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ESTRUTURAS PSICANALÍTICAS AULA 5 Profª Juliana Lorenço 2 CONVERSA INICIAL Já analisamos as neuroses e a formação dos sintomas histéricos e obsessivos. Agora, em continuidade aos estudos sobre as estruturas clínicas, aprofundaremos nossa compreensão sobre a clínica da psicose, examinando seus fenômenos elementares e os subtipos clínicos – paranoia, esquizofrenia e melancolia. Embora Freud não tenha recomendado o tratamento psicanalítico para a psicose, ele nunca deixou de investigá-la. Lacan reafirma a importância da clínica da psicose e enfatiza que não devemos recuar diante desse campo. Ele redefine os mecanismos que caracterizam essa estrutura e propõe uma nova compreensão da transferência, por meio do delírio erotomaníaco como um elemento central. Assim, mesmo quando o psicótico delira ou alucina, sua fala deve ser ouvida e interpretada dentro de uma lógica própria, permitindo que sua subjetividade se manifeste e encontre um espaço de expressão. Para iniciarmos nossos estudos sobre esse tema, partiremos do principal texto freudiano, conhecido como o Caso Schreber, a fim de desbravar o modo como os delírios e alucinações se produzem e demonstrar o seu valor clínico, pois assim como os sintomas estão para as neuroses, os delírios estão para as psicoses. TEMA 1 – A PSICOSE A Psicanálise teve um papel fundamental para a clínica da psicose, pois foi ela que esclareceu seu mecanismo específico, separando-a definitivamente da neurose e da perversão. Em Freud, a psicose é um estado extremo de defesa do eu contra representações insuportáveis. Diante dessas ideias intoleráveis, o eu não as reprime, como ocorre na neurose, mas as rejeita completamente, expulsando-as da sua estrutura psíquica. Esse processo de exclusão resulta em uma ruptura com a realidade, pois a ideia rejeitada está profundamente vinculada a um aspecto do mundo externo. O texto de maior tradição psicanalítica é o Caso Schreber, publicado em 1911, no qual Freud realiza uma análise se baseando na autobiografia de Daniel Paul Schreber, um jurista que descreveu detalhadamente sua experiência com delírios e alucinações. 3 O curioso é que Freud nunca teve contato direto com Schreber, mas utilizou seu relato para desenvolver uma compreensão mais profunda do mecanismo da psicose. Dessa forma, cabe-nos iniciarmos por esse texto, para extraímos as principais lições deixadas por Freud. 1.1 Um recorte do caso Schreber Histórico Daniel Paul Schreber era doutor em Direito e juiz-presidente da Corte de Apelação da Saxônia. Ele se destacava por sua brilhante trajetória profissional. Sua primeira crise ocorreu aos 42 anos, quando foi diagnosticado com "hipocondria grave" e internado por vários meses na clínica do Dr. Flechsig, por quem desenvolveu uma profunda gratidão, atribuindo sua recuperação. Ao analisar a autobiografia de Schreber, Freud destaca que Schreber expressa a frustração de não ter tido filhos, apesar de seu longo casamento e de momentos "muito felizes" vividos ao lado de sua esposa. Passados oito anos de sua primeira internação, quando Schreber completava 51 anos de idade, ele foi nomeado presidente da Corte de Apelação. E pouco antes de assumir o cargo, sonhou por diversas noites que estava enfermo novamente. Em uma manhã, quando estava semiacordado, surgiu-lhe um pensamento: “seria muito bom ser uma mulher submetendo-se ao coito”. Essa ideia foi extremamente rejeitada por Schreber. Alguns meses após sua nomeação, Schreber começou a sofrer de insônia, que foi se intensificando e passou a vir acompanhada pela sensação de "amolecimento" cerebral. Em seguida, desenvolveu ideias de perseguição e prenúncios de morte, além de uma sensibilidade extrema à luz e ao barulho. Com o tempo, passou a ter alucinações visuais e auditivas, nas quais se via morto e em decomposição, acometido por doenças como peste e lepra. Assim, Schreber passou longos períodos imerso no terror de suas alucinações, chegando a desejar a morte e a tentar o suicídio em diversas ocasiões. Na última etapa do seu delírio, sua experiência adquiriu um caráter místico, levando-o a acreditar que se comunicava diretamente com Deus. Delírio Freud, em sua análise sobre o delírio de Schreber, distingue