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31 RAÍZES DO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO FERNANDO PEDRÃO 1994 32 Sumário Introdução I Parte: Aspectos Essenciais do Capitalismo 1. As características da sociedade econômica 1.1. Privilégios e interesses nas sociedades econômicas; 1.2. O controle de capital e da formação de capital 1.3. O controle do consumo; 1.4. O controle do trabalho; 1.5. O controle de recursos naturais; 1.6. Experiências e valores. 2. Aspectos de método e interpretação 2.1. Objeto e método de estudo; 2.2. Interesse, privilégio, tradição; 2.3. O componente histórico e o psicológico. 3. Os modos operacionais do capitalismo 3.1. Práticas e instituições da produção;3.2.A mercantilização e os usos do tempo;3.3. O tratamento do risco; 3.4. A especulação; 3.5. A diversificação do consumo; 3.6. A universalização do crédito. II Parte: A Formação Antiga 4. Os modos antigos do capitalismo 4.1. Profundidade histórica e atualidade; 3.2. A perspectiva secular da interpretação; 3.3. Uma possível periodização; 4.4. A antiguidade mercantil; 3.5. Os grandes movimentos da Idade Média. 5. Unificação e expansão do mercado mundial 5.1. A expansão do horizonte mercantil; 5.2. O escravismo e as demais formas de servidão;5.3. Os efeitos da estruturação da produção. 6. A transição ao capitalismo moderno 6.1. Os significados de modernidade;6.2. Modernidade, racionalidade e capitalismo; 6.3.Controle social e dominação; 6.4. As contradições da transição. 33 7. O colonialismo escravista e as economias de fronteira 7.1. A composição do sistema periférioco; 7.2. O sistema de produção transformador das colonias; 7.3. A formação de regiões e de Estados nacionais; 7.4. O papel das economias de fronteira. III Parte: A Formação do Quadro Atual 8. A formação da sociedade econômica moderna 8.1. A identificação dos interesses econômicos nos tempos modernos; 8.2. As transformações econômicas e políticas do século XVIII. 9. Os agentes econômicos e as classes sociais 9.1. Os novos protagonistas: as empresas, os trabalhadores e o Estado; 9.2. A formação das classes sociais e a produção; 9.3. A formação social extra classes. 10. A ascensão do capital industrial no século XIX. 10.1. A articulação industrial da produção; 10.2. O modo fabril e o inter-setorial de produção; 10.3. Expansionismo e concentração de capital; 10.4. A divisão internacional do trabalho; 10.5. A divisão inter-regional do trabalho. 11. As transformações no século XX 11.1. O capital financeiro e o controle dos mercados; 11.2. Transformações políticas, revoluções e autoritarismo; 11.3. Os custos da tecnificação e da qualificação; 11.4. A concentração bancária e a centralização financeira; 11.5. Informações, comunicação e redução dos tempos das decisões. 12. O capitalismo na periferia latino-americana. 12.1. Os resultados da formação colonial e mercantil; 12.2. O período de 1870 a 1914; 12.2. Da primeira guerra mundial à crise de 1930;12.3. Da crise de 1930 à segunda guerra mundial;12.4. O panorama após a segunda guerra mundial; 12.5.Internacionalização e expansão das fronteiras internas. 13. Os modos colaterais de produção 13.1. O panorama da produção subordinada;13.2. A produção primitiva; 13.3. A produção camponesa; 13.4. A informalidade. 14. As estruturações sociais do trabalho 34 14.1. Concentração e associação de trabalhadores; 14.2. Classe, estamento e organização local; 14.3. Mecanismos de proteção e de discriminação; 14.4. Horizontes de inserção na produção e no consumo; 14.5. Mobilidade e exclusão. 15. Os novos dilemas 15.1. Aspectos superficiais e profundos da crise; 15.2. Os novos perfís dos interesses privados; 15.3. A esfera pública; 15.4. As pressões sociais. Bibliografia selecionada 35 INTRODUÇÃO Para entender a organização e as transformações atuais da sociedade econômica, torna-se necessário enfrentar complexos problemas de método, bem como rever a compreensão do objeto de estudo. Principalmente, é preciso distinguir o que é significativo em cada ponto-momento; e aquilo cuja importância transcende aquele ponto-momento; e influi nas progressões dos acontecimentos. Assim, é necessário trabalhar com os acontecimentos que foram, em algum momento, relevantes para a transformação econômica, fossem grandes eventos - como batalhas e tratados - que sempre ocuparam os estudiosos, ou fossem mudanças de hábito, ou ainda, modificações no horizonte de conhecimento de cada sociedade e de grupos sociais. A análise histórica da produção tem, como principal função, a de expor os deslocamentos e ajustes entre a estruturação social e a estruturação técnica da economia; e deste modo, mostrar o significado desses processos nas condições de vida de grupos e de pessoas. A formação histórica da produção é o trajeto de um conjunto de experiências desigualmente comunicadas umas com as outras, que se tornam progressivamente mais conhecidas ao longo do tempo - embora com perdas consideráveis, de experiências que se perdem, ou que não chegam a ser conhecidas. O conhecimento da história, portanto, a capacidade de interpretala, decorre dessa capacidade de apreender o acontecido; e transforma-lo em diferenciação, em relação com todos aqueles que não têm os meios para interpretar. Assim, o conhecimento da história é diferenciador. E as interpretações históricas revelam pontos de vista dos que estudam e dos que são estudados; e põem em contacto os diversos pontos de vista e as experiências em que eles se apoiam, avaliando as conseqüências do desenvolvimento dos pontos de vista na modulação da realidade social. Do registro da pluralidade de pontos de vista dependem as possibilidades de divergência e de contestação dos pontos de vista predominantes. Esta, a principal razão para apoiar a análise crítica da gênese do sistema de produção. Mas, para chegar a ela, há um problema, relativo ao aumento das informações necessárias para alcançar uma compreensão relevante do universo econômico atual, assim como, para garantir comparações adequadas com épocas anteriores, em que o sistema de produção era menor; e era muito menor o conhecimento entre os integrantes dos diferentes sistemas nacionais ou regionais de produção. 