parece ser inapropriada aos humanos, dado serem os</p><p>melhores e mais memoráveis momentos da vida dos</p><p>mortais esses momentos de banquete entre amigos,</p><p>temperados sempre com o vinho, com o entusiasmo</p><p>Dionisíaco, a hybris aceitável de uma alegria aumentada</p><p>para tornar suportável a vida em suas várias dystychiai e</p><p>hamartiai. Daí ser ele um deus tão humano e tão querido,</p><p>a ponto de merecer do poeta, não um epíteto que o</p><p>caracterize em sua existência apartada dos homens, mas</p><p>como um elemento que se confunde com os objetivos de</p><p>vida feliz dos próprios mortais: kharma brotoisin6!</p><p>5 - Consciência trágica em Homero</p><p>A pesquisa por “θυµ” em Homero, tema de thymos</p><p>(θυµός) - ânimo, espírito, força vital - gera 868</p><p>6 Cena homérica: Ilíada, 14.139-378. Citação: 14.325. Trad. de</p><p>Frederico Lourenço, Homero (2013). Do original:</p><p>Διώνυσον Σεµέλη τέκε χάρµα βροτοῖσιν / Dionyson Semele teke</p><p>kharma brotoisin. Hybris: Na cosmovisão tragicômica, efeito em</p><p>excesso de um tipo característico no palco do mundo ou de um afeto</p><p>humano específico. Contrapõe-se ao ideal de harmonia, do equilíbrio</p><p>temperado de afetos, sintetizados pelo famoso dito délfico “meden</p><p>agan”, nada em demasia (µηδὲν ἄγαν).</p><p>77</p><p>77</p><p>ocorrências! É notória ao longo da leitura da Ilíada, por</p><p>exemplo, a descrição constante da dinâmica do fluxo de</p><p>ânimo entre os contendores - insuflados por grandes</p><p>guerreiros ou por deuses, e diminuído - individual ou</p><p>coletivamente - nas quedas, principalmente de grandes</p><p>guerreiros. A morte é descrita como a perda de ânimo:</p><p>“(…) ele [Diores, filho de Amarinceu] caiu para trás no</p><p>pó, enquanto estendia ambas as mãos aos queridos</p><p>companheiros. A vida saía-lhe pela boca”. Tanto palavras</p><p>quanto ações são portadoras de ânimo, e podem tanto</p><p>insuflar ânimo nos outros, quanto fazer os pares</p><p>perderem o ânimo. A perda de ânimo é acompanhada do</p><p>temor, pelo medo de perder a vida, de perder todo o</p><p>ânimo. A Ilíada inteira, em sua descrição centrada na</p><p>narrativa da Ira de Aquiles, é perpassada por uma grande</p><p>reflexão sobre os fluxos das perdas e ganhos de ânimo na</p><p>vida. A morte de cada guerreiro na Ilíada é descrita para</p><p>ser sentida de modo trágico, para que seja percebida a</p><p>perda de ânimo dos companheiros de batalha,</p><p>antecipando o terror daqueles que se mantêm dentro dos</p><p>muros da cidade, que ao saberem posteriormente da</p><p>queda dos seus, também terão seus ânimos abatidos -</p><p>parentes que sentirão sua falta depois, e que no momento,</p><p>na ignorância, seguem suas vidas nas fortificações, com</p><p>ânimo em suspenso, temendo pelos ânimos de seus</p><p>78</p><p>78</p><p>parentes, mas sempre com esperança de que ainda os</p><p>verão no retorno da batalha. A Ilíada é um grande estudo</p><p>do fluxo da vida, da migração do ânimo entre</p><p>contendores, onde a morte de uns insufla o ânimo em um</p><p>dos lados, e retira o ânimo do outro, pelo temor</p><p>provocado pela compaixão dos pares, daqueles que</p><p>pertencem ao mesmo lado, à mesma polis. A</p><p>representação homérica, sempre personalizada, cuida o</p><p>tempo todo de evitar o tratamento objetificado das baixas</p><p>humanas, afastando o tempo todo o risco de</p><p>destragicização da mimesis de personagens trágicos</p><p>humanos no campo de batalha7.</p><p>No mundo homérico, é evidente a aporia da vida</p><p>narcísica, vivida na hybris de si mesmo. A ira de Aquiles,</p><p>7 Cena homérica: Ilíada, 4.522-523. Homero (2013). Mímesis (gr.</p><p>µίµησις): “imitação”, “representação artística ou literária”, “retrato”,</p><p>mas também, em sentido hermenêutico</p><p>e científico: “construção de</p><p>um modelo que sirva de “lente” para enxergar melhor ou ver com</p><p>mais nitidez algum aspecto da natureza que se pretende representar,</p><p>ler ou transformar.” Na visão de Aristóteles, <<A tragédia é a</p><p>imitação de uma ação elevada e completa, dotada de extensão, numa</p><p>linguagem embelezada por formas diferentes em cada uma das suas</p><p>partes, que se serve da ação e não da narração e que, por meio da</p><p>compaixão e do temor, provoca a purificação de tais paixões.>></p><p>Poética, 1449b24-28. Do original: <<ἔστιν οὖν τραγῳδία µίµησις</p><p>πράξεως σπουδαίας καὶ τελείας µέγεθος ἐχούσης, ἡδυσµένῳ λόγῳ</p><p>χωρὶς ἑκάστῳ τῶν εἰδῶν ἐν τοῖς µορίοις, δρώντων καὶ οὐ δι’</p><p>ἀπαγγελίας, δι’ ἐλέου καὶ φόβου περαίνουσα τὴν τῶν τοιούτων</p><p>παθηµάτων κάθαρσιν.>>.</p><p>79</p><p>79</p><p>embora correta e microcosmicamente bem</p><p>fundamentada, é causa de enormes sofrimentos para o</p><p>grupo, e para o próprio Aquiles. Em Homero, a</p><p>tragicidade está na morte sem honra, no apoderamento do</p><p>espírito pelo medo, no constante risco de queda de um</p><p>grande guerreiro do lado amigo, e em maior escala, na</p><p>própria contradição estrutural do odioso contexto de</p><p>guerra, que coloca humanos contra humanos. Nesse</p><p>mundo, de enorme grau de consciência trágica, algumas</p><p>coisas são certas: o jantar no Hades; a certeza de que não</p><p>há esperança de resgate por grandes salvadores que</p><p>venham fazer o trabalho dos guerreiros; a possibilidade</p><p>sempre presente da glória e o caráter coletivo do sucesso</p><p>e da alegria.</p><p>Na Ilíada, tanto os guerreiros que morrem quanto</p><p>os que matam, possuem nome, são filhos de alguém com</p><p>nome e características, e em alguns casos, tem história</p><p>prévia ligada a outros humanos e seres divinos, que irão</p><p>se alegrar no dia ou noite seguinte com o seu retorno para</p><p>casa, ou chorar a sua morte. O sangue, a descrição do</p><p>movimento de lanças pelo ar, de armaduras se rompendo,</p><p>de ossos e dentes sendo quebrados, de quedas de corpos</p><p>nos campos de batalha, de barulhos ensurdecedores, do</p><p>medo, da coragem, da perda de força vital, tudo isso é</p><p>descrito a respeito de humanos dignos de nossa empatia</p><p>80</p><p>80</p><p>pela descrição dos mesmos enquanto pais, filhos,</p><p>amantes, destacados artífices, causadores indiretos de</p><p>nossa felicidade, tal como cada um de nós em relação a</p><p>cada um dos outros. A dor deles no campo de batalha é a</p><p>nossa dor enquanto humanos coletivos, cuja felicidade é</p><p>aumentada pela existência de outros, e a dor intensificada</p><p>pela morte deles, na proporção inversa da proximidade</p><p>com relação a nós. Na Ilíada, Leuco, Dares, Ideu, Festo,</p><p>Eurípilo são menos conhecidos do que Heitor,</p><p>Agamemnon, Ulisses e Aquiles, mas não são menos</p><p>humanos do que esses, desprovidos de parcelas de apreço</p><p>e amor parental. Há que se perguntar se haveria ali</p><p>qualquer conceito aparentado ao nosso de “criminoso”. A</p><p>humanização de cada partícipe da guerra tragiciza a</p><p>narrativa, desmaniqueíza e torna dolorosa cada morte,</p><p>permitindo que salte à vista do leitor a dor da barbárie,</p><p>tanto para vencedores, quanto para vencidos. E toda essa</p><p>paideia é assim por uma sutileza que nos escapa, nós os</p><p>contemporâneos, maniqueizados por nossas</p><p>narrativas infantis, televisivas, das redes sociais, do</p><p>jornalismo sensacionalista, de heróis destragicizados,</p><p>apresentados quase como objetos matáveis, seres</p><p>malignos e desdivinizados, educando gerações em medo,</p><p>intolerância e barbárie, que, deseducada da humanidade</p><p>da narrativas de humanos, tolera a morte desses que</p><p>81</p><p>81</p><p>aprende a ver como não-humanos, que não hospedaria</p><p>em sua própria casa, junto dos seus8.</p><p>6 - Cultura trágica e sobrevivência</p><p>Em contexto de consciência trágica, não há pecado,</p><p>mas hamartia, erro de agentes que tentam acertar! A</p><p>existência é tragicômica por excelência, cheia</p><p>de hamartiai. Os acertos são sempre tentativas que deram</p><p>certo mas que poderiam ter dado errado. A história</p><p>destragicizada, escrita a posteriori pelos vencedores,</p><p>fugindo sempre ao horror do mundo que as migalhas de</p><p>consciência trágica volta e meia trazem a tona, esconde o</p><p>aspecto trágico das ruínas do tempo, apoiando-se em</p><p>sínteses divinizadoras de heróis, pouco ou raramente</p><p>considerados como humanos que poderiam ter errado o</p><p>alvo. Essa miopia estrutural destragicizante parece ter</p><p>origem inclusive na estrutura da mente humana, em seu</p><p>registro seletivo dos dados naturais da luta pela</p><p>sobrevivência e da previsão mais verossímil do futuro.</p><p>Contudo, é importante não esquecer que as mentes</p><p>podem ser todas programadas em larga escala,</p><p>8 Sobre a relação entre violência e sensacionalismo no jornalismo</p><p>brasileiro, veja-se Angrimani (1995).</p><p>82</p><p>82</p><p>culturalmente, e a hamartia também acompanha</p><p>essas megaprogramações, por mais que elas se repliquem</p><p>teimosamente no tempo. A existência do programa</p><p>cultural “consciência trágica” enquanto consciência da</p><p>possibilidade de errar é um mecanismo também</p><p>importante na luta pela sobrevivência, pois permite não</p><p>só calcular o futuro, como manter a mente preparada para</p><p>lidar com os abismos, as hamartiai, os erros de cálculo,</p><p>totalmente imprevistos, que podem derrubar as mentes</p><p>destreinadas em tragicidade9.</p><p>7 - Tragicidade e humanização universal</p><p>De certo modo, intelectuais públicos que se</p><p>posicionam em períodos difíceis, todos eles, exilados,</p><p>cassados ou mortos, constituem figuras modernas de</p><p>9 Acerca do viés de confirmação - registro seletivo (e</p><p>destragicizante) na memória e nos processos reflexivos em geral</p><p>apenas do que confirma a imagem épica de si - veja-se Kahneman</p><p>(2012). Para uma abordagem bastante original e erudita das</p><p>programações mentais em larga escala - tema da ordem do dia na</p><p>atual era das redes sociais - veja-se o recente original trabalho do</p><p>neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis intitulado “O verdadeiro</p><p>criador de tudo” (Nicolellis, 2020), mais especificamente o capítulo</p><p>11: “como abstrações mentais, vírus informacionais e</p><p>hiperconcetividade criam brainets letais, escolas de pensamento e</p><p>Zeitgeist”.</p><p>83</p><p>83</p><p>heróis trágicos. Lideranças políticas presas, pessoas</p><p>desumanizadas de todos os cantos do mundo, mortas,</p><p>maltratadas, desassistidas, deixadas viver como sub-</p><p>humanas, são todas figuras cuja tragédia não é vista</p><p>como tal quando não há narrativas tragicizadas de suas</p><p>existências. Somente a desventura de humanos pode ser</p><p>lida como trágica. Daí representarem figuras de grandes</p><p>famílias na tragédia grega, como Édipo e Agamemnon,</p><p>pois os percebidos como humanos por todos são os que</p><p>podem ter sua desventura considerada trágica. A grande</p><p>questão é: como levar a cabo um projeto de humanização</p><p>capaz de humanizar os humanos todos? Essa é uma</p><p>questão central destes tempos, de radicalização da</p><p>desumanização em larga escala.</p><p>É possível ler esse projeto de humanização</p><p>universal como uma política de amadurecimento político-</p><p>psicológico típico da paideia que faz crianças se</p><p>tornarem adultas, capazes de negociar, fazer acordos e</p><p>criar pontes para evitar conflitos. Algum tipo de paideia</p><p>tragicômica parece ser ingrediente fundamental para</p><p>estágios mais avançados, de maior acabamento civil na</p><p>formação de adultos. Do contrário, a atitude de</p><p>“terceirização de problemas” parece ser a patologia</p><p>infantil típica de adultos de consciência destragicizada,</p><p>destreinados em encarar abismos, que enxergam todos os</p><p>84</p><p>84</p><p>erros sempre de forma moral, demonizante, em termos de</p><p>pecattum e não hamartia.</p><p>Tristemente, em nossa era de perda generalizada de</p><p>civilidade, em todo canto abundam frases de mentes</p><p>incapazes de lidar com fracassos estruturais, mentes</p><p>incapazes de entender a existência enquanto existência</p><p>trágica, e constantemente buscando redenção, “salvação</p><p>para alguns, pelo menos”, ou precipitadamente</p><p>concluindo ter já chegado ao “final do poço” quanto à</p><p>própria vida, ou ter “feito tudo que pode”, “gastado toda</p><p>a energia”, iludindo-se quanto à existência de um</p><p>“final</p><p>do poço”, uma falsa ideia de que “pior do que está não</p><p>pode ficar”, utilizando vocábulos como “otimismo”,</p><p>“pessimismo”, “esperança”, “cansaço”, fazendo</p><p>diagnósticos moralizantes que ilustram desencanto com o</p><p>mundo e dificuldade de encará-lo tragicamente. Nesse</p><p>estágio, vê-se em toda parte consciências destragicizadas</p><p>afundarem em si mesmas, adotando atitudes</p><p>hedonístas e narcisistas, defensoras do “caos pelo caos”,</p><p>ou do “tudo ou nada”, típica de doentes que esperam pela</p><p>cura social redentora vinda de algum grande salvador,</p><p>das eleições, do investidor externo, de algo “curto-</p><p>prazista”.</p><p>Entre os gregos, a dificuldade de encarar abismos</p><p>era ensinada pela catarse do medo nos festivais públicos</p><p>85</p><p>85</p><p>dedicados à Dioniso. Saber agir em tempos de abismo,</p><p>envolve ser capaz de compreensão trágica da existência,</p><p>de fazer o que precisa ser feito, de agir em conjunto, sem</p><p>otimismo ou pessimismo, mas com objetivo de tentar</p><p>acertar e saber que pode tanto errar, quanto acertar! Agir</p><p>nesses contextos envolve o tipo de coragem do guerreiro</p><p>que se lança com ânimo para a morte certa, mas que</p><p>ainda assim o faz por saber que não está lutando sozinho,</p><p>nem apenas por si mesmo, mas sempre ao lado de iguais,</p><p>em nome de não nascidos, que lembrarão com orgulho</p><p>dos feitos do grupo. Esse espírito lembra o tipo de atitude</p><p>típica da frieza de cientistas, que calculam, executam,</p><p>testam, aprendem, erram e tentam de novo. Mesmo</p><p>sabendo que podem passar a vida inteira fazendo isso,</p><p>sabem que se puderem aprender um pouco mais sobre o</p><p>que estudam, sobre aquilo sobre o que incide suas ações,</p><p>a geração seguinte dará novos passos, porque a redenção</p><p>ou a saída de grandes abismos sociais não se dá de modo</p><p>automático, fácil e imediato, e nem toda ação de grupos</p><p>humanos gera frutos para o grupo guerreiro. A colheita</p><p>dos frutos de algumas ações é feita apenas por gerações</p><p>futuras que não participaram da luta. Essas ações se dão</p><p>no tecido de uma existência tragicômica real, de</p><p>múltiplas variáveis, de compreensão inalcançável,</p><p>individual e coletivamente, mas que mesmo assim, nos</p><p>86</p><p>86</p><p>clama a agir, mesmo que seja para logo adiante sermos</p><p>desmembrados por alguma esfinge cantante, mesmo que</p><p>seja para despencar ao final da caminhada em algum</p><p>abismo.</p><p>Ao invés do agir moralizante e individual, qual</p><p>bebês que precisam dos cuidados das mães, ou que</p><p>cuidam como se cuidassem de bebês, o agir tragicômico</p><p>e coletivo encara abismos, age, ri de si mesmo, e segue</p><p>sempre adiante, calculando, errando, aconselhando-</p><p>se, recalculando, sempre beirando abismos, contendo-se</p><p>para não pular nem empurrar ninguém, seguindo em</p><p>frente, e compreendendo realisticamente a redenção que</p><p>não chega, o salvador que não estende a mão, com a</p><p>coragem de um adulto e não com as pueris esperanças de</p><p>modernas crianças, frágeis filhas de lares amorosos.</p><p>8 - Miséria do horror ao trágico</p><p>Abundam em nosso cosmos, nas destragicizadas</p><p>cosmovisões disponíveis, uma ética bipartida, de duplo</p><p>destino, paradisíaco ou infernal, onde todos elaboram-se</p><p>exteriormente a partir de imagens ideais de si, querendo</p><p>atualizar o heroísmo épico de suas próprias odisseias,</p><p>querendo acertar, mesmo que pelo auto-sacrifício, na</p><p>recorrência a auto-ilusões várias para lidar com as</p><p>87</p><p>87</p><p>inextirpáveis contradições que descolam o tempo todo o</p><p>real contraditório do ideal sintético.</p><p>O cânone ou o que é majoritário em nossas</p><p>abstrações, vivências e criações (abstratas ou práticas)</p><p>busca extirpar a contradição em tipos variados de síntese.</p><p>Domina o horror ao movimento. Onde quer que haja</p><p>movimento, mudança, devires corporais, há tentativas</p><p>paralelas de controle, freio, conservação ou “revolução”</p><p>em direção a algo pré-definido. Lançar-se ao</p><p>desconhecido, mover-se, inovar, são estados a muito</p><p>desconhecidos da cultura política, ética e estética</p><p>dominantes. As vontades de síntese, de soluções</p><p>definitivas, afastam e tornam distante da consciência</p><p>coletiva a vivência radical da contradição inextirpável da</p><p>existência, do ser, da natureza, e criam esse fenômeno de</p><p>auto-ilusão que demoniza a própria estrutura que</p><p>pretende salvar: o cosmos, seus microcosmos, e tudo o</p><p>que brota daí. Tudo isso em nome do éter, da matéria</p><p>sublimada em poderosas visões prévias, divinizadas em</p><p>sua estrutura imaterial não contraditória. Em</p><p>paralelo, invisíveis às abstrações canônicas, as chances</p><p>de reencontro com o tragicômico permanecem à</p><p>disposição, pouco visitadas mas sempre aí, presentes, nas</p><p>elaborações não canônicas, no povo, nas lutas e nas</p><p>vivências reais, honestas em relação ao concreto, ao</p><p>88</p><p>88</p><p>corpo e suas ricas contradições, corpos que ora aprendem</p><p>a rir de si mesmos para viver, ora sucumbem qual heróis</p><p>trágicos.</p><p>9 - Breve ensaio de microdinâmica política</p><p>A definição sintética e acabada de si na forma de</p><p>algum tipo de mito pronto é um dos exemplos de fixação</p><p>de um ideal de si por meio da ocultação de aspectos</p><p>contraditórios, frequentemente acompanhada de algum</p><p>grau de anestesiamento da reflexão franca, dos debates</p><p>honestos e da diminuição do nível de compreensão de</p><p>seres diversos. O acirramento do cenário de</p><p>autodefinições rígidas motivado pelo modelo de negócios</p><p>atualmente vigente no mundo das redes sociais</p><p>converteu-se inclusive em arma silenciosa de</p><p>desestabilização de estados nações pelo mundo afora,</p><p>cenário tragicomicamente ainda em curso na jovem</p><p>nação brasileira10.</p><p>10 Sobre as redes sociais como armas atuais de guerra, veja-se</p><p>Korybko (2018). Para análises geopolíticas de operações de guerra</p><p>híbrida no Brasil e no mundo, veja-se, respectivamente, Leirner</p><p>(2020) e Escobar (2007). Sobre os riscos sociais da internet, veja-se</p><p>Assange [et al.] (2013) e Assange (2015).</p><p>89</p><p>89</p><p>No entanto, é importante refletir friamente a esse</p><p>respeito. Entre humanos, ocorre sempre personagens</p><p>com variados níveis de tendência à mudança ou à</p><p>conservação. Portanto, refletindo de forma honesta e</p><p>tragicômica, no fundo, o ser revolucionário nunca é</p><p>apenas e somente revolucionário. Há sempre algum</p><p>aspecto do mundo, a cada momento, que cada um sente</p><p>necessidade de conservar. Do mesmo modo, embora o</p><p>ser conservador assuma essa nomenclatura como sua,</p><p>sempre há algo nele e fora dele, que o desloca e que o</p><p>impele à mudança. Em sua empreitada revolucionária, o</p><p>ser revolucionário pode, por excesso, destruir os alicerces</p><p>embaixo de seus próprios pés. E também, em nome do</p><p>enorme bem de conservar o mundo, o ser conservador é</p><p>capaz, no excesso, de provocar enormes males. A</p><p>maldição do ser que se autonomeia conservador não está</p><p>na existência do ser revolucionário, mas em si, ou na</p><p>ignorância sobre si. Enquanto ser consciente de si, o ser</p><p>conservador é quem é capaz de evitar a hamartia do ser</p><p>que se autonomeia revolucionário. A paideia necessária</p><p>para esses que se autonomeiam assim não está no</p><p>domínio das técnicas de combate de grandes esfinges</p><p>cantantes, mas na investigação de si, para se tornarem</p><p>mais capazes de lidar com encruzilhadas, mais do que</p><p>com desafiantes épicos de algum tipo.</p><p>90</p><p>90</p><p>Os humanos todos são a todos os momentos, em</p><p>alguma medida, conservadores e revolucionários do</p><p>mundo. O ser desloca-se sempre, a todo momento se</p><p>aproximando e se distanciando mutuamente e mudando</p><p>no processo. A preocupação e o olhar de cada ser se dá</p><p>sempre de modo parcial, local, em relação ao que mais</p><p>lhe toca, ao que lhe é mais claro, ao que está ao alcance</p><p>da visão a cada tempo e em cada versão assumida de si a</p><p>cada tempo, na vivência pessoal. De modo que,</p><p>autonomear-se, assumir um lado apenas de si, é um tipo</p><p>de excesso capaz de destruir possibilidades de pontes e</p><p>sabotar negociações. Suposta autoafirmação</p><p>desacompanhada de saudável desconfiança de si é tipo</p><p>traiçoeiro de hamartia, típica de herdeiros de Narciso.</p><p>Dinamitar a percepção ou a pesquisa em si de posturas</p><p>menos presentes, menores, inconscientes,</p><p>aparentemente</p><p>pouco fortes, é expor-se indevidamente ao risco, ao</p><p>excesso, às hamartiai. A única proteção contra a loucura,</p><p>contra a perda total de conexão com o mundo, com o solo</p><p>debaixo dos pés, está no outro, nesse alterego, que vive</p><p>em outro mundo, que vê de outro modo e é capaz de abrir</p><p>nossos olhos em nosso próprio benefício. Somos também</p><p>a única esperança deles, naquilo que eles não veem. Em</p><p>nível macro, quando coesão e acordos são necessários,</p><p>tudo depende da solidez dessas conexões. E mesmo na</p><p>91</p><p>91</p><p>guerra, em momentos de dinamitação de pontes, de</p><p>disseminação de comportamentos infantis, primitivos e</p><p>enlouquecidos, as armas da diplomacia, em alguma</p><p>medida, jamais perdem validade e importância. As</p><p>tecnologias da linguagem, da comunicação e da</p><p>construção de bem estar na civilização estão sempre nas</p><p>primeiras opções dos planos de ação não adoecidos,</p><p>mesmo em tempos de crescimento de caos e barbárie.</p><p>10 - Divide et impera</p><p>Embora as cosmovisões mais recentes tenham</p><p>universalizado - ao menos no discurso - a humanização,</p><p>na prática, permanece vivo no palco do mundo o cenário</p><p>de divisão entre humanos pelo padrão “nós/eles”. Nele,</p><p>“os nossos” são merecedores de nosso perdão e</p><p>suspensão do juízo quanto aos seus erros, trágicos ou</p><p>intencionais. Já em relação aos “outros” - que podem até</p><p>permanecer no discurso sendo chamados de “nossos” -</p><p>vale o rigor da vigilância, da análise e do julgamento,</p><p>mesmo quando se trata de hamartiai. “Deles” o erro</p><p>mínimo que seja não é perdoado com a mesma</p><p>facilidade. “Eles” sabem - quando conscientes de sua</p><p>não-pertença - que jamais podem errar. Quando ainda</p><p>ignorantes, as primeiras frias quedas são suficientes para</p><p>92</p><p>92</p><p>mostrar seus não-lugares. Já “os nossos” podem até</p><p>receber tratamento disciplinar e punitivo, mas precisam</p><p>errar muito, muito mais. Para esses, a tolerância e</p><p>paciência são bem maiores. Podem cair várias vezes e</p><p>ainda assim receberão o tratamento humanizado de</p><p>mecanismos vários de paideia, proteção e auxílio. Na</p><p>verdade, a queda de um dos “nossos” é sentida também</p><p>como nossa queda e por isso ela é trágica. Quando um</p><p>dos “nossos” cai, essa queda também nos fere, nos</p><p>horroriza, nos faz gritar em nome deles, que pertencem</p><p>ao “nosso grupo”. Já a queda dos “outros”, que toleramos</p><p>menos, não é trágica. Ao contrário, é com frequência</p><p>sadicamente desejada, por mecanismos sombrios de</p><p>desejo que nem sempre quem deseja consegue assumir</p><p>para si11.</p><p>Grupos humanos se dividem sempre em</p><p>microcosmos de humanos que se enxergam de algum</p><p>modo dentro dessa polaridade. Ela pode ser grande ou</p><p>pequena, pode ser incentivada ou minimizada. Qualquer</p><p>projeto grande de nação precisa fortalecer grandes</p><p>cosmovisões de grupo, de modo a combater a polarização</p><p>dos microcosmos humanos que estão sempre aí,</p><p>mantendo-se, aumentando, dividindo-se em microcosmos</p><p>ainda menores. Em um mundo de gigantes, grupos</p><p>11 Sobre a oposição binária nós/eles, veja-se: Redfield (1952).</p><p>93</p><p>93</p><p>sociais fragilizados em polarizações crescentes tendem a</p><p>ser mais facilmente dominados. O elemento capaz de</p><p>fazer grandes grupos agirem como unidades está na</p><p>tragicização da percepção dos membros do mesmo</p><p>cosmos social quanto às quedas dentro do grupo. A</p><p>diminuição do tamanho dos microcosmos que se</p><p>enxergam crescentemente dentro da chave “nós/eles” é</p><p>acompanhada pelo próprio esfacelamento do tecido</p><p>social e consequente ocupação desse vácuo por invisíveis</p><p>e gigantes grupos econômicos. Invisíveis, mas bastante</p><p>atuantes, destruindo nações, constantemente, segundo a</p><p>velha e sempre atual fórmula básica: Divide et impera.</p><p>11 - Sobre os ombros de gigantes (ou sob seus pés!)</p><p>O saber, grande ou pequeno, o é em relação a</p><p>alguma referência. Não podemos dizer se o que sabemos</p><p>sobre a natureza é pequeno ou grande. Podemos dizer se</p><p>o que sabemos é muito ou pouco em relação à quantidade</p><p>de conhecimento que há à disposição para se conhecer.</p><p>Mas isso não diz respeito à quantidade de coisas que</p><p>ainda há por conhecer, pois o terreno do conhecido não</p><p>serve para medir o não-conhecido. Esse é um erro</p><p>referencial constante, o de acreditar que não há mais o</p><p>que se estudar, o que se descobrir, pelo simples fato de</p><p>94</p><p>94</p><p>que muito já ter sido acumulado. De fato, esse acúmulo</p><p>de coisas conhecidas está por trás da perspectiva</p><p>conteudista e erudita que prima pelo tempo gasto em</p><p>acumular saberes de modo desorganizado na mente, em</p><p>detrimento do tempo utilizado em organização e</p><p>exploração do tecido do real. A quantidade de coisas</p><p>sabidas acaba por constituir-se em uma espécie de Titã</p><p>insuperável que intimida o espírito aventureiro e</p><p>investigativo. Esse é o risco da perspectiva conteudista:</p><p>reduzir humanos a máquinas acumuladoras e repetidoras</p><p>de padrões, e desestimular seu lado criativo. As</p><p>instituições educacionais, reproduzindo essa tendência</p><p>paradigmática conteudista, acabam se constituindo em</p><p>centros de excelência em controle da criatividade,</p><p>disciplinarização estética e domesticação de impulsos</p><p>criativos. O mundo contemporâneo de informações e</p><p>conhecimentos, esse gigante, pode ser tanto um amigo,</p><p>que nos carrega nos ombros e nos permite ver mais</p><p>adiante, quanto um Leviatã que nos persegue e esmaga</p><p>durante toda a vida. Em nosso contexto colonial, dado o</p><p>caráter estrutural bovarista e de auto-ódio de parte ainda</p><p>expressiva da intelectualidade nativa, infelizmente o</p><p>segundo aspecto acaba se constituindo em uma espécie</p><p>de maldição de menoridade, persistentemente presente</p><p>nas academias, na qual a crítica se perverte em poder</p><p>95</p><p>95</p><p>supressor da inteligência, onde a ousadia em criatividade</p><p>e inovação são tidas como heresias, que acabam se</p><p>mantendo nas sombras, adquirindo força suficiente para</p><p>sobreviver aos terríveis raios solares da publicidade, que</p><p>em muitos casos terminam tragicamente por não</p><p>florescer, dada a hybris do ódio disfarçado em crítica.</p><p>12 - Nós, os cientistas, e a grande ficção que nos move:</p><p>“A ciência paradigmática”</p><p>Quando nos delimitamos apenas ao que é</p><p>produzido pelos cientistas de certa época, nos apoiamos</p><p>sempre no fato de que possa haver outras evidências</p><p>sobre nossas teorias em trabalhos que não conhecemos,</p><p>que estão sendo publicados em línguas que não</p><p>dominamos, em artigos que não tivemos tempo de ler, e</p><p>quanto mais tentamos dominar a totalidade da produção</p><p>de alguma área específica da ciência, mais percebemos</p><p>que nosso movimento acaba sendo o de afunilamento dos</p><p>temas de pesquisa, de tal modo que, quanto mais preciso</p><p>nos tornamos enquanto cientistas, menos porções do</p><p>mundo somos capazes de compreender cientificamente.</p><p>Estamos historicamente delimitados, e ao longo de nosso</p><p>período de aprofundamento nos delimitamos ainda mais</p><p>em aspectos cada vez menores, de modo que, falar sobre</p><p>96</p><p>96</p><p>a “ciência de uma época” é cada vez mais falar sobre</p><p>algo muito específico, parcial, limitado e cada vez mais</p><p>enviesado, dada a dificuldade em ser criativo e de se</p><p>pensar fora dos limites da maneira de pensar aprendida</p><p>em cada especialidade. É falacioso, portanto, pensar na</p><p>ciência como um saber totalmente diferente de outros</p><p>saberes, como o dos mitos e das narrativas ficcionais. De</p><p>fato, Kuhn nos ensina que a grande ficção do grande</p><p>grupo de cientistas e acadêmicos é o mito de um saber</p><p>enquanto uma grande esfera de massa continuamente</p><p>crescente, cumulativa e relativamente não-contraditória.</p><p>Na verdade, mesmo que alguma inteligência artificial</p><p>fosse capaz de reunir todo o conhecimento produzido nas</p><p>universidades do mundo inteiro, nas indústrias de todas</p><p>as nações, e pudéssemos depurar disso, todo o</p><p>conhecimento do mundo em algum momento histórico,</p><p>mesmo nesse cenário ideal, a quantidade de dados</p><p>reunidos e organizados não constituiria qualquer coisa</p><p>significativa para ninguém, dada a limitação do tempo</p><p>histórico, das diferentes linguagens existentes, das</p><p>incompatibilidades</p><p>metodológicas, da própria limitação</p><p>em seguir todos os caminhos de pesquisa abertos</p><p>simultaneamente em determinado período histórico, sem</p><p>contar com o caráter quase teológico e não-humano dessa</p><p>superestrutura artificial. Toda essa reflexão é só um dos</p><p>97</p><p>97</p><p>aspectos do caráter de mito atribuído à essa</p><p>superestrutura chamada “ciência” pelos seus cultuadores</p><p>mais fervorosos, os cientistas de espírito paradigmático!