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Relatório Técnico-Científico: Erliquiose Monocítica Canina ‒ Uma Revisão Abrangente �. Introdução A Erliquiose Monocítica Canina (EMC) é uma enfermidade infecciosa de relevância global, impactando a saúde canina e apresentando potencial zoonótico. Caracterizada por um curso clínico frequentemente trifásico e manifestações que variam de quadros subclínicos a fatais, a EMC constitui um desafio diagnóstico e terapêutico persistente na medicina veterinária. Este relatório técnico- científico visa aprofundar a compreensão sobre a EMC, abordando seu agente etiológico, vetor principal, epidemiologia, patogenia, manifestações clínicas, diagnóstico, tratamento e estratégias de prevenção e controle, com foco nas pesquisas e avanços dos últimos �� anos. �.�. Agente Etiológico: Ehrlichia canis ‒ Características e Biologia O principal agente etiológico da EMC é a Ehrlichia canis, uma bactéria Gram-negativa, intracelular obrigatória, pertencente à família Anaplasmataceae e à ordem Rickettsiales [�]. Este microrganismo exibe um tropismo marcante por células do sistema mononuclear fagocitário, invadindo e replicando- se predominantemente no interior de monócitos e macrófagos do hospedeiro canino [�]. Dentro dessas células hospedeiras, a E. canis passa por um ciclo de desenvolvimento que inclui formas elementares, que são infecciosas e menores, e formas reticulares, maiores e responsáveis pela replicação por fissão binária. Essas formas bacterianas agrupam-se em vacúolos ligados à membrana, formando inclusões intracitoplasmáticas características denominadas mórulas [�]. Uma particularidade biológica importante da E. canis é a ausência de componentes típicos da parede celular de muitas bactérias Gram-negativas, como o lipopolissacarídeo (LPS) e o peptidoglicano em sua forma clássica [�]. A natureza intracelular obrigatória da E. canis confere-lhe uma vantagem significativa, protegendo-a da resposta imune humoral e da ação de muitos agentes antimicrobianos que possuem baixa penetração celular. Adicionalmente, a ausência de LPS, um potente Padrão Molecular Associado a Patógenos (PAMP) que normalmente desencadeia uma forte resposta imune inata via receptores como o Toll-like � (TLR�), implica que a ativação inicial do sistema imune do hospedeiro pode ser menos robusta. Esta característica, por vezes referida como uma "estratégia de infecção furtiva" [�], permite que a bactéria se estabeleça mais facilmente antes que uma resposta imune adaptativa eficaz seja montada. Essas características biológicas são cruciais para a patogenia da EMC, favorecendo a persistência da infecção e o desenvolvimento das fases subclínica e crônica da doença, dificultando a completa erradicação do patógeno pelo hospedeiro. �.�. Vetor Principal: O Carrapato Rhipicephalus sanguineus e Outras Vias de Transmissão A principal via de transmissão da E. canis em escala global é através da picada do carrapato marrom do cão, Rhipicephalus sanguineus sensu lato [�]. Este artrópode hematófago atua como vetor biológico, ingerindo o patógeno ao se alimentar de um cão infectado e, subsequentemente, transmitindo-o a cães susceptíveis durante repastos sanguíneos subsequentes [�]. A capacidade de transmissão transestadial, onde o patógeno persiste no carrapato através de suas mudas (de larva para ninfa, e de ninfa para adulto), é fundamental para a manutenção do ciclo de vida da E. canis e para a sua disseminação no ambiente [�]. Em algumas regiões específicas, como na Ásia Oriental, outras espécies de carrapatos, como Haemaphysalis longicornis e H. flava, também foram implicadas como vetores [�]. Além da transmissão vetorial, a EMC pode ser transmitida por via iatrogênica, principalmente através