dois pontos centrais: 4 1. Perseguição: inicialmente, Schreber acredita estar sendo perseguido por Deus, pois este estaria conduzindo uma conspiração para destruir sua integridade física e mental. Para isso, Deus utilizaria tudo ao seu redor, incluindo o Dr. Flechsig, seu médico, que aparece como um “agente divino”, realizando em seu corpo manipulação de ligações nervosas que permitiam a comunicação direta em sua mente. Dessa forma, Schreber denominou o Dr. Flechsig de “assassinato de alma”. Nasio (2001) acrescenta que nenhuma parte do corpo de Schreber foi poupada em seu delírio. Schreber acreditava que seus intestinos haviam sido retirados, seu esôfago reduzido a pedaços, suas costelas quebradas e parte de sua laringe engolida. Além disso, afirmava que seu estômago havia sido substituído por um judeu e que os nervos de sua cabeça haviam sido arrancados. Essas sensações aterrorizantes estavam ligadas à ação dos chamados "raios de Deus", que, segundo Schreber, atravessavam seu corpo e tentavam escapar sempre que ele se descuidava. Para evitar que isso acontecesse e provar a Deus que ainda estava vivo, Schreber emitia uivos, demonstrando, assim, que não havia “perdido a cabeça”. 2. Transformação em mulher: no segundo estágio de seu delírio, Schreber aceita a ideia de tornar-se a mulher de Deus, marcando um ponto decisivo em sua experiência psicótica. Esse momento é caracterizado por sua transformação, que ocorre por meio da emasculação. Nasio (2001) destaca que, no auge do delírio de perseguição, Schreber percebia a emasculação como uma forma de humilhação extrema, destinada a reduzi-lo à condição de uma prostituta, sujeita a abusos sexuais. Como evidência desse processo, ele relata que os “raios de Deus” passaram a chamá-lo de “Miss Schreber”. Entretanto, nessa segunda fase do delírio, há uma mudança na sua percepção, pois agora ele passa a aceitar sua transformação em mulher como um sacrifício necessário para o “bem da humanidade”. Segundo Nasio (2001), Schreber se reconcilia com essa ideia de se transforma em mulher como um desígnio divino. Ele acredita que Deus exige essa transformação para salvar a humanidade, assumindo, então, um papel passivo diante dos “raios divinos”, que buscam prazer em seu corpo. Essa concepção é evidenciada em sua própria declaração: “É meu dever oferecer aos raios divinos a volúpia e o 5 gozo que eles buscam em meu corpo” (Schreber, citado por Nasio, 2001, p. 51). Portanto, o que antes era inaceitável e extremamente rejeitado passa a ser concebido, pois deixa de ser um conflito e ganha a proporção de ser uma missão divina, criar uma nova humanidade (de raça “schreberiana”), sendo essa construção delirante a solução de seu conflito. TEMA 2 – AS LIÇÕES DO CASO SCHREBER É interessante observar que Freud manteve sua abordagem no Caso Schreber, interpretando os sintomas e restabelecendo a função da doença. Pois, assim como o inconsciente segue uma lógica específica em suas manifestações clínicas, ele buscou identificar a lógica coerente e específica para o delírio de Schreber, rompendo com a tradição psiquiátrica da época. Freud observou a evolução sistemática e projetiva dos delírios do paciente, classificando seu caso como paranoia e distinguindo-o nosograficamente da esquizofrenia. Portanto, do ponto de vista teórico, Freud fundamentou sua análise na teoria da libido. Freud (1911) descreve que na paranoia ocorre uma retirada da libido investida no mundo externo, que passa, então, a ser reinvestida no próprio eu. Em Schreber, esse mecanismo tornou-seevidente quando seu mundo interno entrou em colapso, levando-o a reconstruí-lo por meio do delírio. Segundo Freud, o conflito que desencadeou a psicose de Schreber surgiu quando ele foi tomado por uma ideia inassimilável: "como seria bom ser mulher submetendo-se ao coito". Esse pensamento, intolerável para sua estrutura psíquica, gerou um impasse que levou ao rompimento com a realidade. A psicose, portanto, emergiu como um mecanismo para lidar com esse conflito. Essa passagem nos remete à ideia de que, na psicose, o encontro com o sexo, diferentemente da neurose, que o coloca diante de uma convocação pela qual deixará o sujeito sempre em busca de um significante que dê conta daquilo que ele afirmou (homem/mulher), não tem uma resposta. Assim, para Schreber, diante de ideias que lhe eram incompatíveis, constrói um sistema delirante no qual múltiplos elementos, aparentemente aleatórios, se interligam. 