</p><p>13 - Cosmovisões</p><p>Independentemente do que os antigos estivessem</p><p>interessados em descobrir ou fazer, seja retirar o véu da</p><p>natureza, seja tornarem-se poderosos por conta do</p><p>domínio dos “poderes mágicos” da natureza, seja tentar</p><p>adivinhar o futuro, eles pesquisavam a natureza de</p><p>maneira não menos obsessiva e devotada que os</p><p>modernos. Talvez a diferença entre antigos e modernos</p><p>se deva mais à cosmologia, à visão de mundo e de si</p><p>mesmos nesses mundos, do que diferentes modos de</p><p>investigação da natureza. E historicamente, o que tornou</p><p>a diferença entre a ciência dos antigos e a dos modernos</p><p>mais pronunciada foi o conjunto de processos que tornou</p><p>a experiência religiosa sublimada, que dessacralizou a</p><p>natureza, e que deslocou consequentemente o palco do</p><p>mundo e suas personagens12.</p><p>12 O domínio das forças da natureza - historicamente, um dos grande</p><p>sonhos dos alquimistas - tornou-se realidade entre os modernos</p><p>através, dentre outras coisas, do mito do progresso infinito dos</p><p>positivistas naturalistas e sociais. Para uma exposição dos paralelos</p><p>98</p><p>98</p><p>14 - Natureza, jogos e tabuleiros</p><p>A vantagem da especialização paradigmática está</p><p>em driblar o tempo, em conseguir resultados típicos de</p><p>demorados e lentos procedimentos em prazos menores,</p><p>pelo treino a partir de exercícios pré-concebidos, de</p><p>problemas estabelecidos como importantes por algum</p><p>tipo de tradição. Cientistas são jogadores, são</p><p>especialistas em um jogo de linguagem específico, tal</p><p>como enxadristas profissionais, contra os quais é</p><p>inverossímil que não iniciados ganhem até mesmo em</p><p>partidas rápidas. Pois, mesmo quando o mestre combate</p><p>cinquenta neófitos simultaneamente, tendo cada leigo</p><p>muito mais tempo para pensar, isso não lhes dá vantagem</p><p>contra o mestre quando se compara o tempo de centenas</p><p>de dias de formação acumulados pelo profissional com o</p><p>curto tempo dos leigos. Ou seja, é possível programar o</p><p>cérebro para ter sucesso em atividades que exijam tempo</p><p>entre os ideais históricos da alquimia e as realizações modernas,</p><p>veja-se o capítulo “Alquimia, ciências e temporalidade” em Eliade</p><p>(1979). Para uma história das várias cosmovisões antigas acerca da</p><p>natureza, veja-se: Hadot (2006). Para um estudo sobre magia no</p><p>mundo grego, veja-se: Collins (2009). Quanto à cultura oracular na</p><p>Grécia antiga, veja-se: Dillon (2017). Para um estudo filosófico e</p><p>antropológico das conexões entre religião e filosofia nas origens do</p><p>pensamento grego, veja-se: Cornford (1912, 1952). Para a relação</p><p>entre sublimação da experiência religiosa e o espírito da ciência</p><p>moderna, veja-se capítulo “O avanço em intelectualidade</p><p>(Geistigkeit)” em Freud (1975).</p><p>99</p><p>99</p><p>e lentidão por meio de alguma paideia. O especialista é</p><p>esse jogador treinado para ganhar jogos específicos em</p><p>tempos menores do que não especialistas. Isso os</p><p>envaidece, é claro! Os jogos são feitos para isso. E ser</p><p>especialista em algo para ser vencedor e se envaidecer</p><p>em alguma função capaz de contribuir e tornar mais forte</p><p>o grupo é certamente gratificante ao grupo de jogadores,</p><p>quando todos vencem seus quebra-cabeças.</p><p>Mas será isso sempre assim? É possível acontecer o</p><p>paradoxo de todos vencerem, e por isso mesmo</p><p>perderem? De fato, a história move-se e com ela, a</p><p>linguagem, o mundo, os jogos e suas regras, constituindo</p><p>isso tudo um enorme e inesgotável problema reflexivo e</p><p>político para todos nós, o grupo inteiro de humanos. Não</p><p>são apenas quebra-cabeças que precisamos</p><p>constantemente resolver. Montamos jogos, criamos</p><p>regras e caminhamos em linhas mais tênues de</p><p>compreensão mútua em nossos deslocamentos no mundo</p><p>em períodos de maior barbárie e menor compreensão.</p><p>Períodos esses de stress e enorme incômodo para todos</p><p>que percebem o mundo ruir sob seus pés, em que ficam</p><p>evidentes jogos antes não explícitos, em que surgem</p><p>peças inesperadas no tabuleiro, onde alguns jogadores</p><p>profissionais mantêm-se jogando com regras antigas,</p><p>habituais perdedores passam a reinar em jogos onde</p><p>100</p><p>100</p><p>parecia impossível sua predominância nas</p><p>mais distópicas mímeses dos poetas, e há ainda a estranha</p><p>possibilidade de ninguém sequer conhecer em alguma</p><p>medida as novos regras dos jogos ou que os vencedores</p><p>atuais sequer tenham consciência delas minimamente e</p><p>simulem ter apenas para manter alguma ordem que os</p><p>beneficia.</p><p>Pensando o mundo, a linguagem e suas regras em</p><p>termos de jogos, nessa concepção ampla, o que pensar</p><p>sobre as competições? o quê ou quem as estabelece? Os</p><p>próprios jogadores, agoniados e envaidecidos por suas</p><p>especialidades, em seus excessos, carregam consigo o</p><p>risco de achar que são especiais e mais valiosos, só por</p><p>serem mais úteis em jogos específicos, presentes na</p><p>polis, inventados em algum momento, nas ruínas do</p><p>passado ou nos jogos de poder do presente. Enquanto</p><p>vida que se nutre da esperança de chegar sorrindo ao</p><p>outro extremo, nada mais incômodo do que não vencer</p><p>nos jogos em que se foi treinado. De fato! Quantos</p><p>abismos esse caminho anuviado por temporais</p><p>imprevistos provoca. Quantas quebras de expectativa e</p><p>choques de realidade. A mente humana, de fato, suporta</p><p>pouco as mudanças muito grandes, os abismos. Daí a</p><p>função da comédia. Rir não é apenas exercício de desvio,</p><p>mas de sobrevivência à tragédia. Nem tudo precisa ser</p><p>101</p><p>101</p><p>medido pela régua dos artilheiros, pelo número de gols.</p><p>Em tempos nuviosos - de retorno do sazonal e odioso</p><p>caos - os jogos todos se movem, bem como suas regras,</p><p>transformando mestres em aprendizes, e criando novos</p><p>jogos no processo. Querer mover-se com as regras</p><p>antigas é o mesmo que um enxadrista querer continuar a</p><p>reinar no bilhar, ou em jogos em andamento cujas regras</p><p>sequer tenha tido tempo de compreender minimamente.</p><p>Com tabuleiros, peças e regras se movendo, há</p><p>sempre desvios tragicômicos em algum lugar real ou a</p><p>ser criado. E aos incuráveis jogadores, em crise de</p><p>abstinência, é bom lembrar dos grandes tabuleiros das</p><p>ruínas do passado, com atores de vozes de curto eco e</p><p>distintos objetos mudos, sempre à disposição para serem</p><p>revirados e acrescentados no tabuleiro do presente para</p><p>despertar mentes adoecidas pelo dogma, ou tontas de</p><p>tanto serem dribladas.</p><p>15 - Nós, os invisíveis</p><p>No palco do mundo, ser é aparecer. “Aquilo que é”</p><p>precisa aparecer, estar na “praça pública” e ser visto para</p><p>“ser” de fato. O grupo não representado de invisíveis</p><p>“não é”. Sua queda não é trágica, não causa comoção</p><p>pública nem horroriza o grande grupo. Aqueles que</p><p>102</p><p>102</p><p>permanecem não representados, não tematizados pelas</p><p>empresas de comunicação, que existem de forma viva</p><p>apenas nos espaços privados, de algum modo, não fazem</p><p>parte da coletividade, e por isso são seres menos</p><p>políticos, humanos desumanizados. Qual peixes de mudo</p><p>riso ou choro, o sucesso ou fracasso desses invisíveis</p><p>sequer conta como comédia ou tragédia, dado que apenas</p><p>personagens representadas no palco da existência podem</p><p>ter seu movimento visto, analisado e tematizado. Apenas</p><p>seres humanizados aparecem. Apenas a aparência</p><p>humaniza. Procedimentos de invisibilização são projetos</p><p>de desumanização, de tornar invisíveis personagens</p><p>presentes no mundo, tornando não-trágica suas quedas no</p><p>palco da existência. Ser, aparecer, representar, tornar</p><p>visível, humanizar, desinvisibilizar, narrar, tragicizar ou</p><p>comicizar, são termos pertencentes ao mesmo campo</p><p>semântico. Mesmo invisibilizados,</p><p>humanos existem de</p><p>forma viva no mundo, mesmo que sua existência se</p><p>configure em sofrimento mental devido à sensação de</p><p>invisibilidade, à baixa representação, ou pela simples</p><p>existência de modo invisível. Para esses, os</p><p>invisíveis, a tomada de consciência sobre a própria</p><p>existência, o câmbio do invisível em visível é o que pode</p><p>pôr carne e tragicidade naquilo que é etéreo e épico.</p><p>Seres invisíveis são como existências fictícias, erradas, e</p><p>103</p><p>103</p><p>seu movimento na vida, em busca de sentido, de</p><p>autocompreensão, de adequação, corresponde a</p><p>processos de autocolonização frequentemente</p><p>fracassados em direção às luzes da visibilidade, da</p><p>pertença ao mundo, mesmo que esse mundo negue sua</p><p>forma de ser mais profunda, pré ou não-moderna, fraca</p><p>porque invisível, não-forte porque pouco elaborada.</p><p>Nesse cosmos brasileiro, de colonização ainda em curso,</p><p>de multiplicidade de cosmovisões, qualquer processo de</p><p>saúde mental passa pela des-invisibilização de invisíveis</p><p>fundamentais entre nós - pela representação - e em nós,</p><p>pela elaboração constante dos fragmentos ainda presentes</p><p>de forma forte em nossa forma de ser, pela literatura</p><p>principalmente, mas por qualquer outro processo</p><p>estético-político capaz de fazer elaborações e ações,</p><p>grandes ou pequenas.</p><p>De maneira geral, ser cidadão ou cidadã de tipo</p><p>moderno - ou seja, segundo as normas da “hybris de si” -</p><p>em algum dos vários microcosmos existentes, de</p><p>contradições estruturais de maior ou menor grau, de</p><p>existência crescentemente narcísica, é ser estruturalmente</p><p>herói ou heroína de tipo trágico, é cometer hamartiai sem</p><p>fim apenas por existir e agir “normalmente”.</p><p>104</p><p>104</p><p>16 - O Grande Palco da Natureza</p><p>Assim, aos olhos dos mortais que esperam ver o dia</p><p>derradeiro, ninguém pareça ser feliz, até ultrapassar o termo</p><p>da vida, isento de dor13.</p><p>Coro em trecho final de Rei Édipo</p><p>Dirigir-se rumo a níveis mais honestos de</p><p>linguagem a respeito de temas aporéticos e densos</p><p>envolve sempre paralelo movimento de complicação das</p><p>imagens e junção de elementos estruturalmente</p><p>inseparáveis por meio de ensaios de compreensão global</p><p>que tornam os vôos demasiado altos, fragilizando ao</p><p>mesmo tempo as pontes com os sentidos mais simples,</p><p>pelo uso poético da linguagem, rindo de suas estruturas,</p><p>problemas e contradições! Um exemplo: Uma parte</p><p>bastante proeminente do pensamento contemporâneo é</p><p>filha de ensaios estético-políticos de modernização cujo</p><p>procedimento básico consiste em destacar da natureza</p><p>obras de arte - sujeitos e objetos - e dar ares de</p><p>independência mútua a esses rebentos, com o fim de</p><p>dissecá-los melhor, mas esquecendo-se do ato estético</p><p>inicial, gerando aporias complicadas que com o tempo</p><p>passam a funcionar como contradições irresolúveis,</p><p>13 Sófocles (2014, p.151). Original: <<ὥστε θνητὸν ὄντ’ ἐκείνην τὴν</p><p>τελευταίαν ἰδεῖν / ἡµέραν ἐπισκοποῦντα µηδέν’ ὀλβίζειν, πρὶν ἂν /</p><p>τέρµα τοῦ βίου περάσῃ µηδὲν ἀλγεινὸν παθών.>> (vv. 1528-1530).</p><p>105</p><p>105</p><p>atuando como projetos de destragicização de</p><p>consciências em um projeto que permite o surgimento</p><p>constante de olhares-ações infantis, como em uma</p><p>situação de desejo de retorno a algum tipo de situação</p><p>paradisíaca primeva. Como falar disso, em um ambiente</p><p>de lentes modernas, para leitores de formação moderna,</p><p>sobre essa grande aporia do divórcio radical entre</p><p>sujeitos e objetos, esse ambicioso e cruel projeto? Difícil</p><p>atacar o problema de frente, com a seriedade de heróis</p><p>trágicos com instrumentos estruturalmente</p><p>problemáticos! Tentemos, portanto, recorrendo à pena da</p><p>mímesis mítico-poética, deixando de lado às réguas dos</p><p>geômetras e adotando as métricas de Sófocles e</p><p>Aristófanes. Desse modo, talvez seja possível construir</p><p>imagens capazes de dar ares maiores de dignidade a essas</p><p>grandes e belas aporias!</p><p>O exercício estético aqui é o de colocar esses</p><p>sujeitos-objetos em um grande palco de contradições</p><p>irresolúveis da natureza pensada tragicomicamente,</p><p>metamorfoseando o problema de forma bastante mais</p><p>fácil de sentir. Unidades Ator-Espectador são agora</p><p>unidades do tipo Humano-Natureza. A alternativa</p><p>estética e hermenêutica toma a natureza como um grande</p><p>palco, cheio de personagens tragicômicas</p><p>metamorfoseando-se em atores elevados ou grotescos, e</p><p>106</p><p>106</p><p>espectadores de olhares também elevados ou grotescos.</p><p>Enquanto espectadores do mundo, cada olhar é capaz de</p><p>julgar ações por lentes trágicas ou cômicas. Para atores,</p><p>hermenêutica e ética fundem-se em um só horizonte na</p><p>constante interpretação-ação de cenas enquanto atos de</p><p>tragédias, comédias, ou tragicomédias. A nenhum dos</p><p>atores-autores é conhecida a duração dessas incontáveis</p><p>odisséias tragicômicas inter-cruzadas. Nenhum deles</p><p>sabe se terminará com ato que sintetiza sua história como</p><p>tragédia ou comédia. A grande ligação e o fluxo do</p><p>mundo podem ser sentidos de várias formas, pois a</p><p>participação de cada ator-autor na odisséia tragicômica</p><p>de si é simultaneamente atuação-ação em inúmeras</p><p>outras odisséias tragicômicas interligadas de atores-</p><p>autores tragicômicos paralelos em constante atuação.</p><p>Ampliar o olhar com respeito a cada possibilidade desse</p><p>grande tecido da vida, da natureza - por meio de pontes</p><p>como a literatura, por exemplo - torna maior a</p><p>consciência sobre a própria interpretação-ação dos/nos</p><p>fluxos de ação que mais podem afetar nosso movimento,</p><p>que mais nos põem a pensar-atuar, por meio do espanto</p><p>diante das rupturas, da irrupção do novo no mundo, do</p><p>inesperado sempre à espreita. Participantes e não-</p><p>participantes de inúmeras cenas simultâneas, enquanto</p><p>elenco simultâneo e disperso de espectadores-atores, são</p><p>107</p><p>107</p><p>sempre atuantes nos palcos da natureza, como principais,</p><p>coadjuvantes ou enquanto existências fora do elenco.</p><p>Sempre se movendo, sempre aumentando e diminuindo o</p><p>grau de participação em cenas que implicam com maior</p><p>força na narrativa o fluxo tragicômico que nos afeta. É</p><p>loucura achar que é possível ser apenas autor, ou apenas</p><p>agente. E nenhuma parte do elenco, por mais distante que</p><p>esteja do palco que enxergamos está impedida de cruzar</p><p>de forma importante a linha de nossa história. Atores</p><p>ausentes e distantes podem surgir a todo momento e</p><p>tornarem-se coadjuvantes inesperados ou até principais</p><p>em nossa vida-narrativa, espantando-nos, fazendo-nos</p><p>sentir algum grau de consciência tragicômica, criando</p><p>náuseas que podem ser sentidas como insuportáveis,</p><p>levando a movimentos de retrocesso, negação infantil e</p><p>maniqueização da interpretação da natureza como um</p><p>jogo de heróis e vilões, ou a algum tipo de compreensão</p><p>mais honesta, tragicômica, que assuma as contradições</p><p>irresolúveis, a limitação dos olhares-ações e a necessária</p><p>pluralidade de toda interpretação-ação do/no mundo por</p><p>atores-autores de tragédias e comédias de si e</p><p>simultaneamente de inúmeros.</p><p>108</p><p>108</p><p>Referências bibliográficas</p><p>Angrimani, D. Espreme que sai sangue - um estudo do</p><p>sensacionalismo na imprensa. 2 ed. São Paulo: Summus,</p><p>1995.</p><p>Arendt, H. A condição humana. Trad. RAPOSO, R.. 10 ed.</p><p>Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.</p><p>Assange, J. et al. Cypherpunks: liberdade e o futuro da</p><p>internet. Trad. Yamagami, C.. São Paulo: Boitempo, 2013.</p><p>_______. Quando o Google encontrou WikiLeaks. Trad.</p><p>Yamagami, C.. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2015.</p><p>Aristóteles. Poética. Trad. Valente, A. M.. 4 ed. Lisboa:</p><p>Fundação Calouste Gulbenkian, 2011.</p><p>Bachelard, G. O pluralismo coerente da química moderna.</p><p>Trad. Abreus, E. dos S.. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009.</p><p>Collins, D. Magia No Mundo Grego Antigo. Trad. SANO, L..</p><p>São Paulo: MADRAS, 2009.</p><p>Cornford, F. M. From Religion to Philosophy: A Study in the</p><p>Origins of Western Speculation. New York: Harper &</p><p>Brothers, 1912.</p><p>_______. Principium Sapientiae - The origins of Greek</p><p>Philosophical Thought. Cambridge: Cambridge University</p><p>Press, 1952.</p><p>Dillon, M. Omens and oracles: divination in ancient Greece.</p><p>London & New York: Routledge, 2017.</p><p>Eliade, M. Ferreiros e alquimistas. Rio de Janeiro: Zahar</p><p>Editores, 1979.</p><p>Escobar, Pepe. Globalistan - How the Globalized World is</p><p>Dissolving into Liquid War. Michigan: Nimble Books, 2006.</p><p>109</p><p>109</p><p>Fialho, M. Do céu. A valência cognitiva da mímesis na</p><p>Poética de Aristóteles. kleos - revista de filosofia antiga, [s.l.],</p><p>v. 18, no 18, p. 51–65, 2014.</p><p>Freud, S. Moisés e o monoteísmo. Trad. Abreu, J. O. de A..</p><p>Rio de Janeiro: Imago, 1975 [orig.: 1939].</p><p>Gadamer, H.-G.; Lawrence, F. G. Reason in the Age of</p><p>Science. Massachusetts: The MIT Press, 1983.</p><p>Hadot, P. O véu de Ísis - Ensaio sobre a história da idéia de</p><p>natureza. Trad. Sérvulo, M.. São Paulo: Edições Loyola, 2006.</p><p>Homero. Ilíada. Trad. Lourenço, F.. São Paulo: Penguin</p><p>Classics Companhia das Letras, 2013.</p><p>Jaeger, W. Paideia: A formação do homem grego. Trad. Artur</p><p>M. Parreira. 2. ed. São Paulo & Brasília: Martins Fontes &</p><p>Editora Universidade de Brasília, 1989.</p><p>Kahneman, D. Rápido e devagar - duas formas de pensar. São</p><p>Paulo: Objetiva, 2012.</p><p>Kant, I. Resposta à pergunta: Que é <<Esclarescimento>>?</p><p>(<<Aufklärung>>). Trad. Fermandes, F. de S.. Textos seletos</p><p>- Edição bilíngüe. Petrópolis: Vozes, 1974. p. 100–117.</p><p>Korybko, A. Guerras híbridas: das revoluções coloridas aos</p><p>golpes. Trad. Antunes, T.. São Paulo: Expressão popular,</p><p>2018.</p><p>Kuhn, T. S. A estrutura das revoluções científicas. 12 ed. São</p><p>Paulo: Perspectiva, 2013.</p><p>Latour, B. Jamais fomos modernos. 2 ed. São Paulo: Editora</p><p>34, 1994.</p><p>Leão, Eryc. “Ensaio sobre o futuro, o humano e seus limites”;</p><p>In: (Orgs.: Luciano Coutinho; Tiago De Carvalho; Lúcia</p><p>110</p><p>110</p><p>Helena Marques) Limites do humano. Brasília: Tanto Mar</p><p>Editores, 2021, p. 51-93.</p><p>Leirner, Piero C. O Brasil no espectro de uma guerra híbrida:</p><p>Militares, operações psicológicas e política em uma</p><p>perspectiva etnográfica. São Paulo: Alameda Casa Editorial,</p><p>2020.</p><p>Nicolelis, M. O verdadeiro criador de tudo: como o cérebro</p><p>humano esculpiu o universo como nós o conhecemos. São</p><p>Paulo: Planeta, 2020.</p><p>Portocarrero, M. L. A pertinência hermenêutica da ética</p><p>aristotélica; In: (Orgs.: Eire, A. L.; Fialho, M. do C.;</p><p>Portocarrero, M. L.). Poética(s) - Diálogos com Aristóteles.</p><p>Lisboa: Ariadne, 2007. p. 267-282.</p><p>Redfield, R. The Primitive World View. Proceedings of the</p><p>American Philosophical Society, v. 96, no 1, p. 30–36, 1952.</p><p>ISSN: 0003049X.</p><p>Schopenhauer, A. A arte de escrever. Trad. Süssekind, P..</p><p>Porto Alegre: L&PM, 2006.</p><p>Sófocles. Rei Édipo. Trad. Fialho, M. do C.. Lisboa: Edições</p><p>70, 2014.</p><p>Há uma lei universal nas artes e na</p><p>literatura: sua natureza não-filosófica</p><p>Tiago De Carvalho*</p><p>* Tiago Carvalho é Doutor em Estudos Clássicos pela Universidade</p><p>de Coimbra - UC, com Certificado de Doutor em Literatura</p><p>revalidado pela Universidade de Brasília. É Mestre em Teoria</p><p>Literária pela Universidade de Brasília - UNB. Professor do Instituto</p><p>Federal de Brasília. Atualmente, trabalha também como membro do</p><p>corpo diretivo e editorial da Tanto Mar Editores. Tiago assina seus</p><p>textos literários e acadêmicos como Tiago De Carvalho.</p><p>113</p><p>113</p><p>Nessas paragens do vago</p><p>onde toda realidade se dissolve</p><p>(Stéphan Mallarmé)1</p><p>1 - O problema de uma lei universal para as artes e a</p><p>literatura</p><p>Quando iniciei minha participação no grupo “Livre</p><p>Filosofia” fiquei meio responsável, o que já retirava o</p><p>caráter de livre do grupo, por responder as questões</p><p>voltadas ao ramo da arte, literatura e política, minha área</p><p>de interesse desde sempre. A ideia do “meio-</p><p>responsável”, é por que contamos com dois filósofos,</p><p>dois físicos, e um cientista social, uma vez que a arte e a</p><p>literatura são domínios de tudo e de todos e não tem dono</p><p>mesmo. Com o surgimento do primeiro tema geral de</p><p>debates e conversas fiquei pensando no sentido das</p><p>chamadas ‘leis universais’.</p><p>O tema das leis universais povoou nosso debate por</p><p>semanas. Entre um conceito de lei universal na ciência e</p><p>na filosofia apareceram dois problemas fundamentais: o</p><p>primeiro era da filologia em torno da palavra ‘lei’, uma</p><p>vez que a posse do direito “primarizou” o debate sobre a</p><p>1 “Dans se parage du vague/ en quoi toute réalité se dissout”. Verso</p><p>original do francês extraído do poema Un coup de dés.</p><p>114</p><p>114</p><p>ideia de regra, e o famoso nomos grego nada mais era</p><p>que um ordenamento fruto da experiência humana diante</p><p>de um ato duradouro, e convincente aos humanos como</p><p>hábil para perpetuar certas necessidades do homem em</p><p>certas situações.</p><p>A questão do tema em torno do “universal” e do</p><p>“particular”(este como uma espécie de parte e antípoda</p><p>ao mesmo tempo) retomaria uma limitação primária entre</p><p>aquilo que é ambiente controlado pela experiência</p><p>humana, e aquilo que nos aproxima de alguma</p><p>compreensão limitada sobre os horizontes mais amplos</p><p>do Universo ou do Cosmos, no sentido mais científico.</p><p>A ideia de lei universal mais aprofundada nos</p><p>remeteria de acordo com Cauê Zagueto sobre a pergunta</p><p>que o homem não é capaz de fazer, mas a pergunta que</p><p>existe independente do homem, como se toda amplitude</p><p>do Cosmos fosse uma série de perguntas constantes não</p><p>feitas pelo homem e uma série de respostas ainda mais</p><p>instigantes na medida em que se não é o homem</p><p>responsável pelas questões, imagine o homem poder</p><p>alcançar respostas as mesmas, logo estas feitas numa</p><p>constante massiva por um outro ente inteligente, o</p><p>Universo, independente do homem.</p><p>No plano humano, há ‘nomos’ irretocáveis, como</p><p>apresentar-se enquanto leis universais aquelas</p><p>115</p><p>115</p><p>obviedades concretas da nossa definição de realidade</p><p>plausível sobre nós mesmos, e é exemplo de que é uma</p><p>lei universal: o homem sem água sucumbe e morre.</p><p>Mas é exemplo também de que é lei universal um</p><p>tipo de nomos abstrato, como exemplo, o homem gosta</p><p>de pensar sobre as coisas. Este espectro amplo das leis</p><p>universais acaba por nos conduzir à ideia de que precisa</p><p>sempre parecer primeiro interessante ao homem, depois</p><p>reconhecível como importante ao homem, e por último</p><p>precisa ser ‘ilimitador’ ao e do homem, mas antes de</p><p>tudo isso, pode estar inclusive impossibilitado para o</p><p>homem, na medida de um 'anti-antropocentrismo', e no</p><p>bojo da História das outras coisas, onde pode ou não o</p><p>homem participar.</p><p>Ao objetivar este complexo emaranhado de</p><p>reflexões filosóficas e científicas sobre as leis universais,</p><p>surgiu, então, para mim a pergunta que eu fiz como</p><p>homem para tentar responder: Qual seria a lei universal</p><p>das artes e da literatura(como arte)2?</p><p>Esta pergunta nasceu, então, dos meus interesses</p><p>pessoais ditos acima em re(interpretar) a arte e a</p><p>literatura a partir deste capricho reflexivo em torno da</p><p>2 A palavra literatura suscita por vezes usos diversos que não o das</p><p>letras como arte, e esta lembrança parece fundamental para não</p><p>confundir a ideia de literatura como conjunto de textos de uma área</p><p>científica.</p><p>116</p><p>116</p><p>amplitude das leis universais. Não bastasse isso, eu</p><p>precisava imaginar algo para defender, algo que sempre</p><p>acreditei: não há como não haver um papel político para</p><p>as artes e para a literatura?!</p><p>Uma premissa compreendida entre os debates e as</p><p>afirmações nascidas no grupo, é que o problema do</p><p>político está em apresentar-se como uma limitação</p><p>humana, já se quer pode se apresentar como qualquer</p><p>elemento mais denso sobre o âmbito do universal, por ser</p><p>uma limitação humana. Seria essa premissa convalidada</p><p>nestas reflexões? Sua limitação, só por pertencer a esfera</p><p>humana, tão somente?</p><p>A tendência em tentar aproximar o topos político</p><p>da arte como sintoma da universalidade da arte e da</p><p>literatura, poderia e quase deveria construir um aluvião</p><p>tsunâmico do universal sobre o propósito essencial do</p><p>político, como uma experiência de quem olha a parte</p><p>insignificante de um todo, e não</p><p>há como reconhecer que</p><p>por mais complementar que seja a parte, o todo a parte</p><p>não é; e logo como parte é sempre uma experiência</p><p>significante/insignificante, retomamos aqui o exemplar</p><p>poema de Gregório de Matos sobre esta instância do</p><p>particular:</p><p>O todo sem a parte não é todo,</p><p>A parte sem o todo não é parte,</p><p>117</p><p>117</p><p>Mas se a parte o faz todo, sendo parte,</p><p>Não se diga, que é parte, sendo todo.</p><p>O restante do poema não chama mais nossa</p><p>atenção, pois o poeta vai falar de Jesus Cristo, e este não</p><p>cabe aqui, neste momento da discussão.</p><p>Sobre a ideia do particular ou da parte, neste</p><p>momento como sinônimos, enquanto uma experiência</p><p>existente, mas sem amplo significado suficiente,</p><p>podemos observar na seguinte pergunta este debate: O</p><p>que importa para os insetos se uma pintura constrói um</p><p>traço político de autoritarismo?</p><p>Isso só importa para os homens, e nem para todos</p><p>os homens, uma vez que boa parte deles se quer tem</p><p>interesse por pinturas artísticas. Num jogo de retórica</p><p>teatral poderíamos dizer que os homens que não se</p><p>importam com a arte, poderiam até ser silogisticamente</p><p>comparados a insetos pela desimportância que a arte</p><p>revela a ambos.</p><p>Contudo, o processo político engendra nas artes e</p><p>na literatura uma leitura das relações humanas, uma vez</p><p>que a política é a base das relações humanas coletivas, e</p><p>qualquer arte que se pretendesse a escapar destas relações</p><p>seria acusada de arte pela arte.</p><p>A arte pela arte me parece a distorção ou o ciclo</p><p>vicioso da natureza artística, não é possível que uma arte</p><p>118</p><p>118</p><p>somente exista para respaldar o próprio processo de</p><p>criação artística, e que sua lei universal primária seja ou</p><p>seria existir enquanto arte-em-si. A não ser que leiamos a</p><p>arte pela arte como este universal despretensioso de um</p><p>universo re(criativo), há uma tendência em aposta na arte</p><p>pela arte como o isolamento de um fazer humano no seu</p><p>próprio ato de fazer e nada a extrair depois do objeto</p><p>feito. Como exemplo, podemos indagar: as obras</p><p>abstracionistas convencem a quem de sua interpretação</p><p>última sobre algum conceito? Aquele jogo de tintas</p><p>disformes ou conformes representam algo para além das</p><p>cores? Mesmo que o artista dê nome, ou denomine a obra</p><p>ou seu conjunto, é possível enxergar para além do campo</p><p>das cores ou dos outros sentidos estimulados pelo quadro</p><p>de abstrações?</p><p>Mesmo na arte pela arte, na literatura pela</p><p>literatura, o gesto é político, e este gesto político é</p><p>entender como a criação artística percorre o humano e</p><p>todas as suas relações, isto já é uma natureza altamente</p><p>política, mas uma lei política é humana, e participa das</p><p>leis universais, uma vez que estamos abastecidos do</p><p>conceito primário de que o homem é parte do universal.</p><p>Qualquer lei política, de antemão é limitadora da</p><p>ideia mais ampla de lei universal, uma vez que esta, já</p><p>apontamos não pode se limitar no homem enquanto suas</p><p>119</p><p>119</p><p>necessidades meramente óbvias de defesa da existência</p><p>humana.</p><p>Procurei lembrar algum momento, ou movimento</p><p>literário e/ou artístico em que ficasse evidenciado esta</p><p>natureza política das artes e da literatura sem a natureza</p><p>ideologizada tão profunda dada por momentos óbvios da</p><p>arte como panfleto. Tentei encontrar também algo, que</p><p>não reproduzisse um quadro de Pollock cujas ramas</p><p>desenhadas em tintas jogadas, por mais políticas,</p><p>enquanto insubordinadas, nada diziam de tão</p><p>afirmativamente político, ao como o político é</p><p>conhecido, a intervenção no homem.</p><p>Terminei por lembrar de Machado de Assis e seu</p><p>Brás Cubas, que na amplitude e ironia da sua escrita ao</p><p>narrar os objetivos do porquê contar a sua própria</p><p>história ele nos fala:</p><p>(...) O que importa é a expressão geral do meio</p><p>doméstico, e essa aí fica indicada - vulgaridade</p><p>de caracteres, amor das aparências rutilantes, do</p><p>arruído, frouxidão da vontade, domínio do</p><p>capricho, e o mais. Dessa terra e desse estrume é</p><p>que nasceu esta flor. (...)</p><p>120</p><p>120</p><p>A personagem de Brás Cubas elenca a síntese do</p><p>humano e o nascimento da narrativa como arte. O</p><p>humano é a vulgaridade de caracteres, o amor das</p><p>aparências rutilantes, do arruído, a frouxidão da vontade,</p><p>o domínio do capricho, agora a arte é a flor que nasce de</p><p>toda essa miséria que é o homem.