da transfusão de sangue ou hemoderivados contaminados provenientes de cães infectados [�]. A transmissão vertical, da mãe para os filhotes, também foi sugerida como uma rota possível, embora menos documentada [�]. A biologia e a distribuição geográfica do R. sanguineus são fatores determinantes na epidemiologia da EMC. Este carrapato é notavelmente adaptado a ambientes urbanos e domésticos, frequentemente completando seu ciclo de vida dentro e ao redor de habitações humanas e canis, o que facilita a infestação canina e a transmissão do patógeno [�]. A existência de diferentes linhagens genéticas dentro do complexo R. sanguineus, como as linhagens tropical e temperada, com potenciais variações na competência vetorial [�], adiciona uma camada de complexidade aos estudos epidemiológicos e às estratégias de controle da doença. Essas variações podem influenciar a eficiência da transmissão e, consequentemente, a prevalência da EMC em diferentes regiões geográficas, mesmo na presença do vetor. �.�. Relevância Clínica e Potencial Zoonótico da EMC A Erliquiose Monocítica Canina é reconhecida como uma doença infecciosa de grande importância para a saúde canina em todo o mundo, sendo responsável por considerável morbidade e, em casos graves ou não tratados, mortalidade em populações de cães domésticos e também em canídeos selvagens [�]. A doença pode variar desde uma infecção assintomática ou com sinais clínicos leves até quadros severos e potencialmente fatais [�]. Além do seu impacto na medicina veterinária, a E. canis tem emergido como um patógeno de relevância para a saúde pública. Relatos de infecção humana por E. canis têm aumentado em frequência desde a sua primeira descrição em humanos em ����, sugerindo que o potencial zoonótico deste agente pode estar subestimado ou em processo de crescente reconhecimento [�]. É importante ressaltar que os cães infectados atuam como reservatórios do patógeno para os carrapatos vetores, mas não transmitem diretamente a E. canis para os seres humanos. A infecção humana ocorre, assim como nos cães, através da picada de um carrapato infectado [�]. O crescente reconhecimento do potencial zoonótico da E. canis eleva a importância da EMC para além da esfera da saúde animal, enquadrando-a firmemente dentro do conceito de "Saúde Única" (One Health) [�]. Esta perspectiva enfatiza a interconexão entre a saúde humana, a saúde animal e a saúde ambiental. Consequentemente, o controle da EMC em cães, incluindo diagnóstico precoce, tratamento adequado e, crucialmente, o controle eficaz das populações de carrapatos vetores, assume implicações diretas para a prevenção da erliquiose humana. Esta realidade demanda a implementação de abordagens integradas e colaborativas entre médicos veterinários, profissionais de saúde humana e especialistas em saúde ambiental para um manejo mais efetivo da doença e de seus riscos associados. �. Epidemiologia da Erliquiose Monocítica Canina (Últimos �� Anos) A epidemiologia da EMC é complexa e dinâmica, influenciada por uma miríade de fatores que incluem a distribuição do vetor, condições climáticas, práticas de manejo animal e metodologias diagnósticas. Nos últimos �� anos, numerosos estudos têm buscado elucidar a prevalência, a distribuição e os fatores de risco associados a esta importante doença canina. �.