6 No entanto, a complexidade dessa construção demonstra que se trata de uma produção psíquica que visa restabelecer, de forma própria, um novo vínculo com a realidade. Freud sugere, então, que o delírio não deve ser visto apenas como um sintoma patológico, mas como um mecanismo psíquico que busca reorganizar a realidade do sujeito. No caso de Schreber, o surto inicial representa a retirada da libido dos objetos externos, resultando na desintegração de seu mundo. A reconstrução desse mundo se dá justamente por meio do delírio, que funciona como uma tentativa de reinvestimento da libido e de recuperação de um equilíbrio psíquico. Essa perspectiva permite compreender que, longe de ser um simples caos, o delírio tem uma lógica interna e uma função específica: restaurar, dentro dos limites da psicose, uma forma de relação com a realidade. Podemos dizer, então, que o processo da repressão propriamente dita consiste num desligamento da libido em relação às pessoas – e coisas – que foram anteriormente amadas. Acontece silenciosamente; dele não recebemos informação, só podemos inferi-los dos acontecimentos subsequentes. O que se impõe tão ruidosamente à nossa atenção é o processo de restabelecimento [...]. Foi incorreto dizer que a percepção suprimida internamente é projetada para o exterior; na verdade é, pelo contrário, como agora percebemos, que aquilo que foi internamente abolido retorna desde fora. (Freud, 1911, p. 78) O trabalho do delírio tem por finalidade, dirá Lacan (1956), a construção da metáfora delirante, ou seja, por conta da falta da metáfora paterna, na psicose, o delírio visa estabelecer o lugar do falo – significante que norteia a lógica subjetiva, que para Schreber se constitui como sendo a mulher de Deus, que foi de uma ameaça insuportável a uma saída benéfica –m redenção do mundo, sendo essa a via pela qual Schreber restabelece a ligação com os outros. 2.1 Fenômenos elementares Em Lacan, veremos que, assim como os sintomas estão como metáfora nas neuroses, nas psicoses, os fenômenos elementares ocupam essa função, representando a manifestação mais radical da passagem do simbólico para o real. Esses fenômenos estão diretamente ligados ao significante foracluído, ou seja, àquilo que foi excluído da estrutura do discurso inconsciente, retornando no real sob a forma de alucinações, delírios ou outras expressões psicóticas. 7 No Seminário 3 (1956), Lacan esclarece que os fenômenos elementares não são meros elementos subjacentes à construção do delírio, mas, sim, componentes estruturais com força própria. Eles desempenham um papel ativo na organização do delírio, podendo se apresentar tanto de forma fragmentada quanto em sua totalidade. Ele enfatiza essa ideia ao afirmar: “Isso quer dizer que a noção de elemento não deve ser tomada aí de modo diferente da de estrutura, estrutura diferenciada, irredutível à outra que não ela mesma” (p. 30). Em outras palavras, a psicose não é apenas um efeito da ausência de um significante fundamental, mas a construção de uma nova lógica subjetiva, na qual os fenômenos elementares desempenham um papel estruturante. Assim, Lacan (1956) evidência psicose e seus fenômenos como uma estrutura de linguagem, ao lado das neuroses, sendo que os sintomas psicóticos não são os de metáfora, e sim os que surgem pela falta da metáfora, sendo eles os fenômenos elementares que estão ao nível do fenômeno e da causa da psicose. Colette Soler (2003) enfatizar que, na psicose, o significante rejeitado no simbólico retorna no real de maneira irredutível à cadeia significante habitual. Alguns desses fenômenos podem acompanhar o sujeito ao longo de toda a vida, enquanto outros emergem no momento do desencadeamento da psicose. No nível dessas manifestações, Lacan (1956) ressalta a alucinação verbal como um exemplo do “significante no real”, ou seja, um significante que, em vez de integrar a estrutura simbólica do sujeito, reaparece diretamente no real. Essa ruptura compromete a continuidade da cadeia significante, fazendo