</p><p>A ironia está em dizer isso como poesia, e a</p><p>palavra que parece bonita sobre o homem é feia. O belo e</p><p>o feio são leis universais da arte pretensas surgidas do</p><p>diapasão político da arte, mas uma coisa pode ser bela</p><p>ou feia sem o julgamento do homem? Provavelmente</p><p>não, pois não é o homem o detentor único do gosto</p><p>estético na natureza. É inclusive motivo de chacota</p><p>propagada por Cauê Zagueto, lembrar que um girassol</p><p>não é bonito para ninguém a não ser para o homem, esta</p><p>categoria é humana e o universo não está limitado a ela.</p><p>Na relação, então, deste papel político agregada à</p><p>necessidade em dar uma resposta a este grupo de</p><p>filosofia na contribuição de alcançar um maior</p><p>conhecimento sobre as leis universais e a natureza, ao</p><p>que poderia este papel político da arte e da literatura</p><p>contribuir?</p><p>Seria em explorar pela experiência humana se</p><p>outros seres apreendem o feio e o belo como leis</p><p>universais das artes e do papel das artes? Lembrei-me de</p><p>121</p><p>121</p><p>Foucault: “A política pode servir de prova de realidade</p><p>para a filosofia”(FOUCAULT, “O governo de si e dos</p><p>outros”, p.259).</p><p>E, logo, finalmente, qual seria uma lei universal</p><p>das artes e da literatura: negar a filosofia? Impossível!</p><p>Negar o discurso filosófico? Provar que o discurso</p><p>filosófico sobre o belo e o feio é incompetente?</p><p>Impossível! Negar a reflexão filosófica? Impossível! A</p><p>arte e a literatura fazem no mínimo a gente pensar em</p><p>nada como está no poema de Alberto Caeiro, heterônimo</p><p>de Fernando Pessoa:</p><p>Ninguém nunca pensou no que há para além</p><p>Do rio da minha aldeia.</p><p>O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.</p><p>Quem está ao pé dele está só ao pé dele.</p><p>(O guardador de rebanhos, no poema “O Tejo é</p><p>mais belo”)</p><p>Proponho, afinal, que a natureza não-filosófica da</p><p>arte e da literatura seja a lei universal mais ampla das</p><p>mesmas, e que este “não-filosófico” é só a variação de</p><p>tons e sons que a arte se utiliza sobre o qual o discurso</p><p>filosófico nem sempre está satisfeito com esta mesma</p><p>variação, fruto da sua extemporaneidade e vacilação.</p><p>122</p><p>122</p><p>Neste sentido, arte, literatura(como arte) e filosofia</p><p>se agregam em algo relevante, é preciso ultrapassar o</p><p>horizonte político das leituras das coisas, sem negar a</p><p>capacidade que a obra de arte e a obra literária tem de por</p><p>em curso no debate e na (re)conceitualização filosófica</p><p>pura: o conceito, ou do papel da filosofia em si, o que é</p><p>uma extravagância definir, em que a mesma somente</p><p>trata dos objetos atinentes a ela.</p><p>E se está na natureza do discurso artístico um outro</p><p>modelo, é a filosofia o outro lado que a arte não quer ser,</p><p>como alerta Heiddeger: “A arte acontece na Poesia”(A</p><p>origem da obra de arte, pág. 62).</p><p>Poderia neste momento, por exemplo, os estudiosos</p><p>de Platão, Aristóteles, Agostinho, Kant dizerem que é</p><p>possível enxergar os diálogos de Platão como peças de</p><p>teatro, ou parte de sua escrita como escrita alegórica,</p><p>metafórica e até por vezes poética, logo seria uma</p><p>sandice tentar desviar os discursos filosófico e estético</p><p>como díspares.</p><p>Os tratados de Aristóteles como peças de retórica,</p><p>os textos de Agostinho como manuais religiosos cheios</p><p>de sedução lírica sobre Deus e o Universo, e as críticas</p><p>kantianas como projeções lógicas e matemáticas do mais</p><p>alto pensamento são textos literários, logo artísticos,</p><p>então estéticos. E o que diria eu?</p><p>123</p><p>123</p><p>Lançaria mão da pergunta: é filosofia ou</p><p>literatura(arte) a natureza destes textos? Ambos, mas toda</p><p>vez que for filosofia não será literatura, e toda vez que</p><p>for literatura não será filosofia plagiando Schelegel onde</p><p>há filosofia da arte, não se faz nem uma nem outra.</p><p>Essa especulação última alcunhada no Romantismo</p><p>Alemão</p><p>digamos que é de um pensador-artista: no</p><p>fragmento nº 12: “naquilo que se chama filosofia da arte</p><p>falta habitualmente uma das duas: ou filosofia, ou</p><p>arte”(1997,p.22). O próprio pensador alemão conjeturava</p><p>a ideia de que só é possível a análise da poesia com uma</p><p>outra poesia.</p><p>Radical, ele? Talvez, mas o seu debate se dava em</p><p>torno de um aspecto singular, por que transformar a obra</p><p>de arte em resposta para alguma coisa, conceito ou</p><p>sensação do homem? Aqui retornaríamos ao jogo de</p><p>perguntas e respostas não sabidas e não dimensionadas</p><p>pelo homem no Universo como personagem diferente do</p><p>homem.</p><p>Este discurso teria uma tendência de auto-acusar-se</p><p>como religioso na dimensão spinoziana sobre super-</p><p>dimensionar o Universo construindo uma matriz</p><p>matemática divinizatória para o Universo e sua infinitude</p><p>geométrica onde tudo cabe e tudo é.</p><p>124</p><p>124</p><p>Esta dimensão é matéria dos filósofos, e por mais</p><p>permissiva, ela é uma forma muito encantadora e</p><p>pertinente ao universo da arte, uma vez que se Deus</p><p>Existe como Universo tudo é permitido...</p><p>Adorno na sua “Teoria Estética” no séc. XX,</p><p>vinculado ao grupo de Frankfurt que tanto resgatou as</p><p>fontes mais dialéticas dos discursos estéticos europeus,</p><p>principalmente, do Idealismo Alemão, nos apresenta uma</p><p>chave: “O espírito das obras artísticas não é o conceito,</p><p>mas é por seu intermédio que se tornam comensuráveis</p><p>ao conceito”(2006, p.107).</p><p>Vamos tentar entender isto, uma vez que na arte em</p><p>dimensão alegórica do Universo como o espaço de tudo e</p><p>de nada e em que tudo é permitido, logo o Deus-</p><p>Universo nos dá:</p><p>• O espírito das obras de arte - essa palavra</p><p>espírito aqui parece carregada de todo sentido</p><p>alemão e filosófico, uma tentativa de dizer</p><p>algo próximo da essência criativa e</p><p>significativa da obra de arte. Esta palavra</p><p>espírito, pode suceder dois caminhos o</p><p>hegeliano, ouçamos o tópico 26 da</p><p>Fenomenologia do Espírito: “O espírito, que se</p><p>sabe desenvolvido assim como espírito, é a</p><p>125</p><p>125</p><p>ciência. A ciência é a efetividade do espírito. O</p><p>reino que para si mesmo constrói seu próprio</p><p>elemento” (1988, p.34). Agora , retomemos o</p><p>Adorno “comensuráveis ao conceito” que tem</p><p>em parte um acordo com Hegel, não completo,</p><p>e depois com Dilthey, como atividade racional</p><p>do homem, ideia esta presente nos Estudos</p><p>sobre os Fundamentos da Ciências do</p><p>Espírito e Teoria das Concepções do Mundo;</p><p>• O que ele quer dizer com comensuráveis - que</p><p>poderia ser medido, delimitado e até</p><p>interpretado pelo conceito, mas não é o</p><p>conceito, se quer uma forma do conceito, é</p><p>somente comensurável a ele.</p><p>• Há uma desconfiança de Adorno neste sentido:</p><p>na Dialética do Esclarecimento ele vai usar</p><p>Friedrich Schelling e dizer: “ a arte entra em</p><p>ação quando o saber desampara os homens”;</p><p>• Agora nossa posição independente de Adorno,</p><p>é concluir que a obra de arte, incontrolável</p><p>mesmo nascendo pelo vetor humano, pode</p><p>126</p><p>126</p><p>sugerir perguntas e respostas universais em</p><p>moto-contínuo, ou perpetum mobile...</p><p>Parece a força da representação artística o elemento</p><p>do “médium-da-arte” como gostava Walter Benjamin,</p><p>para determinar que sugestão do belo, do feio, do</p><p>sublime, do grotesco, das sensações, do inexplicável</p><p>como caminhos não-filosóficos da arte e da literatura:</p><p>lembremos o Mallarmé da epígrafe, na primeira página:</p><p>“Nessas paragens do vago onde toda realidade se</p><p>dissolve”, isto se encontra no “Un coup de Dés”, ou “Um</p><p>relance de Dados”.</p><p>Se a arte ou a literatura(como arte) tem a função de</p><p>dissolver a realidade, já cumpriu uma missão ímpar,</p><p>como espelho ao homem, onde a arte diria o tempo todo,</p><p>e todo o tempo, que ao homem nada cabe, que o homem</p><p>nada é, que o homem nada está, que o homem nada tem a</p><p>não ser o seu segundo seguinte em que a realidade</p><p>dissolvida é substituída pela realidade absorvida e pela</p><p>utopia da realidade perfeita.</p><p>E o aspecto político mais singular da arte é lembrar</p><p>ao homem que ele faz parte deste imbróglio e não pode</p><p>fugir, e que ele decidirá se usará esta arte como</p><p>memória, gesto do passado, ou como futurologia,</p><p>127</p><p>127</p><p>condição evolutiva para um presente mais digno como</p><p>humano.</p><p>Vejam, como exemplo, o amor, tema caro às artes e</p><p>a literatura. Este tema é matéria das artes como aquilo</p><p>que o homem pensa nunca ter dominado e nunca poder</p><p>dominar.</p><p>O amor é o mais político de todos os temas, uma</p><p>vez que ele é passado como memória, presente como</p><p>sentimento, futuro como obsessão do homem singular</p><p>equilibrado, que só existe como premissa e desejo, não</p><p>há humanos equilibrados. Mas o amor é antes de tudo lei</p><p>universal, algo que o homem nominou, não sabe o que é</p><p>e como nasceu ou para onde vai e de onde veio.</p><p>Todas as personagens que prometem amor, nunca</p><p>dão qualquer amor a não ser a promessa do amor mais</p><p>lindo do mundo. Todas as obras que se dizem como</p><p>apresentação do amor e/ou das formas do amar, vagam</p><p>na incerteza de estarem falando ou tratando mesmo do</p><p>amor. O amor se apresenta como proibido e clandestino</p><p>menos pela sua exuberância e mais pelo seu perigo, sua</p><p>incapacidade de ditar ou dizer a realidade.</p><p>O amor é uma abstração, pois se mostra como</p><p>posse, é fruto dos humores e paixões humanas, é índice</p><p>de materialidade pela pele, é sexo ou carinho, ou ambos,</p><p>mas ainda não é amor, pois o retrato do amor nas artes</p><p>128</p><p>128</p><p>como essência é sempre dado como não encontrado ou</p><p>essência de uma abstração não alcançável pelo humano,</p><p>nas suas limitações e na sua finitude reles, pois homem e</p><p>amor são finitos na condição humana, mas o homem</p><p>sempre expõe o amor como maior que a sua apropriada</p><p>condição de finitude no humano, e ao divinizar o amor, o</p><p>homem só carrega o amor de utopias, nada além disso.</p><p>Todavia impressiona que tenha sido o amor, um</p><p>tema, ou uma lei universal das artes, uma vez que dita a</p><p>regra dialética política do mundo, o amor ou a falta dele</p><p>produziu todas as personagens amadas ou mal amadas,</p><p>nas quais estamos ancorados e escorados como exemplos</p><p>dos costumes do homem, ou no mínimo, o amor é</p><p>explorado para esta dialética do belo e do feio, e nossa</p><p>negociação sensorial com os sons, imagens e toques</p><p>produzidos pelo tema do amor, como no Poema dos</p><p>olhos da amada de Vinícius de Moraes:</p><p>Ó minha amada que olhos os teus</p><p>São cais noturnos</p><p>Cheios de adeus</p><p>São docas mansas</p><p>Trilhando luzes</p><p>Que brilham longe</p><p>Longe nos breus...</p><p>Ó minha amada que olhos os teus</p><p>Quanto mistério</p><p>129</p><p>129</p><p>Nos olhos teus</p><p>Quantos saveiros</p><p>Quantos navios</p><p>Quantos naufrágios</p><p>Nos olhos teus...</p><p>Ó, minha amada de olhos ateus</p><p>Quem derá um dia</p><p>Quisesse Deus</p><p>Eu visse um dia</p><p>O olhar mendigo</p><p>Da poesia</p><p>Nos olhos teus...</p><p>Ó minha amada que olhos os teus...</p><p>Não estou aqui trazendo qualquer novidade,</p><p>contudo temos um problema de ordem prática, queremos</p><p>que a obra de arte e a obra literária dê uma resposta ao</p><p>mundo sobre as coisas? Diga por exemplo, o que o amor</p><p>é? A educação artística e literária seriam hermenêuticas</p><p>do mundo, mas não hermenêuticas filosóficas, cuja</p><p>explicação e apropriação dos significados sobre mundo</p><p>fossem complementares ou até mesmo maneiras</p><p>filosóficas distintas dos tratados ou do conjunto</p><p>conceitual das filosofias.</p><p>Veja que um verso como: “Ó minha amada de</p><p>olhos ateus” nada ensina sobre o ateísmo, resgata uma</p><p>particularidade do ateísmo, a descrença, para falar de</p><p>olhos que não creem. Não creem em quê? Talvez no</p><p>130</p><p>130</p><p>amor, e por isso sejam tão factíveis a produzir o amor</p><p>mais profundo.</p><p>Para concluir esta primeira parte eu sugiro que seja</p><p>discutida a questão complementar do papel político da</p><p>arte e como atuaria este papel político num projeto não-</p><p>filosófico, relembrando ao homem por meio da narrativa</p><p>ou dos sentidos de sua natureza e de sua participação na</p><p>phísis(Natureza). Essa participação não se daria pela</p><p>dinâmica das consciências ou dos modelos racionais, mas</p><p>pela trajetória de um modelo estético(aqui o estético</p><p>como artístico, como parâmetro</p><p>do Belo). Essa segunda</p><p>seção tentaria por vez encaminhar esta lei universal da</p><p>arte e da literatura(como arte): o seu caráter não-</p><p>filosófico e a outra forma de pensar as coisas da natureza</p><p>toda, da qual homem e universo são partes...</p><p>2 - A natureza da arte e da literatura baseada nesta</p><p>lei universal não-filosófica</p><p>O belo é uma condição especial da concordância</p><p>humana, mas se quer existe entre os não humanos como</p><p>categoria, mesmo que alguém perceba que um outro ser</p><p>vivo fique estupefato ante uma cor, um som, um gesto,</p><p>ou algo da amplificação dos sentidos, o belo será ainda</p><p>uma categoria humana e politicamente humana.</p><p>131</p><p>131</p><p>O belo é uma categoria que parte dos homens a</p><p>partir de uma determinada sessão da História e com</p><p>durabilidade consistente passou a designar a natureza da</p><p>arte e da literatura para esboçar as coisas como elas são a</p><p>partir dos sentidos do homem e para especular sobre o</p><p>próprio homem e sua dimensão como possibilidade de</p><p>sua pequenez e grandiosidade, e por isso o gesto barroco</p><p>foi o mais tenso da História da Arte por colocar isso em</p><p>pratos limpos, ou num debate de desgastes fundamentais</p><p>e inevitáveis.</p><p>O que havia de horroroso nos quadros de El Greco</p><p>era o que havia de mais sublime sagrado sobre</p><p>personagens míticas do sagrado cristão. A deformidade</p><p>de um anjo já alucinava quem via, mas a deformidade de</p><p>Jesus Cristo, era uma homenagem e ao mesmo tempo um</p><p>sacrilégio, veja o quadro da “Crucificação” e a nudez</p><p>deformada de Deus.</p><p>Mas foram os românticos mesmos que tiveram a</p><p>ousadia de tentar interpretar como a natureza produz o</p><p>belo e o feio, sem negociar com os seus antagonismos</p><p>essenciais, e como a arte se construiu a partir desta</p><p>beleza construída sem o homem saber como foi e como o</p><p>homem quis transformar este ato da natureza em ato</p><p>também seu, mesmo que modificado.</p><p>132</p><p>132</p><p>Nasce daí a arte, e podemos reverberar esta ideia a</p><p>partir do romântico Scheleirmacher - “A natureza produz</p><p>o belo de maneira dispersa e insólita há de haver no</p><p>homem um princípio de consulta e organização que lhe</p><p>seja próprio e dele mesmo que nasça a arte.”(pág.23).</p><p>Aristóteles já teria dito que os homens gostam mesmo de</p><p>imitar os eventos e as coisas construídas pela natureza.</p><p>A pergunta chave é se desde Aristóteles o conceito</p><p>de mímesis é debatido como se a arte fosse um modo de</p><p>imitação prazeroso da natureza, o pensamento moderno a</p><p>partir de certas correntes filosóficas deslocou este</p><p>conceito de imitação para o conceito de criação, onde a</p><p>arte poderia se apresentar como uma das formas de</p><p>organização da natureza pelo homem, e assim</p><p>poderíamos implicar sem perder de vista a lei universal</p><p>das artes e da literatura como condição transformadora da</p><p>natureza pelo homem, logo política a partir de quatro</p><p>princípios:</p><p>2.1 – A natureza e seu belo</p><p>O belo da natureza, a partir de qualquer exemplo, é</p><p>a leitura dos sentidos humanos sobre ela, e não podemos</p><p>se quer apontar que para um bem-te-vi que vê a cachoeira</p><p>de uma vista privilegiada e em certa medida longe dos</p><p>133</p><p>133</p><p>seus perigos, que o passarinho perceba pelo próprio</p><p>instinto de sobrevivência que não deve chegar perto</p><p>demais da queda de água, e que, ainda, o animal pare em</p><p>frente à queda do alto, pois está apreciando e se</p><p>aprazendo do belo que é a própria natureza da queda da</p><p>água ou do curso de água.</p><p>O belo da natureza não é percebido pela natureza,</p><p>até que o homem possa ter provas que existe esta</p><p>categoria semelhante entre outros seres de apreciar e se</p><p>aprazer diante do objeto natural e de forma</p><p>estupefaciente pôr-se entre o gigantismo, ou o</p><p>brilhantismo, a coloração, ou a força, entre tantas</p><p>características que colocam o homem neste estado de</p><p>admiração, por isso, nesta relação de não definição da</p><p>natureza e sua beleza e no surgimento do processo</p><p>artístico para dizer isso, sugerimos duas condições entre</p><p>tantas:</p><p>a) a natureza pode ser reconhecida na sua</p><p>múltipla criatividade natural e a sua lógica</p><p>interna não guarda menos que infinitas</p><p>possibilidades mutativas e reconstrutivas a</p><p>partir de suas forças orgânicas insabidas pelo</p><p>homem - o exemplo das cores das borboletas,</p><p>que sofrem tanta variação dentro da mesma</p><p>134</p><p>134</p><p>família e geram inveja às simples colorações</p><p>da pele humana, que tem duas ou três</p><p>possibilidades ante as borboletas, pra ficarmos</p><p>só nas borboletas, contudo se oferecermos a</p><p>uma mulher um vestido muito belo colorido</p><p>feito pelo melhor estilista de Milão, ou de</p><p>outro lugar do mundo, ela ficará deslumbrada e</p><p>agradecida, mas não dê a ela a oportunidade</p><p>mutante de ter na sua pele as milhares de cores</p><p>de uma asa de borboleta, por quê?</p><p>b) o artista reconhece esta múltipla criatividade e</p><p>concorre com a mímese - os girassóis de Van</p><p>Gogh imitam a perfeição dos girassóis? Não,</p><p>mas imitam com o máximo de zelo humano</p><p>pela construção de proximidade e percepção</p><p>daquela beleza natural, para dar ao homem</p><p>caminhos, mesmo que de imitação da</p><p>constante mudança criativa da natureza, que</p><p>sem apelo mantém-se viva.</p><p>Síntese: aqui a arte é o não-filosófico na medida em que</p><p>ela não explica a natureza e nem tenta, somente imita! A</p><p>imitação já é gesto suficiente, mesmo que ao homem</p><p>possa ser reconhecida como limitação, mas sua</p><p>135</p><p>135</p><p>variabilidade é tão grandiosa como a da natureza em</p><p>transformar-se e se (re)propor na cadeia re(construtiva)</p><p>do universo. Contudo, o homem cria padrões de gosto, e</p><p>mesmo as exuberâncias exageradas da natureza são</p><p>controladas pelo homem no âmbito ou de sua</p><p>criatividade ou de seu uso, uma vez que uma mulher não</p><p>deseja uma pele multicolorida é ou por deficiência</p><p>psíquica, ou por falta de liberdade na limitação humana</p><p>de transformação que afastou o homem da natureza e de</p><p>seus riscos.</p><p>2.2 - A natureza e a provocação estética no homem</p><p>O reconhecimento é a matriz humana mais</p><p>generosa nas relações do homem contudo que não é ele, e</p><p>vejamos que como objeto da natureza o homem também</p><p>não reconhece grande parte do que há nele, se quer</p><p>domina. Da parte que reconhece é provocado a entender,</p><p>seja pela ciência, seja pelo outro modo do entendimento,</p><p>a sensibilidade ante as coisas e a si mesmo, do universo</p><p>de exploração estética da natureza como um todo.</p><p>Vamos usar a palavra admiração para tratar daquilo</p><p>que o homem observa, sente e tenta compreender, a fim</p><p>de justificar que não ficamos como outros seres</p><p>satisfeitos nas nossas meras medidas fisiológicas. Esta</p><p>136</p><p>136</p><p>tentativa de aprimoramento e fuga do primitivo instinto</p><p>constrói as duas visões a seguir, mesmo que tenhamos</p><p>colocado como medo, fobia, a ideia do homem em se</p><p>entregar a experiências mutantes com a natureza e suas</p><p>possibilidades:</p><p>a) o homem busca admiração / contemplação /</p><p>grandeza / absurdação / o inexergável / o</p><p>inessentível - como exemplos: um cânion, um</p><p>animal estranho, um fenômeno natural</p><p>inusitado e reativo: um tufão(comentar), um</p><p>vírus, uma ideia, tudo isso constrói o jogo</p><p>humano em aproximar-se ou quedar-se pelas</p><p>inúmeras possibilidades provocativas ao</p><p>homem que a natureza entrega de forma</p><p>inconsciente;</p><p>b) o artista na mímese tenta traduzir estes</p><p>fenômenos sinestésicos, ou cognitivos, então</p><p>nos perguntamos, por que na Pastoral de</p><p>Beethoven, Sinfonia nº 06 ou na Sagração da</p><p>Primavera de Stravinsky, os artistas tentaram</p><p>nos convencer que as sensações da natureza</p><p>poderiam ser transmitidas pela música? É</p><p>possível transmitir pelos sons reconstruídos</p><p>137</p><p>137</p><p>por instrumentos ou vozes, o grito noturno dos</p><p>animais, o silvo do vento nas águas, o balançar</p><p>das folhas, flores e arbustos, o silêncio das</p><p>sendas? Quem ouve estas peças musicais</p><p>sugeridas se entorpece ante a possibilidade</p><p>organizada do homem criativo em reproduzir</p><p>estes cenários naturais e dar a entender até</p><p>aspectos que lá você não encontraria a não ser</p><p>na floresta ou nos campos da própria música, e</p><p>pela arte seria ainda possível tornar estes sons</p><p>mais que reconhecíveis,</p><p>desconhecido”. Aqui</p><p>fica mais uma provocação: seria o “eterno desconhecido”</p><p>maior do que “conhecido em potencial”? Em outras</p><p>palavras, se considerarmos o conjunto de todas as</p><p>perguntas que o homem é capaz de fazer e compararmos</p><p>com o conjunto de todas as perguntas que o homem</p><p>jamais irá fazer, qual seria maior?</p><p>2 - Aquilo que nos limita – O Sistema Ω</p><p>Mais uma vez, pergunto: quais são as perguntas</p><p>que somos capazes de fazer?</p><p>Precisamos aqui retomar nosso postulado “II”: “por</p><p>uma limitação da ciência atual e também de linguagem, é</p><p>possível que o homem não seja capaz de responder,</p><p>provisoriamente, perguntas que é capaz de fazer”. Para</p><p>que possamos aprofundar um pouco mais as ideias</p><p>discutidas até aqui, apresento a seguir a Figura 1 que</p><p>contém uma sistematização gráfica de alguns elementos</p><p>importantes. A Figura 1 apresenta um diagrama de</p><p>conjuntos. No diagrama há, explicitamente, cinco</p><p>conjuntos principais. A saber: Ω, β, a, b e η. O conjunto</p><p>Ω representa todas as perguntas que existem sobre o</p><p>16</p><p>Universo, a despeito de quem6 tenha capacidade de fazê-</p><p>las. O conjunto β contém todas as perguntas que o</p><p>homem é capaz de fazer. Note que se trata das perguntas</p><p>que potencialmente podem ser elaboradas pelo homem,</p><p>mas que não necessariamente já foram feitas. Os</p><p>conjuntos a e b representam perguntas que podem ser</p><p>feitas a partir de uma determinada área do conhecimento</p><p>(ex.: física, matemática, filosofia) utilizando uma</p><p>determinada linguagem (ex.: diagramas, desenhos,</p><p>operações matemáticas, esquemas, línguas7). Aqui vamos</p><p>chamar a união “área do conhecimento + linguagem” de</p><p>“sistema”.</p><p>6 Aqui, a palavra “quem” se refere a qualquer entidade inteligente</p><p>capaz de elaborar perguntas. Importante destacar que essas entidades</p><p>inteligentes não se limitam necessariamente àquilo que vivo.</p><p>Máquinas não biológicas inteligentes também são incluídas.</p><p>7 Línguas no sentido de idiomas.</p><p>17</p><p>O Sistema Ω</p><p>Figura 1: A figura apresenta o conjunto Ω que contém todas as</p><p>perguntas que podem ser feitas sobre o Mundo. O conjunto β que</p><p>contém todas as perguntas que podem ser feitas pelo homem. E os</p><p>conjuntos a, b e η que contêm perguntas que só podem ser feitas</p><p>quanto elaboradas a partir de uma (ou algumas) determinada área do</p><p>conhecimento construídas sobre o alicerce de uma (ou algumas)</p><p>determinada linguagem.</p><p>Perceba que é possível haver uma interseção</p><p>(pontinhos pretos) de “classes de perguntas” que podem</p><p>ser feitas por mais de uma área do conhecimento,</p><p>utilizando mais de uma forma de linguagem, ou seja, por</p><p>diferentes sistemas. É o caso, por exemplo, da interseção</p><p>entre os conjuntos a e b, conforme Figura 2. A fim de</p><p>18</p><p>esclarecimento, destaca-se que o conjunto a representa as</p><p>perguntas que podem ser alicerçadas sobre um sistema a</p><p>composto por “área do conhecimento a + linguagem a” e</p><p>o conjunto b representa as perguntas que podem ser</p><p>alicerçadas sobre um sistema b composto por “área do</p><p>conhecimento b + linguagem b”.</p><p>Figura 2: Figura que evidencia (área sombreada) a classe de</p><p>perguntas que podem ser elaboradas tanto pelo sistema a quanto pelo</p><p>sistema b. sistema = área do conhecimento + linguagem.</p><p>Outras duas áreas importantes da Figura 1 precisam</p><p>ser destacadas. A parte cinza, que apresenta todas as</p><p>perguntas que jamais serão feitas pelo homem, aqui</p><p>chamado de “halo da ignorância eterna”, e a parte branca</p><p>pertencente à β, externa aos conjuntos a, b e η, mas</p><p>interna ao halo da ignorância eterna, que apresenta todas</p><p>as perguntas que o homem possui capacidade para fazer,</p><p>mas ainda não fez. Em outras palavras, trata-se de uma</p><p>19</p><p>representação da ignorância provisória do homem8 e não</p><p>da ignorância eterna.</p><p>Finalmente, é preciso esclarecer o significado do</p><p>conjunto η. Trata-se de conjunto inserido no gráfico para</p><p>representar o conjunto das perguntas construídas sobre</p><p>“n” possíveis sistemas, conforme se observa na Figura 3.</p><p>Em essência, tem significado similar aos conjuntos a e b,</p><p>mas distingue-se por não representar um sistema</p><p>específico, mas sim todos os sistemas existentes.</p><p>Figura 3: Representação gráfica que apresenta a ideia de que o</p><p>conjunto η é na verdade uma representação genérica de todos os “n”</p><p>sistemas existentes.</p><p>Se o leitor for generoso com o autor, nesta seção</p><p>acabamos de criar um sistema. Alicerçados sobre este</p><p>8 Ignorância provisória em potencial. É possível que parte das</p><p>perguntas contidas nessa parte do gráfico jamais sejam feitas,</p><p>embora pudessem ser. Isso é diferente do “halo da ignorância eterna”</p><p>que contem perguntas impossíveis de serem feitas pelo homem.</p><p>20</p><p>sistema, aqui batizado de O Sistema Ω, podemos agora</p><p>construir ou refazer perguntas. Para exemplificar, vamos</p><p>reconsiderar a pergunta realizada no final da seção</p><p>anterior:</p><p>“Se considerarmos o conjunto de todas as perguntas que</p><p>o homem é capaz de fazer e compararmos com o</p><p>conjunto de todas as perguntas que o homem jamais irá</p><p>fazer, qual seria maior?”</p><p>No nosso Sistema Ω essa pergunta seria feita da</p><p>seguinte forma:</p><p>“β é maior que halo da ignorância ou halo da</p><p>ignorância é maior que β?”</p><p>Espero com este exemplo ter deixado claro a</p><p>utilidade dos sistemas. Perceba que o exemplo</p><p>apresentado trouxe uma pergunta que pôde ser feita</p><p>utilizando dois sistemas diferentes. Mas é fundamental</p><p>destacar que, dentro da lógica construída no O Sistema</p><p>Ω, algumas perguntas só poderão ser feitas por sistemas</p><p>específicos (ex.: sistemas a e b, excetuando a interseção.</p><p>Ver Figura 2), algumas, embora possíveis, não serão</p><p>feitas por limitações dos sistemas existentes (área</p><p>21</p><p>pertencente à β, interna ao halo, mas externa aos</p><p>conjuntos a, b e η) e outras jamais serão feitas por</p><p>limitações da capacidade intelectual humana (halo da</p><p>ignorância eterna).</p><p>Voltemos agora “àquilo que nos limita”.</p><p>Considerando os argumentos apresentados, podemos</p><p>afirmar que temos uma limitação definitiva, representada</p><p>pelo “halo da ignorância eterna”, vinculada às limitações</p><p>cognitivo-intelectuais do humano, e, uma limitação</p><p>provisória em potencial, vinculada aos sistemas9 que</p><p>ainda não foram desenvolvidos pelo próprio homem.</p><p>Agora que temos a definição do Sistema Ω,</p><p>podemos refletir sobre um novo ponto. É possível que</p><p>estejam contidas no conjunto β perguntas absurdas? Seria</p><p>possível considerar que qualquer pergunta legítima sobre</p><p>o Universo esteja na verdade contida dentro do halo da</p><p>ignorância? Será que há alguma pergunta legítima dentro</p><p>de β?</p><p>Afinal, será que o homem já fez alguma pergunta</p><p>legítima?</p><p>9 Embora já destacado em momento anterior do texto, vale aqui</p><p>ressaltar mais uma vez o significado de “sistema” definido pelo</p><p>autor. Trata-se de combinação “área do conhecimento + linguagem”</p><p>sobre a qual perguntas e, como consequência, respostas, podem ser</p><p>elaboradas.</p><p>22</p><p>3 - As perguntas absurdas que fazemos (ou faremos)</p><p>Na seção anterior, na Figura 1, foi apresentado o</p><p>diagrama do Sistema Ω. É preciso destacar que se trata</p><p>de um esboço de sistema e que o modelo final nem</p><p>mesmo ainda está finalizado na cabeça do autor. Trata-se</p><p>de uma tentativa ainda incipiente de sistematizar ideias</p><p>inacabadas (possivelmente para sempre). Para reforçar</p><p>essa ideia, considere a Figura 4. É preciso destacar que</p><p>na figura temos conjuntos isolados, união de conjuntos,</p><p>interseção de conjuntos e conjuntos contidos em outros</p><p>conjuntos.</p><p>A ideia que se quer passar é a de que há perguntas</p><p>que podem ser construídas por mais de um sistema, há</p><p>perguntas que só podem ser construídas por um único</p><p>sistema específico e que há sistemas desnecessários</p><p>contidos em sistemas mais completos. Enfim, fica</p><p>patente que o Sistema Ω apresentado na Figura 2 é uma</p><p>simplificação bastante grosseira, mas que serve ao seu</p><p>propósito: ajudar o autor e o leitor</p><p>eles se tornariam</p><p>matéria de inteligência sobre suas formas,</p><p>poder, ação e utilidade.