36 Paralelamente, há outro problema, relativo à crescente dificuldade de contar com informações comparáveis sobre os diversos aspectos do processo econômico, na atualidade ou para comparações entre fenômenos de diversas épocas. Assim, é preciso trabalhar, assumidamente, com um saber desigual; e manejar a questão da cientificidade da análise do mesmo modo como se maneja a relação atual entre o conhecimento demonstrado e o não demonstrável. A incorporação de conhecimento implica, sempre, em manejar mais fatos que os já arquivados, e problemas desiguais de demonstração. Qualquer pretensão adicional, de garantir um mesmo nível de rigor de toda a análise, significa uma distorção deliberada da realidade. Nesta tentativa de interpretação histórica, inclui-se uma primeira parte com os principais traços da produção de tipo capitalista da antiguidade até a Idade Média; e reúnem-se alguns elementos essenciais da transição entre a Idade Média e os Tempos Modernos. A segunda parte abrange a ascensão do capitalismo industrial até o período de rupturas do funcionamento da economia mundial entre as duas guerras mundiais. A terceira parte concentra-se no funcionamento da produção capitalista mundial a partirda década de 1950, focalizando na formação da empresa e na do Estado; e entre essas transformações e as mudanças no quadro da tecnologia e do financiamento. 37 I Parte: ASPECTOS ESSENCIAIS DO CAPITALISMO 1. As Características da Sociedade Econômica 1.1. Privilégios e interesses nas sociedades econômicas A sociedade econômica contemporânea funciona sobre combinações de interesses atuais e privilégios adquiridos, que são o resultado de trajetórias de experiências, onde se combinam o controle de capital ativo e de patrimônio com o controle legal e político da produção. A expressão sociedade econômica designa o modo de estruturação das sociedades, determinado pela perspectiva da atividade econômica, entendendo-se, entretanto, que a organização da economia é inseparável da cultural e da política; e que a própria atividade econômica está penetrada de institucionalidade, que se revela no modo como se conjugam as práticas no cotidiano, com as instituições em cujo âmbito elas se realizam. Assim, de fato, a expressão sociedade econômica é genérica, e abrange as diversas sociedades históricas concretas, desde as mais simples até as mais complexas. Essas sociedades complexas têm elementos de controle igualmente complexos, que resultam do modo como nelas se realizou a composição dos movimentos de transformação com os de estabilização, respectivamente, no meio urbano e no rural; e de como essas composições permitiram que as formas pretéritas de estruturação - tais como aquelas claramente tribais, e aquelas outras mais ou menos de castas - se desdobrassem nos modos industriais urbanos. Isto, obviamente, varia muito, entre as experiências dos países que conduziram a modernização e que realizaram a colonização; e os países que emergiram, depois de avançada a industrialização. O fato de que o primeiro desses grupos de países dirigiu a literatura sobre o tema, e produziu a maior parte dela, fez com que as interpretações ficassem ancoradas em suas experiências, de tal modo que elas se tornassem uma referência histórica dominante e, em alguns aspectos, exclusiva. O desenvolvimento da reflexão das ciências sociais nos países mais recentemente modernizados, bem como uma compreensão mais clara da pluralidade de situações e percepções em que consiste o universo dos países mais velhos, desloca, de volta, essa compreensão da representatividade histórica das teorias sociais. 38 Ao longo do século XX, a teoria social teve que conviver com uma crescente pluralidade de experiências, que obriga a ampliar o horizonte espaço-temporal de referências históricas, ao tempo em que, relativizar as observações que se acumularam nos dois séculos anteriores. A ampliação do horizonte de referências históricas significa a incorporação de observações próprias de pontos de vista diferentes daqueles legitimados pela ciência oficial, e em todo caso, o reconhecimento de processos sociais essencialmente divergentes daqueles que sustentaram a formação de teoria. Nesse sentido, é fundamental substituir a concepção de que a expansão do capitalismo corresponde à superação de sociedades guiadas por critérios de privilégio, por outras sociedades conduzidas por critérios de interesse; pelo entendimento de que a acumulação (1) é realizada mediante uma progressão de deslocamentos na combinação de privilégios e interesses. Por extensão, reconhecer que modernização não significa superação de privilégios, mas mudança de forma e de modo de manifestação dos privilégios. Os privilégios assumem novas formas e os interesses são canalizados, para que se aproveitem os sistemas de privilégios. Diminuem aqueles explicitamente atribuídos a posições de casta e família; mas aumentam os privilégios implícitos, bem como os atribuídos aos detentores de capital, ou aos que detêm a representação de capital. É o que se observa na estrutura da propriedade do capital nas grandes empresas de hoje, em que há um elevado componente de reprodução dinástica dos interesses; e em muitas outras, em que os privilégios continuam garantidos; e onde garantem a lucratividade, tal como ocorreu na formação do capital rural e do mercantil, auspiciada pelas monarquias do século XVI e XVII (2). Essa revisão da relação entre interesse e privilégio se faz, especialmente, a partir de dados da atualidade, observando, como se conjugam movimentos de transformação da economia e de perpetuação de formas estabelecidas. A leitura histórica da atualidade mostra a permanência de diferenças de posição e de velocidade, na transição das etapas da industrialização na produção de bens e na de serviços. Assim, a compreensão da atualidade está ligada ao conhecimento da formação do sistema de produção, quando se tornam visíveis os significados desses deslocamentos de posição e de forma dos privilégios e dos interesses. O estudo das sociedades econômicas latino-americanas, desenvolvido em seqüência capaz de captar a experiência concomitante dos Estados Unidos, mostra fenômenos jamais conhecidos nas experiências européias, por isto ausentes das teorizações elaboradas naquela parte do mundo. O contraste com as experiências da Rússia e da União Soviética, da India e da China, permite estabelecer algumas comparações entre grandes, médias e pequenas 39 sociedades econômicas, bem como estabelecer as peculiaridades de cada uma delas, segundo as condições em que aconteceram suas transformações. O modo como se resolveram os problemas sociais e e econômicos do controle da terra, a relação entre a problemática agrária e a da produção agrícola, as bases internas e externas da industrialização, entram, necessariamente, na