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Um bicho que se inventa - Ferreira Gullar



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Um bicho que se inventa
FERREIRA GULLAR
(Folha de São Paulo, 01/01/2006, Caderno Mais!)
Toda pessoa necessita que as demais pessoas a reconheçam tal como ela acredita que é, tal
como se inventa para si mesma. Isto significa que, porque somos uma invenção de nós mesmos, o
reconhecimento do outro é indispensável a que esta invenção se torne verdadeira. Por isso, se é certo,
como disse Jean-Paul Sartre, que "o inferno são os outros", é certo também que está neles o sentido de
nossa existência.
Um recém-nascido não é ainda um cidadão, quase diria que, a rigor, ainda não é gente: trata-se
de um bichinho que traz consigo, potencialmente, todas as qualidades que o tornarão de fato uma
pessoa. Sim, porque uma pessoa, mais que um ser natural, é um ser cultural. Certamente, não pretendo
dizer que a pessoa não seja o seu corpo material, esse organismo que pulsa, respira e pensa; tanto é
que, sem ele, simplesmente ela não existiria, e é nele que repousam todas as qualidades que permitirão
o surgimento da pessoa humana que cada recém-nascido se tornará.
Mas não há nenhum fatalismo nisso. Se é verdade que o recém-nascido já possui qualidades e
traços próprios que o tornam diferente de todos os outros, não significa que se tornará inevitavelmente
o indivíduo X. Não, o que ele se tornará -e é imprevisível- dependerá em boa parte de como assimilará
os valores que a educação lhe ofereça. No princípio, o que ele aprende são as normas básicas de
sobrevivência e convívio. Só mais tarde conhecerá os valores que absorverá de acordo com suas
idiossincrasias, face aos quais reagirá de maneira própria e, assim, irá, passo a passo, se formando e se
inventando como ser humano.
A sociedade humana foi inventada por nossos antepassados. Quem nasce hoje já a encontra
inventada, material e espiritualmente, com seus equipamentos, valores e princípios que a constituem e
definem. É dentro desta realidade cultural, complexa e contraditória, que ele vai se inventar como
indivíduo único e inconfundível. Porque cada um de nós quer ser assim: único e inconfundível.
Viver é, portanto, inventar-se: inventar sua vida, sua função no mundo, sua presença.
Obviamente, nem todos têm a mesma capacidade de inventar-se e reinventar o mundo. Alguns levam
essa capacidade a ponto de mudar de maneira radical o universo cultural que encontraram ao nele
integrar-se, como o fizeram por exemplo Isaac Newton ou Albert Einstein, Sócrates ou Karl Marx,
William Shakespeare ou Wolfgang Goethe, Leonardo da Vinci ou Pablo Picasso...
Mas a humanidade não é constituída apenas de gênios, que, na verdade, são exceções. Não
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obstante, todas as pessoas, em maior ou menor grau, se inventam e contribuem para que o mundo
humano se mantenha e se renove. Aliás, se os gênios contribuem para a reinvenção do universo
cultural -que é o nosso espaço de vida-, a vasta maioria das pessoas é responsável pela preservação do
que já foi inventado. Por isso mesmo, a maioria é conservadora e freqüentemente resiste às mudanças e
inovações. É que essa maioria não tem noção de que vive num mundo inventado, de que a vida é
inventada e de que os valores, que lhe parecem permanentes, também o são. Eles não foram ditados
por nenhum ente divino, mas inventados pelos homens conformes suas necessidades e possibilidades.
E também, conforme elas, podem ser mudados.
O homem é o único animal que se inventa e inventa o mundo em que vive. A colméia, que a
abelha fabrica hoje, tem os casulos da mesma forma hexagonal que tinha desde que surgiram no
planeta as primeiras abelhas. Já o habitat humano vem mudando desde sempre, da caverna natural ao
casebre, que se transformou em aldeia, povoado, cidade até chegar à megalópole de hoje. O homem,
para o bem ou para o mal, mudou a face do planeta, utilizou os recursos naturais para produzir seu
mundo tecnológico e dinâmico. Mudou a natureza, alterou o seu funcionamento biológico,
meteorológico, sísmico. Seu habitat é primordialmente a cidade, esta complexíssima máquina que só
funciona graças à tecnologia que inventamos e desenvolvemos incessantemente.
Quando digo que o homem se inventa, não sugiro que se trata de mera fantasia sem base na
realidade . Newton inventou o cálculo infinitesimal, linguagem das ciências exatas, que não existia. A
ciência inventou as leis da física, que sempre atuaram na natureza, mas que eram como se não
existissem no entendimento humano. As invenções da arte são de outro tipo: Shakespeare inventou a
complexidade da alma humana que, se não fosse ele, estaria como se não existisse. Ou seja, a partir da
natureza ou de sua imaginação, o homem se inventa e constrói um universo cultural que é seu
verdadeiro espaço de existência.
O homem criou também, além do mundo material, além da ciência e da técnica, o mundo
simbólico da filosofia, da música, da poesia, do teatro, do cinema. Inventou os valores éticos e
estéticos. Inventou a Justiça, embora sendo injusto. E por que, então, a inventou? Porque quer ser
melhor do que é, quer -como disse o poeta Höderlin- "ultrapassar o campo do possível". Inventou até
Deus, que é a resposta à fatalidade da morte e às perguntas sem resposta. O homem inventou Deus
para que este o criasse. Filho dileto de Deus, pode assim aspirar à ressurreição.
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