</p><p>Síntese: aqui a arte é o não-filosófico, na medida em que</p><p>ela não explica o estético como primazia sensorial da</p><p>natureza, mas tão somente relembra ao homem, cores,</p><p>cheiros e visões da phísis ou da própria natureza humana/</p><p>o imaginativo e o representável. como formas absolutas</p><p>de aparecermos enquanto parte do universo que</p><p>reconhecemos.</p><p>138</p><p>138</p><p>2.3 - A natureza e o prazer/desprazer no e do homem</p><p>A questão do prazer nas artes tem uma história</p><p>crítica e filosófica já muito bem demarcada,</p><p>principalmente nas discussões sobre o aprazimento do</p><p>homem em torno da sua criatividade e imitação, como</p><p>também nas profundas relações do utilitarismo que quase</p><p>sempre em medida geral vincularam a arte ao fazer</p><p>humano mais acessório e secundário, mesmo que</p><p>historicamente a arte tenha servido aos pressupostos de</p><p>diversão e alienação.</p><p>Por outro lado, o prazer enquanto sensação</p><p>corpórea, numa medida de exercícios artísticos apelativos</p><p>aos sentidos humanos diversos, desde o gosto na</p><p>culinária até o tato como uma das ações do corpo na</p><p>dança ou no teatro construíram vinculações consideradas</p><p>infrutíferas, ora pervertidas, ora baldadas subjulgando a</p><p>arte e suas formas ao imediato processo de perseguição</p><p>ou de defenestração pelo homem em sociedade.</p><p>É impressionante que o estímulo do prazer ou do</p><p>desprazer tenha composto uma resistência da própria arte</p><p>e até uma percepção de que talvez a necessidade humana</p><p>do prazer não podia estar condicionada ou limitada pela</p><p>História, se quer pelas instituições abstratas e/ou</p><p>concretas que dominam o círculo humano das</p><p>necessidades mais preementes. É por isso, o prazer,</p><p>139</p><p>139</p><p>primeiramente um campo de sensações humanas</p><p>naturais? E como se averiguar o prazer, enquanto</p><p>elementos criativos e hiper dimensionados na construção</p><p>artística? Seria o prazer a medida não-filosófica ou o</p><p>objetivo universal inconsciente da arte?</p><p>a) A sensação de prazer e a intervenção física</p><p>corpórea, por ações bivalentes - as águas de</p><p>uma cascata num banho sobre o corpo</p><p>humano, o cheiro de limões; o canto agudo de</p><p>um passáro: um tufão; o orgasmo humano.</p><p>Todas essas sensações são vistas pelos homens</p><p>como prazerosas, no simples sentido de que o</p><p>prazer é o estímulo no grau mais suportável ou</p><p>não do homem em relação aos sentidos e sua</p><p>extrapolação, e até mesmo o artifício das</p><p>tentativas ousadas sobre o que a natureza</p><p>sugere e/ou dá ao homem;</p><p>b) o artista tenta construir um espaço de</p><p>intervenção que reproduza a sensação estética</p><p>de prazer ou desprazer, a continuidade no</p><p>campo da mímese - o poema “os limões”, por</p><p>exemplo, de Eugênio Montale, tentou este</p><p>140</p><p>140</p><p>gesto de ousadia ou até mesmo de extrapolação</p><p>pela criatividade da palavra, leiamos o poema:</p><p>OS LIMÕES</p><p>Escuta-me, os poetas laureados</p><p>circulam apenas entre plantas</p><p>de nomes pouco usados: buxeiros alienas ou acantos.</p><p>Eu, por mim, prefiro os caminhos que levam às valas</p><p>cheias de mato onde em lamaçais</p><p>já meio secos meninos apanham</p><p>alguma esquálida enguia:</p><p>as trilhas que bordejam os taludes descem por entre os tufos</p><p>de caniços</p><p>e se metem nas hortas, entre os pés de limão.</p><p>Tanto melhor se a algazarra dos pássaros</p><p>se dissipa engolida pelo azul:</p><p>mais claro se escuta o sussurro</p><p>dos galhos amigos no ar que mal se move,</p><p>e as sensações deste cheiro</p><p>que não se larga da terra</p><p>e faz chover no peito uma doçura inquieta.</p><p>Aqui se cala por milagre</p><p>a guerra das desencontradas paixões,</p><p>aqui até a nós, os pobres, toca uma parcela de riqueza</p><p>e é o cheiro dos limões.</p><p>Vê, neste silêncio no qual as coisas</p><p>se entregam e parecem prestes</p><p>a trair o seu último segredo,</p><p>às vezes esperamos</p><p>descobrir um defeito da Natureza,</p><p>141</p><p>141</p><p>o ponto morto do mundo, o elo que não prende,</p><p>o fio a desenredar que enfim nos leve</p><p>ao centro de uma verdade.</p><p>O olhar perscruta em volta,</p><p>a mente indaga concerta desune</p><p>em meio ao perfume que se espalha</p><p>enquanto o dia enlanguesce.</p><p>São os silêncios em que se vê</p><p>em cada sombra humana que se afasta</p><p>alguma Divindade surpreendida.</p><p>Mas a ilusão se desfaz e o tempo nos devolve</p><p>à cidade ruidosa onde o azul mostra-se</p><p>apenas por retalhos, no alto, entre as cimalhas.</p><p>Castiga a chuva a terra, então; se espessa</p><p>o tédio do inverno sobre as casas,</p><p>a luz torna-se avara — a alma, amarga.</p><p>Quando um dia de um portão malfechado</p><p>entre as árvores de um pátio</p><p>nos surge o amarelo dos limões;</p><p>e no coração o gelo se dissolve,</p><p>e no peito estalam</p><p>suas canções</p><p>as trombetas de ouro da solaridade.</p><p>(Eugênio Montale - poeta italiano - 1896-1981; trad. Geraldo</p><p>H. Cavalcanti)</p><p>Marca uma leitura atenta do poema, a perspectiva</p><p>de sublevar os sentidos humanos e todos eles</p><p>apresentados numa dimensão que ao homem do dia-a-dia</p><p>por mais que perceba e até mesmo se encante, não daria a</p><p>142</p><p>142</p><p>este prazer tanto tempo o quanto doa as próprias</p><p>sensações comuns do ato de sobreviver.</p><p>O prazer e o desprazer estariam numa posição</p><p>humana contrária a da sobrevivência, precisou o homem</p><p>constituir espaços confortáveis de segurança para o nível</p><p>de sobrevivência mínima a ponto de colocar até mesmo a</p><p>sobrevivência em cheque numa medida de ter o mais</p><p>elevado possível na sua dimensão consciente o que o</p><p>prazer ou o desprazer podem proporcionar, mesmo</p><p>lembrando que num gesto retórico o desprazer seria nada</p><p>mais que a forma contrária do prazer só enquanto</p><p>percepção subjetiva e interpretativa da cultura.</p><p>Na dimensão do humano, encontraríamos uma</p><p>síntese bem objetiva a nossa incapacidade de explicar se</p><p>o prazer não teria na arte uma vontade de dizer e fazer</p><p>como nos coloca Schopenhauer sobre o Gênio na</p><p>Metafísica do Belo: “Apenas pela pura contemplação a</p><p>dissolver-se completamente no objeto é que as ideias são</p><p>apreendidas”(2003, p.61), e então o prazer e o desejo</p><p>seriam mais algumas formas de conhecimento e encontro</p><p>com a ciência ao ponto de dar a arte uma utilidade.</p><p>Síntese: aqui a arte é o não-filosófico na medida em que</p><p>provocar o espaço de prazer do homem relembrando o</p><p>cheiro dos limões, não é só mais imitação, nem o</p><p>143</p><p>143</p><p>sensorial, é uma memória que não precisa ser explicada</p><p>nem como História(fato), nem como Conceito(Ciência)/</p><p>a natureza da métafora e das percepções constrói um</p><p>homem para uma perspectiva mais ampla, sem dúvida.</p><p>2.4 - A natureza cria maravilhas insuperáveis, e desafia o</p><p>homem, para além do espanto</p><p>Nos momentos em que o homem está diante de um</p><p>elemento da natureza que lhe pareça ínfimo ou</p><p>grandioso, as especulações estão em torno do espanto, do</p><p>espasmo e da epifania do objeto aos olhos do homem ou</p><p>a outro elemento da sua cognição sensível, no sentido de</p><p>uma educação da humanidade na apreciação e no contato</p><p>com estes objetos da natureza que refletem várias</p><p>sensações e ideias, entre elas a construção de duas</p><p>óbvias, quem ou como criou o tamanho gigantismo ou a</p><p>destacada pequenez nestas peças da natureza? Isso</p><p>lembra Pascal nos “Pensamentos”. E a segunda pergunta</p><p>nasce sobre até que ponto posso conhecer estas criações e</p><p>como posso reproduzí-las?</p><p>Afirma-se, por exemplo, no Brasil, que Villa Lobos</p><p>teria ficado encantado com o cantar do Uirapuru e por</p><p>isso teria construído sua suíte sinfônica.</p><p>144</p><p>144</p><p>Quem para pra ouvir e recorre a lenda consegue</p><p>construir as associações com o aspecto noturno da</p><p>música e se enleva facilmente com o flautim a reproduzir</p><p>o canto do pássaro, mas dignou-se o compositor a</p><p>reproduzir com a orquestra a mobilidade selvagem do</p><p>ambiente do pássaro, em instrumentos que atordoam ou</p><p>batem, ou gritam, e retornam a aura noturna posta no</p><p>início da sinfonia, este jogo de pássaro, floresta e noite</p><p>indo e vindo é como se o músico pudesse dar pela sua</p><p>arte o mesmo gigantismo da floresta e constituísse no</p><p>pequeno animal outro gigantismo o do seu canto</p><p>melódico e das suas nuances</p><p>e curvas, realmente</p><p>angustiantes, mas deliciosas, performáticas, mas</p><p>melancólicas, contudo no afã de esboçar a mais perfeita</p><p>música sobre algo que se assoberbou parece perder-se o</p><p>compositor no papel político e social de sua música ao</p><p>colocar um ritual indígena em meio a sinfonia, e por mais</p><p>que aquilo se explique na lenda, não se afirma no fazer</p><p>artístico, ou não há nada desse absoluto do canto do</p><p>pássaro, a não ser a tentativa do homem em interpretar ao</p><p>seu modo, o espanto, a epifania, o espasmo, todas essas</p><p>reações corpóreas ao pensamento e sentimento que a</p><p>natureza pode dar ao homem na sua relação de contato e</p><p>descoberta. Possivelmente, se este meu texto tem relevo</p><p>fará pulsar de raiva os admiradores de Villa Lobos, como</p><p>145</p><p>145</p><p>eu, mas se perguntaram com que audácia critico eu o</p><p>trabalho do músico modernista brasileiro.</p><p>Este entrar em contato e este dignar-se a imitar o</p><p>processo criativo apresenta ainda duas circunstâncias:</p><p>a) Como criar algo equivalente a algo tão</p><p>surpreendente - a aurora boreal? Uma tela de</p><p>pintura poderia reproduzir a dimensão</p><p>daquelas cores e luzes, ou da falta de luzes do</p><p>processo, e quando o artista, por exemplo, se</p><p>coloca a disposição de ou “alegorizar” ou</p><p>supra-dimensionar a obra de arte para alcançar</p><p>o tom de grandeza e pequenez que se</p><p>equivalem(no caso da aurora boreal a</p><p>dimensão gigante de sua imagem, ele percebe</p><p>lutar contra o inelutável, e neste momento a</p><p>capacidade humana de trabalhar em partes que</p><p>sejam tão ou mais fabulosas que o todo</p><p>proposto, parecem construir um ambiente ao</p><p>artista que é da ilusão ante a reprodução do</p><p>irreproduzível, mas a certeza de encantar o</p><p>espectador na capacidade de seduzir, captar e</p><p>enredar pela sua construção mais própria e</p><p>original</p><p>146</p><p>146</p><p>b) O artista tenta superar a natureza? Vejamos</p><p>que a escultura do pensador de Rodin, a sua</p><p>mais famosa, “O pensador” reconstrói um</p><p>ambiente de imitação do objeto mais especular</p><p>ao homem, ele mesmo! Como todo grande</p><p>escultor consagrado a monumentalidade de sua</p><p>arte estaria em reproduzir características e</p><p>sentimentos do objeto e até mesmo narrar, de</p><p>forma que entre o domínio da técnica com os</p><p>materiais e a sensibilidade criativa tornam o</p><p>escultor uma espécie de “deus da natureza”, é</p><p>uma das leituras possíveis que em</p><p>comparações com a escultura renascentista,</p><p>Rodin se quer tenha trabalhado com a ideia de</p><p>perfeição dos escultores vultuosos daquele</p><p>período Michelangelo, Bernini, mas ao</p><p>reproduzir sua estupefação ante um objeto da</p><p>natureza, o próprio homem, e este numa</p><p>condição, a de refletir, o seu gesto criativo da</p><p>arte como representação seria um tipo de</p><p>superação irônica da filosofia, e de ampla</p><p>subjetivação da História, na medida em que</p><p>fato e pensamento nada mais são que</p><p>reproduções de um momento e não instâncias</p><p>duradouras ou marcadas por leis tão claras e</p><p>147</p><p>147</p><p>persistentes, e que a lei universal da arte é este</p><p>corpus anti-filosófico e contra-histórico de</p><p>apresentação de uma temporalidade marcada</p><p>por aquilo que encanta e espanta na natureza,</p><p>inclusive do próprio homem.</p><p>Síntese: aqui a arte é o não-filosófico, na medida em que</p><p>o homem intuitivamente pode criar algo tão grandioso e</p><p>inexplicável como um deus (encontrar o gesto criativo</p><p>que marca o homem ante seu paradoxo, todo homem é</p><p>nada mais que mais um objeto da natureza vivo e depois</p><p>morto, mas é o homem o ser criativo que tende a</p><p>desafiar-se no ambiente de reprodução e representação).</p><p>Conclusões</p><p>Neste grupo, Luciano Coutinho sugeriu que eu</p><p>pensasse a filosofia como uma grande forma de</p><p>literatura, vejo dois problemas, ele acabaria com a</p><p>filosofia ou com a literatura, na medida de tornar um</p><p>vínculo entre ambas que parece só existir no uso da</p><p>palavra como meio e técnica para reproduzir suas</p><p>próprias formas de enxergar o mundo, e até concebo um</p><p>hibridismo, mas ler uma como outra é perturbador</p><p>148</p><p>148</p><p>quando por muito tempo, uma foi desafio da outra,</p><p>quando ambas não sabiam o que dizer ou como dizer.</p><p>Cauê Zaghetto viu problema nesta tentativa de</p><p>homens que lidam com a arte em tentar categorizar as</p><p>coisas do homem e da natureza. A categorização é uma</p><p>muleta para assentar as perfumarias de tentativa de</p><p>explicação do surgimento de uma obra de arte boa ou</p><p>não, mas a categorização é também estímulo para</p><p>conformação de um pensamento mais contínuo e menos</p><p>pedante, ou livre demais sobre a arte, esta sim um esteio</p><p>de liberdade, pois do homem pode nascer qualquer coisa,</p><p>imitando ou criando.</p><p>Júlio César questionou-me sobre até que ponto o</p><p>senso de humanidade do homem perverte a liberdade tão</p><p>vista nas obras de arte e na literatura, e acabou por</p><p>imiscuir o discurso de que a arte não congrega com uma</p><p>linha completa de racionalidade, e pode o homem ser</p><p>vetor de criação artística de uma nova natureza sem a</p><p>consciência da mesma, quase como uma daquelas</p><p>equações biológicas que se sabe que existe, mas não se</p><p>tem a certeza última de sua formulação pela complexa</p><p>teia criativa e construtiva dentro dela mesma. Júlio está</p><p>certo quando me fez refletir se o domínio da arte depende</p><p>do domínio do humano, ou de sua condição demiúrgica.</p><p>149</p><p>149</p><p>Daniel Jatobá enredou um problema já posto nas</p><p>reflexões humanas e acadêmicas acerca do</p><p>descredenciamento das artes, o que só faz da arte uma</p><p>filosofia de substituição, que trata do topos filosófico</p><p>sem pedir permissão e a seu modo; ou de uma filosofia</p><p>da subversão, em que pouco importa se há</p><p>credenciamento pela instância científica, uma vez que a</p><p>natureza artística vai na sua dinâmica da inquietude de</p><p>quem a cria, o homem.</p><p>Erick Leão quis me convencer que tudo isso é</p><p>linguagem, mas nem precisava me convencer, é mesmo</p><p>tudo isso linguagem, e a categoria artística vislumbra o</p><p>seu modo e se apresenta diferente e talvez um dia torne-</p><p>se tudo linguagem única novamente, mas o mais</p><p>interessante da contribuição deste físico é que no</p><p>ensaísmo dele, ele propõe esta Paideia tragicômica, e</p><p>aqui a arte parece sempre ter sido uma forma de</p><p>reeducação humana constante como espelho do que há de</p><p>mais letal a nossa alma, e do que há de mais risível ao</p><p>nosso modo, isso já estava nos gregos.</p><p>150</p><p>150</p><p>“Sê plural, como o universo”:</p><p>em defesa do conceito de diafonia para uma</p><p>filosofia simétrica das ciências naturais e sociais</p><p>Daniel Jatobá*</p><p>*</p><p>153</p><p>153</p><p>Introdução</p><p>Os conceitos são a matéria prima do trabalho</p><p>filosófico. É o seu princípio, meio e fim. Os conceitos de</p><p>filos e ágon fazem parte da tradição filosófica ocidental</p><p>como uma espécie de metaconceitos que definem a</p><p>própria filosofia. O filósofo é um amigo ou amante (no</p><p>grego, filos) do conhecimento realizado através de puros</p><p>conceitos – ou, ainda, o seu eterno pretendente, mesmo</p><p>que nunca tenha a garantia de conquistá-lo de modo</p><p>definitivo –, sendo a filosofia um espaço de rivalidade,</p><p>competição ou disputa (no grego, ágon) de indivíduos</p><p>livres e conscientes das possibilidades e dos limites das</p><p>suas pretensões filosóficas.</p><p>Se a filosofia “é a arte de formar, de inventar, de</p><p>fabricar conceitos” e estes não podem prescindir de</p><p>personagens conceituais que caracterizem o seu labor,</p><p>“amigo” é um desses personagens, “uma condição de</p><p>possibilidade do próprio pensamento, uma categoria</p><p>viva, um vivido transcendental” (Deleuze e Guattari,</p><p>2010, p. 8–9). Em outras palavras, “o filósofo é o amigo</p><p>do conceito, ele é conceito em potência” (Deleuze e</p><p>Guattari, 2010, p. 11). Trata-se de uma amizade</p><p>incondicional, embora essa relação afetiva não contamine</p><p>a independência com que os companheiros de empreitada</p><p>rivalizam as suas pretensões conceituais: “amigo de</p><p>154</p><p>154</p><p>Platão, mas mais ainda da sabedoria, do verdadeiro ou do</p><p>conceito, Filaleto e Teófilo...” (Deleuze e Guattari, 2010,</p><p>p. 9). O saber filosófico não é monopólio da civilização</p><p>grega, pois é encontrado em diferentes culturas.</p><p>Porém o</p><p>traço particular do exercício filosófico grego é haver</p><p>formado “sociedades de amigos ou de iguais, mas</p><p>também ter promovido, entre elas e em cada uma,</p><p>relações de rivalidade, opondo pretendentes em todos os</p><p>domínios, no amor, nos jogos, nos tribunais, nas</p><p>magistraturas, na política, e até no pensamento” (Deleuze</p><p>e Guattari, 2010, p. 10).</p><p>Nada do que foi dito até aqui é pensamento</p><p>original, inova ou surpreende aqueles que possuem</p><p>familiaridade com a tradição. O que pretendo acrescentar</p><p>é um terceiro metaconceito, denominado diafonia, de</p><p>modo a completar o sentido dos conceitos de filos e</p><p>ágon. Inspirado no conceito musical que na Grécia</p><p>antiga designava os intervalos dissonantes entre as notas</p><p>da escala (no grego, diaphōnía), o metaconceito proposto</p><p>denota uma realidade filosófica: a diferença radical e a</p><p>convivência necessária da pluralidade de filosofias</p><p>existentes. Cada proposta filosófica em particular extrai</p><p>um direito à existência da sua capacidade de esclarecer,</p><p>para além da sua própria potência, as vulnerabilidades e</p><p>limitações das demais filosofias. Tradicionalmente, as</p><p>155</p><p>155</p><p>filosofias foram marcadas por suas pretensões à</p><p>universalidade. Porém, o que existe são múltiplas</p><p>filosofias particulares, as quais apenas raramente logram</p><p>alcançar algum tipo de consenso.</p><p>Em suma, podemos imaginar o conceito de</p><p>diafonia desde dois pontos de vista: por um lado, ele</p><p>aponta para a existência de uma divergência inescapável</p><p>da pluralidade de filosofias disponíveis – em outras</p><p>palavras, jamais existirá apenas a filosofia, mas sempre</p><p>múltiplas filosofias; por outro lado, o conceito sinaliza a</p><p>vocação de cada filosofia particular de apontar as</p><p>insuficiências e os limites, as lacunas e os equívocos das</p><p>demais. O direito fundamental à existência filosófica de</p><p>um pensamento produzido por puros conceitos é um</p><p>visto como uma forma de resistência, salutar e</p><p>necessária, às pretensões de universalidade de qualquer</p><p>outra filosofia em particular. Não existe, pensando no</p><p>tema particular que interessa aqui, uma filosofia</p><p>universal da ciência: não existem leis universais que</p><p>estipulem, de uma vez por todas, as condições de</p><p>possibilidade da atividade científica. Considerando que</p><p>qualquer conhecimento científico não pode prescindir de</p><p>fundamentos filosóficos que o alicercem, e como a</p><p>existência de filosofias da ciência rivais é um dado da</p><p>realidade, tampouco há que se falar em leis científicas</p><p>156</p><p>156</p><p>universais. Pretensões tradicionais de universalidade</p><p>filosófica e de unidade das ciências, entre outras, são</p><p>encaradas com desconfiança e interpretadas como</p><p>afirmações de poder disfarçadas de atividade puramente</p><p>conceitual. A diafonia produz uma atitude plural diante</p><p>da multiplicidade de filosofias particulares, as quais têm</p><p>na sua capacidade de esclarecer as limitações umas das</p><p>outras, isto é, na sua capacidade crítica, parte da sua</p><p>razão de ser, ou, como enunciado acima, seu direito de</p><p>existir e participar dos debates filosóficos de seu tempo e</p><p>do futuro.</p><p>É evidente que não é qualquer ideia que pode ser</p><p>considerada válida do ponto de vista filosófico ou</p><p>científico. Ambas as atividades são construções coletivas</p><p>que resultam dos esforços comprometidos de gerações de</p><p>indivíduos e culturas, mesmo que separados no tempo e</p><p>no espaço. Qualquer área do conhecimento pressupõe a</p><p>existência de uma comunidade especializada na sua</p><p>produção e crítica. Portanto, não é qualquer mera opinião</p><p>do que tratamos, quando falamos de filosofia ou quando</p><p>discutimos os conhecimentos científicos da humanidade.</p><p>As ideias filosóficas e científicas são submetidas à</p><p>discussão e ao enfrentamento. São apresentadas de forma</p><p>argumentada e estão sujeitas aos debates argumentativos,</p><p>testes empíricos e pragmáticos, enfim, diferentes</p><p>157</p><p>157</p><p>processos de validação, a depender da área da filosofia e</p><p>das inúmeras ciências.</p><p>Desde as suas origens, ao longo dos séculos a</p><p>filosofia ocidental deu azo a um sem-número de questões</p><p>(e.g., questões metafísicas, epistemológicas, éticas,</p><p>relativas à formação de conceitos, à delimitação e</p><p>construção das ciências, à linguagem), ainda que muitas</p><p>delas se mantenham interdependentes. Assim, por</p><p>exemplo, o campo da epistemologia diz respeito às</p><p>fundações filosóficas de nossas pretensões cognitivas. A</p><p>epistemologia envolve questões como “o que podemos</p><p>conhecer cientificamente?”, “como podemos conhecer o</p><p>mundo através da ciência?”, “como demarcar o</p><p>conhecimento científico vis-à-vis outras formas de</p><p>conhecimento?” ou “quais são os limites do</p><p>conhecimento científico?”. Muitas vezes, como se faz no</p><p>presente texto, o termo epistemologia é equivalente à</p><p>filosofia ou teoria da ciência. A separação ou não entre</p><p>“epistemologia” e “filosofia da ciência” depende de</p><p>tradições disciplinares e de escolas de pensamento,</p><p>idiomas nos quais esses termos são empregados ou</p><p>mesmo de sutilezas conceituais que não serão exploradas</p><p>aqui. Para algumas tradições, o termo filosofia da ciência</p><p>adquire uma denotação processual, dizendo respeito a</p><p>problemas do tipo “como lidar com as anomalias</p><p>158</p><p>158</p><p>surgidas entre as novas observações empíricas e os</p><p>paradigmas científicos aceitos pelo conjunto da</p><p>comunidade científica?” ou “como validar as teorias</p><p>científicas ou decidir entre teorias científicas rivais?”.</p><p>Por uma economia de linguagem, no presente texto</p><p>utilizo de forma intercambiável os termos</p><p>“epistemologia” e “filosofia da ciência”.</p><p>Outro campo tradicional da filosofia diz respeito</p><p>às questões ontológicas. As formulações da ontologia</p><p>enfrentam questões relativas à natureza, realidade e</p><p>própria existência do ser. A ontologia trata do ser</p><p>enquanto ser e envolve questões como “o que existe?”,</p><p>“o que há para conhecer?”, “como delimitar o campo do</p><p>real?” ou “quais são as propriedades daquilo que existe e</p><p>podemos chamar de ser?”. Também dependendo da</p><p>tradição filosófica às quais o termo é adscrito, a</p><p>ontologia pode ser definida como o campo da filosofia</p><p>que reflete e propõe afirmações sobre as propriedades</p><p>gerais ou qualidades primárias do ser – em contraposição</p><p>às suas infinitas determinações que podem ocultar sua</p><p>suposta natureza plena e própria – ou mesmo como uma</p><p>reflexão acerca do sentido abrangente do ser. Uma parte</p><p>considerável do presente texto irá discutir criticamente</p><p>uma demarcação ontológica típica do pensamento</p><p>ocidental moderno, aquela referente à separação estrita</p><p>159</p><p>159</p><p>entre o mundo da natureza e o mundo da cultura,</p><p>problematizando a dicotomia natureza versus cultura.</p><p>Um dos meus objetivos é discutir a relação entre</p><p>filosofia e ciência, problema já tradicional no</p><p>pensamento ocidental, a partir de uma discussão crítica</p><p>do dualismo “natureza versus cultura”. Para isso,</p><p>proponho uma revisão tanto dos fundamentos filosóficos</p><p>do universalismo como das inter-relações possíveis entre</p><p>as assim chamadas “ciências naturais” e “ciências</p><p>sociais”. Interessa-me mobilizar questões relativas aos</p><p>fundamentos filosóficos das ciências – tanto as ciências</p><p>naturais como as sociais – assim como sobre a prática de</p><p>separação entre estes dois grandes campos do saber</p><p>científico. Importa especialmente trazer à discussão</p><p>questões relacionadas à epistemologia como</p><p>problemática geral do conhecimento científico, em</p><p>particular aquelas relativas às afirmações filosóficas</p><p>sobre o conhecimento, à possibilidade do conhecimento,</p><p>à questão do objeto do conhecimento, dos instrumentos</p><p>sensoriais e racionais e dos métodos para a validação ou</p><p>reconhecimento da legitimidade do conhecimento. Em</p><p>paralelo às questões ontológicas e epistemológicas, irei</p><p>mencionar também matérias relacionadas às condições</p><p>sociais de produção do conhecimento científico,</p><p>buscando articular à discussão filosófica do</p><p>160</p><p>160</p><p>conhecimento científico uma análise sociológica da</p><p>ciência, tradição disciplinar que investiga os fatores</p><p>sociais envolvidos no universo</p><p>da pesquisa científica,</p><p>sejam eles internos (e.g., relações de poder, regras,</p><p>hierarquias e recursos de prestígio, modos de organização</p><p>do trabalho científico) ou externos (e.g., interesses</p><p>políticos e econômicos, meios de financiamento da</p><p>pesquisa). Embora não seja o propósito principal do</p><p>presente texto, de natureza mais filosófica, aprofundar</p><p>questões relativas à sociologia da ciência, em nenhum</p><p>momento elas estão completamente ausentes do meu</p><p>pensamento enquanto escrevo cada um dos meus</p><p>argumentos. Isso porque não existe conhecimento</p><p>filosófico, científico ou de qualquer outra natureza, que</p><p>não seja produzido em uma realidade social, por um</p><p>conjunto de indivíduos que, mesmo que eventualmente</p><p>separados no tempo e no espaço, identificam-se como</p><p>parte de um esforço comum de produção de</p><p>conhecimento humano e, neste sentido, uma realidade</p><p>passível de uma análise sociológica das relações de poder</p><p>nas quais esse esforço humano se inscreve.</p><p>161</p><p>161</p><p>1 - Para além do dualismo natureza-cultura</p><p>No livro Jamais Fomos Modernos: ensaio de</p><p>antropologia simétrica, Bruno Latour sustenta que a</p><p>cultura intelectual em que vivemos categoriza o mundo</p><p>em três pequenos compartimentos específicos: fatos</p><p>(natureza), poder (política) e linguagem (discurso), a</p><p>cada um deles correspondendo áreas de conhecimento</p><p>correspondentes e seus repertórios críticos. Essa</p><p>tripartição do real depende do que Latour chama de</p><p>“purificação”: para que os fatos da natureza, o poder e a</p><p>linguagem façam sentido enquanto realidades</p><p>ontológicas distintas umas das outras, é necessário operar</p><p>a eliminação de quaisquer vestígios das demais. Assim,</p><p>quando se fala de “fatos naturalizados, não há mais</p><p>sociedade, nem sujeito, nem forma de discurso”, quando</p><p>se fala de “poder sociologizado, não há mais ciência,</p><p>nem técnica, nem texto, nem conteúdo” e quando se fala</p><p>de “efeitos de verdade, seria um atestado de grande</p><p>ingenuidade acreditar na existência de neurônios do</p><p>cérebro ou dos jogos de poder” (Latour, 1994, p. 11). Ele</p><p>identifica os três repertórios críticos como a</p><p>“naturalização” (fatos/natureza), a “socialização”</p><p>(poder/política) e a “desconstrução”</p><p>(linguagem/discurso), os quais devem ser mantidos</p><p>162</p><p>162</p><p>separados uns dos outros, de modo a garantir a tripartição</p><p>ontológica do mundo real:</p><p>cada uma destas formas de crítica é potente em si</p><p>mesma, mas não pode ser combinada com as</p><p>outras. Podemos imaginar um estudo que tornasse</p><p>o buraco de ozônio algo naturalizado,</p><p>sociologizado e desconstruído? A natureza dos</p><p>fatos seria totalmente estabelecida, as estratégias</p><p>de poder previsíveis, mas apenas não se trataria</p><p>de efeitos de sentido projetando a pobre ilusão de</p><p>uma natureza e de um locutor? Uma tal colcha de</p><p>retalhos seria grotesca. Nossa vida intelectual</p><p>continua reconhecível contanto que os</p><p>epistemólogos, os sociólogos e os</p><p>desconstrutivistas sejam mantidos a uma</p><p>distância conveniente, alimentando suas críticas</p><p>com as fraquezas das outras duas abordagens.</p><p>Vocês podem ampliar as ciências, desdobrar os</p><p>jogos de poder, ridicularizar a crença numa</p><p>realidade, mas não misturem estes três ácidos</p><p>cáusticos. (Latour, 1994, p. 11).