constituição dessas novas sociedades econômicas. O controle da produção de matérias primas foi parte essencial do controle da produção de mercadorias, e, por esse meio, da margem de poder representada pelas relações com o exterior. Daí que o controle sobre a base rural se projetou na formação do capital industrial e de seus elementos colaterais de produção. Os interesses têm mudado de eixo ao longo do tempo, obrigando a observar sua relação com a preservação de posições na sociedade econômica pré-industrial e na industrial. Tradicionalmente, a principal fonte da estruturação econômica dos interesses foi o controle direto do capital mercantil e o indireto da terra; enquanto o controle direto da terra tinha uma expressão política mais explícita. Mas o controle do sistema fundiário deu lugar a diversas outras modalidades de controle sobre a produção, no próprio plano econômico e no político, em que os componentes indiretos geralmente superam os diretos. A capacidade de manter e reproduzir interesses revelou-se essencial no controle do processo de acumulação de capital e no de controle da inclusão e exclusão de pessoas e grupos na produção e no consumo, obrigando a levar em conta quantos puderam - e podem - participar efetivamente do sistema de produção. A América Latina tem diversos exemplos de oligarquias rurais cujo poder foi erosionado antes do aparecimento de movimentos de industrialização que criassem novos polos de interesse; e de outras que conseguiram manter posições e se reorganizarem durante a formação da indústria. Assim como há uma dinâmica de poder em cada sistema econômico em seu conjunto, há uma dinâmica localizada de poder, no âmbito do controle da terra, que distingue os que perdem posição dos que utilizam o controle da terra para alcançar participação na indústria, no comércio e nos bancos. Essa diferenciação acentuou-se ao longo das transformações da indústria, interagindo com ela, tornando-se um dos fios condutores que explicam as interrelações entre os movimentos de estabilidade e de mudançano plano econômico e no político; que, adiante, explicam algumas das razões para o retorno ao campo de capital acumulado em setores modernizados da economia em contratos com os governos. Mas, a experiência latino-americana simplesmente ilustra um aspecto dominante do capitalismo é a do controle de capital, isto é, de acervo efetivamente produtivo. A 40 acumulação de patrimônio não modifica a capacidade de acumular das sociedades. Seu patrimônio - constituído dos que elas entesouraram - não as ajuda a acumular. Para isso, dependeram sempre de sua energía militar e de seu comércio. Enquanto ganharam guerras, puderam prosseguir com seu enriquecimento; mas a própria falta de uma expansão econômica separada da militar, como no apogeu de Roma, significou que o impulso militar não gerava outros meios de produção que adiante o realimentassem, mesmo tendo efeitos de estímulo na produção de metais, ou na armamentos e munições, como aconteceu com as potências mercantís no século XVIII. Esse tipo de trajetória poz as sociedades mercantís em contradição com os objetivos do capitalismo. A acumulação capitalista desenvolve-se mediante a expansão e transformação da base econômica: precisa garantir a continuidade da acumulação. O essencial dela é que os resultados alcançados alteram as quantidades e os modos de produzir. Há uma controvérsia nesse ponto, que tem sido lida por muitos como de uma relação entre o funcionamento do comércio e o da produção. Trata-se, de fato, de confrontar a realização do lucro com as fontes das quais ele deriva. O comércio regular traduz-se em demandas de quantidades e de especificações de produtos, que exercem um efeito regulador sobre os produtores, para selecionar quais produtos podem ser revendidos e quais de suas características influem no seu preço. Mais ainda, o estabelecimento de algumas linhas regulares de comércio tem efeitos indiretos na determinação dos preços de outros produtos que aparecem de modo esporádico, mediante a associação entre uns e outros. Pelo contrário, a falta de regularidade do comércio significa uma correspondente ausência de estímulo para alterações na produção. Historicamente, a relação entre o comércio e a produção foi sempre gradual e progressiva, mesmo nas oportunidades em que se abriram bruscamente novas rotas de comunicação, como no acesso à Índia e na conquista da América. Isso se deve à identificação e adequação de novas mercadorías às demandas que podiam ampliar-se, que obviamente compreende um aspecto cultural e outro tecnológico, de adaptação do consumo e de aperfeiçoamento da produção. O sistema de produção reage, a partir de uma pluralidade de situações específicas de produção para um número muito menor de situações de comércio. Os condutores da acumulação mercantil têm, sempre, a vantagem de maior visibilidade dos diversos focos de produção, que os produtores situados em cada um desses focos. Daí, que a disputa pelo comércio tem efeitos indiretos maiores sobre a produção em seu conjunto, que as diversas disputas por pontos específicos de produção. Isso quer dizer que o capital mercantil teve, sempre, a opção de colocar-se, direta ou indiretamente, em atividades de comércio ou de produção, segundo seja circunstancialmente mais importante estimular a produção de uma ou de outra mercadoría, numa ou noutra localização; e de fomentar uma ou outra tendência de crescimento da produção. 41 O comércio tem exercido esse tipo de influência desde os tempos dos gregos e dos fenícios; e a regularidade e a ampliação das trocas comerciais teve sempre um efeito indutor na produção. Frente à argüição de Marx, de que o capital mercantil só se torna capital propriamente dito, quanto se transfere ao processo produtivo, há a observar que a atitude capitalista típica de rejeição de risco faz com que o capital mercantil deseje continuar em sua forma comercial; e que somente se transfira ao âmbito da produção quando alcança garantias de rentabilidade. Tais garantias, entretanto, nunca são apenas econômicas, senão compreendem pressões políticas sobre concorrentes e sobre colônias, preferências de contratos etc. Nesse particular, são especialmente importantes aquelas análises dos processos econômicos do capitalismo que comparam os eventos do século XVI com os do século XVIII, quando os capitalistas dos países europeus realizaram a associação com o Estado para transferir e obter privilégios diferentes daqueles já retidos pela aristocracia