�. Distribuição Geográfica e Prevalência Global A EMC possui uma distribuição geográfica cosmopolita, sendo particularmente prevalente em regiões tropicais e subtropicais, onde as condições ambientais são favoráveis à proliferação do carrapato vetor Rhipicephalus sanguineus [�]. Estudos realizados em diversas partes do mundo revelam uma variação considerável nas taxas de prevalência. Por exemplo, em Bangladesh, uma prevalência de �,�% foi detectada por Reação em Cadeia da Polimerase (PCR) em cães de estimação [�]. Na península de Yucatán, México, um estudo reportou uma soroprevalência de ��,�% por ELISA e uma prevalência de infecção ativa (detectada pela visualização de mórulas) de �,�% [�], enquanto outro estudo na mesma região, utilizando nested-PCR, encontrou uma prevalência ainda maior, de ��,�% [��]. Uma metanálise conduzida no Irã indicou uma prevalência de ��% para Ehrlichia spp. em cães [��]. Na Austrália, onde a doença foi detectada mais recentemente (em ����), o impacto tem sido severoem algumas comunidades indígenas remotas, com estimativas de prevalência atingindo até ���% e taxas de mortalidade superiores a ��% em certas localidades [�]. É crucial notar que a ampla variação nas taxas de prevalência reportadas globalmente não reflete apenas diferenças geográficas reais na endemicidade da EMC. Esta variação é também fortemente influenciada pela metodologia diagnóstica empregada em cada estudo. Testes sorológicos, como ELISA e Imunofluorescência Indireta (IFI), geralmente detectam exposição prévia ao patógeno (presença de anticorpos) e tendem a apresentar taxas de prevalência mais elevadas do que os testes moleculares, como a PCR, que detectam a presença do DNA do agente, indicando infecção ativa [��]. Adicionalmente, o tipo de população canina estudada (cães de abrigo, de estimação, animais com sinais clínicos versus assintomáticos) e o período de amostragem também contribuem para a heterogeneidade dos resultados. Portanto, a comparação direta de dados de prevalência entre diferentes estudos deve ser realizada com cautela, levando em consideração esses fatores metodológicos e populacionais. Tabela �: Estudos de Prevalência de Erliquiose Monocítica Canina em Diferentes Regiões (Últimos �� Anos) Região/País (Estado/Município) População do Estudo (n, características) Método(s) Diagnóstico (s) Prevalência (%) / Soroprevalência (%) Fatores de Risco Significativos (no estudo de prevalência) Referência(s) Bangladesh (Dhaka, Mymensingh, Rajshahi) ��� cães de estimação PCR (��S rRNA) �,�% (Prevalência PCR) Residência rural, acesso a outros cães, tratamento ectoparasiticida irregular, presença de carrapatos [�] México (Yucatán, Mérida) ��� cães de clínicas veterinárias ELISA, Citologia (mórulas) ��,�% (Soroprevalência ELISA), �,�% (Prevalência mórulas) Sangramento relacionado a plaquetas, trombocitopenia, idade (�-� anos e >� anos) para soropositividade [�] México (Yucatán, Molas) ��� cães de área rural Nested-PCR (��S rRNA) ��,�% (Prevalência PCR real) Nenhuma das variáveis estudadas (sexo, idade, condição corporal, sangramento, trombocitopenia, presença de carrapatos) [��] Irã (Metanálise) ���� cães (�� artigos) PCR, IFI ��% (Ehrlichia spp. PCR/IFI) Idade >� anos (não estatisticamente significativo) [��] Austrália (Comunidades Indígenas Remotas) População canina local Estimativas clínicas Até ���% (Prevalência estimada) Movimentação de cães, alta infestação por carrapatos [�] Região/País (Estado/Município) População do Estudo (n, características) Método(s) Diagnóstico (s) Prevalência (%) / Soroprevalência (%) Fatores de Risco Significativos (no estudo de prevalência) Referência(s) Brasil (Ituberá, BA) ��� cães domiciliados, adultos IFI, Nested- PCR, Esfregaço ��,�% (Soroprevalência IFI), ��,�% (Prevalência PCR), ��,�% (Esfregaço), ��,�% (Exposição geral) Contato com outros cães, presença de R. sanguineus; Idade � anos), sexo (macho), infestação por carrapatos, raça (SRD), infestação por A. cajennense e R. sanguineus [��] Brasil (Alegre, ES) Cães de áreas rural e urbana Nested-PCR �% (Prevalência PCR) Fatores de risco não puderam ser associados devido ao baixo N de positivos [��] Brasil (Botucatu, SP) �� cães de hospital veterinário PCR (gene dsb) ��% (Prevalência PCR) Idade � anos Risco Aumentado (Soropositividade) OR=�.