com que ela deixe de produzir significação de maneira ordenada. Essa abordagem permite compreender que, na psicose, o significante opera fora da subjetividade do sujeito, mantendo uma autonomia estrutural que influencia diretamente sua experiência da realidade. Lacan ilustra o efeito da alucinação relacionado ao mecanismo de foraclusão e ao retorno do significante rejeitado, com o caso de uma paciente: uma jovem que vivia uma relação dual, complexa e conflitante com a mãe, tendo ainda uma vizinha considerada invasiva. A situação se intensificou quando, no caminho de casa, ela se encontra com o amante dessa vizinha, que a ouve chamar de "porca". 8 Quando Lacan a examinou, ele questionou a paciente sobre o que ela pensava imediatamente antes de ouvir a palavra "porca". Ela respondeu: "Eu venho do salsicheiro". Essa resposta aparentemente desconexa revelou a chave para o fenômeno psíquico. O termo "salsicheiro" sugere uma associação com algo "impuro" ou "sujinho", conectando-se simbolicamente ao insulto "porca", mas de forma distorcida. Assim, no processo psíquico da paciente, a palavra "porca" não era apenas um insulto direto, mas, sim, um significante que evocava uma cadeia de associações ligadas à experiência de sujeira, desvalor e humilhação. A alucinação, nesse contexto, ocorre como uma expressão da reemergência de um significante rejeitado que, ao não ser adequadamente simbolizado, retorna como um fenômeno que rompe a continuidade da cadeia significante e se faz emergindo no real, de forma distorcida e insustentável dentro da lógica psíquica da paciente. Com esse exemplo, Lacan explica que, no nível simbólico, a alucinação verbal está ligada à foraclusão do Nome-do-Pai. Quando o Nome-do-Pai está foracluído, o sujeito fica em um estado de oscilação, já que o eu não recebeu o designo simbólico que o estabiliza e o articula na ordem do significante. Desse modo, o termo "porca" representa um significante que aparece de forma disruptiva, fora da cadeia significante estabelecida no registro imaginário e se insere no real, sem passar pelo filtro simbólico. Esse significante traz à tona os paradoxos de uma percepção singular do sujeito, que não consegue integrar esse signo de forma lógica ou coerente com sua estrutura psíquica. Nesse contexto, quando o amante da vizinha aparece, ele vai corresponder ao chamado do Nome-do-Pai, o terceiro elemento, visto que ele faz emergir um novo significante que descontrói a sua relação dual, mãe-filha, desestabilizando o par imaginário (a – a’) da relação especular da paciente. Passemos ao esquema L para situar a posição do significante na alucinação: Figura 1 – Esquema L 9 O Nome-do-Pai é vazio, por isso, o sujeito, em S, não consegue responder desde o lugar simbólico, em A. Quando surge uma situação que abala a relação especular imaginária com o outro (Eu-mãe), surge um significantedesconhecido para o sujeito “porca”, mas que designa o sujeito da frase “eu venho do salsicheiro”, lugar que o sujeito não consegue sustentar na realidade. No caso, “porca” é o significante que aponta para o ser de objeto do sujeito. Lacan (1956) propôs que se busquem no romance da vida do sujeito as evidências que sustentam o seu delírio. Nessa paciente, foi possível encontrar em seu histórico o relato de que, um dia, ela fugiu de seu ex-marido, pois pensava que ele e sua família queriam esquartejá-la como uma porca: “cortá-la em rodelas”. Portanto, o significante “porca” é o seu nome de gozo, pois desvela sua posição enquanto sujeito psicótico, no registro imaginário. TEMA 3 – PARANOIA A paranoia, a esquizofrenia e a melancolia são subestruturas da psicose que estão todas submetidas ao mecanismo da foraclusão do Nome-do-Pai. Esse conceito é essencial para o diagnóstico na clínica psicanalítica, pois a foraclusão determina a estrutura psíquica que condiciona a psicose de maneira fundamental. No caso da paranoia, Freud fez uma aproximação com as neuroses, uma vez que ela compartilhava características com os mecanismos de defesa, ao lado da histeria e da neurose obsessiva. Essa relação entre paranoia e neuroses foi aprofundada por Antonio Quinet (2009), que explicou o fenômeno por meio do conceito de Verhaltung, que pode ser traduzido como "retenção". A Verhaltung refere-se a um mecanismo específico da paranoia, no qual o sujeito se identifica diretamente com um significante mestre, criando um ponto fixo de identificação que impede a circulação livre de significantes. Para Lacan, a teoria psicanalítica, por meio do conceito da libido, ajuda a compreender esse ponto de fixação psíquica, que se manifesta na paranoia como uma tentativa de estabilizar a psique diante da falta de um ponto simbólico externo que organize o sujeito. A retenção, portanto, revela a maneira pela qual o paranoico organiza e interpreta sua realidade a partir de um significante mestre, de forma rígida e isolada. 10 No Rascunho K, Freud (1896), sob a perspectiva de uma psiconeurose de defesa, estabelece uma comparação entre a neurose obsessiva e a paranoia, focando principalmente na maneira como cada uma delas lida com a experiência do primeiro encontro com o sexo. Em ambos os casos, esse encontro inicial é associado a uma experiência de prazer excessivo. No entanto, a diferença crucial surge quando essa recordação é evocada. No caso da neurose obsessiva, o prazer inicial é posteriormente acompanhado por uma recriminação, resultando em desprazer onde antes havia prazer, o que reflete o conflito intrapsíquico característico da neurose obsessiva. Por outro lado, na paranoia, o sujeito paranoico não acredita nessa recriminação, e no lugar da culpa ou conflito com o prazer experimentado, o paranoico tende a distorcer ou negar a possibilidade de qualquer recriminação. Antonio Quinet (2009) aponta que, na paranoia, a estrutura defensiva do sujeito é diferente da neurose obsessiva. Enquanto o neurótico obsessivo reage à recordação do prazer com um sentimento de culpa e autopunição, o paranoico não internaliza essa recriminação, pois ele projeta a culpa ou a responsabilidade para o outro, mantendo-se fora do campo da autoacusação. Essa dinâmica cria a base para o delírio persecutória, no qual o sujeito se vê constantemente ameaçado por forças externas, mas sem a mesma experiência de culpa que caracteriza as neuroses obsessivas. A crença ou a descrença na recriminação primária (que acompanha o gozo) determina a “escolha da neurose”, expressão de Freud para designar em que tipo de “psiconeurose” se situará o sujeito. A recriminação, na medida em que marca a Coisa gozosa como proibida, é índice do Nome-do-Pai, é a expressão da lei ao nível do fenômeno. A crença na recriminação promove o recalque desta, assim como da cena de gozo recriminada. Deste recalque resultará o sintoma. a descrença na recriminação corresponde a foraclusão do Nome-do-Pai. A recriminação foracluída do simbólico retorna no real sob forma frequente de injuria alucinatória. (Quinet, 2009, p. 98) O significante do gozo, ao ser evocado na memória, transforma-se no significante traumático (St), e o significante da lei provoca a recriminação e equivale ao Nome-do-Pai (Sl). Na neurose obsessiva, os dois significantes (Sl – St) serão recalcados, e na paranoia, o significante da lei é foracluído, enquanto o significante do trauma é retido. Assim, o destino do significante da lei e do significante do trauma na paranoia seguem o caminho descrito a seguir: 11 Figura 2 – Encontro com o sexo Na paranoia, o sujeito se encontra alienado ao significante que o representa em relação aos outros significantes, o que significa que ele se identifica completamente com esse significante-mestre. Esse significante, que se inscreve como "Um", torna-se a chave para a estrutura paranoica. O paranoico se identifica com esse significante de maneira rígida, estabelecendo uma referência fixa que determina sua percepção do mundo e das relações. Ele torna-se "o Um" da referência, ou seja, ele se vê como o ponto central de uma rede de significantes, e é a partir dessa posição que se origina o principal fenômeno característico da paranoia. Esse fenômeno está ligado à ideia de que o paranoico se vê como o alvo de uma perseguição ou uma ameaça externa, interpretando qualquer situação ou interação como parte de uma trama que gira em torno dele. Sua realidade é estruturada a partir dessa identificação com o significante-mestre, o que impede uma flexibilidade ou fluidez nas suas representações e relações com o mundo. TEMA 4 – ESQUIZOFRENIA Tanto a paranoia quanto a esquizofrenia se desenvolvem dentro do registro imaginário, que está diretamente relacionado ao campo do narcisismo, no qual a imagem do eu se constitui numa relação dual com o outro. Porém, Freud (1911) situa que, na esquizofrenia, há uma fixação no estádio do autoerotismo, ou seja, uma regressão ao ponto de gozo mais primitivo do desenvolvimento psíquico, pelo qual a imagem corporal ainda se encontra fragmentada. 