rural; quando a própria aristocracia entrou a participar de empreendimentos capitalistas; e quando os capitalistas em geral, aristocratas e burgueses, tomaram suas primeiras decisões importantes, de absorver riscos da produção industrial. A empresa, no sentido moderno dessa expressão, é conseqüente desse processo de ampliação do horizonte territorial de mercado, que compreendeu a inclusão da América, as reconquistas da África e as lutas pelo controle da Ásia. Os estudos mais recentes da história da empresa mostram, em suas linhas gerais, que seu desenvolvimento nos países condutores da acumulação de capital, se fez abrangendo a utilização dos recursos humanos e físicos não europeus. A constituição da empresa tornou-se uma necessidade dos capitalistas, que precisavam dar um caráter de permanência aos seus empreendimentos, bem como criar uma instância institucional capaz de negociar com o Estado e atrair outros capitais individuais. Esse processo foi melhor relatado por fontes literárias que pelas fontes de história econômica e social. Autores como Émile Zola, Charles Dickens, Nikolai Gogol, Fedor Dostoievski, mostraram os processos de substituição das manifestações de interesses individualizados pelas de interesses institucionalizados do capital privado (3). 1.3. O controle do consumo A produção capitalista funciona frente a uma perspectiva de demanda fundamentada em experiência, isto é, numa combinação de dados da realidade com suposições baseadas em anteriores tentativas de antecipação. O risco de erro é, progressivamente, menor com a acumulação de experiência. Mas nada garante que ele sempre diminua, nem que diminua de 42 modo constante. Isto quer dizer que a produção capitalista precisa de informações sobre a demanda; e tende a interferir no consumo, para adequar o desenvolvimento da demanda aos interesses da obtenção de lucro. Significa, ainda, que os produtores têm que pressionar outros produtores a usar as tecnologias que vendem, já que as próprias tecnologias, uma vez conhecidas, são mercadorias como quaisquer outras. Historicamente, os produtores capitalistas usaram o poder de convencimento do comércio para alcançar esses objetivos. Isso sempre se fez de diversos modos. O primeiro deles é observar as comunidades e procurar distinguir o que e como consomem; e logo, verificar as possibilidades, seja de aumentar as quantidades consumidas de alguns bens, seja de substitui-los por outros. A industrialização teve um efeito irreversível sobre esse consumo possível, de um lado estabelecendo uma pauta de bens que a indústria pode, preferencialmente, realizar com vantagem; e de outro lado, tornando comparativamente mais caros quaisquer produtos que não estejam no escopo tecnológico do sistema de produção. Para expandir-se, a produção industrial precisa, portanto, estimular o consumo naquele horizonte de possibilidades que pode atender, desde os que pode atender hoje aos que pode planejar atender no futuro. O segundo modo de forçar a criação - ou abertura - mercados foi a força, um método vigente até hoje. Esse uso da força conduziu as invasões da América no século XVI, da África nos séculos XVI, XVII e XIX e da Ásia desde o século XVI até o século XIX (4). Os modos específicosde interferir no consumo variam, em escala, em uso de capital e em capacidade dos capitalistas para utilizarem os recursos institucionais e financeiros do Estado para sustentar suas pretensões. Desde o apoio de Henrique VIII da Inglaterra, de Henrique IV da França e de Carlos V no século XVI, à expansão de atividades privadas, às atuais políticas de subsídio, direto e indireto, ao capital nas empresas, e a gestão do Estado, que leva a distinguir o favorecimento direto de empreendimentos e a proteção do padrão de acumulação, há um encadeamento de ações públicas e expansão das empresas, que atuou, progressivamente, definindo os mercados. Ao longo da história, o capital mercantil procurou desenvolver mercadorías que lhe permitissem vender mais, valendo-se, para isso, de referências dos desejos e da capacidade de compra dos diversos grupos sociais. Adiantar-se a esses desejos, encontrar respostas possíveis para eles, significou, entre outras coisas, condicionar a progressão do consumo, estabelecendo a legitimidade dos seus diversos componentes, regulando os leques de opções com que se movem os consumidores potenciais. A difusão do uso de produtos como café e chá, precederam a difusão de refrigerantes e marcas de cerveja, bem como de comida industrializada e a popularização de modelos de vestuário e calçado. À medida que aumenta 43 o capital imobilizado na produção desses produtos, aprofundam-se as ligações entre o estímulo ao consumo e a sustentação dos investimentos. Assim, a visão histórica da formação do consumo contrapõe-se à premissa da teoria marginalista de uma suposta soberania do consumidor, que se exerceria num direito de escolha dentro de um dado conjunto de bens e serviços com que satisfaz suas necessidades. Suas escolhas são pré-determinadas por aqueles que estabelecem o conjunto de bens e serviços. 1.4. O controle do trabalho. No relativo ao tratamento do trabalho, a produção capitalista conjuga uma tendência a reduzir ao mínimo a permanência de trabalhadores em cada empresa, com outra tendência, a aumentar o controle do mercado de trabalho. Uma e outra levam a pressionar pela substituição de trabalhadores por capital. A primeira dessas tendências resulta em diversas estratégias de tratamento do emprego, que vão desde a substituição de trabalhadores por máquinas, ao desestímulo da permanência de trabalhadores além de certa duração em cada emprego, ao fomento de competitividade entre os trabalhadores - e mesmo entre os representantes do capital - que permite ao capital obter sobre-trabalho, al'em do contratado; e à destruição prematura, parcial ou total, de sua capacidade de decidir entre empregos e entre salários. A primeira dessas três formas tem sido genérica da produção capitalista. A segunda corresponde ao comportamento da maioría das grandes empresas. A terceira tem caracterizado, em diversas circunstâncias, alguns centros do capitalismo periférico e do capitalismo asiático moderno. A segunda tendência manifesta-se em modos de associação entre empresas; e das empresas com o poder constituído, do Estado, das igrejas e das forças armadas, que regula as condições de acesso a emprego, que exerce pressão sobre os trabalhadores empregados e estabelece requisitos ideológicos de ingresso a emprego. O controle do trabalho tem conotações espaciais, determinadas pela organização da produção no território. Há diferenças decisivas entre os mercados de trabalho de regiões, que não foram superadas por migrações compensatórias de trabalhadores, nem por transferência de capitais individuais, como se tem visto no Brasil. Há diferenças, igualmente profundas, entre o mercado de trabalho urbano e o rural; assim como entre as condições de trabalho rural entre diferentes regiões, que em alguns casos se atenuam, mas que têm perdurado ao longo de séculos. 