�� (�.��- ��.��) �.��� Yucatán, México (ELISA) [�] � anos Risco Aumentado (Soropositividade) OR=�.�-�.� � anos Sem Associação Significativa (PCR) OR=�.��� (�.���-�.���) �.��� Irã (Metanálise PCR/IFI) [��] Idade (geral) Sem Associação Significativa (PCR) - >�.�� Yucatán, México (Nested-PCR); Pantanal Norte, MT (PCR); Bangladesh (PCR); Egito [�] Fonte: Adaptado do documento original (����). �.�.�. Comparação de Taxas de Incidência e Prevalência A comparação direta das taxas de incidência e prevalência entre diferentes estudos brasileiros é dificultada, como mencionado anteriormente, pelas variações metodológicas e pelas características distintas das populações caninas amostradas. No entanto, observa-se um padrão consistente onde áreas com temperaturas médias mais elevadas e, consequentemente, maior atividade e densidade do vetor R. sanguineus, tendem a apresentar prevalências e incidências mais altas da EMC [��]. A influência climática na dinâmica do vetor é um fator chave. Adicionalmente, cães de áreas rurais frequentemente demonstram maior prevalência em comparação com os de áreas urbanas, o que é atribuído a uma maior exposição a ambientes infestados por vetores e, possivelmente, a um menor acesso a medidas de controle e cuidados veterinários [�]. Contudo, é importante notar que o estudo em Ituberá, Bahia, encontrou um efeito protetor para cães de área rural, oque pode ser explicado por particularidades locais da distribuição do vetor ou do manejo dos animais [��]. A endemicidade da EMC no Brasil é inquestionável, mas sua manifestação apresenta uma heterogeneidade regional significativa, modulada principalmente por fatores climáticos e pelo nível de controle de carrapatos. �.�. Fatores de Risco Associados à Infecção A identificação de fatores de risco é crucial para o desenvolvimento de estratégias de prevenção e controle da EMC. Diversos estudos investigaram a associação entre características do hospedeiro, do ambiente e do manejo com a ocorrência da infecção. �.�.�. Idade, Sexo e Raça A influência da idade na suscetibilidade à EMC apresenta resultados variáveis na literatura. Alguns estudos soroepidemiológicos relatam maior soroprevalência em cães mais velhos [�], o que é frequentemente atribuído a uma maior probabilidade acumulada de exposição ao vetor ao longo da vida do animal, e não necessariamente a um aumento da suscetibilidade intrínseca com o envelhecimento. Por outro lado, estudos baseados em PCR, que detectam infecção ativa, por vezes encontram maior prevalência em cães jovens [��], possivelmente refletindo a dinâmica da infecção aguda em populações recentemente expostas. Outros estudos não encontraram associação significativa entre idade e prevalência da infecção por E. canis [�]. Quanto ao sexo, alguns levantamentos sugerem uma maior soroprevalência em machos [��], o que poderia ser explicado por comportamentos exploratórios mais amplos, levando a uma maior exposição a carrapatos. No entanto, muitos outros estudos não identificaram uma associação estatisticamente significativa entre o sexo do animal e o risco de infecção [�]. A raça tem sido investigada como um possível fator de risco, com algumas raças, como Pastor Alemão e Husky Siberiano, sendo frequentemente citadas como mais propensas a desenvolver sinais clínicos graves da EMC [�]. Esta maior severidade em Pastores Alemães tem sido associada a uma resposta imune celular potencialmente menos eficaz contra E. canis [��]. Contudo, a suscetibilidade à infecção em si pode não ser inerentemente maior nessas raças em comparação com outras [��]. Alguns estudos não encontraram associação entre raça e prevalência da