</p><p>Se vamos além da teoria de Latour, podemos dizer</p><p>que o pensamento ocidental moderno divide o “real” de</p><p>163</p><p>163</p><p>modo ainda mais simples. O universo é</p><p>compartimentalizado em dois elementos independentes e</p><p>irredutíveis: a natureza e a cultura. Nada do que existe</p><p>pode pertencer a uma dessas realidades e à outra ao</p><p>mesmo tempo, assim como nada está à parte da</p><p>dicotomia natureza versus cultura (ou sociedade). A</p><p>dicotomia natureza-sociedade é uma disjunção</p><p>ontológica básica da cultura ocidental. Em sentido</p><p>semelhante, Eduardo Viveiros de Castro descreve “duas</p><p>séries paradigmáticas que tradicionalmente se opõem sob</p><p>os rótulos de Natureza e Cultura: universal e particular,</p><p>objetivo e subjetivo, físico e moral, fato e moral, dado e</p><p>construído, necessidade e espontaneidade, imanência e</p><p>transcendência, corpo e espírito, animalidade e</p><p>humanidade, entre outros”(Castro, 2002b, p. 348). A</p><p>filosofia e as inúmeras ciências são então construídas</p><p>com base em uma série de oposições binárias típicas e</p><p>derivadas dessa disjunção ontológica fundamental: corpo</p><p>e mente, necessidade e contingência, hierarquia e</p><p>anarquia, ordem e desordem, estrutura e agente, e assim</p><p>por diante. Questionar essa fundamentação ontológica –</p><p>ou, nas palavras de Castro, “dessubstantivizar a oposição</p><p>entre natureza e cultura” (Castro, 2002b, p. 336) – é uma</p><p>das tarefas filosóficas e científicas primordiais do nosso</p><p>tempo.</p><p>164</p><p>164</p><p>A questão possui uma transcendência tal que não</p><p>se restringe ao campo antropológico. Nem se trata de</p><p>reduzir a filosofia ou as categorias fundamentais das</p><p>ciências a uma noção de diferença cultural. A ideia não é</p><p>reduzir o trabalho filosófico ou científico à antropologia,</p><p>mas desestabilizar uma distinção ontológica fundamental</p><p>e, com isso, operar um movimento do pensamento em</p><p>dois sentidos diversos. Em primeiro lugar, questionar a</p><p>própria divisão absoluta entre as chamadas ciências da</p><p>natureza e as ciências sociais. Sem o trabalho de</p><p>purificação realizado pela compartimentalização</p><p>categórica do real, é forçoso reconhecer a qualidade</p><p>híbrida da maior parte dos objetos de conhecimento das</p><p>diferentes áreas científicas – nossos objetos reais são</p><p>natureza e cultura (ou: natureza, poder e linguagem, nos</p><p>termos de Latour). Até que ponto a separação estrita</p><p>entre os dois grandes campos das ciências (naturais e</p><p>sociais) é produtiva?</p><p>Em segundo lugar, essa discussão repercute</p><p>também no plano da fundamentação filosófica das</p><p>ciências, com a necessidade igualmente premente não</p><p>apenas de uma revisão dos pressupostos ontológicos com</p><p>os quais nos habituamos a pensar a construção do</p><p>conhecimento científico, mas também do reconhecimento</p><p>de uma pluralidade de filosofias das ciências. Até que</p><p>165</p><p>165</p><p>ponto a pretensão universalista presente nas filosofias da</p><p>ciência tradicionais (e.g., empirismo lógico,</p><p>racionalismo, pragmatismo, realismo científico) é ainda</p><p>sustentável diante da multiplicidade, no limite</p><p>inconciliável, de perspectivas filosóficas? A crise do</p><p>dualismo natureza-sociedade implica logicamente na</p><p>crise das duas teses filosóficas com as quais se pensou a</p><p>relação entre os dois polos, isto é, “a natureza constrói a</p><p>sociedade” e “a sociedade impõe significados da</p><p>natureza”. De modo similar, a contraposição entre um</p><p>conhecimento científico derivado exclusivamente da</p><p>experiência sensorial do mundo e um conhecimento que</p><p>privilegia o conhecimento racional em detrimento da</p><p>experiência do mundo sensível também entra em xeque.</p><p>Áreas do conhecimento aparentemente tão distantes</p><p>como a biologia evolutiva, a antropologia cultural, as</p><p>neurociências, a ciência política, ou mesmo aquela que é</p><p>talvez considerada a mais “dura” das ciências, isto é, a</p><p>física, têm incorporado em alguma medida esses</p><p>questionamentos ontológicos e epistemológicos do nosso</p><p>tempo.</p><p>Sem a pretensão de aprofundar qualquer delas em</p><p>particular ou de apresentá-las com a profundidade que</p><p>um tratado sobre o tema mereceria, vale a pena</p><p>apresentarmos alguns exemplos que demonstram a</p><p>166</p><p>166</p><p>incorporação do que podemos denominar como híbridos</p><p>reais de natureza-e-cultura. O reconhecimento ontológico</p><p>desses híbridos tem aberto novas possibilidades para a</p><p>reestruturação dos campos científicos, de modo a</p><p>transcender o tradicional dualismo natureza versus</p><p>cultura – e a correspondente separação absoluta entre as</p><p>ciências naturais e as sociais.</p><p>A biologia evolutiva, como diversos outros</p><p>campos, tradicionalmente estruturou o debate sobre a</p><p>singularidade da evolução humana diante das demais</p><p>espécies a partir da oposição entre as duas teses que</p><p>defendiam, respectivamente, a prioridade explicativa dos</p><p>genes/natureza ou do ambiente/cultura – homólogas às</p><p>duas teses filosóficas</p><p>expressas anteriormente: “a</p><p>natureza constrói a sociedade” e “a sociedade impõe</p><p>significados da natureza”. De um lado, a tese que atribui</p><p>o desenvolvimento da cultura humana, em particular da</p><p>capacidade de comunicação humana através da</p><p>linguagem verbal, a um anterior desenvolvimento</p><p>genético; do outro, a tese de que determinados</p><p>desenvolvimentos ambientais levaram a uma série de</p><p>adaptações genéticas que explicariam a singularidade da</p><p>linguagem humana.</p><p>A novidade veio com a ascensão da chamada</p><p>“teoria da dupla herança”, também conhecida como</p><p>167</p><p>167</p><p>“teoria da coevolução gene-cultura”. De acordo com essa</p><p>vertente teórica da biologia evolutiva – ou, como</p><p>preferem alguns, da genética de populações – assim</p><p>como as mutações genéticas são capazes de transformar</p><p>os comportamentos populacionais de determinadas</p><p>espécies, também as práticas culturais são capazes de</p><p>transformar o próprio genoma. Como resume Paulo</p><p>Abrantes, “a teoria da dupla herança é assim denominada</p><p>porque admite existir, ao lado de uma herança genética,</p><p>uma nova modalidade de herança, a cultural, que</p><p>distingue a evolução humana da que ocorreu em outras</p><p>espécies” (Abrantes, 2018, p. 426). Trata-se de uma</p><p>abordagem que prioriza os esquemas interativos de</p><p>transmissão genética e cultural, baseando-se na chamada</p><p>“teoria da construção de nicho”, processo pelo qual</p><p>determinada espécie ou organismo é capaz de, através de</p><p>uma série de atividades e escolhas acumuladas, modificar</p><p>o ambiente e, assim, modificar o processo de seleção</p><p>natural.</p><p>Neste contexto, até mesmo o vocabulário da</p><p>biologia evolutiva vem sendo modificado pela teoria da</p><p>dupla herança, das “noções da mecânica newtoniana de</p><p>respostas automáticas às ‘forças’ do ambiente externo”</p><p>para o vocabulário mais interativo de “coevolução” e</p><p>“construção de nicho” (Descola e Pálsson, 1996a, p. 5).</p><p>168</p><p>168</p><p>Além disso, a ideia de que a origem da cultura poderia</p><p>ser datada ou atribuída a um único estágio no processo de</p><p>hominização passou a ser considerada bastante irrealista,</p><p>na medida em que “estudos recentes indicam que as</p><p>oposições radicais entre pessoa vs. ambiente e indivíduo</p><p>vs. sociedade são proibitiva de uma compreensão</p><p>adequada da natureza contextual do processo de</p><p>aprendizado” (Descola e Pálsson, 1996a, p. 6).</p><p>Por outro lado, tais desenvolvimentos da teoria da</p><p>evolução biológica têm levado a demandas diversas</p><p>direcionadas às chamadas ciências sociais. Um exemplo</p><p>é a reivindicação da substituição do “modelo</p><p>antropocêntrico de cultura” por um “modelo</p><p>primatológico de cultura”, conforme a proposta de Jorge</p><p>Martínez-Contreras, baseado na conhecida contribuição</p><p>dos primatólogos japoneses da escola fundada por Kinji</p><p>Imanishi e Junichiro Itani, e as evidências empíricas por</p><p>eles produzidas desde os anos 1950, especialmente no</p><p>âmbito do Japanese Monkey Center. É interessante notar</p><p>o hibridismo contido no conceito de cultura trabalhado</p><p>pela literatura relatada por Martínez-Contreras, ao falar</p><p>de “cultura naturalizada”: “podemos falar de um traço</p><p>cultural definido como aquele que, independente das</p><p>bases genéticas que possa ter, é transmitido por meio da</p><p>imitação, uma forma de aprendizagem social por</p><p>169</p><p>169</p><p>observação, por parte de um grupo de animais que vivem</p><p>em comunidade” (Martínez-Contreras, 2018, p. 622 -</p><p>grifo no original). O autor destaca que tem surgido nos</p><p>últimos anos uma vasta literatura sobre a existência de</p><p>“cultura” em animais, especialmente em primatas não</p><p>humanos, assim como há uma enorme literatura</p><p>comparativa que relaciona atividades cognoscitivas</p><p>humanas às atividades de aves e de outros mamíferos,</p><p>mostrando que “a comunidade científica não acredita que</p><p>os humanos sejam uma ilha cognoscitiva no mundo</p><p>animal” (Martínez-Contreras, 2018, p. 638). A noção de</p><p>“cultura naturalizada” aponta para uma diferença de</p><p>graus, e não propriamente de tipos de cultura, ao se</p><p>comparar os padrões comportamentais de grupos</p><p>humanos e não humanos. Essa literatura serve para</p><p>relativizarmos a diferença entre as ciências da natureza e</p><p>as da cultura, sem dúvidas, mas também aconselha mais</p><p>modéstia em relação aos nossos padrões antropocêntricos</p><p>de estudo da evolução biológica.</p><p>No campo antropológico, os modelos explicativos</p><p>da genética de populações, da ecologia e da psicologia</p><p>social são combinados por Dan Sperber na obra</p><p>Explaining Culture: a naturalistic approach. Ao propor</p><p>uma “epidemiologia das representações culturais”,</p><p>Sperber está interessado em desenvolver o que ele chama</p><p>170</p><p>170</p><p>de “uma ciência natural do social”, capaz de explicar por</p><p>que e como determinadas ideias sociais, por sua presença</p><p>no ambiente compartilhado por grupos humanos, tornam-</p><p>se contagiosas (Sperber, 1996). É importante destacar</p><p>que não se trata de uma mera aplicação dos modelos</p><p>filosóficos de produção das ciências naturais às ciências</p><p>sociais – como tradicionalmente tem sido feito por todos</p><p>os adeptos do “monismo naturalista”, isto é, da crença de</p><p>que o modelo epistemológico das ciências naturais</p><p>deveria servir de modelo para as ciências sociais. Não é</p><p>disso que se trata, mas sim de uma incorporação da</p><p>noção de que, assim como ocorre com outros fatores que</p><p>circulam e contagiam os grupos sociais, também a</p><p>cultura pode ser tratada por meio de um modelo</p><p>epidemiológico. Seu argumento se contrapõe àqueles que</p><p>alegam que as ciências sociais, por lidarem com objetos</p><p>que possuem significado social (no inglês, meanings),</p><p>não poderiam ser naturalizadas.</p><p>O interesse do modelo epidemiológico nas áreas</p><p>científicas de genética de populações, ecologia e</p><p>psicologia social é mais ontológico do que</p><p>epistemológico: “os fenômenos culturais são padrões</p><p>ecológicos dos fenômenos psicológicos. Eles não</p><p>pertencem a um nível autônomo da realidade, como os</p><p>antirreducionistas poderiam tomá-los; nem meramente</p><p>171</p><p>171</p><p>pertencem à psicologia, como reducionistas poderiam</p><p>fazê-lo” (Sperber, 1996, p. 60). O modelo</p><p>epidemiológico se opõe ao modelo de seleção da</p><p>evolução cultural, proposto por Richard Dawkins, uma</p><p>vez que atribui um papel causal mais relevante aos</p><p>mecanismos psicológicos pelos quais determinados</p><p>padrões possuem maior “atração cultural” do que outros.</p><p>Esses processos causais incluem a imitação e a</p><p>comunicação, vistos como processos de transformação (a</p><p>reprodução cultural é vista como um caso limite de</p><p>transformação nula). Em seu modelo teórico, a imitação e</p><p>a comunicação são explicadas teoricamente com base em</p><p>predisposições cognitivas, estas sim geneticamente</p><p>determinadas, as quais permitiram à sua teoria não</p><p>apenas compatibilidade teórica com a diversidade</p><p>cultural existente no interior de determinada espécie,</p><p>como a humana, mas até mesmo uma melhor explicação</p><p>dessa diversidade.</p><p>Sigamos adiante com os exemplos de superação do</p><p>dualismo que distingue natureza e cultura como</p><p>fenômenos mutuamente excludentes. Um dos mais</p><p>prestigiados neurocientistas da atualidade, António</p><p>Damásio, unindo conhecimentos de biologia e psicologia</p><p>evolutivas, de neuroanatomia e outras neurociências,</p><p>investigou, no livro A Estranha Ordem das Coisas: as</p><p>172</p><p>172</p><p>origens biológicas dos sentimentos e da cultura</p><p>(Damásio, 2018), o processo de desenvolvimento do que</p><p>ele denomina “mente cultural”, no qual ele defende a</p><p>hipótese de que “a atividade cultural começa e</p><p>permanece profundamente alicerçada em sentimentos”,</p><p>sendo estes concebidos como “as expressões mentais da</p><p>homeostase, enquanto esta, atuando sob o manto dos</p><p>sentimentos, é a linha funcional que liga as primeiras</p><p>formas de vida à extraordinária parceria de corpos e</p><p>sistemas nervosos” (Damásio, 2018, p. 13). A regulação</p><p>homeostática é responsável, portanto, pelo surgimento de</p><p>“mentes dotadas de consciência e sentimentos, e essas</p><p>mentes, por sua vez, são responsáveis por aquilo que é</p><p>mais distintivo no ser humano: cultura e civilização”</p><p>(Damásio, 2018, p. 14–15). Sua teoria defende</p><p>que foi “o</p><p>indomável imperativo homeostático, atuando por</p><p>tentativa e erro, [que] selecionou naturalmente soluções</p><p>comportamentais disponíveis para vários problemas da</p><p>gestão da vida” (Damásio, 2018, p. 269). Aqui, como nos</p><p>outros exemplos vistos anteriormente, não vigora a</p><p>separação estrita entre a vida biológica e os padrões</p><p>culturais, entre o imperativo “natural” da homeostase e o</p><p>processo de construção “cultural” da sociabilidade, seja</p><p>ela humana ou de inúmeros outros seres vivos tratados no</p><p>livro (e.g., bactérias, abelhas e primatas não humanos).</p><p>173</p><p>173</p><p>Na física de partículas, a fronteira mais avançada</p><p>da física quando se trata da menor escala tratável pelo</p><p>nosso conhecimento científico atual, salta aos olhos a</p><p>artificialidade crescente do processo científico,</p><p>demonstrando que mesmo as ciências naturais não lidam</p><p>com a “natureza tal como ela é”. Detlev Nothnagel, com</p><p>base nos dados etnográficos recolhidos em seu trabalho</p><p>de campo junto ao CERN (Centre Européen de la</p><p>Recherche Nucléaire), o maior complexo de laboratórios</p><p>de física de partículas do mundo, dentre eles o “Grande</p><p>Colisor de Hádrons” ou LHC (Large Hadrons Collider),</p><p>popularmente conhecido como “acelerador de partículas”</p><p>da região de Genebra, na fronteira franco-suíça,</p><p>argumenta que a ciência de alta tecnologia reproduz a</p><p>natureza, isto é, não lida com fenômenos tal como eles</p><p>ocorrem naturalmente, mas sim fabrica seus próprios</p><p>fatos e evidências através da mediação de aparatos</p><p>técnicos altamente complexos e modelos matemáticos</p><p>(Nothnagel, 1996). Assim como ocorre com a fronteira</p><p>científica da física de partículas, uma série de outras</p><p>áreas do conhecimento tem recebido maior atenção</p><p>pública, como é o caso do desenvolvimento das</p><p>biotecnologias como as novas técnicas de reprodução</p><p>humana assistida, nanotecnologias, manipulação</p><p>transgênica em espécies animais e vegetais, entre outras.</p><p>174</p><p>174</p><p>Todas elas contribuem para evidenciar o caráter difuso da</p><p>tradicional separação natureza vs. cultura, assim como da</p><p>fronteira tradicional entre o humano e o não humano.</p><p>Outra proposta interessante de borrar a separação</p><p>ontológica entre os objetos tradicionais das ciências</p><p>naturais – mais especificamente, a mecânica quântica – e</p><p>das ciências sociais, ainda que dentro dos termos de um</p><p>reducionismo fisicalista, é a defendida por Alexander</p><p>Wendt no livro Quantum Mind and Social Science:</p><p>unifying physical and social ontology (Wendt, 2015). O</p><p>autor se apoia no postulado do “fechamento causal da</p><p>física”, isto é, “as ciências sociais (e todas as demais)</p><p>estão sujeitas ao constrangimento físico: nenhuma</p><p>entidade, relação ou processo postulado nas suas</p><p>pesquisas deve ser inconsistente com as leis da física”</p><p>(Wendt, 2015, p. 7). Seu argumento principal é que as</p><p>ciências sociais contemporâneas trabalham ontologias</p><p>moldadas pelas leis da mecânica clássica newtoniana. O</p><p>avanço de uma “ciência social quântica” depende de uma</p><p>revisão da própria ontologia social, a qual deve</p><p>incorporar em especial as implicações da teoria da física</p><p>quântica sobre a natureza das ideias e da consciência,</p><p>bem como das suas implicações para uma ontologia</p><p>adequada das estruturas sociais e do chamado problema</p><p>agente-estrutura nas ciências sociais – ou, como ele se</p><p>175</p><p>175</p><p>refere, a “anomalia da consciência” (Wendt, 2015, p. 14–</p><p>20) e a “anomalia da estrutura social” (Wendt, 2015, p.</p><p>22–25). Talvez a ousada proposta de Wendt seja capaz de</p><p>desagradar simultaneamente tanto os especialistas em</p><p>mecânica quântica como os cientistas sociais, mas</p><p>demonstra que o nosso tempo é um tempo marcado pelas</p><p>tentativas de desestabilização das fronteiras ontológicas</p><p>tradicionais, delimitadas pela distinção entre o natural e o</p><p>social.</p><p>Alguns dos primeiros exemplos mencionados</p><p>inscrevem-se na tradição disciplinar da antropologia</p><p>cultural. Por que a crítica ao dualismo do pensamento</p><p>moderno – natureza versus cultura – aparece justamente</p><p>na antropologia? A razão parece clara, como aponta</p><p>Eduardo Viveiros de Castro, ao afirmar que a verdadeira</p><p>missão da antropologia é “ser a teoria-prática da</p><p>descolonização permanente do pensamento” (Castro,</p><p>2015b, p. 20). Citando Patrice Maniglier, afirma também</p><p>que a verdadeira antropologia “devolve-nos uma imagem</p><p>de nós mesmos na qual não nos reconhecemos”(Castro,</p><p>2015b, p. 21)1. A crítica de antropólogos como Viveiros</p><p>1 Tendo as ciências sociais em mente, Castro cita a distinção,</p><p>proposta por Claude Lévi-Strauss, “entre a antropologia, ciência</p><p>‘centrífuga’, que adota ‘o ponto de vista da imanência’, e a economia</p><p>e a sociologia, ciências ‘centrípetas’, que atribuem um ‘valor</p><p>transcendental’ à sociedade do observador” (Castro, 2015b, p. 23).</p><p>176</p><p>176</p><p>de Castro, Bruno Latour, Philippe Descola e Gisli</p><p>Pálsson, entre outros, dirige-se prioritariamente para o</p><p>próprio discurso antropológico, o qual, apesar dessa</p><p>missão descolonizadora e de produção de uma</p><p>antropologia simétrica da própria cultura intelectual</p><p>ocidental moderna, muitas vezes ainda reproduz a série já</p><p>mencionada acima de oposições binárias constitutivas</p><p>dessa tradição pretensamente universal (natureza/cultura,</p><p>corpo/mente, necessidade/contingência,</p><p>hierarquia/anarquia, ordem/desordem, estrutura/agente,</p><p>universal/particular, objetivo/subjetivo, físico/moral,</p><p>dado/construído, imanência/transcendência,</p><p>corpo/espírito, animalidade/humanidade etc.).</p><p>Sempre fui atraído pela breve anedota contada por</p><p>Claude Lévi-Strauss no clássico texto "Race et histoire",</p><p>de 1952, contido na edição brasileira de Antropologia</p><p>Estrutural Dois (Lévi-Strauss, 2013)e recontada nos</p><p>Tristes Trópicos, publicado originalmente em 1955</p><p>(Lévi-Strauss, 1996):</p><p>Nas Antilhas, alguns anos após o descobrimento</p><p>da América, enquanto os espanhóis despachavam</p><p>comissões de inquérito para saber se os indígenas</p><p>possuíam alma ou não, estes tratavam de</p><p>submergir prisioneiros brancos, para verificar,</p><p>177</p><p>177</p><p>com base numa longa e cuidadosa observação, se</p><p>seus cadáveres apodreciam ou não. (Lévi-Strauss,</p><p>2013, p. 364)</p><p>A historieta narrada por Lévi-Strauss é discutida por</p><p>Viveiros de Castro no livro Metafísicas Canibais:</p><p>Elementos para uma antropologia pós-estrutural</p><p>(Castro, 2015a). Para ele, o pensamento lévi-straussiano</p><p>é convergente com a semiótica de Roy Wagner, no livro</p><p>A Invenção da Cultura, de 1975 (Wagner, 2010), quem</p><p>por sua vez elaborou “a noção de ‘antropologia reversa’ e</p><p>a (...) vertiginosa semiótica da ‘invenção’ e da</p><p>‘convenção’, ou ainda o esboço visionário de um</p><p>verdadeiro conceito etnológico de conceito” (Castro,</p><p>2015b, p. 29). A historieta também é uma salutar</p><p>lembrança de que não existe algo como a “natureza” em</p><p>si, discernível da própria “cultura” que a institui. O</p><p>pensamento filosófico e científico ocidental trata a</p><p>natureza como algo diferente do homem, não instituída</p><p>por ele e oposta à cultura, aos costumes, ao discurso,</p><p>enfim, às relações de poder.</p><p>Retorno ao ponto de onde parti nesta seção,</p><p>apresentando o quadro que sintetiza aquilo que ele</p><p>chamou Latour chamou de “constituição moderna”.</p><p>Trata-se de dois paradoxos e três garantias, aos quais se</p><p>178</p><p>178</p><p>une uma quarta garantia não contida no quadro (“o Deus</p><p>suprimido”), que, em conjunto, expõem de forma</p><p>esquemática, alguns dos fundamentos do pensamento</p><p>moderno acerca da relação entre “natureza” e “cultura”</p><p>(Latour, 1994, p. 37):</p><p>A Constituição moderna, por Bruno Latour</p><p>Primeiro paradoxo</p><p>A natureza não é uma</p><p>construção nossa: ela é</p><p>transcendente e nos</p><p>ultrapassa infinitamente.</p><p>A sociedade é uma</p><p>construção nossa: ela é</p><p>imanente à nossa ação.</p><p>Segundo paradoxo</p><p>Nós construímos</p><p>artificialmente a natureza</p><p>no laboratório: ela é</p><p>imanente.</p><p>Não construímos a</p><p>sociedade, ela é</p><p>transcendente e nos</p><p>ultrapassa</p><p>infinitamente.</p><p>Três garantias</p><p>Primeira garantia: ainda</p><p>que sejamos nós que</p><p>construímos</p><p>a natureza,</p><p>ela funciona como se nós</p><p>não a construíssemos.</p><p>Segunda garantia:</p><p>ainda que não sejamos</p><p>nós que construímos a</p><p>sociedade, ela funciona</p><p>como se nós a</p><p>construíssemos.</p><p>Terceira garantia: a</p><p>natureza e a sociedade</p><p>devem permanecer</p><p>absolutamente</p><p>distintas; o trabalho</p><p>de purificação deve</p><p>permanecer</p><p>absolutamente distinto</p><p>do trabalho de</p><p>mediação.</p><p>179</p><p>179</p><p>Na visão de Latour, “o ponto essencial desta</p><p>Constituição moderna é o de tornar invisível, impensável,</p><p>irrepresentável o trabalho de mediação que constrói os</p><p>híbridos” (Latour, 1994, p. 40). Porém, a própria</p><p>tentativa moderna de obliteração dos híbridos – muitos</p><p>dos quais apresentamos acima, ao tratar de alguns</p><p>desenvolvimentos recentes e independentes de diferentes</p><p>áreas do conhecimento científico – é incapaz de</p><p>interromper o caráter “real” desses híbridos, pois “o</p><p>mundo moderno pararia imediatamente de funcionar,</p><p>uma vez que ele vive da mistura, como todos os outros</p><p>coletivos” (Latour, 1994, p. 40). A proposta de romper</p><p>com os estereótipos fantasiados pela “Constituição</p><p>moderna” e apontar para a importância de lidarmos com</p><p>os híbridos que proliferam pelo mundo afora é, a meu</p><p>ver, um dos desafios da filosofia e das diversas ciências</p><p>no nosso tempo.</p><p>Tradicionalmente, as ciências naturais e as ciências</p><p>sociais foram vistas como esforços de natureza distinta,</p><p>tanto do ponto de vista da reconstrução ontológica dos</p><p>seus respectivos objetos de investigação como do ponto</p><p>de vista dos critérios epistemológicos a serem utilizados</p><p>para a elaboração e validação dos seus conhecimentos.</p><p>Uma metáfora que gosto de mencionar, mas sinto prazer</p><p>ainda maior ao problematizá-la, é aquela que descreve as</p><p>180</p><p>180</p><p>ciências físicas como um empreendimento que lida com</p><p>sistemas relógios, enquanto as ciências sociais lidariam</p><p>com sistemas semelhantes a nuvens, elaborada por Karl</p><p>Popper e retomada por Ana Maria Bianchi num trabalho</p><p>sobre a ciência econômica (Bianchi, 1993).</p><p>Devo o conhecimento desse texto e da metáfora</p><p>popperiana ali contida a Eiiti Sato, quem contrasta o fato</p><p>de que, nas ciências sociais, “não há, como nas chamadas</p><p>ciências físicas, uma ‘verdade’ científica, uma lei capaz</p><p>de ser reconhecida universalmente e de forma</p><p>indiscutível, já que as condições, as circunstâncias e a</p><p>maior parte dos componentes de um sistema social não</p><p>podem ser controladas” (Sato, 2012, p. 23). Na metéfora</p><p>de Popper, “existem dois tipos de sistema: o sistema</p><p>relógio (‘clock’) e o sistema nuvem (‘cloud’)”, mas é o</p><p>próprio Sato quem ressalta que “essa distinção não pode</p><p>ser entendida de forma tão simples. Mesmo as chamadas</p><p>ciências físicas (hard sciences) apresentam uma série de</p><p>questões que não podem ser qualificadas e quantificadas</p><p>de modo tão definido e claro”, sugerindo que, “como</p><p>tipos ideais, relógio e nuvem demarcariam os extremos</p><p>para os quais os sistemas na natureza tenderiam ao longo</p><p>de um continuum” (Sato, 2012, p. 23). O movimento de</p><p>crítica ao dualismo natureza versus cultura, em conjunto</p><p>com uma série de outras transformações no modo de se</p><p>181</p><p>181</p><p>conceber ontológica e epistemologicamente o trabalho</p><p>das diferentes ciências, sugere uma reestruturação no</p><p>modo como essas atividades foram tradicionalmente</p><p>demarcadas no contexto da modernidade. Além disso, em</p><p>lugar do projeto moderno ocidental de uma filosofia da</p><p>ciência universal, o que há de fato é uma pluralidade de</p><p>filosofias das ciências. Neste sentido, parece razoável</p><p>defender o que podemos chamar de uma filosofia</p><p>simétrica das ciências naturais e sociais, acrescendo</p><p>ainda o metaconceito de diafonia como um elemento</p><p>constitutivo da própria filosofia em geral.</p><p>2. Da pluralidade de filosofias da ciência ao</p><p>metaconceito de diafonia</p><p>A filosofia é uma experiência plural. Ainda que</p><p>muito do esforço filosófico ocidental tenha sido voltado</p><p>para a busca de leis universais, esse pretenso</p><p>universalismo é forjado e mascara o fato de que o que</p><p>existe de fato é uma pluralidade de filosofias. Isso se</p><p>aplica à filosofia em geral e também às diferentes</p><p>filosofias da ciência. Mesmo que se possa reconhecer</p><p>que, em determinado momento da história, no contexto</p><p>de determinada área do conhecimento, alguma</p><p>epistemologia tenha se tornado hegemônica, isso seria</p><p>182</p><p>182</p><p>um fato histórico, contingente. Jamais uma necessidade</p><p>ou uma possibilidade de afirmação de um universalismo</p><p>de certas ideias tornadas hegemônicas. Como sugere o</p><p>título deste texto, “sê plural, como o universo”,</p><p>conhecida frase rabiscada num papel qualquer pelo poeta</p><p>Fernando Pessoa, a única ideia que me parece aceitável é</p><p>a de que a filosofia é constituída de uma pluralidade</p><p>inescapável.</p><p>Desnecessário dizer, por tudo quanto já foi</p><p>afirmado até aqui, bem como pelo que ainda hei de</p><p>afirmar nas próximas páginas, que a aceitação dessa ideia</p><p>de pluralidade nada tem a ver com uma nova afirmação</p><p>de certa “lei universal” – como poderia propor</p><p>retoricamente algum lógico de plantão. É evidente que</p><p>não estou propondo um novo universalismo às avessas. A</p><p>pluralidade de filosofias da ciência é uma realidade com</p><p>a qual precisamos lidar e conviver, não um estágio a ser</p><p>superado e substituído por quaisquer pretensões de</p><p>universalidade. A presente seção começa por apresentar</p><p>um par de distinções adicionais acerca dos diferentes</p><p>trabalhos realizados no campo da filosofia da ciência. Na</p><p>sequência, apresento a título de ilustração as filosofias da</p><p>ciência mais conhecidas (empirismo, racionalismo e</p><p>pragmatismo) e o modo como cada uma delas deve ter o</p><p>seu direito à existência justificado, quando não por outras</p><p>183</p><p>183</p><p>razões, pelo fato de que elas apontam as limitações</p><p>contidas pelas demais filosofias, exercendo assim uma</p><p>função crítica que me parece essencial para o pluralismo</p><p>filosófico no qual acredito.</p><p>Comecemos por duas distinções iniciais. Em</p><p>primeiro lugar, cabe distinguir entre as propostas de</p><p>“filosofias gerais da ciência” (também chamadas de</p><p>“fundacionais”), de um lado, e “filosofias especiais das</p><p>ciências” (ou “aplicadas”), de outro. As filosofias da</p><p>ciência ditas gerais buscam refletir sobre o que há de</p><p>comum a todas as ciências, mesmo que estas tenham se</p><p>diversificado ao longo da história e cada vez mais.</p><p>Enquanto isso, existem, para cada uma das inúmeras</p><p>ciências, suas próprias filosofias especiais - sendo assim,</p><p>existem filosofias da física, filosofias da biologia, da</p><p>psicologia, da sociologia, da antropologia, da ciência</p><p>política, e assim por diante. Conforme observa Paulo</p><p>Abrantes, “o filósofo da ciência pode perguntar-se a</p><p>respeito do que seria comum a todas as ciências” (isto é,</p><p>filosofias gerais), “ou então focar em questões</p><p>endereçadas a uma ciência particular, como a biologia”</p><p>(Abrantes 2018, 5), isto é, filosofias especiais. As</p><p>primeiras abordam as questões gerais do conhecimento</p><p>científico, dos conceitos e da própria linguagem da</p><p>ciência, enquanto as filosofias especiais procuram</p><p>184</p><p>184</p><p>elaborar critérios epistemológicos aplicáveis a</p><p>determinada área do conhecimento ou disciplina. Em</p><p>ambos os casos, o que existe é uma pluralidade de</p><p>filosofias, sejam elas gerais ou especiais.