44 Mas, o principal controle do trabalho consiste em deter capacidade de empregar. A insuficiência de empregos e a dos salários, mantêm uma pressão constante de demanda de emprego, que favorece aos que demandam trabalhadores. O reconhecimento geral na sociedade, de que essa situação não se reverte, condiciona a educação e mantém um clima de subordinação aos interesses predominantes do capital, de diversos modos, que contrapões a defesa de alguns interesses individuais de trabalhadores empregados aos interesses gerais dos trabalhadores como classe. 1.4. O controle de recursos naturais As análises da expansão do capitalismo que focalizaram na formação da indústria de transformação na Europa, centraram suas atenções nos mecanismos internos de formação de capital das economias européias, mostrando a emergência das indústrias como um elemento dinamizador do sistema de produção. No entanto, a progressão dos movimentos de controle de terras e de ampliação da base territorial dos sistemas nacionais de produção na Europa, e a subseqüente ampliação da base de recursos, própria do expansionismo mercantil dos séculos XVI e XVII, obrigam a rever esse pressuposto. Tomar o processo a partir do movimento da indústria, é reduzi-lo aos movimentos de transformação do artesanato e da manufatura. Mas não explica de onde surgiram os capitais que alimentaram essa transformação. Falar genericamente de uma acumulação primitiva, que antecedeu ou coincidiu com o início da industrialização, significa reconhecer que a indústria surgiu de injeções de capital externas à produção. Mas não explica como essa indústria tornou-se possível em alguns países e em algumas épocas determinadas. No entanto, a indústria surgiu onde e quando houve capital disponível; e condições adequadas para reunir equipamento, organização tecnológica e comercial e para mobilizar trabalho e recursos naturais. A mobilização de recursos naturais e de trabalho fez-se, primeiro na Europa, depois nos territórios conquistados pelos europeus. Em ambos momentos ela se fez a partir de um poder político constituído no interior das lutas feudais, que desembocou em absolutismo, mas que em muitos casos funcionou de modo absolutista antes que houvesse um Estado nacional absolutista. Braudel relata os processos de concentração de poder no norte da Itália e no sul da França que resultaram em prolongadas obras de drenagem e construção de canais, ao longo do século XV, que ampliaram as áreas 45 habitáveis e as terras cultiváveis (5). Dobb conta os processos de cercamento de terras na Europa ocidental, bem como a transformação da produção agrícola conseqüente do aumento da grande propriedade (6). le Goff descreve os processos de reestruturação da produção e de incorporação de tecnologia, conseqüentes daquela redução da população rural, que facilitou o aumento da grande propriedade (7). Todos esses processos aconteceram nos tempos e lugares em que houve uma concentração de poder, de príncipes ou da Igreja, que permitiram determinar uma canalização de esforços, geralmente em torno de obras de infra-estrutura, que viabilizaram a exploração de trabalho. A concentração de poder gestou-se, gradualmente, na última parte da Idade Média e concluiu-se, primeiro na Inglaterra com Henrique VIII e logo na França como Henrique IV. Mas na Inglaterra teve a continuidade do período de Elizabete I, com a ampliação do poder naval e os ingressos da pirataria. Na França o confronto com o poder da aristocracia feudal continuou até a luta de Richelieu com a Fronda, isto é, ficou atrasado em relação com a corrida da Inglaterra pelos ganhos da expansão do mercantilismo. A expansão ibérica significou uma ampliação do controle direto de recursos naturais, que transferiu para a estrutura dos impérios os elementos feudais do poder na Espanha e em Portugal, que no caso da Espanhaaproveitou estruturas feudais incaicas e aztecas. O controle de recursos deu-se, principalmente, pelo da exploração de terras e de minas, integrando-se à constituição de novos modos de servidão e com a expansão e organização comercial da escravidão. Paralelamente, a expansão poder da Inglaterra teve um crescente componente de controle indireto, aí compreendidas as vantagens de comércio com Portugal, as rendas da pirataria, e desde o século XVIII, os ganhos da exploração da Índia mediante a criação de um comércio desigual dirigido, como relata Strachey (8). O controle de recursos naturais aprofundou-se durante todo o processo do capital até hoje; e tem que ser revisto à luz dos deslocamentos na estruturação de poder político que conduzem a formação de capital. 1.5. Experiências, valores e interesses. No século XX, a teoria social teve que se adaptar ao fato de conviver com uma pluralidade de experiências, agora melhor conhecidas, que obrigam a ampliar o horizonte espaço-temporal de referências empíricas, ao tempo em que levam a relativizar as observações que se acumularam sobre o quadro de referências dos séculos XVIII e XIX. Para analisar os aspectos essenciais do funcionamento econômico do capitalismo convém, por isso, rever os traços básicos de comportamento que o distinguem. 