infecção [��]. Em certos contextos, cães Sem Raça Definida (SRD) apresentaram maior soropositividade, o que pode estar relacionado a um maior acesso à rua e, consequentemente, maior exposição a vetores [��]. Um estudo em Bangladesh observou que raças exóticas tinham odds ratio mais elevadas para infecção [�]. A aparente contradição nos achados sobre fatores de risco como idade, sexo e raça entre diferentes estudos sugere que estes podem não ser determinantes primários da suscetibilidade à infecção por E. canis. Em vez disso, podem atuar como moduladores da probabilidade de exposição ao vetor ou da progressão para doença clínica grave. Por exemplo, um Pastor Alemão e um SRD vivendo no mesmo ambiente com alta infestação de carrapatos e sem controle adequado têm, ambos, alta probabilidade de se infectar. No entanto, o Pastor Alemão pode vir a desenvolver um quadro clínico consideravelmente mais severo [��]. Da mesma forma, um cão jovem pode ser infectado rapidamente se intensamente exposto [��], enquanto um cão mais velho em uma área de baixa endemicidade pode nunca ter sido exposto. A soroprevalência tende a aumentar com a idade [��] porque reflete a exposição acumulada ao longo da vida, e não necessariamente um aumento da suscetibilidade com o envelhecimento. A inconsistência nos achados de PCR por idade pode refletir a dinâmica da infecção aguda versus crônica na população amostrada no momento do estudo. �.�.�. Fatores Ambientais e de Manejo Fatores relacionados ao ambiente e ao manejo dos cães demonstram uma associação mais consistente com o risco de infecção por E. canis. A presença de carrapatos no animal ou em seu ambiente é consistentemente identificada como um fator de risco primordial [�]. A área de residência (rural vs. urbana) frequentemente influencia o risco. Cães em áreas rurais, em muitos estudos, apresentam maior risco de infecção [�], o que é atribuído a uma maior exposição a ambientes infestados por vetores e, potencialmente, a um menor acesso a cuidados veterinários e medidas de controle de ectoparasitas. Contudo, como visto em Ituberá (BA), o contexto local é importante. �. Manifestações Clínicas da Erliquiose Monocítica Canina A EMC é caracterizada por um curso clínico que pode ser dividido em três fases distintas: aguda, subclínica e crônica. A severidade e a natureza dos sinais clínicos variam consideravelmente entre essas fases e dependem de fatores como a cepa da E. canis, a raça do cão, a idade e o estado imunológico do hospedeiro [�]. �.�. Fase Aguda A fase aguda da EMC geralmente se manifesta de � a � semanas após a infecção inicial e pode durar de � a � semanas. Os sinais clínicos nesta fase são frequentemente inespecíficos e podem incluir febre, letargia, anorexia, perda de peso, linfadenomegalia (aumento dos linfonodos), esplenomegalia (aumento do baço) e, ocasionalmente, sinais oculares como uveíte e hifema [�, ��]. Achados laboratoriais comuns na fase aguda incluem trombocitopenia (redução do número de plaquetas), leucopenia (redução do número de leucócitos) e anemia leve a moderada [�]. A trombocitopenia é um achado quase universal e um dos mais consistentes na EMC, sendo um indicativo importante da doença [��]. �.�. Fase Subclínica Após a fase aguda, muitos cães entram em uma fase subclínica, que pode durar meses ou até anos. Nesta fase, os cães geralmente não apresentam sinais clínicos evidentes, mas permanecem infectados e podem atuar como reservatórios do patógeno. O principal achado laboratorial na fase subclínica é a trombocitopenia persistente, que pode ser leve a moderada [�, ��]. Alguns cães podem desenvolver hiperglobulinemia, especialmente hipergamaglobulinemia policlonal, devido à estimulação antigênica crônica [�]. A fase subclínica é particularmente desafiadora para o diagnóstico, pois a ausência de sinais clínicos pode levar à subnotificação e à disseminação da doença. �.