12 Essa fragmentação do corpo leva à dispersão do sentido, o que significa que o sujeito esquizofrênico tem dificuldade em integrar as diversas partes de sua experiência e percepção, levando a uma distorção na percepção de si mesmo e da realidade. Dessa forma, podemos diferenciar a esquizofrenia da paranoia por esse ponto de fixação da fase do psicodesenvolvimento infantil. Enquanto a esquizofrenia envolve uma quebra na coesão do eu, produzindo um retorno a um estágio primitivo de prazer autoerótico, a paranoia é caracterizada por uma fixação narcísica, em que seu eu é super investido. Portanto, o esquizofrênico goza de um corpo, mas de forma fragmentada, pois seu corpo não superou a fase autoerótica, de modo que ele não foi unificado. Nesse sentido, toda as suas experiências se manifestam de forma anarquista. É diferete da paranoia, na qual o gozo não está disperso, mas, sim, concentrado no Outro, que assume a figura de um perseguidor. Com base nessas distinções, Quinet (2009) apresenta um quadro comparativo entre a paranoia e a esquizofrenia, destacando como cada uma dessas estruturas psíquicas se manifesta nos registros do real, simbólico e imaginário. Tabela 1 – Quadro comparativo Na esquizofrenia, há uma ausência do S1, que é o significante mestre, responsável por organizar e hierarquizar os demais significantes na estrutura psíquica. O S1 funciona como o suporte das representações-meta do pensamento inconsciente e consciente, permitindo a construção de um discurso coerente. Sem esse significante estruturante, o sujeito esquizofrênico experimenta uma Registro Paranoia Esquizofrenia Imaginário Retorno ao narcisismo Fixação da imagem e sentido Um corpo preso na imagemdo outro Eu megalomaníaco Retorno ao autoerotismo Dispersão da imagem e sentido Imagem do corpo despedaçado Eu fragmentado Real J(A) gozo do Outro Dispersão do gozo Simbólico Verhaltung (retenção) do Um NP° Outro consistente Dispersão, não há Um significante NPº Outro fragmentado 13 dispersão de significantes, ou seja, sua linguagem e seu pensamento não seguem uma lógica organizada. Em vez de uma cadeia significante que se articula hierarquicamente, como ocorre na neurose e na paranoia, na esquizofrenia há uma multiplicidade de S1, todos soltos, sem um princípio ordenador. Essa multiplicidade tende ao infinito, sem que haja um eixo central para organizar o fluxo do pensamento e da linguagem. Para representar essa dispersão característica da esquizofrenia, Quinet (2009) propõe o seguinte mátema: (S1(S1(S1(S1→∅)))) Esse mátema expressa o encadeamento infinito de significantes sem uma organização estruturada, apontando para um vazio (∅) que indica a ausência de um ponto fixo que estabilize o discurso e a experiência subjetiva do esquizofrênico. TEMA 5 – MELANCOLIA Na clínica psicanalítica, a melancolia é considerada um terceiro tipo clínico da psicose, ao lado da paranoia e da esquizofrenia. No entanto, na psiquiatria, ela costuma ser classificada dentro dos transtornos do humor, especialmente no espectro do transtorno bipolar. Já no senso comum, a melancolia é frequentemente confundida com a depressão, embora existam diferenças fundamentais entre essas condições. Ao contrário da depressão neurótica, que pode ser transitória e estar associada a eventos específicos da vida do sujeito, a melancolia é uma tristeza estrutural. Isso significa que ela não se reduz a um estado passageiro ou a uma resposta emocional a uma perda, mas faz parte da constituição psíquica do sujeito. Outro aspecto essencial para diferenciá-la do luto, que é um estado depressivo natural e esperado diante de uma perda, é que, na melancolia, o sujeito se identifica radicalmente com a dor de existir. Em vez de lamentar a perda de um objeto amado, como ocorre no luto, o melancólico se percebe como o próprio objeto perdido, o que pode levá-lo a sentimentos profundos de culpa, autodepreciação e, em casos extremos, ao desejo de aniquilação de si mesmo. 