</p><p>A outra distinção relevante diz respeito ao trabalho</p><p>filosófico de esclarecimento de conceitos científicos. As</p><p>filosofias das ciências lidam com diferentes tipos de</p><p>conceitos. Por um lado, há os conceitos que lidam com</p><p>“os tipos de representação de conhecimentos</p><p>configurados no discurso científico de modo geral, ou</p><p>que se referem aos procedimentos empregados para gerar</p><p>essas representações e submetê-las à prova” (Abrantes</p><p>2018, 6) – por exemplo, os conceitos de “teoria”, “lei”,</p><p>“explicação”, “confirmação”, e assim por diante. Por</p><p>outro, há os conceitos “que se referem a entidades,</p><p>propriedades e processos no mundo, — como os</p><p>conceitos de ‘átomo’, ‘onda’, ‘gene’, ‘aptidão’,</p><p>‘evolução’ etc.” (Abrantes 2018, 6). O trabalho de</p><p>esclarecimento conceitual</p><p>realizado pelo primeiro tipo de</p><p>esforço é descrito como “metateórico” ou</p><p>“metacientífico”, enquanto o segundo pode ser chamado</p><p>de “ontológico”. Nos dois casos, novamente, o que existe</p><p>é uma pluralidade de filosofias da ciência.</p><p>Para que essas questões não fiquem apenas no</p><p>plano mais geral, cabe ilustrar o meu argumento</p><p>185</p><p>185</p><p>apresentando as três epistemologias mais tradicionais,</p><p>dentre outras existentes, e o modo como cada uma delas</p><p>tem as suas limitações expostas pelas demais. Senão</p><p>vejamos. A epistemologia mais tradicional, e que ainda</p><p>hoje exerce grande influência sobre o modo como a</p><p>atividade científica é concebida e praticada, é o</p><p>empirismo, o qual remonta aos primeiros momentos da</p><p>revolução filosófica e científica moderna. O empirismo –</p><p>ou empiricismo – postula que a observação empírica dos</p><p>fenômenos que podem ser percebidos pelos sentidos é o</p><p>único fundamento de justificação das crenças, isto é, do</p><p>conhecimento científico. Dentre outras referências, em</p><p>sua maioria filósofos britânicos, o empirismo baseia-se</p><p>no pensamento de Francis Bacon (1561-1626), Thomas</p><p>Hobbes (1588-1679) e, sobretudo, John Locke (1632-</p><p>1704) e David Hume (1711-1776). Em termos gerais, é a</p><p>observação direta da realidade que, pela via da indução,</p><p>permite a construção do conhecimento científico. O</p><p>método da experimentação, proposto por Bacon, é uma</p><p>ferramenta crucial para a produção do conhecimento</p><p>empírico do mundo. Atualizando as propostas filosóficas</p><p>aristotélicas à luz da revolução científica iniciada no</p><p>século XVI, o conhecimento científico só pode ser</p><p>justificado pela mediação dos sentidos, através dos quais</p><p>se dá a experiência sensorial do mundo objetivo.</p><p>186</p><p>186</p><p>Entre as principais limitações da epistemologia</p><p>empirista, as quais têm sido apontadas por</p><p>epistemologias rivais, pode-se mencionar a sua</p><p>incapacidade de considerar como científico o</p><p>conhecimento de fenômenos que não sejam passíveis de</p><p>observação empírica direta, como os fatos e estruturas</p><p>sociais, ou ainda grande parte do que é intuído nos</p><p>modelos teóricos das ciências naturais, como forças</p><p>físicas, processos de seleção biológica ou noções como</p><p>causas, as quais não são diretamente observáveis, mas</p><p>inferidas racionalmente. Em outras palavras,</p><p>epistemologias alternativas são capazes de mostrar a</p><p>inadequação das restrições empiristas do quê pode ser</p><p>conhecido cientificamente.</p><p>Outra limitação do empirismo diz respeito à</p><p>irrealidade de se supor que qualquer observação da</p><p>realidade possa ser puramente objetiva, como se elas não</p><p>fossem de afetadas pelas premissas teóricas e conceituas</p><p>do observador. Sempre é preciso delimitar</p><p>conceitualmente aquilo que se pretende observar</p><p>empiricamente, porém os conceitos (e as teorias) não</p><p>resultam da mera experiência sensorial do mundo, são</p><p>construções abstratas. Igualmente, as premissas teóricas</p><p>estabelecidas racionalmente interferem no processo de</p><p>observação empírica. A pretensa independência entre os</p><p>187</p><p>187</p><p>fatos empíricos observáveis e as teorias científicas é um</p><p>dos aspectos mais criticados por epistemologias</p><p>alternativas ao empirismo ao longo dos séculos, desde</p><p>diferentes pontos de vista.</p><p>A alternativa epistemológica mais tradicional a</p><p>fazer frente ao empirismo é o racionalismo, cujas raízes</p><p>platônicas foram atualizadas por filósofos modernos</p><p>como René Descartes (1596-1650), Baruch de Spinoza</p><p>(1632-1677) e Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716).</p><p>Se no empirismo os sentidos são o instrumento</p><p>primordial para o conhecimento científico, na</p><p>epistemologia racionalista a faculdade humana</p><p>privilegiada é a razão. Os filósofos racionalistas</p><p>postulam que as ideias são inatas e têm origem na</p><p>capacidade racional humana, a qual é utilizada para a</p><p>condução das descobertas científicas pela via da dedução.</p><p>A inteligibilidade do mundo real encontra fundamento na</p><p>razão universal, a única faculdade capaz de nos levar a</p><p>inferir as causas ou os mecanismos que produzem aquilo</p><p>que podemos observar através dos sentidos. O</p><p>conhecimento filosófico, em termos cartesianos, deriva</p><p>de um sistema dedutivo baseado em axiomas intuídos</p><p>racionalmente. A matemática adquire status</p><p>paradigmático para o racionalismo, por se tratar de um</p><p>conhecimento puramente racional. Já o conhecimento</p><p>188</p><p>188</p><p>científico, por sua vez, não pode prescindir do intelecto</p><p>humano, pois os sentidos podem nos levar a equívocos.</p><p>Além disso, os mecanismos descobertos por cientistas</p><p>como Isaac Newton, Johannes Kepler e Galileu Galileu</p><p>requeriam a utilização da razão humana. A força da</p><p>gravidade ou o postulado da lei da ação e reação, por</p><p>exemplo, jamais poderiam ser observadas diretamente</p><p>pelos sentidos, mas sim deduzidas a partir dos seus</p><p>efeitos observáveis. Assim, a observação do real</p><p>proporcionada pelos sentidos requer sempre a mediação</p><p>interpretativa da razão.</p><p>Assim como ocorre com as demais epistemologias,</p><p>o racionalismo possui limitações que vêm sendo</p><p>apontadas por seus críticos desde diferentes pontos de</p><p>vista. Entre as críticas mais conhecidas, está aquela</p><p>formulada por David Hume, para quem as ideias não são</p><p>inatas, mas derivam das sensações e percepções</p><p>adquiridas pelo ser humano, bem como a crítica de</p><p>Immanuel Kant, de que a estrutura cognitiva depende</p><p>tanto do conhecimento abstrato por meio de conceitos</p><p>puros e universais (conhecimento a priori) como do</p><p>conhecimento gerado pela experiência prática</p><p>(conhecimento a posteriori). O racionalismo encontra</p><p>dificuldades para decidir quando, a partir de diferentes</p><p>axiomas ou intuições racionais, são deduzidos</p><p>189</p><p>189</p><p>logicamente sistemas alternativos e mutuamente</p><p>excludentes. Se aceitarmos que as pessoas podem partir</p><p>de suposições igualmente racionais, porém diferentes,</p><p>como escolher entre sistemas dedutivos igualmente</p><p>racionais?</p><p>Outro problema do racionalismo apontado de modo</p><p>recorrente: há mesmo um mundo externo, independente</p><p>dos nossos postulados racionais? A questão sempre foi</p><p>mais problemática para os cientistas sociais do que para</p><p>as ciências naturais, não obstante o problema me parece</p><p>igualmente fundamental para ambos os casos. Podemos</p><p>realmente observar o mundo como ele realmente é, na</p><p>medida em que nossa percepção será guiada pelas</p><p>intuições racionais primeiras? Mesmo que se aceite que,</p><p>no mundo natural, as relações observáveis possam ser</p><p>interpretadas ou explicadas por uma razão independente</p><p>– o que é amplamente questionável – no mundo social as</p><p>teorias e outras ideias são vistas, com muito mais razão,</p><p>como parte constitutiva do próprio objeto que elas</p><p>pretendem interpretar ou explicar.</p><p>A partir do final do século XIX, surgiu uma</p><p>terceira via filosófica, o pragmatismo, a partir do</p><p>pensamento de filósofos norte-americanos como William</p><p>James (1842-1910), Charles S. Peirce (1839-1914) e</p><p>John Dewey (1859-1952) ou, já no século XX, Richard</p><p>190</p><p>190</p><p>Rorty (1931-2007). Desenvolvida como uma espécie de</p><p>meio termo diante da polarização entre o empirismo e o</p><p>racionalismo, a epistemologia do pragmatismo postula</p><p>que, ao mesmo tempo em que a mente humana e os</p><p>nossos pressupostos teóricos têm um papel ativo na</p><p>interpretação da experiência sensorial e da observação, a</p><p>própria experiência do mundo impulsiona revisões</p><p>racionais das próprias premissas teóricas. Em outros</p><p>termos, os pressupostos racionais e as experiências</p><p>sensoriais do mundo são inter-relacionados. A partir de</p><p>críticas tanto ao empirismo como ao racionalismo, busca-</p><p>se transcender essa oposição filosófica tradicional. As</p><p>evidências empíricas disponíveis, além de serem</p><p>derivadas de delimitações conceituais prévias, podem</p><p>também ser igualmente compatíveis com explicações</p><p>teóricas rivais. Como escolher entre elas, neste caso? O</p><p>critério proposto por filósofos pragmatistas para resolver</p><p>esse tipo de conflito é a utilidade do conhecimento</p><p>teórico, tanto para as nossas ações práticas como para a</p><p>própria produção futura de conhecimento. Assim,</p><p>substitui-se o critério da verdade filosófica e científica</p><p>pelo critério da utilidade. Todas as nossas crenças,</p><p>mesmo aquelas vistas como justificadas pela razão ou</p><p>pelas observações empíricas, estão constantemente</p><p>sujeitas a revisão, sendo elas provisoriamente aceitas na</p><p>191</p><p>191</p><p>medida em que nos são úteis do ponto de vista da</p><p>organização – prática e cognitiva – da nossa experiência.</p><p>Assim como ocorre com as demais epistemologias,</p><p>as limitações do pragmatismo também são apontadas por</p><p>defensores de filosofias alternativas. A mais frequente é</p><p>o abandono do ideal de busca da verdade, em prol de</p><p>uma satisfação com o critério da mera utilidade das</p><p>nossas crenças filosóficas e científicas – ou, seguindo a</p><p>mesma lógica, o pragmatismo não fornece nenhuma</p><p>razão epistemológica para o abandono de quaisquer</p><p>ideias que possam ser consideradas úteis pela</p><p>comunidade filosófica e/ou científica às nossas práticas</p><p>ou ao conhecimento humano. “Então vale tudo?”,</p><p>questionam os críticos. A crítica ao que é visto como</p><p>excessiva flexibilidade do utilitarismo pragmatista</p><p>estende-se desde as questões propriamente</p><p>epistemológicas – como a ausência de regras claras para</p><p>decidir entre teorias rivais igualmente capazes de</p><p>interpretar as evidências empíricas disponíveis – até,</p><p>naturalmente, a sua aplicação às questões morais como</p><p>noções de justiça, direitos humanos, e assim por diante.</p><p>O século XX assistiu à multiplicação das</p><p>alternativas epistemológicas, como o realismo científico</p><p>do filósofo inglês Roy Bhaskar (1944-2014), uma</p><p>abordagem filosófica das ciências naturais e sociais que</p><p>192</p><p>192</p><p>enfatiza a distinção entre as questões epistemológicas e</p><p>ontológicas, recupera a importância da objetividade</p><p>científica como base para a crítica social e, sobretudo,</p><p>reconhece o status científico das afirmações feitas sobre</p><p>entidades não observáveis e seus mecanismos causais,</p><p>desde que possamos inferir a sua existência a partir da</p><p>observação empírica dos seus efeitos. Ou, de um pondo</p><p>de vista mais radical, a chamada crítica epistemológica</p><p>pós-estruturalista, de autores francófonos como Michel</p><p>Foucault (1926-1984), Jacques Derrida (1930-2004),</p><p>Pierre Bourdieu (1930-2002), Jean Baudrillard (1929-</p><p>2007) e Giles Deleuze (1925-1995), Emmanuel Levinas</p><p>(1906-1995) e François Lyotard (1924-1998). Em lugar</p><p>de tomar como dadas as afirmações sobre conhecimento</p><p>(epistemologia) ou mesmo as afirmações sobre o mundo</p><p>do ser ou das entidades sociais (ontologia), os críticos</p><p>opuseram-se às separações ortodoxas entre</p><p>conhecimento/valores, conhecimento/realidade e</p><p>conhecimento/poder. De modos que não podemos</p><p>explorar profundamente aqui, mas apenas sublinhar esses</p><p>elementos gerais, a crítica pós-estruturalista afronta boa</p><p>parte da ortodoxia epistemológica, segundo a qual o</p><p>conhecimento deveria estar imune às influências do</p><p>poder, isto é, a validade das afirmações epistemológicas e</p><p>ontológicas dependeria da capacidade do teórico de</p><p>193</p><p>193</p><p>suspender seus valores, interesses e as relações de poder</p><p>nas quais o conhecimento está enredado.</p><p>Até mesmo dentre de uma mesma tradição</p><p>filosófica encontramos pluralidade. Tomemos o exemplo</p><p>do pensamento positivista, o qual pode ser descrito como</p><p>uma espécie de tradição filosófica hegemônica em</p><p>diferentes ciências (sejam elas naturais ou sociais). Há</p><p>muitas dificuldades em torno do uso do termo</p><p>“positivismo”. Em primeiro lugar, embora utilizado em</p><p>larga escala em textos filosóficos e nas diversas ciências,</p><p>o termo assume muitos significados diferentes. Em um</p><p>sentido mais estrito, pode ser considerado como um</p><p>conjunto de procedimentos e técnicas de investigação,</p><p>isto é, como metodologia. Entretanto, em geral o uso do</p><p>termo está associado a uma abordagem epistemológica,</p><p>segundo a qual é possível formular generalizações sobre</p><p>o mundo social, que devem ser validadas por um</p><p>processo de verificação empírica. Como observa Steve</p><p>Smith, os termos ‘positivismo’ e ‘empiricismo’ são</p><p>usados de forma confusa, muitas vezes como se fossem</p><p>termos intercambiáveis (empiricismo = positivismo =</p><p>epistemologia + metodologia) (Smith, 1996). Em</p><p>linguagem filosófica, existe uma distinção conceitual</p><p>mais precisa: o positivismo é uma metodologia que se</p><p>fundamenta em uma epistemologia empiricista, a qual</p><p>194</p><p>194</p><p>entende que todo conhecimento científico provém da</p><p>experiência. Neste sentido, os métodos adotados devem</p><p>servir ao processo de validação empírica que legitima as</p><p>proposições de uma teoria e lhes concede status</p><p>científico.</p><p>Outra dificuldade deriva do fato de haver pelo</p><p>menos três variantes do positivismo, que tem uma longa</p><p>história tanto nas ciências naturais como nas sociais. A</p><p>primeira vertente surgiu em 1830 com o filósofo Auguste</p><p>Comte (1798-1857). Em seu Curso de Filosofia Positiva,</p><p>ele propôs a fundação de uma “ciência positiva da</p><p>sociedade” (a “Sociologia”), baseada nos métodos</p><p>próprios das ciências naturais, em especial nos princípios</p><p>da Física. Seu objetivo era revelar as “leis causais” que</p><p>explicavam os fenômenos observáveis, partindo daquilo</p><p>que a experiência nos dá diretamente, abstendo-se de ir</p><p>além dos fenômenos. Após as fases que ele chamou de</p><p>“teológica” e “metafísica”, Comte anunciava com</p><p>otimismo a possibilidade de uma era “positivista”, na</p><p>qual a sociedade seria regida pela ciência racional. Em</p><p>sua visão otimista da história, o filósofo apostava na</p><p>neutralidade do conhecimento científico. A visão</p><p>unificada dos métodos científicos, conhecida como</p><p>“monismo naturalista”, pela prevalência dos métodos</p><p>característicos das ciências naturais para a identificação</p><p>195</p><p>195</p><p>de leis e regularidades, ainda tem muita influência até os</p><p>dias de hoje.</p><p>A segunda vertente histórica do positivismo ficou</p><p>conhecida como “positivismo lógico”, desenvolvida por</p><p>um grupo de filósofos reunidos no chamado “Círculo de</p><p>Viena”, na década de 1920, com destaque para nomes</p><p>como Moritz Schlick, Otto Neurath e Rudolf Carnap. A</p><p>ideia central dessa vertente radical pode ser resumida na</p><p>noção de que a única forma verdadeira de conhecimento</p><p>é a ciência, a qual deve estar alicerçada somente em</p><p>proposições que sejam falsificadas ou verificadas pela</p><p>experiência. Qualquer afirmação não observável era</p><p>considerada metafísica e, portanto, não científica – como,</p><p>por exemplo, o conceito de “leis causais”, de Comte, ou</p><p>os conceitos de “leis objetivas” da natureza humana ou</p><p>de “estrutura social”, por exemplo. Ainda que o</p><p>positivismo lógico tenha exercido bastante influência na</p><p>filosofia, sobretudo no mundo anglossaxão, até meados</p><p>do século XX, seu impacto nas ciências sociais foram</p><p>bem menores, talvez em virtude de seus padrões muito</p><p>exigentes de validação das proposições científicas,</p><p>embora tenham produzido um nível de adesão bem maior</p><p>nas ciências naturais.</p><p>Em termos comparativos, foi a terceira variante do</p><p>positivismo que exerceu maior influência sobre diversas</p><p>196</p><p>196</p><p>ciências – tanto naturais como sociais – desde meados do</p><p>século XX, quando começou a ser desenvolvida. Seus</p><p>autores mais conhecidos são Ernest Nagel e Carl Gustav</p><p>Hempel. Em conjunto, estes filósofos procuram evitar, a</p><p>um só tempo, recorrer aos critérios muito restritivos do</p><p>positivismo lógico e utilizar a visão reducionista dos</p><p>princípios derivados da Física. As principais</p><p>características desta vertente foram resumidas por</p><p>Christopher Lloyd, no livro The Structures of History, de</p><p>1993. Em primeiro lugar, o que ele chama de</p><p>“logicismo”, um compromisso com a coerência lógica</p><p>das teorias. Pelo menos parte de suas proposições devem</p><p>estar inter-relacionadas em uma estrutura lógica, de</p><p>modo que uma implique na outra. Em segundo lugar,</p><p>somente são consideradas científicas as proposições que</p><p>são verificáveis ou falsificáveis empiricamente</p><p>(chamadas de “proposições sintéticas”) ou aquelas que</p><p>verdadeiras por definição (denominadas “proposições</p><p>analíticas”). Em terceiro lugar, também</p><p>é feita uma</p><p>distinção entre teoria e observação, com a estrita</p><p>separação entre os argumentos teóricos propriamente</p><p>ditos e as observações empíricas, sendo estas últimas</p><p>consideradas teoricamente neutras. Por fim, utiliza-se</p><p>uma concepção de causalidade inspirada no empiricismo</p><p>do filósofo David Hume, segundo a qual estabelecer uma</p><p>197</p><p>197</p><p>relação causal é uma questão de descobrir uma relação,</p><p>invariável no tempo, entre os eventos observados. Além</p><p>destas quatro características, esta última vertente</p><p>reconhece dois caminhos alternativos para a construção</p><p>de explicações científicas válidas: o “modelo</p><p>nomológico-dedutivo” e o “modelo indutivo-estatístico”.</p><p>De acordo com o argumento de Hempel, existe um</p><p>procedimento básico para uma explicação de qualquer</p><p>evento por meio de um argumento dedutivo, no qual (1)</p><p>uma lei geral é postulada, (2) as condições antecedentes</p><p>são especificadas, e (3) a explicação do evento observado</p><p>é deduzida de (1) e (2). Para Hempel, a alternativa ao</p><p>modelo nomológico-dedutivo é a elaboração de leis</p><p>estatísticas ou probabilísticas, estabelecidas com base no</p><p>método indutivo e usadas para demonstrar a maior ou</p><p>menor probabilidade de ocorrência de um fenômeno</p><p>dentro das condições estabelecidas por determinada</p><p>teoria. Diferentemente do primeiro, este último não</p><p>permitiria o mesmo grau de certeza, porquanto baseado</p><p>em ocorrências particulares de um fenômeno, o que não</p><p>permitiria a legítima generalização da hipótese empírica.</p><p>Tendo ilustrado a complexidade que marca o</p><p>campo de cada uma das filosofias da ciência</p><p>apresentadas, bem como o modo como cada uma delas</p><p>tem as suas limitações expostas quando confrontada com</p><p>198</p><p>198</p><p>filosofias alternativas, entendo que devemos incorporar e</p><p>desenvolver o conceito filosófico de diafonia enquanto</p><p>metaconceito constitutivo do próprio labor filosófico, tão</p><p>fundamental como os já tradicionais filos e ágon. A</p><p>diafonia tem a potência de incorporar à filosofia, e às</p><p>ciências, na medida em que estas não podem prescindir</p><p>de afirmações filosóficas que as fundamentem, enquanto</p><p>processos humanos, não apenas o reconhecimento da sua</p><p>inescapável pluralidade, mas também a existência de uma</p><p>diferença radical e, no limite, uma verdadeira</p><p>indecidibilidade entre as afirmações filosóficas rivais.</p><p>A filofofia da ciência precisa ser entendida</p><p>pluralmente. Como observa Júlio Cabrera, “o filósofo</p><p>está interessado na participação da linguagem na</p><p>constituição de conceitos, dos conceitos que lhe</p><p>interessam para relacionar-se com o mundo (não apenas</p><p>cognitivamente)” (Cabrera, 2003, p. 17). Isso se aplica</p><p>não apenas a qualquer campo filosófico em particular –</p><p>como é o caso da filosofia da linguagem, no livro em</p><p>questão – mas abrange as diferentes áreas da filosofia.</p><p>Em relação ao que abordei na primeira seção, o</p><p>posicionamento filosófico plural propicia uma revisão</p><p>crítica da tradicional separação entre as ciências naturais</p><p>e sociais, enquanto o que foi abordado nesta segunda</p><p>seção nos permite pensar uma filosofia plural e capaz de</p><p>199</p><p>199</p><p>redefinir o dualismo tradicional que separa de modo</p><p>absoluto natureza e cultura e, como extensão</p><p>epistemológica dessa reconfiguração ontológica, também</p><p>fundar uma filosofia simétrica das ciências naturais e</p><p>sociais.</p><p>Com base na caracterização dos conflitos</p><p>filosóficos através do metaconceito de diafonia, podemos</p><p>recusar a universalidade pretendida por qualquer discurso</p><p>filosófico particular, reconhecendo, ao mesmo tempo, o</p><p>seu direito à existência. Em outras palavras, em vez de</p><p>negar o direito de existência a qualquer filosofia</p><p>particular, ou a todas elas em seu conjunto, o que</p><p>resultaria num relativismo filosófico, o que quis refutar</p><p>foi a pretensão de quaisquer filosofias da ciência –</p><p>existentes ou futuras – à universalidade. Ao contrário de</p><p>este método resultar em um relativismo, isto é, uma</p><p>situação na qual todas as filosofias perderiam o seu valor,</p><p>o argumento avançado é justamente o oposto: por</p><p>mostrar as limitações de outras perspectivas, cada uma</p><p>delas tem assim justificada a sua existência.</p><p>200</p><p>200</p><p>Referências bibliográficas</p><p>Abrantes, Paulo. “O que é filosofia da biologia?”; In: (Org.</p><p>Paulo Abrantes) Filosofia da biologia. Seropédica, RJ:</p><p>PPGFIL-UFRRJ, 2018, p. 2-36.</p><p>Bianchi, Ana Maria. “Of Clocks, Clouds, and the Hardest of</p><p>the Soft Sciences”; In: Annual Meeting of the Allied Social</p><p>Sciences Association. 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A estranha ordem das coisas: as origens</p><p>biológicas dos sentimentos e da cultura. São Paulo:</p><p>Companhia das Letras, 2018.</p><p>201</p><p>201</p><p>Deleuze, Giles, e Félix Guattari. O que é a filosofia? São</p><p>Paulo: Ed. 34, 2010.</p><p>Descola, Philippe, e Gisli Pálsson. “Introduction”; In: (Org.</p><p>Philippe Descola e Gisli Pálsson) Nature and society:</p><p>anthropological perspectives. London/New York: Routledge,</p><p>1996, p. 1-21.</p><p>Latour, Bruno. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro:</p><p>Editora 34, 1994.</p><p>Lévi-Strauss, Claude. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia</p><p>das Letras, 1996.</p><p>_______. Antropologia estrutural dois. São Paulo: Cosac</p><p>Naify, 2013.</p><p>Martínez-Contreras, Jorge. “O modelo primatológico de</p><p>cultura”; In: (Org. Paulo Abrantes) Filosofia da biologia.</p><p>Seropédica, RJ: PPGFIL-UFRRJ, 2018, p. 614-636.</p><p>Nothnagel, Detlev. “The reproduction of nature in</p><p>contemporary high-energy physics”; In: (Org. Philippe</p><p>Descola e Gisli Pálsson) Nature and society: anthropological</p><p>perspectives. New York/London: Routledge, 1996, p. 256-</p><p>274.</p><p>Sato, Eiiti. Economia e política das Relações Internacionais.</p><p>Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2012.</p><p>Smith, Steve. “Positivism and beyond”; In: International</p><p>Theory: Positivism and Beyond. Cambridge: Cambridge</p><p>University Press, 1996.</p><p>Sperber, Dan. Explaining Culture: a naturalistic approach.</p><p>Oxford: Wiley-Blackwell, 1996.</p><p>Wagner, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify,</p><p>2010.</p><p>202</p><p>202</p><p>Wendt, Alexander. Quantum mind and social science:</p><p>unifying physical and social ontology. Cambridge: Cambridge</p><p>University Press, 2015.</p><p>203</p><p>203</p><p>???????????</p><p>Júlio César*</p><p>*</p><p>204</p><p>204</p><p>205</p><p>205</p><p>206</p><p>206</p><p>207</p><p>207</p><p>Sobre os organizadores</p><p>Luciano Coutinho (Carlos Luciano Silva Coutinho) é</p><p>Professor de Filosofia do Instituto Federal da Paraíba (IFPB) e</p><p>Professor Colaborador de Estética, Hermêutica e Semiótica do</p><p>Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e</p><p>Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB). É Doutor em</p><p>Estudos Clássicos pela Universidade de Coimbra (UC) – o</p><p>Doutorado foi realizado com bolsa CAPES para “Doutorado</p><p>Pleno no Exterior”, e a Tese Doutoral, intitulada Katabasis e</p><p>psyche em Platão, foi aprovada com “Distinção e Louvor por</p><p>unanimidade / Summa Cum Laude”. Durante o Doutorado, foi</p><p>Pesquisador Visitante na University of Toronto (Canadá) e na</p><p>University of Oxford (Inglaterra). Fez dois Pós-Doutorados</p><p>em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU),</p><p>um deles com bolsa Procad/CAPES. É Pós-Doutor em</p><p>Arquitetura e Urbanismo,</p><p>a entenderem o esboço</p><p>de tese construída neste ensaio.</p><p>23</p><p>Conjuntos de Perguntas Sobre o Mundo</p><p>Figura 4: Cada conjunto representado na figura indica um conjunto</p><p>de perguntas que podem ser realizadas utilizando um determinado</p><p>sistema. O conjunto Ω contém todas as perguntas do Universo. O</p><p>conjunto β aquelas que o homem é capaz (potencialmente) de fazer.</p><p>Note que há na figura vários outros conjuntos que apresentam</p><p>variadas possibilidades de sistemas e conexões entre eles. Sistemas e</p><p>perguntas contidas no halo cinza são ininteligíveis para os seres</p><p>humanos.</p><p>Agora podemos voltar ao assunto principal desta</p><p>seção. Afinal, das perguntas do Universo que o homem é</p><p>capaz de fazer, quais são relevantes? Quais são absurdas?</p><p>24</p><p>Teria a homem capacidade cognitiva para realizar uma</p><p>pergunta relevante sequer?</p><p>Para isso precisamos considerar que há, pelo</p><p>menos, duas classes possíveis de perguntas pertencentes</p><p>à β: a) aquelas que são feitas do homem para o homem;</p><p>b) aquelas que tentam extrapolar a barreira do</p><p>antropocentrismo, embora pertencentes à β.</p><p>A primeira classe é fechada em si, e, portanto, cabe</p><p>ao próprio homem julgar se perguntas pertencentes a esta</p><p>classe são ou não absurdas. Para exemplificar, considere</p><p>as duas perguntas a seguir pertencentes à classe a):</p><p>Pergunta 1: Com qual idade crianças devem começar a</p><p>ir para a escola?</p><p>Pergunta 2: A letra ‘a’ do alfabeto é inteligente?</p><p>Possivelmente, iremos concordar que a primeira</p><p>pergunta não é absurda, enquanto a segunda é. A ideia</p><p>por trás deste exemplo é que quando o homem faz</p><p>perguntas que são construídas sobre um sistema lógico</p><p>construído por ele a respeito de objetos ou conceitos</p><p>também construídos por ele próprio (o alfabeto, por</p><p>exemplo), ele é capaz, sem grandes impasses, de decidir</p><p>se uma pergunta é ou não absurda.</p><p>25</p><p>Agora consideremos as perguntas da classe b),</p><p>que são aquelas que tentam extrapolar a barreira do</p><p>antropocentrismo. Ou seja, são perguntas que o homem</p><p>tenta fazer sobre o Universo e que não são relacionadas</p><p>com coisas ou conceitos criados por ele. Para</p><p>exemplificar, consideremos a pergunta a seguir:</p><p>Pergunta 3: Qual é a origem do Universo?</p><p>Sobre esta pergunta temos algumas opções a</p><p>considerar:</p><p>i. Trata-se de uma pergunta não absurda sobre o</p><p>surgimento do Universo e o Universo existe</p><p>apesar do homem. Portanto a pergunta</p><p>pertence a classe b).</p><p>ii. Trata-se de uma pergunta não absurda sobre o</p><p>surgimento do Universo. O Universo é uma</p><p>criação da mente humana e sua existência está</p><p>condicionada à existência do próprio homem.</p><p>Portanto a pergunta em questão pertence à</p><p>classe a);</p><p>iii. Trata-se de pergunta absurda que o homem</p><p>julga ser não absurda. Simplesmente não faz</p><p>sentido perguntar qual é a origem do Universo.</p><p>26</p><p>Essa pergunta equivale a perguntar se “a letra</p><p>“a” é inteligente”. Como o Universo existe</p><p>apesar do homem, a incapacidade do homem</p><p>em entender o próprio Universo o leva a</p><p>construir uma questão absurda que julga ser</p><p>não absurda.</p><p>Neste ponto do texto, vale a pena retomarmos a</p><p>ideia principal apresentada na introdução bem como os</p><p>quatro postulados complementares.</p><p>Ideia Principal: a capacidade do homem em fazer</p><p>perguntas é o exercício-maior da sua cognição.</p><p>• postulado complementar I: todas as</p><p>perguntas que o homem é capaz de fazer é</p><p>também capaz de responder;</p><p>• postulado complementar II: por uma</p><p>limitação do conhecimento humano atual e</p><p>também de linguagem, é possível que o homem</p><p>não seja capaz de responder, provisoriamente,</p><p>perguntas que é capaz de fazer;</p><p>• postulado complementar III: existem</p><p>perguntas absurdas que podem ser feitas, mas</p><p>não terão resposta direta;</p><p>27</p><p>• postulado complementar IV: o homem, por</p><p>uma limitação cognitiva congênita, não é</p><p>capaz de fazer todas as perguntas possíveis</p><p>sobre o Universo.