46 Por capitalismo, aqui, entende-se o sistema de produção conduzido pelo objetivo central de acumulação de capital, independentemente do regime político prevalecente, fundado em relações contratuais de trabalho, onde portanto predomina os interesses representados na relação capital/trabalho, mesmo quando organizados de modo diferente dessa objetivização das relações de produção. Pode-se falar de sistemas capitalísticos, para designar sistemas de produção, comercialização e consumo que funcionam com as características básicas do capitalismo, mas que se distanciam dele em alguns de seus aspectos. Pela mesma razão,não tem sentido procurar sistemas capitalistas puros, ou contrastá-los com sistemas em princípio classificados como não capitalistas. O reconhecimento da reprodução dos esquemas de dominação colonial obriga a revisar o significado da seqüencialidade da capitalização que conduz a modernização. A produção capitalista realiza-se em sociedades onde predominam relações determinadas por interesses imediatos, comparado com sociedades onde esses interesses estão regulados ou subordinados a privilégios antes adquiridos. A rigor, os privilégios são interesses protegidos por regras impostas ou consentidas, mas que funcionam como modo de garantir determinadas participações na distribuição atual da renda. Em seu cotidiano, a organização capitalista da produção está baseada na compra de tempo-trabalho e no consumo de mercadorias. Os dois termos se completam: a compra de tempo-trabalho significa que alguém - o capitalista - detém o controle dos meios com que se realiza a produção, que é possível visualizar de antemão a qualificação dos trabalhadores, bem como é possível estabelecer procedimentos regulares de produção. A produção capitalista existe quando estão socialmente identificados o capitalista e o trabalhador; e quando os interesses privados, na produção e no consumo, tornam-se claramente identificados por contraste com o interesse público e comunitário. Ao identificar a mercadoria como elemento essencial do funcionamento de uma produção organizada em mercado, Marx destacava um aspecto essencial do comportamento econômico, que é de vincular a solução dos problemas de sobrevivência a mecanismos de associação que têm características próprias de reprodução A produção capitalista só pode ser realizada quando o trabalhador se identifica como proprietário de sua força de trabalho, seja, quando ele é legalmente livre. Isto o diferencia do trabalho escravo, em que ele não tem a propriedade de seu tempo; e do trabalho servil, em que o uso da força de trabalho está condicionado pela ligação do trabalhador ao solo. Na produção capitalista, presume-se que os trabalhadores têm o controle do seu potencial de tempo de trabalho, que supostamente pode ser transferido entre diferentes tipos de atividade e em diferentes lugares. O pressuposto de mobilidade do trabalhador deve, entretanto, ser revisado, já que a mobilidade entre atividades, portanto, 47 entre lugares, está ligada à mobilidade social, seja, à capacidade para escolher entre atividades. Na medida em que o trabalhador funciona com margens definidas de mobilidade entre tipos de ocupação e níveis de renda, em que, portanto, seus deslocamentos no espaço estão ligados a sua prévia inserção no sistema de produção, seja, a um tempo de vinculação, o pressuposto de liberdade de escolha entre ocupações torna-se apenas um referencial, que deve ser qualificado no caso de cada trabalhador. Mais ainda, as margens de mobilidade dos diferentes trabalhadores, entre empregos e entre locais de residência, são qualificações de sua situação no relativo a consumo, material e de cultura, com possibilidades que diferem daquelas indicadas por sua participação na produção. O horizonte de relacionamentos distingue, por exemplo, os trabalhadores urbanos dos rurais; e os trabalhadores das grandes cidades dos das pequenas cidades. Ao contratar trabalho, os capitalistas introduzem substituições nos usos do tempo das pessoas que eles contratam; e, por meio desses contratos, induzem alterações nos usos do tempo daquelas outras pessoas que estão ligadas aos trabalhadores por outros meios de organização da produção e do consumo. Essas alterações atingem outros aspectos da organização social, criando novos hábitos e preferências, que inclusive afetam os comportamentos dos diversos agentes da produção e do consumo no relativo a trabalho e renda. A substituição nos usos do tempo pode traduzir-se em substituição de lazer por trabalho , bem como pode significar a troca de alguns tipos de trabalho por outros. Alguns dos novos usos não têm conseqüências adicionais, mas outros refletem-se, adiante, no aparecimento de novas formas de participação na produção e no consumo. À medida que as pessoas se integram numa sociedade que valoriza renda mais que outros sinais de resultados, e que associa renda aos modos de inserção no sistema de produção e de consumo, individualmente, elas tendem a operar substituições entre formas de trabalho; a dar prioridade à substituição de trabalho por trabalho, ou em todo caso, à substituição entre formas de uso do tempo no sistema de produção. Há, portanto, uma progressão de comprometimento das pessoas com a ideologia do sistema de produção, que lhes impede de conceber situações alternativas de engajamento na estruturação da sociedade. Assim, junto com a organização da produção, entram os elementos de uma visão de mundo que valoriza resultados concretos imediatos, mas que não necessariamente os liga com usos finais; e que avalia a produção e o consumo, respectivamente, com critérios que não são completamente explicáveis um pelo outro. Noutras palavras, a explicação do fato da acumulação é o processo de acumulação, pelo que ele cria interesses que tendem a reproduzir-se; assim como a explicação dos fatos atuais de consumo é a própria trajetória do consumo, no que ela reflete condições de renda e culturais. 48 Ao reconhecer a pluralidade de modos de funcionamento da economia mundial, bem como a combinação de seus aspectos de heterogeneidade e de homogeneidade, é preciso levar em conta que o capitalista se identifica, essencialmente, por sua posição no processo social de produção, mediante o controle econômico de informações de mercado, culturais e tecnológicas, sendo que estas últimas funcionam como sua ligação com o conhecimento científico.Há uma relação entre o manejo da tecnologia e a constituição de relações de trabalho, que se manifesta em dois níveis: no que separa os que organizam a produção daqueles que a realizam; e no que distingue os que realizam trabalho manual dos que realizam trabalho não manual. Esses dois cortes são essenciais, primeiro, na determinação da distribuição da renda entre o capital e o trabalho, e entre os grupos melhor e pior pagos de trabalhadores e de capitalistas; e a seguir, na mobilidade dos trabalhadores, entre diferentes perspectivas de remuneração. A lógica que ordena sua participação na sociedade em geral, é guiada pela perspectiva da produção. Sua presença no sistema de produção assume várias formas, que no essencial se dividem em dois grandes grupos: as diversas formas de produção organizadas em empresas e as formas de produção em que não há separação clara entre o controle do trabalho e a