14 No clássico texto Luto e melancolia (1915), Freud compara o trabalho do luto à dor, enfatizando como a perda de um objeto amado desencadeia um processo psíquico de elaboração. No entanto, mais tarde, quando desenvolve os conceitos de pulsão de morte e masoquismo primordial, Freud formula a ideia da economia da dor. Nessa perspectiva, a dor não é apenas um efeito colateral do luto, mas pode também representar uma forma de satisfação da pulsão de morte, manifestando-se em fenômenos como a perversão masoquista, o gozo do sintoma e, especialmente, a melancolia. Quinet (2009) sublinha que, no luto, a dor está relacionada a um tipo de gozo paradoxal, que envolve tanto sofrimento quanto prazer, e surge com a perda de um ideal. Essa experiência está diretamente ligada à castração, ou seja, à falta estrutural que marca o sujeito. Assim, no luto, a perda está associada ao objeto que velava essa castração, com a sua perda evidenciando sua falta. “A dor da depressão é a dor constitutiva da castração, que, em vez de aparecer como angústia, deixa triste o sujeito com a nostalgia do Ideal, saudade do Um que encobria a falta” (Quinet, 2009, p. 173). No Rascunho G (1885), Freud já esboçava uma compreensão da melancolia, identificando quatro características principais que sustentou em toda a sua obra: • Relação entre melancolia e anestesia sexual: o melancólico apresenta uma perda total do desejo, não apenas no âmbito da vida cotidiana, mas principalmente no campo da sexualidade. Seu desejo se reduz a zero, resultando em uma apatia generalizada; • Melancolia e neurastenia: a melancolia está associada a uma intensa perda de vitalidade, acompanhada de um cansaço extremo e um esgotamento físico e psíquico persistente; • Melancolia e angústia: diferentemente das neuroses de transferência, na melancolia não há um mecanismo de economia da angústia. Isso significa que a angústia não é deslocada ou atenuada por meio de sintomas neuróticos, mas se manifesta de maneira crua e direta; • Melancolia e mania: a melancolia pode se transformar em mania, mas essa transformação não significa uma mudança estrutural. Segundo Quinet (2009), Freud não propõe uma visão de bipolaridade no sentido 15 moderno do termo, mas aponta para a possibilidade de uma “passagem” da melancolia para a mania, sem que o sujeito deixe de ser essencialmente melancólico. Freud (1885) caracteriza a melancolia como um luto decorrente da perda da libido. No entanto, diferentemente do luto comum, em que o sujeito elabora gradativamente a perda do objeto amado, na melancolia, essa perda se manifesta de forma muito mais profunda e desestruturante. Lacan amplia essa ideia ao sugerir que, na melancolia, ocorre um “furo no psiquismo”, isto é, uma falha estrutural que interrompe o encadeamento das associações psíquicas. Esse vazio provoca uma dissolução dos laços significantes, levando ao esvaziamento da libido e à consequente sensação de aniquilação subjetiva. A hemorragia (da libido) é descrita como uma excitação escorrendo por um furo, que funciona como um ralo. Esse furo no psiquismo é equivalente ao furo no simbólico, à foraclusão do Nome-do-Pai. Lá onde deveria estar o Nome-do-Pai não se encontra nada, só um furo, um ralo aberto por onde toda a libido escoa. Para Freud, é isso que explica a anestesia sexual, pois “todos os neurônios devem abandonar a excitação”. É essa perda hemorrágica que é dolorosa. Em outras palavras, é a dor do furo, do que é foracluído do simbólico, que é desvelada na melancolia – dor que corresponde à anestesia sexual, à abolição do desejo. (Quinet 2009, p. 198) Portanto, é justamente a partir desse furo psíquico que emergem os delírios melancólicos de ruína, nos quais o sujeito sente que tudo está perdido, destruído ou sem sentido. Essa experiência pode se manifestar como uma sensação extrema de culpa, uma crença de que ele próprio é responsável por essa devastação, ou até mesmo como um delírio de inexistência. NA PRÁTICA Neste “Na Prática”, tomaremos como referência o filme Melancolia (2011), do diretor Lars