</p><p>Agora que conhecemos o Sistema Ω e refinamos</p><p>um pouco mais as ideias, podemos fazer algumas</p><p>considerações. Sobre a ideia principal, fica claro que o</p><p>limite intelectual cognitivo do homem está ligado</p><p>diretamente às perguntas pertencentes ao conjunto β.</p><p>Diante disso, é razoável considerar que o homem pode</p><p>conhecer apenas aquilo que surge com resposta daquilo</p><p>que é capaz de perguntar e que a capacidade de fazer</p><p>perguntas, seria, portanto, o exercício maior da sua</p><p>cognição.</p><p>Sobre o postulado complementar I, fica claro que</p><p>todas as perguntas contidas em β têm respostas possíveis</p><p>de serem construídas. No entanto, o homem naturalmente</p><p>ainda não foi capaz de fazer todas as perguntas (nem</p><p>nunca será) contidas em β, conforme fundamentado no</p><p>postulado complementar II. Em β, há, também, uma</p><p>classe de perguntas absurdas. Perguntas absurdas não</p><p>podem ter respostas coerentes, conforme postulado</p><p>complementar III. São alicerçadas em pensamentos</p><p>incoerentes e, portanto, têm uma espécie de vício de</p><p>28</p><p>origem. A grande questão é que o homem, talvez, esteja</p><p>fazendo uma série de perguntas absurdas que julga serem</p><p>não absurdas por uma incapacidade sua de compreender</p><p>o Universo que existe apesar de si. Por fim, o último</p><p>postulado traz uma afirmação muito importante. Há no</p><p>halo da ignorância uma infinidade de perguntas sobre o</p><p>Universo que o homem jamais será capaz de fazer. E</p><p>aqui resta uma pergunta importante:</p><p>Se o homem não é capaz de fazer perguntas</p><p>pertencentes ao halo da ignorância, para que nos importa</p><p>discutir o assunto e para que serve tudo isso que foi</p><p>escrito nesse texto?</p><p>Pretendo na próxima seção justificar o porquê de</p><p>ter escrito este texto sobre as perguntas que nunca</p><p>serão feitas.</p><p>Conclusão – As melhores perguntas</p><p>O homem bem como qualquer outra entidade</p><p>inteligente possui capacidade cognitiva finita. Seu corpo</p><p>físico, sua anatomia, seus órgãos, seu cérebro são coisas</p><p>físicas materiais e, como toda coisa física, apresentam</p><p>limitações. Não há por que atribuir ao homem qualquer</p><p>capacidade infinita. Também não há motivo para admitir</p><p>que o homem seja uma espécie privilegiada no Universo,</p><p>29</p><p>ou mais, que seja tido como medida de todas as coisas do</p><p>Mundo.</p><p>Assim como olhamos para seres vivos menos</p><p>complexos que nós e reconhecemos suas limitações, é</p><p>possível imaginar que uma espécie mais inteligente que o</p><p>homem pudesse olhar para ele e perceber como é</p><p>limitado. Podemos imaginar, por exemplo, que haja</p><p>entidades inteligentes vivas extraterrestres ou ainda</p><p>entidades inteligentes não vivas movidas por inteligência</p><p>artificial mais complexas que o homem e que tenham</p><p>capacidade intelectual superior. Para essas entidades</p><p>nossos limites seriam percebidos com maior evidência,</p><p>assim como nós percebemos com evidência as limitações</p><p>intelectuais de um cachorro.</p><p>Por isso, retomo à questão principal. Qual seria o</p><p>limite intelectual do homem? O homem pode entender</p><p>todas as coisas do Universo? A tese defendida neste</p><p>ensaio é a seguinte: “o homem é capaz de responder tudo</p><p>aquilo que é capaz de perguntar”.</p><p>Considerando essa tese, fica patente que a arte de</p><p>perguntar é a arte superior do pensar. Mas se fazer</p><p>perguntas é a nossa maior capacidade intelectual, resta</p><p>uma dúvida: qual é o limite da nossa capacidade de</p><p>perguntar?</p><p>30</p><p>Seja qual for o limite humano para realizar</p><p>perguntas em potencial também parece óbvio,</p><p>considerando os argumentos do texto e as premissas</p><p>apresentadas, que perguntas e respostas só podem ser</p><p>elaboradas alicerçadas sobre “sistemas”.</p><p>Por isso, há um esforço enorme por parte do</p><p>homem para desenvolver conhecimento e criar</p><p>mecanismos de linguagem eficientes para sistematizar e</p><p>comunicar o pensamento. Em alguma medida, os</p><p>sistemas também delimitam o conjunto das perguntas que</p><p>podem ser feitas pelo homem. Em outras palavras, há</p><p>perguntas que o homem pode fazer porque já tem o</p><p>sistema para tal; há perguntas que tem potencial</p><p>intelectual para fazer, mas ainda não fez porque falta o</p><p>sistema adequado para tal; e há também perguntas que já</p><p>poderiam ter sido feitas porque é</p><p>na Linha de “Estética, Hermenêutica</p><p>e Semiótica” pela Universidade de Brasília (UnB). É Mestre</p><p>em Filosofia pela Universidade de Brasília (UnB), com bolsa</p><p>CAPES, e Mestre em Arquitetura e Urbanismo, com ênfase</p><p>em “Estética, Hermenêutica e Semiótica”, também pela</p><p>Universidade de Brasília. É Especialista em Filosofia e</p><p>Existência pela Universidade Católica de Brasília (UCB) e em</p><p>Administração Escolar pela Universidade Cândido Mendes. É</p><p>licenciado em Letras e licenciado em Filosofia. Foi professor</p><p>de Ensino Médio, por mais de onze anos, em disciplinas como</p><p>Interpretação de Texto, Redação, Gramática e Literatura</p><p>Brasileira, e também de Filosofia. Desenvolve pesquisa no</p><p>Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos (CECH) da</p><p>Universidade de Coimbra e no Núcleo de Estética,</p><p>208</p><p>208</p><p>Hermenêutica e Semiótica (NEHS) da Universidade de</p><p>Brasília (UnB). Atualmente está finalizando seu Pós-</p><p>Doutorado em Filosofia pela Universidade do Minho (UM). É</p><p>autor dos livros: Cura Psicossomática e Cura Psíquica em</p><p>Platão (Coimbra/Brasília: Imprensa da Universidade de</p><p>Coimbra/ Tanto Mar Editores, 2021); Educação Arquitetônica</p><p>da Humanidade (Brasília: Tanto Mar Editores, 2021),</p><p>publicado pela Tanto Mar Editores. É organizador dos livros:</p><p>1) Limites do humano (Orgs.: Luciano Coutinho; Tiago De</p><p>Carvalho; Lúcia Helena Marques. Brasília: Tanto Mar</p><p>Editores, 2021); 2) Medicina e Psicologia na Antiguidade</p><p>(Orgs.: Manuel Curado; Luciano Coutinho; Dennys Garcia</p><p>Xavier. Famalicão: Humus, 2019); 3) Cura e milagre:</p><p>religião, crença e percepção (Orgs.: Luciano Coutinho; Edrisi</p><p>Fermandes; Manuel Curado. Brasília: Tanto Mar Editores,</p><p>2019); 4) Cura e desencantamento: política, razão e ciência</p><p>(Org.: Luciano Coutinho; Edrisi Fermandes; Manuel Curado.</p><p>Brasília: Tanto Mar Editores, 2017); 5) Cura e encantamento:</p><p>rito, mito e psicologia (Orgs.: Luciano Coutinho; Edrisi</p><p>Fermandes. Brasília: Tanto Mar Editores, 2017).</p><p>Cauê Zaghetto é Professor de Física e Tecnologia e</p><p>pesquisador na área de Biometria, Inteligência Artificial,</p><p>Perícia Digital e Processamento de Sinais. É Doutor em</p><p>Engenharia Mecatrônica pela Universidade de Brasília (UnB)</p><p>e Mestre em Sistemas Mecatrônicos pela Universidade de</p><p>Brasília (UnB.) É Graduado em Física e em Pedagogia.</p><p>Zaghetto é Membro fundador do Grupo de Pesquisa em</p><p>Sistemas Biométricos (BiTGroup). Atualmente trabalha como</p><p>Diretor da Educação Superior do Centro Universitário</p><p>209</p><p>209</p><p>Projeção em Brasília. Na sua carreira, trabalhou como</p><p>Pesquisador e Professor em instituições de ensino superior</p><p>privadas, na Universidade de Brasília e no Ensino Médio e</p><p>Fundamental da Educação Básica e participou de grupos de</p><p>pesquisa atuando em diversas áreas, dentre elas:</p><p>Processamento de Vídeo em Tempo Real; Impressões digitais;</p><p>Reconhecimento Facial; Inteligência Artificial;</p><p>Reconhecimento de Assinaturas; Mídias Digitais Multimodais;</p><p>Perícia Digital; Educação em Tecnologia. Dentre algumas das</p><p>publicações mais importantes, destam-se três, um na área de</p><p>Ciência, dois na área de Ciência em diálogo com a Filosofia:</p><p>1) Zaghetto, Cauê; Aguiar, Luiz Henrique M.; Zaguetto,</p><p>Alexandre; Ralha, Célia G.; Vidal, Flavio De Barros. “Agent-</p><p>based framework to individual tracking in unconstrained</p><p>environments”; In: EXPERT SYSTEMS WITH</p><p>APPLICATIONS. 2017 (Revista Científica com Impact Factor</p><p>– Qualis A1 no Brasil); 2) Zaghetto, Cauê. “Do ordinário, do</p><p>extraordinário e do problema das observações particulares”;</p><p>In: Limites do Humano (Orgs.: Luciano Coutinho; Tiago de</p><p>Carvalho; Lucia Helena Marques). Brasília: Tanto Mar</p><p>Editores, 2021. (Capítulo de livro); 3) Zaghetto, Cauê. “O</p><p>Deslumbramento das Ciências Desencantadas”; In: Cura e</p><p>desencantamento: política, razão e ciência (Orgs.: Coutinho,</p><p>Luciano; Fernandes, Edrisi; Curado, Manuel. Org.). Brasília:</p><p>Tanto Mar Editores, 2017. (Capítulo de livro).</p><p>210</p><p>210</p><p>intelectualmente capaz</p><p>e já possui o sistema adequado, mas ainda não fez</p><p>simplesmente porque não pensou a respeito.</p><p>Aqui é momento de nos perguntarmos: será que já</p><p>fizemos uma pergunta não absurda sobre o Universo?</p><p>Certamente, as ideias apresentadas nesse ensaio</p><p>não são uma só tentativa vã de exercício intelectual</p><p>aleatório empreendido para dizer em vinte e três páginas</p><p>que “o homem é limitado e ignorante”. Reconhecendo</p><p>que temos limites podemos em primeiro lugar ter um</p><p>31</p><p>olhar mais generoso com todos aqueles – humanos ou</p><p>não – que também têm seus limites. Em segundo lugar, é</p><p>possível imaginar que ainda há uma série de perguntas</p><p>pertencentes a β que não fizemos e que, portanto,</p><p>precisamos aprimorar nossos sistemas a fim de que</p><p>possamos fazê-las.</p><p>Em outras palavras, ainda há muito o que perguntar</p><p>e fazer perguntas melhores pode fazer do homem uma</p><p>entidade senciente e inteligente melhor. Para além disso,</p><p>confesso:</p><p>Fico imaginando como são magníficas as</p><p>perguntas que nunca serão feitas.</p><p>Tudo isso que escrevi começou com uma pergunta:</p><p>pergunte!</p><p>32</p><p>Leis universais:</p><p>natureza e mente humana</p><p>Luciano Coutinho*</p><p>* É Professor Colaborador da linha de “Estética, Hermenêutica e</p><p>Semiótica” do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de</p><p>Arquitetura da Universidade de Brasília (PPG-FAU / UnB). É</p><p>Professor Efetivo de Filosofia do Instituto Federal da Paraíba</p><p>(IFPB). É Doutor em Estudos Clássicos pela Universidade de</p><p>Coimbra (UC), realizado com bolsa CAPES para Doutorado no</p><p>Exterior, com revalidação em Filosofia pela Universidade Federal de</p><p>Minas Gerais (UFMG). Tem dois Pós-Doutorados em Filosofia pela</p><p>Universidade Federal de Uberlândia (UFU), um deles foi realizado</p><p>com bolsa CAPES/Procad. Tem Pós-Doutorado em Arquitetura e</p><p>Urbanismo pela Universidade de Brasília. É Mestre em Filosofia</p><p>pela UnB e Mestre em Arquitetura e Urbanismo (com ênfase em</p><p>“Estética, Hermenêutica e Semiótica”) pela UnB. É Licenciado em</p><p>Letras e é Licenciado em Filosofia.</p><p>35</p><p>Apresentação do problema</p><p>Imenso tem sido o interesse humano por aspectos</p><p>que reconhecemos como ordem e como caos. Muitos</p><p>mitos, muitas teorias filosóficas e muitas teorias</p><p>científicas dedicaram-se ao tema, a ponto de conseguirem</p><p>impor certos argumentos e contra-argumentos que vêm</p><p>moldando nossa forma de compreender nossa realidade</p><p>até agora conhecida nesse momento evolutivo de nossa</p><p>existência.</p><p>Este capítulo pretende não impor, de maneira</p><p>mítica ou acadêmico-científica, argumentos ou contra-</p><p>argumentos em torno do tema, mas antes diluí-los, a</p><p>ponto de considerar realidades conhecidas e realidades</p><p>não conhecidas (e até inimagináveis), com o intuito de</p><p>sustentar a intuição de que não poderemos conhecer os</p><p>recônditos das realidades não conhecidas do que</p><p>chamamos de universo e de sustentar que, da realidade</p><p>conhecida, podemos saber de seus aspectos ordenados</p><p>objetivamente, mesmo diante de aspectos caóticos.</p><p>Nesse sentido, o capítulo está dividido em três</p><p>partes: 1) “Cosmos – entre caos e ordem”; 2) “Natureza</p><p>terrestre – extremos e seus limites”; 3) “Mente humana –</p><p>testes da natureza”.</p><p>36</p><p>1 - Cosmos – entre caos e ordem</p><p>Traduzida como universo em nossos dias, cosmos é</p><p>uma expressão grega, via de regra simplificada como</p><p>“ordem”. Na compreensão intuitiva da humanidade,</p><p>“ordem” oferece a noção de padronização e assume um</p><p>entendimento em torno daquilo que está em equilíbrio.</p><p>Ao longo de nossa história, vários teorias foram</p><p>desenvolvidas acerca da origem do cosmos.</p><p>Na Teogonia, de Hesíodo, por exemplo, um</p><p>importante poema mítico que trata do nascimento dos</p><p>deuses, o cosmos seria o resultado de uma ordem</p><p>posterior à divindade primordial originária, Kaos. No</p><p>Gênesis judaico, surge um conceito de criação ex nihilo,</p><p>em que Deus, explorando sua própria mente, cria o</p><p>cosmos a partir de suas próprias ideias, conforme a</p><p>teologia/filosofia de Agostinho sustentará, a partir da</p><p>cristianização das “ideias” platônicas. Na teoria do Big</p><p>Bang, um exemplo contemporâneo de</p><p>cosmogonia/cosmologia, explora-se a noção de ordem de</p><p>uma maneira mais naturalista, cujos elementos vão</p><p>atraindo-se e organizando-se depois de uma grande</p><p>explosão.</p><p>Guardadas as proporções, como é evidente, tais</p><p>imagens e tantas outras mais assemelham-se entre si</p><p>quanto a um princípio: a ordenação da realidade</p><p>37</p><p>mediante possibilidades de caos: esvaziada dos</p><p>animismos da Teogonia, figuras como Uranos (ou Céu) e</p><p>Gaia (ou Terra) são representações dessa compreensão</p><p>da ordem sobre o caos originário pré-cósmico, que insiste</p><p>em permanecer mediante à ordem; o universo judaico-</p><p>cristão tende a uma noção de ordem perfeita, mas que,</p><p>mediante o distanciamento do bem por parte da criação,</p><p>dá espaço ao caótico; mesmo a teoria astrofísica</p><p>contemporânea que apresenta um caos explosivo que</p><p>geraria princípios inexplicáveis, a ordem surge com a</p><p>formação de movimentos, de forças, etc, e de astros em</p><p>geral, a exemplo da própria Terra.</p><p>Tais imagens e muitas outras inspiram uma teoria</p><p>filosófica bastante explorada nas tragédias gregas: o caos</p><p>é elemento intrínseco em tudo que existe, inclusive em</p><p>nós seres humanos, daí nossa incapacidade de fugir dele.1</p><p>Toda ordem possível no cosmos tem preservada, mesmo</p><p>que como um tipo de recessividade, o elemento caótico.</p><p>Nessa visada, o caos não é uma exceção passível de</p><p>negação ou de eliminação, mas antes parte integrante da</p><p>própria ordem. A isto, no entanto, temos a tendência de</p><p>perceber ou entender como exceção. O fato é que tais</p><p>1 Sugiro a meu leitor faça aproximações de leitura e diálogo com</p><p>Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Estes três tragediógrafos apresentam</p><p>profundos princípios filosóficos que deveriam fazer parte da</p><p>formação humana de qualquer indivíduo no planeta.</p><p>38</p><p>acontecimentos caóticos promovem, no cosmos, sua</p><p>multiplicidade. O caos, portanto, apesar da contradição</p><p>etimológica com a palavra cosmos, apresenta-se no cerne</p><p>da própria essência cósmica. É ele que promove as</p><p>modificações necessárias para a multiplicidade do</p><p>cosmos. É ele que a psicologia humana fundamenta</p><p>como elemento necessário para a diferença, para a</p><p>multiplicidade, embora a força cósmica seja entendida</p><p>como algo que busca um tipo de identidade, de unidade.</p><p>Independentemente da versão de cosmogonia /</p><p>cosmologia que dermos crença, o fato é que, em nossas</p><p>representações de cosmos, tendemos a perceber dois</p><p>extremos que disputam entre si: um que é entendido</p><p>como caos; outro que é entendido como ordem. Se</p><p>considerarmos que há uma infinidade combinatória de</p><p>possibilidades percentuais entre caos e ordem, teríamos</p><p>desde galáxias, sistemas, planetas e entes bastante</p><p>caóticos até entes bastante ordenados no Todo (incluo,</p><p>nesse Todo, o que não conhecemos e até o que não</p><p>iremos conhecer daqui de nosso planeta).</p><p>Nossas representações psíquicas do cosmos, nesse</p><p>processo caos/ordem, todavia, tendem a buscar o padrão</p><p>diante daquilo que é, por natureza, também caótico.</p><p>Assim, nossa tendência mental, natural, é a de</p><p>categorizar os entes cósmicos, unificar seus</p><p>39</p><p>comportamentos, apesar das diferenças múltiplas que</p><p>entre eles existirem. Não podemos entender isto como</p><p>uma negação do caos necessariamente. Sabemos que</p><p>somos caóticos; sabemos que lutamos cotidianamente</p><p>contra o caos, mesmo que por intuição. Algumas</p><p>psicologias, no entanto, apenas fingem, por meio de</p><p>linguagens imagéticas e rituais, já o ter superado.</p><p>Não conseguimos saber ou prever e menos ainda</p><p>compreender os limites do caos nisto que chamamos de</p><p>cosmos. É possível que haja partes do cosmos que,</p><p>contraditoriamente à etimologia da palavra, nada há de</p><p>ordem. Neste caso, as pouquíssimas leis que podemos</p><p>notar ou prever ou compreender, segundo nossas</p><p>limitadas percepções psíquicas, seriam irrelevantes e até</p><p>inexistentes. Isto podemos prever.</p><p>O problema aí é que,</p><p>se houver algo com</p><p>qualidades tão contraditórias a esta realidade que</p><p>conhecemos, sequer poderíamos chamá-lo de cosmos,</p><p>dada a significação que ela sustenta; a palavra universo</p><p>tampouco seria adequada, já que não poderíamos</p><p>encontrar, aí, nenhum tipo de unidade “uni” em uma</p><p>mesma realidade cósmica, em um mesmo verso. É</p><p>apenas nesse sentido restrito de cosmos e de universo,</p><p>admitido pela nossa capacidade limitada de</p><p>compreensão, que podemos falar de algum tipo de ordem</p><p>40</p><p>(já intuídos, conhecidos e/ou aceitos por nós), mesmo</p><p>com seus elementos caóticos.</p><p>Considerações acerca do cosmos</p><p>É nesse sentido, portanto, que se torna possível</p><p>falar de leis universais. Leis universais limitadas a esta</p><p>realidade que entendemos como cosmos, a este horizonte</p><p>que aceitamos como uni-verso, ou seja, nossa realidade</p><p>até agora conhecida por nós.</p><p>Nesse uni-verso conhecido, a formação de luas e</p><p>planetas, de sistemas e galáxias poderiam demonstrar e</p><p>serem tomados como prova de ordem diante da presença</p><p>do caos, se observarmos que asteroides e poeiras</p><p>espaciais são, por assim dizer, sobras cósmicas na própria</p><p>formação do cosmos conhecido; poderiam demonstrar</p><p>também que os sistemas em geral ainda não estão</p><p>completamente formados, mas ainda em curso de</p><p>formação – ainda assim, no entanto, não poderíamos</p><p>negar o caótico nessa processo de formação. Não vou me</p><p>estender nessa discussão, isto deixarei respeitosamente</p><p>para os colegas da Astrofísica. Interessa-me, aqui, a</p><p>percepção humana acerca do que de fato pode ser</p><p>padronizado categorialmente em nosso cosmos</p><p>conhecido. O próprio fato de nosso sistema solar</p><p>41</p><p>apresentar um padrão planetário, por exemplo, assim</p><p>como muitos outros sistemas em nosso cosmos</p><p>conhecido, demonstra que estamos diante de algumas leis</p><p>universais inegáveis em nossa realidade. A expressão</p><p>universal, aqui, está restrita ao uni-verso conhecido,</p><p>segundo todos os aspectos caóticos que lhe acompanha.</p><p>2 - Natureza terrestre – extremos e seus limites</p><p>Gostaria de iniciar esta seção com uma reflexão:</p><p>haveria algum tipo de limite na produção da natureza?</p><p>Para tentar responder a esta pergunta, dividirei a</p><p>problemática em quatro aspectos: a) “os múltiplos</p><p>extremos possíveis na natureza”; b) “as variabilidades</p><p>combinatórias entre dois extremos”; c) “os limites da</p><p>natureza entre dois extremos”; d) “as possíveis</p><p>extrapolações cósmicas entre dois extremos”.</p><p>a) os múltiplos extremos possíveis na natureza:</p><p>Não enumerarei, aqui, os múltiplos extremos</p><p>possíveis na natureza, mas apenas evidenciarei alguns de</p><p>seus exemplos, a fim de elucidar a ideia de que</p><p>poderíamos facilmente expandir a imagem dos extremos</p><p>42</p><p>para diferentes categorias. Na natureza, vários exemplos</p><p>poderiam ser dados em torno da noção de extremidade.</p><p>- A simetria e a assimetria poderiam ser bastante</p><p>exploradas nesse contexto. Poderíamos</p><p>selecionar dentro de uma mesma categoria de</p><p>objeto, de espécie ou de comportamento, por</p><p>exemplo, dois indivíduos com qualidades</p><p>opostos. Poderíamos pegar duas conchas do</p><p>mar e verificar padrões de simetria em uma e</p><p>de assimetria em outra, ou ainda a face de dois</p><p>seres humanos, etc;</p><p>- A oposição entre analgesia congênita e</p><p>hipersensibilidade seria outra possibilidade a</p><p>ser explorada. Poderíamos selecionar um</p><p>indivíduo de uma determinada espécie que</p><p>apresenta disfunção analgésica e não sente</p><p>nenhum tipo de dor corporal e compará-lo com</p><p>outro indivíduo da mesma espécie em que o</p><p>mínimo incômodo corporal ser-lhe-ia causa de</p><p>dores sem precedentes;</p><p>43</p><p>- Outro brevíssimo exemplo, antes de</p><p>avançarmos, seria a psicopatia2 e o altruísmo</p><p>extremo3. Os psicopatas não sentem empatia</p><p>por indivíduos da mesma espécie em geral, por</p><p>isso não têm sentimentos de compaixão pelo</p><p>outro e podem cometer atrocidades sem</p><p>nenhum tipo de arrependimento ou remorso</p><p>psíquico, embora possam apresentar empatia e</p><p>sentimentos por alguns indivíduos específicos.</p><p>Na linha oposta estariam os altruístas</p><p>extremos, capazes de sentir uma empatia tão</p><p>desmedida que dedicam suas vidas em prol de</p><p>outros indivíduos, podendo até se deixarem</p><p>morrer por propósitos alheios.</p><p>Para essas análises, é preciso ater-nos às categorias</p><p>comparadas, ou seja, os extremos devem ser postos</p><p>2 Psicopatia, cabe elucidar, é uma expressão psiquiatricamente</p><p>ambígua por sua própria etimologia. Por isso esclareço que a</p><p>utilizarei no sentido tradicional, cunhado por Kurt Schneider em</p><p>1923; sentido que foi aprofundado por trabalhos de Emil Kraepelin</p><p>ao longo do século XX, determinado por características géticas e</p><p>biológicas de doença mental; que muito influenciou Robert D. Hare,</p><p>com o que ficou conhecido como o Hare's Psychopathy Checklist-</p><p>Revised (PCL-R; R. D. Hare, 1991), sentido ampliado para o</p><p>princípio de ‘egoísmo míope’, caracterizado por ‘falta de inibição’.</p><p>3 Chamo livremente de “altruísmo extremo” a incapacidade de medir</p><p>os limites solidários de uma ação.</p><p>44</p><p>segundo critérios que selecionem indivíduos de mesma</p><p>espécie. Não poderíamos comparar, por exemplo, para</p><p>buscarmos esses extremos, o comportamento de um</p><p>psicopata canibal com o comportamento canibal de um</p><p>índio antropófago – pois se trata de necessidades, de</p><p>místicas e de rituais bem diferentes; também não</p><p>compararíamos a alegada analgesia de uma espécie de</p><p>peixe com a hipersensibilidade de um indivíduo da</p><p>espécie humana; também não comporaríamos a</p><p>assimetria de uma concha com a assimetria de um ser</p><p>humano. Este tipo de comparação geraria, por si, uma</p><p>assimetria na análise, um vício de forma em sua origem.4</p><p>4 É claro que, por falta de possibilidades de parâmetros mais</p><p>simétricos ou ainda por possibilidades de criação de imagens</p><p>fantásticas, a ciência em geral, a arte e a filosofia podem recorrer à</p><p>criação de categorias mais abrangentes, quando se trata</p><p>especialmente de busca de semelhanças: por exemplo, na criação de</p><p>vacinas, considera-se o fator “bio” como categoria, por isso</p><p>considera-se as consequências e os sintomas de certas substâncias</p><p>em ratos e em seres humanos; ou ainda na categoria “arte”, em que</p><p>se considera efeitos estéticos em um indivíduo tanto em contato com</p><p>um poema, quanto em contato com um edifício arquitetônico (ou</p><p>ainda na criação de metáforas ou alegorias em uma imagem artística</p><p>ou filosófica). É necessário, todavia, ter em mente que há uma</p><p>distorção na análise comparativa, em função da assimetria de forma</p><p>na origem da comparação, que pode ser benéfica ou maléfica para a</p><p>lógica interna da abrangência comparativa.</p><p>45</p><p>b) as variabilidades combinatórias entre dois extremos:</p><p>Não enumerarei, aqui, as variabilidades</p><p>combinatórias de nenhum extremo da natureza. Isto seria</p><p>impossível. Mas poderíamos dar como exemplo, para</p><p>simplificar, as probabilidades não quantificáveis entre</p><p>dois extremos: entre o mais simétrico e o mais</p><p>assimétrico, teremos uma quantidade assustadora de</p><p>combinações varietais; assim como entre um indivíduo</p><p>analgésico e um hipersensível também teremos uma</p><p>variabilidade combinatória difícil de ser quantificada; da</p><p>mesma maneira que encontraremos uma variabilidade</p><p>combinatória incontável entre um indivíduo psicopata</p><p>extremo e um indivíduo altruísta extremo. Dito de outra</p><p>maneira, há uma incontável quantidade de indivíduos que</p><p>têm características combinatórias dadas por dois</p><p>extermos categorial.</p><p>c) os limites da variabilidade entre dois extremos:</p><p>As variabilidades entre dois extremos respeitam um</p><p>limite básico: os dois extremos.5</p><p>5 Em alguma medida, a permuta gênica é um bom exemplo de que a</p><p>variabilidade dada entre dois extremos fortalece as células; e esta</p><p>variabilidade é determinada biologicamente pelos dois gametas que</p><p>se cruzam, marcando os limites da combinação gênica dos</p><p>46</p><p>As mãos humanas podem ter simetrias diferentes e</p><p>até características diferentes: existem mãos sem dedos e</p><p>até mãos com 12 dedos ou mais. Dentre essas duas</p><p>possibilidades extremas temos mãos com um dedo, dois,</p><p>três, oito, com membranas, gigantes, etc, mas não existe</p><p>uma mesma mão (que se tenha registrado até hoje) em</p><p>que no lugar dedos haja um galho de pau-brasil ou um</p><p>pedaço de material meteórico (pelo menos não na</p><p>natureza temporal-evolutiva de nosso cosmos conhecido</p><p>nesse momento histórico que vivenciamos).</p><p>d) as extrapolações dos limites entre dois extremos:</p><p>Certamente existem casos em que os limites</p><p>extremos são extrapolados pela natureza como é o caso</p><p>de alguns recessivos primitivos que parecem retornar em</p><p>alguns indivíduos; a exemplo da espécie humana, formas</p><p>ósseas que lembram chifres nascem nas protuberâncias</p><p>dos dedos; rabo na parte final da coluna; pele em tons</p><p>azulados, etc. Tudo isso, no entanto, faz parte ainda dos</p><p>testes da natureza, da própria ordem da natureza.</p><p>descendentes, seja por ligação fatorial (linkage), seja por permutação</p><p>gênica (crossing-over). Mas tudo isto só é possível dentro dos</p><p>limites de seus gametas ancestrais, que podem guardar</p><p>ancestralidade de gametas muito longínquos da evolução.</p><p>47</p><p>A natureza, nesses casos, ao que parece, insiste em</p><p>alguns testes que aparentemente beiram o caos, mas</p><p>seriam antes a extrapolação das próprias possibilidades</p><p>regulares de certos extremos. Na verdade, isto poderia ser</p><p>parte de possíveis alterações e (re)padronizações dos</p><p>próprios extremos de uma determinada categoria, como</p><p>se a natureza verificasse se elementos primitivos não</p><p>poderiam ser benéficos para o presente da espécie ou</p><p>ainda se elementos não padronizados para a espécie</p><p>poderiam ser combinações benéficas para a modificação</p><p>do padrão da própria espécie, rumo à transformação desta</p><p>espécie em uma outra espécie.</p><p>Estes casos marcam, por assim dizer, o caótico</p><p>agindo como parte intrínseca da ordem, para</p><p>proporcionar testes possíveis na natureza, ou mais, para</p><p>gerar a multiplicidade que é inevitável e necessária em</p><p>nosso cosmos conhecido. A exceção (o aparentemente</p><p>caótico) seria, na verdade, uma via da própria ordem para</p><p>operar o fortalecimento da natureza, mediante sua frágil</p><p>condição; condição esta que não é capaz de existir como</p><p>unidade absoluta, unificando todos os entes, todas as</p><p>espécies, todas os comportamentos, etc.</p><p>48</p><p>Considerações acerca da natureza terrestre</p><p>Uma única verdade, ou uma única lei universal,</p><p>faria do cosmos um ente uno, em que todas as</p><p>substâncias seriam unas entre si; não existiriam</p><p>substâncias minerais, vegetais ou animais (ou ainda</p><p>inomináveis para nossa percepção), para começar, e</p><p>menos ainda diferenças entre as diversas substâncias que</p><p>constituem uma espécie. O que temos, no entanto, é o</p><p>inverso: um cosmos em que a identidade absoluta e una</p><p>se torna uma aberração.</p><p>É nesse sentido que, no mundo não conhecido por</p><p>nós, naquele que sequer podemos fazer as perguntas</p><p>certas sobre ele,6 é possível que os limites não existam de</p><p>fato. Assim, é possível especular que haja mundos</p><p>determinados pelo mais puro caos, da mesma maneira</p><p>que haja mundos tão limitados à sua própria ordem que</p><p>as identidades sejam mais patentes do que poderíamos</p><p>imaginar.</p><p>O fato é que tudo isso é pura especulação, e o que</p><p>podemos perceber em nosso cosmos conhecido são</p><p>algumas leis universais que buscam a identidade,</p><p>6 Refiro-me, aqui, ao que diz Cauê Zaghetto acerca das perguntas</p><p>possíveis e das perfuntas impossíveis a serem feitas pelo ser</p><p>humano; cf. Capítulo 1 desta obra, de Zaghetto, intitulado “As</p><p>perguntas que nunca serão feitas” (p. ??-??).