realização de trabalho. Não há, na prática, como traçar um limite rígido entre os dois grupos, já que muitos capitalistas participam, alternativamente, de modo simultâneo, em atividades que são parte dos dois. Mas é a lógica da produção organizada em empresas que hoje cria as pautas que, direta ou indiretamente, conduzem a produção não empresarial. Assim, é preciso identificar os comportamentos básicos que orientam a produção capitalista organizada nas empresas. Em sua formação, a produção capitalista começa por mercantilizar o trabalho, isto é, institui a compra de tempo-trabalho. No momento seguinte, liga a compra de tempo à dos elementos que vão junto com seus usos, seja, os instrumentos de trabalho e a terra. Cria, portanto, novos moldes de organização, em que os elementos físicos usados na produção são escolhidos em virtude de objetivos gerais de participação no mercado resultando numa escolha dos produtos com que ela será alcançada. Ao escolher produtos e técnicas de produção, a empresa opta por certos conjuntos de riscos, bem como por certas trajetórias de riscos. O risco é inerente à produção capitalista. Mas contrasta com os objetivos dos capitalistas, de manter sua renda num máximo de resultados positivos , com as perspectivas mais confiáveis de que o crescimento da renda se sustente ao longo do tempo. A incerteza sobre os resultados das atividades que empreende materializa-se em risco do capital aplicado, cuja valorização pode prosseguir ou ser interrompida. 49 Isso faz com que o capitalista conviva com o risco e procure evita-lo, seja preferindo aplicações de capital comparativamente menos arriscadas, seja transferindo riscos, aos trabalhadores, ao Estado e a outros capitalistas. Transferir riscos é um comportamento análogo ao de quem identifica os interesses individuais como prioritários em relação com quaisquer outros, ou de quem desenvolve relações baseadas em interesse. A novidade da produção capitalista em relação com outros sistemas de produção é que nela se realiza uma racionalização do interesse privado, que é apresentado como comparável ao coletivo. No essencial, é uma falácia: um interesse privado é comparável a outro, como um interesse coletivo é comparável a outro de outro coletivo. Os aspectos éticos da questão foram, de diversos modos, expurgados da análise social,transferidos para o plano de uma explicação da teoria do conhecimento - em vez de uma sociologia do conhecimento - pelo utilitarismo de Bentham e pelo empirismo de Locke, que se apoiaram, respectivamente, numa restrição da confiabilidade do conhecimento à experiência individual; e em restringir o conhecimento ao âmbito de experiências que não são transformadas pela constituição dos coletivos. Foram, ainda, desqualificados pela visão de Hume, que limitou o conhecimento ao âmbito de sensações, desligando-o de antecedentes culturais. Desse modo, a racionalidade no comportamento do produtor capitalista seria, portanto, algo que se sobrepõe ao anterior, que funciona como ordenador da busca da utilidade. Assim, a teoria do conhecimento incorporada no idealismo crítico de Kant foi uma resposta ao empirismo, que ofereceu elementos para uma nova compreensão do conhecimento como ligado aos antecedentes psicológicos e culturais do sujeito do conhecimento, portanto, mostrando a possibilidade de formação de uma teoria social( ). A ligação entre a filosofia da consciência e a teoria social foi dada, adiante, pela contribuição de Hegel, que ressaltou a relação inevitável entre o desenvolvimento do indivíduo e sua participação num coletivo( ). O reconhecimento de que os coletivos são uma instância real, não redutível ao plano da individualidade, é a ruptura mais profunda nos encaminhamentos da análise do capitalismo. Ao voltar-se para a formação da razão, em vez de toma-la como algo em si, ao dirigir a teoria do conhecimento para a explicação do objeto - a dialética é a lógica da formação do objeto - Hegel tornou necessária uma ciência social baseada em coletivos e não numa pluralidade de indivíduos. Assim se demonstra a necessidade de manejar elementos de teoria capazes de representar os valores e os interesses próprios das sociedades onde prevalece a produção capitalista, comparadas com outras onde prevalecem outras modalidades de produção. A tendência a acumular e a rejeição ao risco são os dois traços principais da produção 50 capitalística, que se manifestam, plenamente, naquelas condições em que os interesses estão, também, plenamente representados, isto é, quando há empresas e assalariamento. Mas a rejeição ao risco é comum a todos os produtores capitalistas, individuais e coletivos. E é, nitidamente, uma manifestação de interesse. Trata-se do interesse incorporado no plano das ações e não no da teoria. A produção capitalista traduz-se em sociedades de interesse, naquilo em que os comportamentos dos participantes da produção e do consumo estão dirigidos por vantagens específicas em lugar de vantagens genéricas. Isso distingue as sociedades capitalistas de outras, regidas por privilégios anteriormente conseguidos. Nas sociedades de privilégios, as posições antes conquistadas traduzem-se em vantagens quando se realizam ações econômicas; e nas sociedades capitalistas é a realização das ações que enseja a formação de privilégios. No entanto, sociedade alguma é puramente capitalista; e há muitas sociedades de privilégio onde prosperam circuitos capitalistas de relações de produção e de consumo. A distinção entre sociedades de interesse e de privilégio, e nestas, a identificação de formação de castas, ajuda a perceber a pluralidade real de modalidades de funcionamento que acontece no plano econômico no capitalismo. Assim como ajuda a revelar o complicado tecido de interdependências entre o modo atual de funcionamento e os modos anteriores. Nessa composição, o fundamental são os modos de articulação do núcleo capitalista condutor da formação de capital com os diversos circuitos de interesse, seja que eles se estendem ao funcionamento do sistema de produção em seu conjunto, ou que estão limitados a alguma de suas partes. Por exemplo, os sistemas de interesses que influem na escolha de deputados e de líderes do sistema financeiro, comparado com os sistemas de interesse que se reproduzem localmente, na escolha de prefeitos e de líderes de comunidades. Subjacente nessa distinção prática, está uma interpretação da formação das sociedades, que percebe que as sociedades atuais, diversas e complexas, retêm