�. Fase Crônica A fase crônica da EMC pode se desenvolver em cães que não foram tratados adequadamente na fase aguda ou subclínica. Esta fase é caracterizada por sinais clínicos mais graves e variados, refletindo o comprometimento de múltiplos sistemas orgânicos. Os sinais podem incluir perda de peso progressiva, fraqueza, palidez de mucosas (devido à anemia), edema de membros, hemorragias (petéquias, equimoses, epistaxe) devido à trombocitopenia severa e disfunção plaquetária, e sinais neurológicos (ataxia, convulsões) [�, ��]. Em casos graves, pode ocorrer pancitopenia (redução de todas as linhagens celulares sanguíneas) devido à hipoplasia medular, o que confere um prognóstico reservado [�]. A glomerulonefrite e a poliartrite também são complicações comuns na fase crônica [�]. A severidade da fase crônica é maior em raças como o Pastor Alemão, que parecem ter uma predisposição genética a desenvolver formas mais graves da doença [��]. �. Diagnóstico da Erliquiose Monocítica Canina O diagnóstico da EMC baseia-se na combinação de histórico clínico, sinais clínicos, achados laboratoriais e testes específicos para a detecção do patógeno ou de anticorpos contra ele. Devido à inespecificidade dos sinais clínicos, especialmente nas fases aguda e subclínica, a confirmação laboratorial é essencial [�, ��]. �.�. Achados Hematológicos e Bioquímicos Os achados hematológicos são frequentemente os primeiros indicativos da EMC. A trombocitopenia é o achado mais comum e consistente, presente em até ��% dos casos [�, ��]. A severidade da trombocitopenia pode variar, sendo mais acentuada na fase aguda e crônica. Outros achados incluem leucopenia (especialmente linfopenia e neutropenia) na fase aguda, que pode evoluir para leucocitose na fase crônica, e anemia normocítica normocrômica não regenerativa [�, ��]. A presença de mórulas de E. canis em monócitosou neutrófilos no esfregaço sanguíneo é diagnóstica, mas sua visualização é infrequente (menos de ��% dos casos) e intermitente, especialmente nas fases subclínica e crônica [�, ��]. Bioquimicamente, pode-se observar hiperglobulinemia (especialmente hipergamaglobulinemia policlonal), hipoalbuminemia, aumento das enzimas hepáticas (ALT e AST) e, em casos de comprometimento renal, aumento da ureia e creatinina [�]. �.�. Testes Sorológicos Os testes sorológicos detectam a presença de anticorpos contra E. canis, indicando exposição prévia ao patógeno. Os mais utilizados são a Imunofluorescência Indireta (IFI) e os testes de ELISA (Enzyme- Linked Immunosorbent Assay) rápidos, disponíveis comercialmente [�, ��]. Imunofluorescência Indireta (IFI): Considerada o padrão ouro para o diagnóstico sorológico, a IFI detecta anticorpos IgG e IgM. Títulos crescentes de IgG em amostras pareadas com intervalo de �-� semanas são indicativos de infecção ativa. Um único título alto de IgG sugere exposição prévia. A IFI pode apresentar reações cruzadas com outras riquétsias [�, ��]. Testes Rápidos (ELISA): São testes de triagem convenientes e amplamente utilizados, que detectam anticorpos contra E. canis (e frequentemente outros patógenos transmitidos por vetores, como Anaplasma, Borrelia e Dirofilaria). Embora úteis para triagem, um resultado positivo deve ser confirmado por IFI ou PCR, especialmente em áreas de baixa prevalência, devido à possibilidade de falsos positivos ou reações cruzadas [�, ��]. É importante ressaltar que a soroconversão pode levar de � a �� dias após a infecção, o que significa que cães na fase aguda inicial podem apresentar resultados sorológicos negativos [�]. �.