</p><p>49</p><p>mediante seu irmão, o caos, que garante a multiplicidade</p><p>na realidade. Não podemos afirmar se a ordem foge do</p><p>caos ou se o caos foge da ordem, afirmar qualquer uma</p><p>das duas possibilidades seria especulação, mas o fato é</p><p>que podemos perceber a convivência entre ordem e caos</p><p>em nosso cosmos conhecido. Portanto, afirmar a pura</p><p>diferença e multiplicidade é um disparate, uma</p><p>infantilidade desmedida, na mesma medida que afirmar a</p><p>pura identidade e unidade também o é, pelo menos nesse</p><p>cosmos conhecido que convivemos.</p><p>Esta é uma relação que ainda não podemos</p><p>conhecer com certeza e precisão, exatamente porque não</p><p>conhecemos os limites da ordem e os limites do caos.</p><p>Não sabemos ainda se há de fato uma força que ordena</p><p>ou se há de fato uma força que caotiza a realidade</p><p>natural. Dito de outra maneira, não sabemos ainda (em</p><p>termos temporal-evolutivo) se o cosmos conhecido é o</p><p>resultado da força que ordena ou da força que caotiza a</p><p>realidade. Ainda em outras palavras, não sabemos se, no</p><p>nosso cosmos conhecido, a força que prevalece é a que</p><p>busca a identidade ou é a que busca a multiplicidade.</p><p>Mas ainda diante de tal incógnita, podemos afirmar com</p><p>certeza que há forças ordenadoras em nossa realidade</p><p>conhecida que formam biologicamente os entes – caso</p><p>contrário não haveria sequer o agrupamento das células</p><p>50</p><p>que formam nossa espécie, menos ainda o agrupamento</p><p>das forças que formam o que entendemos por mente</p><p>humana, dentre outras coisas como as formações dos</p><p>planetas, etc.</p><p>A ordem torna semelhante os indivíduos de um</p><p>mesmo grupo categorial, ao mesmo tempo em que torna</p><p>possível a variedade múltipla desses indivíduos entre si.</p><p>Em outras palavras, a espécie de pau-brasil tem</p><p>semelhanças específicas capazes de nos fazer categorizá-</p><p>los como indivíduos de uma mesma espécie, Pau-Brasil,</p><p>ao mesmo tempo em que todos os indivíduos dessa</p><p>espécie guardam diferenças entre si, e o mesmo se dá</p><p>com todas os entes conhecidos em nosso cosmos</p><p>conhecido. Estamos em nosso cosmos conhecido,</p><p>portanto, diante de uma inegável ordem, que anda de</p><p>mãos dadas com seu irmão caos.</p><p>3 - Mente humana – testes da natureza</p><p>A expressão “mente”, da maneira como foi</p><p>cunhada pela história do conhecimento no Ocidente,</p><p>remete, via de regra, à noção de algo que pensa, capaz de</p><p>refletir aquilo que pensa e sente. Nessa perspectiva, seria</p><p>estranho falarmos da mente de um mineral, por exemplo.</p><p>Mas, etimologicamente falando, a expressão psyche, base</p><p>51</p><p>filosófica para o próprio conceito de “mente”, aceita uma</p><p>abrangência bem maior de qualificação do que esta</p><p>limitada qualidade de “pensar” e “raciocinar”. Ela</p><p>admite, e aqui retomamos seus preceitos mais antigos,</p><p>até mesmo abrangências ligadas a instintos, a princípios</p><p>somáticos, a instâncias metafísicas, a imagens</p><p>fantasmagóricas, dentre outras.</p><p>Nesse sentido, não tenho dificuldade em sustentar a</p><p>psyche de um mineral. Psyche refere-se antes a um</p><p>conjunto de aspectos de um determinado reino, espécie,</p><p>cultura, etc. Não me refiro, todavia, ao</p><p>comportamentalismo de Watson ou de Skinner, mas a um</p><p>tipo de comportamento bem mais abrangente: de</p><p>sentimentos e de pensamentos, sim, mas também de</p><p>outros aspectos resultantes de elétrons, fótons, de</p><p>compostos químicos, de princípios congênitos, etc.</p><p>Se observarmos a psyche de cada indivíduo de uma</p><p>determinada espécie, conseguiremos perceber certamente</p><p>vários aspectos particulares e individuais, por um lado,</p><p>mas, por outro, também conseguiremos perceber alguns</p><p>aspectos universais da própria espécie reproduzidos</p><p>quase que automatamente em cada indivíduo dessa</p><p>espécie. Com estes aspectos universais, poderemos notar</p><p>certos padrões que, apesar de todas as particularidades e</p><p>individualidades, coincidem na psyche de cada indivíduo</p><p>52</p><p>dessa determinada espécie, algo que poderia ser</p><p>certamente metafísico (não vou, aqui, afirmar ou negar),</p><p>mas que é certamente natural, em termos temporais e</p><p>evolutivos, a cada psyche dessa tal espécie.</p><p>Cada mente individual de um ser humano, por</p><p>exemplo, é a consequência inevitável do resultado das</p><p>características particulares e individuais de sua psyche</p><p>(incluindo aí todas as características particulares</p><p>e</p><p>individuais de seu soma), marcada pelos limites naturais</p><p>e possíveis da própria espécie, uma vez que essas</p><p>particularidades e individualidades respeitam</p><p>determinados limites congênitos da biologia da espécie</p><p>humana. Assim, ainda que tais princípios possam ter uma</p><p>certa influência metafísica, manterei meu foco na busca</p><p>da compreensão de que tal gênesis estaria submetida às</p><p>causas naturais inscritas (e possíveis) na própria natureza</p><p>biológica da determinada espécie. Ainda que tais</p><p>princípios tenham gênesis metafísica, elas dependeriam</p><p>dos aspectos naturais, para operar com suas ordenações</p><p>na natureza. Em outras palavras, o foco, neste momento,</p><p>são os limites da produção da mente humana pela</p><p>natureza: fruto de tudo que naturalmente pode influenciar</p><p>sua formação no espaço-tempo terrestre.</p><p>Se considerarmos que a natureza produz</p><p>combinações infinitas entre dois extremos de uma</p><p>53</p><p>determinada categoria (psicopatia e altruísmo extremos,</p><p>por exemplo, conforme falamos anteriormente), os</p><p>princípios relacionais de uma psyche e de um soma são</p><p>determinantes para a formação da mente de um indivíduo</p><p>da espécie humana. Dito de outra maneira, a mente</p><p>humana seria um resultado combinatório das relações</p><p>entre psyche e soma, trabalhando em sentido monista,</p><p>mas não necessariamente em um monismo absoluto.</p><p>Nesse sentido, desde a textura da pele de um indivíduo (e</p><p>sua consequente capacidade de sentir ou não dor),</p><p>passando pela arquitetura cerebral e neural (e sua</p><p>consequente sintaxe e morfologia, para os</p><p>comportamentos sinápticos), até a organização</p><p>assimétrica ou simétrica entre as partes de seu soma, e</p><p>ainda a produção quantitativa e qualitativa de substâncias</p><p>químicas no interior de seus órgãos, dentre muitos outros</p><p>fatores combinados à educação familiar, escolar, cultural</p><p>e ainda à capacidade de síntese ou de antítese de tudo</p><p>isso, tudo interfere na formação da “mente” humana de</p><p>um indivíduo. A mente humana seria, portanto, o</p><p>resultado dos testes da natureza segundo as ligações e as</p><p>relações daquilo que chamamos tradicionalmente de</p><p>psyche e de soma. Mas tudo isto, a partir da estrutura</p><p>biológica possível no espaço-tempo terrestre da espécie.</p><p>54</p><p>Criamos representações morais como bem e mal</p><p>para predisposições bastante, pouco ou nada sociáveis.</p><p>Mas o fato é que, ao produzir uma mente psicopática e</p><p>uma mente altruísta (em seus extremos), a natureza busca</p><p>reforçar, dentro de seus limites, os aspectos naturais da</p><p>estrutura biológica que se evoluiu em forma de mente na</p><p>espécie humana, como testes naturais e evolutivos. A</p><p>mente de um doente psiquiátrico pode encontrar</p><p>caminhos existenciais e cósmicos muito mais resistentes</p><p>que a mente considerada saudável, por exemplo. As</p><p>questões relacionadas à necessidade da separação destas</p><p>mentes perigosas do restante das mentes consideradas</p><p>comuns em uma sociedade são princípios sociais e</p><p>culturais, sem os quais o caos reinaria ainda mais</p><p>inevitável em nossa sociedade.</p><p>A mente humana (conforme associamos</p><p>tradicionalmente no Ocidente) é apenas uma parte da</p><p>psyche, por isso, se queremos buscar compreender ainda</p><p>mais o cosmos e seus padrões universais, precisamos</p><p>avançar para estudos que considerem as representações</p><p>de toda a psyche humana, para que esta possa observar o</p><p>maior número de psychai7 possíveis no cosmos</p><p>alcançável e conhecido. Algo semelhante tem sido</p><p>praticado pela ciência atual, afinal, ao entendermos mais</p><p>7 Plural de psyche.</p><p>55</p><p>sobre parte do comportamento atômico de um mineral de</p><p>uma determinada substância, por exemplo, poderemos</p><p>estar diante de sua psyche e de parte importante da</p><p>psyche do cosmos, e isto significará conhecer um pouco</p><p>mais sobre as leis que regem sua existência, além, é</p><p>claro, das próprias diferenças de cada indivíduo atômico</p><p>e subatômico, diante dessas leis, compreendendo, assim,</p><p>um pouco melhor os próprios testes da natureza, diante</p><p>do caótico que insiste em ser ordenado (ou, para o leitor</p><p>mais cético ou ateu, que insistimos em ordenar) no</p><p>cosmos até agora conhecido.</p><p>A Biologia, a Química, a Farmacologia, a</p><p>Astrofísica, a Física, a Mecatrônica com a IA, dentre</p><p>tantas outras áreas, têm tentado desenvolver esse tipo de</p><p>pesquisa. Falta agora correlacionarmos todas elas com as</p><p>ciências humanas como a Psicologia, a Arte, a Filosofia,</p><p>etc. Apenas assim poderemos comparar os</p><p>comportamentos diversos dos entes do cosmos e, talvez,</p><p>aprofundar nosso conhecimento acerca da psyche do</p><p>cosmos que convivemos.</p><p>Um questionamento importante, embora simplista,</p><p>neste momento, é se o cosmos que conhecemos não seria</p><p>apenas uma representação subjetiva da mente humana.</p><p>Arriscando, aqui, uma resposta bastante simplista</p><p>também, embora importante, é que o cosmos que</p><p>56</p><p>conhecemos é certamente uma representação subjetiva de</p><p>um cosmos objetivo, mas não podemos desprezar o fato</p><p>de que, nessa subjetividade, certos aspectos coincidem</p><p>objetivamente com a realidade objetiva do cosmos.</p><p>Para avançarmos com esta resposta, partamos para</p><p>um exemplo: sabemos que a espécie humana colore o</p><p>cosmos. As cores não estão, da maneira que as</p><p>enxergamos, nos entes que olhamos, elas estão antes em</p><p>nossos órgãos de percepção. Em outras palavras, nós</p><p>projetamos as cores na realidade objetiva do cosmos.</p><p>Algo semelhante ocorre com outras espécies; em vez de</p><p>cores, as representações dão-se, entretanto, por meio de</p><p>outras artimanhas da evolução: dimensões, vibrações,</p><p>reações químicas – e a lista é certamente bastante imensa</p><p>e ainda desconhecida. Cada espécie, e não sabemos o</p><p>porquê, teve seus órgãos sensoriais evoluídos de uma</p><p>maneira relativamente diferente uns dos outros. Algumas</p><p>espécies percebem a realidade objetiva do cosmos por</p><p>meio de dimensões, outras por meio de vibrações, outros</p><p>ainda por meio de reações químicas, aquilo que, para nós,</p><p>é traduzido / interpretado por meio de cores pelos órgãos</p><p>da visão (o mesmo problema de tradução / interpretação</p><p>ocorre com os outros sentidos).</p><p>Talvez nunca sejamos capazes de ver a substância</p><p>objetiva que é interpretada por cores pela natureza de</p><p>57</p><p>nossa espécie, mas podemos notar que essa mesma</p><p>substância objetiva é interpretada por dimensões, por</p><p>vibrações ou por reações químicas (etc) pela natureza de</p><p>outras espécies. Em nossas reflexões mentais, podemos</p><p>perceber os sinais da existência de algo que no próprio</p><p>ente é percebido de maneira distinta por diferentes</p><p>espécies do cosmos. Seja por meio de cores ou por meio</p><p>de dimensões, vibrações ou reações químicas, esta</p><p>substância objetiva inominável está, de alguma maneira,</p><p>objetivamente na própria coisa percebida e não na</p><p>projeção psíquica das diferentes espécies.</p><p>Podemos relativizar com nossas psychai humanas</p><p>os gradientes das cores, assim como indivíduos de outra</p><p>espécie poderão até perceber dimensões, vibrações e</p><p>reações químicas em diferentes proporções; isto é</p><p>subjetivo, sem dúvida, e depende individualmente de</p><p>cada psyche. Mas todas estas percepções subjetivas são</p><p>fruto da formação da psyche e do soma de cada</p><p>indivíduo, fruto do elemento caótico da natureza do</p><p>próprio cosmos que convivemos e conhecemos. Mas</p><p>estas individualidades estão certamente limitadas por</p><p>certas características universais da natureza biológica de</p><p>cada espécie, tornando os testes da multiplicidade</p><p>psíquica de uma determinada espécie limitados</p><p>biologicamente nesse cosmos conhecido. Assim, onde se</p><p>58</p><p>percebe cor, mesmo que seja preto e branco por</p><p>disfunção fisiológica ou que seja em diferentes</p><p>gradientes em relação a outros indivíduos (assim como</p><p>um indivíduo de uma outra espécie perceberá em</p><p>variações de dimensão, vibração ou reação química de</p><p>maneira também diferente) há algo verdadeiramente</p><p>objetivo e substancial que é traduzido / interpretado em</p><p>diferentes proporções em cada indivíduo de uma espécie,</p><p>em função de seus órgãos evolutivos. Em indivíduos que</p><p>não têm a visão, essa análise poderia ser feita</p><p>com</p><p>qualquer outro sentido, afinal esse processo se passa com</p><p>qualquer outro sentido de uma determinada espécie.</p><p>Dessa maneira, aquilo que se traduz por cor, por</p><p>dimensão, por vibração, por reação química seria a coisa</p><p>mesma, objetiva e substancial, da realidade cósmica,</p><p>interpretada pela percepção possibilitada pelas</p><p>características que a natureza deu evolutivamente à</p><p>espécie. Há algo objetivo no cosmos, percebido pelas</p><p>espécies e pelos indivíduos de cada espécie de maneira</p><p>diferente por causa de seus órgãos evolutivos e de suas</p><p>particularidades existenciais. O fato é que algo está lá no</p><p>objeto e, embora seja percebido de maneira subjetiva,</p><p>podemos saber de sua existência objetiva, embora não a</p><p>possamos conhecer em completude, é claro. Estes são</p><p>59</p><p>sinais objetivos do cosmos conhecido em nossas</p><p>percepções subjetivas.</p><p>Ainda que pudéssemos ir ao núcleo da questão,</p><p>descobrindo se, no cosmos conhecido, a causa da</p><p>diferença é o resultado da força da ordem buscando</p><p>eliminar a multiplicidade ou, pelo contrário, a causa da</p><p>semelhança é o resultado da força do caos buscando</p><p>eliminar a identidade, não poderíamos garantir que nos</p><p>extremos de outras realidades não conhecidas as regras</p><p>seriam as mesmas. É certo que, nessas realidades</p><p>desconhecidas, as forças são tão diferentes que é</p><p>impossível prever qualquer resultado.</p><p>Independentemente do resultado em tais</p><p>recônditos, o fato é que nossa mente busca dar ordem ao</p><p>caos a todo momento, e isto não é mera subjetivação de</p><p>nossa existência, é antes uma tendência em um cosmos</p><p>que tem objetivamente alguma ordem. Mas não há, aí,</p><p>privilégio nesse processo, afinal as próprias substâncias</p><p>em nosso cosmos conhecido parecem buscar algum</p><p>princípio ordenado, mesmo mediante ao caos em que</p><p>estejam inseridas – não fosse dessa maneira, não haveria</p><p>galáxias, sistemas, sois, planetas, mentes humanas,</p><p>vegetais, minerais, etc, em nosso cosmos conhecido. Não</p><p>fosse assim, viveríamos em um relativismo tão absurdo</p><p>quanto impossível, para a existência da própria psyche de</p><p>60</p><p>cada ente – não haveria o ciclo de produção de oxigênio</p><p>pelos vegetais; não haveria o ciclo de produção de gás</p><p>carbônico por alguns seres; alguns leões comeriam carne,</p><p>outros comeriam pedra, outros ainda vidro ou todo tipo</p><p>de metal; não haveria sequer a formação somático-</p><p>biológica de um leão ou de qualquer outro indivíduo de</p><p>uma determinada espécie, menos ainda deste autor que</p><p>agora dialoga com o leior; etc).</p><p>Nesse sentido, embora não possamos saber a</p><p>verdade sobre a causa da ordem ou de sua falta, nossa</p><p>mente tende a traduzir o caótico como exceção da ordem.</p><p>Se isto não dá uma resposta sobre a verdade da realidade</p><p>objetiva, pelo menos dá uma resposta sobre a verdade de</p><p>nossa mente: até mesmo uma mente fortemente</p><p>predisposta ao caótico alimenta-se de padrões e de</p><p>identidades específicas para seguir sua vida.</p><p>Estudar as psychai dos entes de uma espécie, nesse</p><p>sentido, seria buscar seus aspectos mais específicos, seus</p><p>comportamentos mais profundos. Das semelhanças</p><p>aparentemente ordenadas ao aparentemente caótico; tudo</p><p>diz da psyche de uma espécie.</p><p>61</p><p>Considerações acerca da mente humana</p><p>Seja como forem os recônditos mais extremos da</p><p>realidade objetiva após o cosmos conhecido, os sinais da</p><p>natureza conhecida nos diz que estamos diante de certos</p><p>aspectos cósmicos tanto objetivos na exterioridade da</p><p>natureza, quanto subjetivos na interioridade da psyche,</p><p>mas que tais aspectos estão intrinsecamente</p><p>acompanhados de certos aspectos caóticos.</p><p>Não somos, é certo, capazes de determinar a</p><p>natureza e sua causa objetiva, e qualquer tentativa que</p><p>fizermos nessa direção transformará nossa percepção da</p><p>realidade em princípios antropomórficos com nomes bem</p><p>específicos já conhecidos do grande público como bem e</p><p>mal, moral e amoral, justo e injusto, etc; nomes dados a</p><p>certos aspectos da natureza que tornam mais significativa</p><p>e segura nossa realidade ao redor.</p><p>A mente humana está em meio a esses aspectos</p><p>cósmicos e caóticos, e isto dá à espécie humana (e a</p><p>qualquer outra espécie) sua capacidade de aproximar</p><p>seus indivíduos pela semelhança evolutiva da espécie, ao</p><p>mesmo tempo em que os afasta pela diferença natural dos</p><p>testes da natureza ao produzir cada indivíduo</p><p>psicossomaticamente. Mas há, aí, um limite imposto pela</p><p>própria natureza, e, nesse sentido, as mentes humanas são</p><p>produzidas na natureza terrestre segundo um espectro de</p><p>62</p><p>variabilidade semelhante ao que acontece com seus</p><p>corpos: da mesma maneira, por exemplo, que existem os</p><p>“ossos de vidro” (osteogenia imperfeita) e os “ossos de</p><p>granito” (esclerosteose), mas não o osso eterno, também</p><p>a mente humana segue certos limites em sua</p><p>variabilidade na natureza. Dito de outra maneira,</p><p>podemos ter, na natureza terrestre, mentes que percebem</p><p>mais ou menos os aspectos cósmicos e caóticos da</p><p>natureza, ou ainda mentes que qualificam tais percepções</p><p>em boas ou más, ou ainda mentes associativas e</p><p>dissociativas, mas não mentes que sejam puramente</p><p>ordenadas ou puramente caóticas (no sentido de uma</p><p>ordem e de um caos absolutos), já que, se existem tais</p><p>coisas, elas estão para além da realidade objetiva do</p><p>cosmos conhecido e não podem afetar nossa realidade</p><p>com tais absolutos, pelo menos não nesse espaço-tempo</p><p>do cosmos conhecido.</p><p>Portanto, por melhor ou por pior que seja uma</p><p>mente humana, se considerarmos qualificações</p><p>antropomórficas de nossa espécie, elas são previsíveis no</p><p>espectro dos testes da natureza em relação às mentes de</p><p>nossa espécie; elas estão dentro dos limites de sua</p><p>produção natural nesse cosmos conhecido.</p><p>63</p><p>Considerações Finais</p><p>De resto, a aceitação ou não de certos aspectos</p><p>caóticos em sociedade diz respeito também a uma</p><p>sociedade dada ou não ao caótico. Assim como também a</p><p>aceitação ou não de certos aspectos ordenadores diz</p><p>respeito também a uma sociedade dada ou não à</p><p>ordenação.</p><p>Assim como o caos naturalmente contextualizado</p><p>pode ser benéfico à própria natureza e a ordem anti-</p><p>natural pode ser maléfica à natureza, também o caos não-</p><p>natural e provocado será maléfico à natureza e a ordem</p><p>natural será benéfica a ela. Nesse sentido, uma sociedade</p><p>precisa compreender, dentro dos possíveis especulados,</p><p>os limites de uma e de outro, para que possa, não de</p><p>maneira natural-determinista extremista, nem de maneira</p><p>social-relativista extermista, estabelecer princípios claros</p><p>para a convivência e o respeito mútuo e possível entre os</p><p>limites da multiplicidade e da identidade. Mas esta é uma</p><p>questão que necessitará de outro texto, por isso deixo o</p><p>diálogo e a reflexão do leitor com os demais capítulos a</p><p>seguir.</p><p>64</p><p>64</p><p>Ensaio de Hermenêutica Tragicômica</p><p>Eryc Leão*</p><p>* É Professor de Física do Instituto Federal de Brasília (IFB),</p><p>Campus Taguatinga. É Doutorando em Estudos Clássicos pela</p><p>Universidade de Coimbra (UC) e Universidade de Groningen</p><p>(RUG), com investigação sobre o conceito grego de impiedade como</p><p>indicador de conflito entre cosmovisões no mundo grego. É mestre</p><p>em Filosofia Antiga pela Universidade de Brasília (UnB) e formado</p><p>em Física e Filosofia também pela UnB.</p><p>67</p><p>67</p><p>A compreensão é muito mais do que a aplicação artificial de</p><p>uma capacidade. É ainda e sempre o alcançar de uma</p><p>compreensão de si mais ampla. Ora, isto significa que a</p><p>hermenêutica é filosofia e, enquanto filosofia, filosofia</p><p>prática.1</p><p>Hans-Georg Gadamer</p><p>1 - Os maiores pedaços de si</p><p>Queres saber onde estão os maiores pedaços de ti?</p><p>Para merecer tua energia, tua busca?</p><p>Então aguça o olhar dos sentidos</p><p>E atenta-te ao que mais te tocas!</p><p>É para lá que, querendo ou não</p><p>Conhecendo ou negando,</p><p>Para passear ou morar,</p><p>Acabarás indo</p><p>1 Gadamer apud Portocarrero (2007, p.274) Do original:</p><p><<Verstehen ist eben mehr als die kunstvolle Anwendung eines</p><p>Könnens. Es ist immer auch</p><p>Gewinn eines erweiterten und vertieften</p><p>Selbstverständnisses. Das heisst aber: Hermeutik ist Philosophie,</p><p>und als philosophie praktische Philosophie>> (Portocarrero, 2007, p.</p><p>274, n.19).</p><p>68</p><p>68</p><p>2 - Decifra-te, ou te devoro!</p><p>Os temas discutidos adiante pressupõem a</p><p>suspensão do juízo com respeito aos nossos hábitos</p><p>modernos mais básicos e já há muito tornados</p><p>irrefletidos, ligados ao problema da comunicação. Ou</p><p>seja, que tipo de ponte é essa que se estabelece entre os</p><p>impulsos que levam escritores a publicar e as disposições</p><p>de leitores a ler? Muitos dos aforismos e ensaios</p><p>seguintes foram escritos em dias diferentes, sob</p><p>disposições diferentes, tendo em mente questões e</p><p>impulsos diferentes, pensando em pessoas e situações</p><p>diferentes. Algum tempo depois, outros impulsos</p><p>ordenadores entraram em cena para colocar ordem nesse</p><p>conjunto, até o texto final se estabelecer e endereçar</p><p>humanos futuros desconhecidos com maiores ou menores</p><p>pontes estabelecidas com esses temas. Nada disso é</p><p>óbvio e aos pré-modernos essas aporias da escrita eram</p><p>bastante mais claras do que as são para nós, filhos ainda</p><p>não-desmamados da modernidade. Portanto, convido o</p><p>leitor, invisível para mim, a refletir sobre a leitura antes</p><p>de ler! Convido-o a refletir sobre quem és, quem pensas</p><p>ser, e a refletir sobre a tese segundo a qual a leitura de</p><p>qualquer coisa é em alguma medida também uma leitura</p><p>de si. A escrita me parece também isso em alguma</p><p>medida. A consequência disso é que esses atos</p><p>69</p><p>69</p><p>solipsistas, de ler e escrever, de profundo interesse em si</p><p>mesmo, são também paradoxalmente atos de conexão</p><p>com a humanidade inteira, através da construção e</p><p>fortalecimento dessas pontes, fundamentais para tempos</p><p>não-bárbaros2.</p><p>Suponho portanto, pela decisão de publicar,</p><p>que estejam solucionadas de alguma</p><p>forma as aporias todas, essa incógnitas do palco da</p><p>modernidade, pressupostas nos atos comunicativos: “o</p><p>que é o humano?”, “a natureza?”, “o próprio ato de</p><p>construção de sentido em qualquer linguagem?” E dessas</p><p>questões derivam o problema colocado acima: o que é</p><p>isso, o escritor? Seria um humano apartado da natureza?</p><p>Uma parte da natureza falando em nome dela? Seguindo</p><p>a primeira opção, o que seria a natureza apartada do</p><p>humano? E dentro dela, quem são esses diversos outros</p><p>humanos leitores? Todas essas questões emergem da</p><p>própria prática de escrever, assinar e endereçar textos a</p><p>leitores desconhecidos. Nos textos adiante, tu, ó</p><p>desconhecido, não és passivo! Perceberás que essas</p><p>reflexões serão retomadas de alguma forma e assumo de</p><p>início mover-me no meio caminho entre essas aporias e a</p><p>hipótese de que elas estão resolvidas de alguma forma,</p><p>2 Acerca da hermenêutica como leitura e compreensão de si, veja-se</p><p>Portocarrero (2007) e Gadamer (1983).</p><p>70</p><p>70</p><p>aporias da tarefa de me dirigir a humanos leitores que</p><p>não conheço, com quem posso ou não ter pontos de</p><p>contato, e portanto, sabendo que a tarefa fracassará</p><p>justamente naquele aspecto onde não houver pontes</p><p>reconhecíveis e bem construídas entre nós, eu que</p><p>escrevo, e tu que lês. De minha parte, mesmo</p><p>reconhecendo a limitação dessa forma de comunicação,</p><p>penso que a atitude de honestidade intelectual é</p><p>importante e valorosa em si mesma e precisa ser levada a</p><p>cabo (decisão ética!). Se o texto te fizer pensar, terei</p><p>atingido meu objetivo. Do contrário, não hesite:</p><p>abandone-o, para revisitá-lo em momento oportuno,</p><p>quando sentires que há pontes suficientes entre ti e estas</p><p>vozes! De qualquer modo, sugiro a seguinte breve lista</p><p>de exercícios mentais: Qual estratégica hermenêutica é</p><p>melhor, a leitura ou a escrita? É o caso ler mais para</p><p>entender melhor? O que significa entender? Pensar?</p><p>Pensar, por si mesmo? Há momento certo para começar a</p><p>pensar por si mesmo? Qual o número mínimo de livros, a</p><p>idade mínima, o currículo mínimo, para elaborar um</p><p>pensamento próprio? É possível compreender sem ao</p><p>mesmo tempo elaborar ou reelaborar? Por fim: Se</p><p>compreender é estabelecer uma ponte entre pensamentos,</p><p>71</p><p>71</p><p>como é possível haver compreensão sem elaboração</p><p>própria em algum nível3?</p><p>3 - Hermenêutica e tragicomédia</p><p>Abordagens hermenêuticas pressupõem</p><p>cosmovisões, concepções do que seja o humano, a</p><p>natureza, a sociedade, e constituem, elas mesmas, ações,</p><p>uma vez que leituras de mundo conectam-se a modos de</p><p>ação no mundo. Pretende-se aqui apontar um caminho,</p><p>uma estratégia que pode ser chamada de hermenêutica</p><p>tragicômica, que consiste na estratégia de leitura do</p><p>mundo a partir dos elementos da tragédia e da comédia,</p><p>do humano limitado, do mundo em constante processo de</p><p>ruptura, da tensão entre civilização e barbárie, da</p><p>inexistência em separado do bem e do mal, da dualidade</p><p>própria da existência, das maldições inter-geracionais</p><p>sempre à espreita, do forte papel de heranças invisíveis,</p><p>do futuro sempre sujeito à hamartia, da necessidade de</p><p>arriscar-se, do papel social do perdão, da compreensão do</p><p>significado da política como processo trágico e estético,</p><p>da radicalidade do projeto de humanização universal, da</p><p>3 Para um excelente ensaio acerca das aporias da cosmovisão</p><p>moderna, veja-se Latour (1994). Sobre a temática do pensamento</p><p>próprio e da autoria, veja-se: Kant (1974) e Schopenhauer (2006).</p><p>72</p><p>72</p><p>construção de uma leitura de mundo sem heróis ou vilões</p><p>individuais, cujo grau de civilidade dependa de um</p><p>projeto de paideia que ensine a sentir a tragédia, a ler</p><p>narrativas de desfortuna como trágicas, em que</p><p>seja imprescindível compreender o cosmos em sua</p><p>multidimensionalidade para evitar o erro trágico, o</p><p>excesso, o narcisismo, o maniqueísmo, a barbárie, a</p><p>guerra, e a fabricação da morte em nome de grandes</p><p>bens4.</p><p>Nesse contexto o caráter histórico das ciências</p><p>acentua a natureza tragicômica da empreitada moderna,</p><p>dado o eterno movimento da ciência entre processos de</p><p>síntese (cosmos) e análise (caos), entre diferentes</p><p>paradigmas e diferentes problemas centrais. Sob suas</p><p>4 Hermenêutica: termo derivado do adjetivo hermeneutike</p><p>(ἑρµηνευτικός, ή, όν), substantivado a partir da expressão “arte de</p><p>interpretar” (hermeneutike techne, ἑρµηνευτικὴ τέχνη). Em sentido</p><p>amplo: “estratégia de leitura de mundo, do drama humano no palco</p><p>da existência e, consequentemente, forma de ser e agir no mundo a</p><p>partir dessas leituras”. Tragicomédia (Gr.: τραγικοκωµῳδία, lat.:</p><p>Trăgĭcŏcōmoedĭa): Originalmente, drama composto pela mistura de</p><p>tragédia e comédia. Aqui, estratégica hermenêutica e estética,</p><p>abarcando a representação nos aspectos duplos de composição-</p><p>leitura e ação-interpretação. Perdão: cf. “A irreversibilidade e o</p><p>poder de perdoar” em Arent (2005, pp. 248-255). Paideia (Gr.:</p><p>παιδεία): Expressão grega para educação ou formação humana em</p><p>sentido amplo. Cf. a esse respeito Jaeger (1989, p.1) e Leão (2021).</p><p>Hamartia/hamartiai (Gr. sg.: ἁµαρτία, pl.: ἁµαρτίαι): Grego para o</p><p>tipo de erro do herói trágico, tal como a ação do arqueiro que tenta</p><p>acertar um alvo e erra. Cf.: Fialho (2014).</p><p>73</p><p>73</p><p>lentes, o macro e o micro, o palco da existência e suas</p><p>personagens, deslocam-se, ora devido a hamartiai - do</p><p>sucesso (eutychía) para a desgraça (dystychía) - e em</p><p>outros momentos em sentido contrário, contornando</p><p>abismo, rindo. Tempos bárbaros, de aumento do caos,</p><p>são capazes de desumanizar humanos, retirar deles sua</p><p>história, heranças, características e destino. Processos de</p><p>maniqueização, racialização e demonização são indícios</p><p>desses tempos, onde a desgraça de sub-humanizados</p><p>passa a não ser vista como trágica. Nesse contexto,</p><p>qualquer estratégia de paideia ou hermenêutica</p><p>tragicômica torna-se simultaneamente projeto de</p><p>humanização e ampliação de pontes5.</p><p>5 Veja-se, para essa dialética entre análise e síntese na história da</p><p>química: Bachelard</p>