Von Trier. Não nos aprofundaremos nos detalhes complexos da trama, mas focaremos em um aspecto específico para ilustrar um caso de melancolia. Faremos, assim, alguns recortes no personagem de Justine. O filme se inicia com o casamento de Justine, em uma festa luxuosa organizada por sua irmã mais velha, Claire. O perfil de Claire é, sem dúvida, digno de análise: ela cuida do marido e do filho e constantemente se preocupa com Justine. O pai das irmãs é um homem fraco, sem autoridade, enquanto a mãe é uma mulher hostil, indiferente às filhas e à celebração, demonstrando claramente que não queria estar ali. 16 Justine, apesar de bonita, tem um semblante sombrio e um olhar sem vida. Ao chegar atrasada à sua festa de casamento, ela não demonstra interesse pelos convidados que a aguardam. Embora sorridente e aparentemente feliz no começo, seu comportamento vai se desfazendo ao longo da festa, revelando um cansaço e um sofrimento evidentes, como se ela não aguentasse mais. Claire, percebendo o estado de Justine, a pressiona para que ela não arruíne a festa. Justine então sai, vagando sem rumo pelo vasto jardim, tentando encontrar forças para suportar o que, para ela, não fazia sentido algum. Ao retornar à festa, Justine tenta manter uma fachada de animação, mas logo encontra uma desculpa para se ausentar novamente. Ela leva o sobrinho para a cama e vai tomar banho, enquanto todos aguardam para cortar o bolo. Quando o noivo a acompanha para oquarto de núpcias, Justine pede para que ele a espere por um momento. Ela desce para a festa e tem um rápido encontro sexual com um convidado no jardim. Após isso, ela retorna ao salão e começa a dançar com entusiasmo. No fim da festa, o noivo vai embora e lhe diz: “poderia ter sido diferente”. Ela responde: “como?”. Justine sabia que a única coisa que poderia fazer era exatamente aquilo. Outra fala marcante do filme vem de sua irmã, que diz: “pensei que era isso que você queria”. Contudo, Justine demonstra que, na realidade, ela não queria nada. No filme, “melancolia” designa o nome de um planeta fictício que se aproxima da Terra. Esse elemento é interessante, pois, ao saber da tragédia iminente, Justine consegue se recompor, até tomando banho, sinalizando uma tentativa de revestimento libidinal em seu próprio corpo. Para Justine, esse planeta representa o Outro, algo externo que barra seu gozo. A destruição do planeta não a afeta como afeta sua irmã, pois Justine já vivia em um mundo destruído e, enfim, ela consegue localizar a sua dor em um objeto externo. FINALIZANDO Para concluir esta etapa, vimos que O caso Schreber é uma das principais análises de Freud sobre a psicose, baseada no livro autobiográfico de Daniel Paul Schreber, um juiz e intelectual de destaque. Schreber desenvolveu delírios em duas vertentes: perseguição e transformação em mulher. Lacan, em seu Seminário 3, destaca que os fenômenos psicóticos, ao contrário das neuroses, surgem da falta de metáfora, revelando uma estrutura de linguagem. 17 Freud compara a paranoia à neurose, explicando-a como um mecanismo de defesa, e distingue a esquizofrenia da paranoia, pois enquanto a primeira envolve regressão no autoerotismo, apresentando uma dispersão de significantes, a paranoia trata-se de uma fixação narcísica, na qual o sujeito se torna o Um da referência. Já a melancolia, como a terceira modalidade da psicose, é posta por Freud como uma tristeza estrutural, em que o sujeito se identifica ao objeto perdido, diferentemente do luto. 18 REFERÊNCIAS FREUD, S. [1895]. Rascunho G, In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 1. FREUD, S. [1911]. Caso Schreber. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 12. GUERRA, A. M. C. A psicose. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. QUINET, A. Psicose e laço social: esquizofrenia, paranoia e melancolia. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. LACAN, J. [1956]. Livro 3 – As psicoses. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. NASIO, J. D. Os grandes casos de psicose. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. SOLER, C. O inconsciente a céu aberto da psicose. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. CONVERSA INICIAL Na prática FINALIZANDO REFERÊNCIAS