�. Testes Moleculares (PCR) A Reação em Cadeia da Polimerase (PCR) e suas variações (nested-PCR, qPCR) detectam o DNA da E. canis, sendo indicativas de infecção ativa. São testes altamente sensíveis e específicos, úteis para confirmar a infecção, monitorar a resposta ao tratamento e identificar portadores subclínicos [�, ��]. Vantagens: Detecção direta do patógeno, alta sensibilidade e especificidade, capacidade de diferenciar espécies de Ehrlichia. Útil em fases iniciais da infecção antes da soroconversão e em cães imunossuprimidos [�, ��]. Desvantagens: Não diferencia infecção ativa de infecção passada (DNA pode persistir por um tempo após o tratamento), e a presença de inibidores na amostra pode levar a falsos negativos [��]. As amostras preferenciais para PCR incluem sangue total (com EDTA), aspirados de medula óssea, linfonodos e baço [�]. �.�. Cultura Celular A cultura celular de E. canis é um método de diagnóstico definitivo, mas é complexa, demorada e requer laboratórios especializados, sendo utilizada principalmente para fins de pesquisa [�]. �.�. Diagnóstico Diferencial O diagnóstico diferencial da EMC deve incluir outras doenças transmitidas por carrapatos (Anaplasmose, Babesiose, Hepatozoonose, Doença de Lyme), doenças autoimunes (Lúpus Eritematoso Sistêmico, Púrpura Trombocitopênica Imunomediada), leishmaniose, doenças infecciosas sistêmicas e neoplasias, que podem apresentar sinais clínicos e achados laboratoriais semelhantes [�, ��]. �. Tratamento da Erliquiose Monocítica Canina O tratamento da EMC visa eliminar o agente etiológico, controlar os sinais clínicos e reverter as alterações hematológicas. A escolha do protocolo terapêutico depende da fase da doença, da severidade dos sinais e da presença de complicações [�, ��]. �.�. Terapia Antimicrobiana A doxiciclina é o fármaco de eleição para o tratamento da EMC, devido à sua excelente penetração intracelular e eficácia contra E. canis [�, ��]. Doxiciclina: A dose recomendada é de �-�� mg/kg, por via oral, a cada �� ou �� horas, por um período mínimo de �� dias. Em casos graves ou crônicos, o tratamento pode ser estendido por � a � semanas ou até a normalização dos parâmetros hematológicos e a negativação da PCR [�, ��]. É importante administrar a doxiciclina com alimentos para minimizar a ocorrência de esofagite, especialmente em gatos, embora seja menos comum em cães [��]. Outros antimicrobianos, como o cloranfenicol e a tetraciclina, também são eficazes, mas a doxiciclina é preferida devido ao seu perfil de segurança e conveniência [�]. �.�. Terapia de Suporte Em cães com sinais clínicos graves, a terapia de suporte é crucial e pode incluir: Fluidoterapia: Para correção da desidratação e manutenção do equilíbrio hidroeletrolítico [�]. Transfusão sanguínea: Indicada em casos de anemia severa ou trombocitopenia com hemorragias ativas [�, ��]. Corticosteroides: Podem ser utilizados em doses imunossupressoras em casos de anemia hemolítica imunomediada ou trombocitopenia imunomediada secundária à EMC, ou em doses anti-inflamatórias para controlar a inflamação sistêmica [�, ��]. No entanto, seu uso deve ser cauteloso, pois podem mascarar a infecção e comprometer a resposta imune [��]. Vitaminas e suplementos: Suplementos de ferro e vitaminas do complexo B podem ser úteis para auxiliar na recuperação da anemia [�]. �.�. Monitoramento do Tratamento O monitoramento da resposta ao tratamento é fundamental e deve incluir avaliações clínicas e laboratoriais periódicas. A contagem de plaquetas deve ser monitorada a cada �-�� dias, e a normalização geralmente ocorre em �-� semanas. A PCR pode ser utilizada para confirmar a eliminação do patógeno, embora o DNA possa persistir por um tempo mesmo após a cura clínica [�, ��]. A persistência de sinais clínicos ou alterações laboratoriais após um curso adequado de doxiciclina pode indicar falha terapêutica, resistência, infecção concomitante por outros patógenos ou uma condição imunomediada secundária [��]. �. Prevenção e Controle da Erliquiose Monocítica Canina A prevenção e o controle da EMC são multifacetados e envolvem estratégias para reduzir a exposição ao vetor, proteger os animais e monitorar a ocorrência da doença. Dada a importância do Rhipicephalus sanguineus como vetor, o controle de carrapatos é a medida mais crítica [��]. �.�. Controle de Carrapatos O controle de carrapatos deve ser realizado tanto no animal quanto no ambiente: No animal: Utilização regular de produtos carrapaticidas de uso tópico (coleiras, spot-ons, sprays) ou sistêmicos (comprimidos orais). A escolha do produto deve considerar a eficácia, segurança e a prevalência de resistência na região [��]. Produtos com ação repelente e/ou acaricida de longa duração são preferíveis. A inspeção diária dos animais e a remoção manual de carrapatos também são importantes, especialmente após passeios em áreas de risco [��]. No ambiente: Limpeza e desinfecção de canis, quintais e áreas onde os cães frequentam. O controle ambiental pode incluir o uso de carrapaticidas ambientais, aspiração e lavagem de superfícies [��]. �.�. Teste e Tratamento Em áreas endêmicas, a testagem regular de cães para EMC, especialmente antes de viagens ou doações de sangue, é recomendada. Cães positivos devem ser tratados para reduzir a carga parasitária e o risco de transmissão [��]. �.�. Educação do Proprietário A conscientização dos proprietários sobre os riscos da EMC, a importância do controle de carrapatos e o reconhecimento precoce dos sinais clínicos é fundamental para a prevenção e o manejo eficaz da doença [��]. �.�. Vacinação Atualmente, não existe uma vacina comercialmente disponível para a EMC. Pesquisas estão em andamento para o desenvolvimento de vacinas eficazes, mas o controle de carrapatos continua sendo a principal estratégia preventiva [��]. �.�. Abordagem One Health A implementação de uma abordagem One Health, que integra a saúde humana, animal e ambiental, é essencial para o controle da EMC, dada sua natureza zoonótica e a interconexão entre os fatores que influenciam sua epidemiologia [�]. �. Conclusão A Erliquiose Monocítica Canina permanece uma doença de grande impacto na saúde canina global, com um crescente reconhecimento de seu potencial zoonótico. A complexidade de sua epidemiologia, manifestações clínicas variadase o desafio diagnóstico e terapêutico reforçam a necessidade de abordagens integradas. A doxiciclina continua sendo o tratamento de escolha, e o controle rigoroso do vetor Rhipicephalus sanguineus é a pedra angular da prevenção. A pesquisa contínua e a conscientização são cruciais para mitigar os efeitos desta enfermidade e proteger tanto a saúde animal quanto a saúde pública no contexto da Saúde Única. �. Referências [�] DANTAS-TORRES, F. et al. Ehrlichiosis in dogs and humans: a comprehensive review of the last �� years. Veterinary Parasitology, v. ���, p. �-��, ����. [�] NEER, T. M. et al. Consensus statement on ehrlichial disease of dogs and cats in North America. Journal of Veterinary Internal Medicine, v. ��, n. �, p. ����-����, ����. [�] DUMLER, J. S. et al. Reorganization of genera in the families Rickettsiaceae and Anaplasmataceae in the order Rickettsiales: unification of Ehrlichia, Cowdria, Anaplasma, and Neorickettsia into Anaplasma and Ehrlichia. International Journal of Systematic and Evolutionary Microbiology, v. ��, n. �, p. ����-����, ����. [�] BHUIYAN, M. J. et al. Molecular detection and phylogenetic analysis of Ehrlichia canis in naturally infected dogs in Bangladesh. 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