elementos de identificação da individualidade e dos coletivos, que são próprios de sociedades tribais e de casta. Também, que leva em conta que as atuais organizações, em que predominam as classes, resultam de transformações que se realizam a partir de cada um desses tipos básicos. Finalmente, que entende que as sociedades contemporâneascontêm amplas margens de pluralidade, já que nelas convivem ingredientes de cada uma dessas modalidades. Interesse e privilégio convivem de diversos modos nas sociedades modernas , tornando necessário entender como os movimentos dos interesses controlam os privilégios, e como os privilégios demarcam as possibilidades de fazer prevalecer interesses. Não há fundamento histórico algum que permita supor que as relações contratuais de trabalho, especialmente o assalariamento, superem as demais formas de trabalho marcadas pelo predomínio de privilégios. Pelo contrário, as evidências empíricas indicam que o 51 assalariamento - e com ele as modalidades de competição dos trabalhadores por postos de trabalho - é atingido por formas de escolha de pretendentes a emprego que são, claramente, parte de sistemas de privilégio na esfera do capital e na do trabalho. Notas 1. Supor que a expansão do capitalismo significa a superação de privilégios, na prática alude apenas à superação daqueles privilégios conseqüentes da posse da terra e derivados da institucionalização das monarquias feudais que chegaram até o fim da Idade Média. A transformação dessas monarquias feudais em monarquias absolutistas, fez-se com uma ampliação das desigualdades no interior da aristocracia, em que os monarcas do oeste da Europa aliaram-se à burguesía como parte do mesmo movimento pelo qual se fortaleceram alguns poucos potentados aristocráticos, em detrimento do equilíbrio do poder na aristocracia. O enfrentamento da chamada Fronda com Richelieu, o de aristocratas portugueses contra Pombal, são representativos desses fenômenos. 2. As principais casas reinantes do século XVI na Europa ocidental - os Habsburgo, os Tudor, os Bourbon, os Bragança - favoreceram o capital privado emergente, dando-lhe apoio político.Destacam-se, sucessivamente, Henrique IV, Felipe II, Henrique VIII e D.João II. Essencialmente, foram políticas de tributação que fortaleceram a corôa, ao tempo em que, políticas de favorecimento que davam a alguns o poder de enriquecer. 3. É revelador que esses autores, para refletir essa realidade social de transformação de condições de vida, de costumes e de diferenças de perspectivas, entre os que enriquecem e os que empobrecem, criaram novos estilos e novas formas literárias. Zola, especialmente, com a introdução dos personagens sem nome, sumidos em coletivos também anônimos, como em " O Germinal", e na composição de uma tragédia burguesa, onde personagens anônimos cruzam com os que se destacam, como fez nos "Rougon Macquart", revelou os conteúdos psicológicos de uma problemática objetivamente inscrita em determinados lugares e períodos. 4. A maré de colonialismo do século XIX começou com a invasão da Tunísia pelos franceses em 1847, teve capítulos como o forçamento da baía de Toquio pelos americanos em 1848, as três invasões americanas do México, a guerra do ópio na China, quando as potências ocidentais se associaram para forçar aquele país a abrir-se aos seus interesses comerciais. 5. Fernand Braudel, " O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico". 52 6. Jacques le Goff, " A Civilização do Ocidente Medieval" Ed. Estampa, Lisboa, 1984 7. Maurice Dobb, " Estúdio sobre la Evolución del Capitalismo". Siglo XXI, México, 1971. 8. John Strachey, " El Fin del Imperio" Fondo de Cultura Económica, México, 1962. 9. O confronto de Kant com as idéias do empirismo ressurge, hoje, como a base de uma argumentação entre a percepção histórica do social e a proposta de reduzi-lo a fatos, portanto, a mera atualidade, como queria Wittgenstein. 10. A matriz hegeliana da teoria social foi estudada por Marcuse, em seu "Razão e Revolução", onde mostra a impossibilidade de que a consciência individual seja concebida fora de um contexto coletivo. 53 3. Os modos operacionais do capitalismo 3.1. Práticas e instituições da produção Ao ver a produção como uma atividade inerente à reprodução social, convém lembrar que ela é uma expressão cultural, que em cada oportunidade revela uma experiência acumulada. A atividade de produzir se repete e modifica, desde as sociedades antigas às contemporâneas, com variadas formas de organização. A cultura da produção compreende práticas e instituições, que interagem na repetição e nas alterações do modo de produzir. Concretiza-se em modos de fazer as coisas, que incorporam as experiências, compreendendo os erros e os acertos, a perpetuação de algumas práticas junto com as 3inovações, além disso, incorporando parte das experiências e descartando outras. O modo de produzir objetos de troca - as mercadorias - é o modo operacional da produção capitalista. Na trajetória da formação do capitalismo, nos lugares onde ele se desenvolveu, a produção e o consumo foram, progressivamente, organizados de certos modos compatíveis com o movimento de acumulação de capital. A acumulação significa a valorização progressiva do capital acumulado, mas compreende movimentos negativos de desvalorização de certas partes dele, bem como só se mantém mercê de uma correspondente e progressiva educação da população, que em termos mais imediatos aparece como qualificação do trabalho. Os modos operacionais que distinguem a produção capitalista dos demais modos de organização da produção, são, sempre, os de canalizar os recursos para produzir mercadorias, de administrar essa produção do modo mais rentável possível, procurando que ela possa continuar. Por isso, a gestão do capital procura evitar riscos, para poder aproveitar ao máximo o capital acumulado, inclusive além dos usos finais para que ela foi prevista. Por essa mesma razão, o modo capitalista de produzir leva a incitar ao aumento dos usos das mercadorias que se produz,inclusive, além das necessidades dos possíveis demandantes. Em seu conjunto, esses modos de operar revelam ações que se dirigem a estabelecer margens de controle sobre a sociedade, que se manifestam em manter a iniciativa da realização de transações, e de determinar quais mercadorias são trocadas. São, às vezes, ações empreendidas isoladamente, e outras vezes, são parte de estratégias dos grupos e das 54 pessoas que conduzem o processo de acumulação. Em todo caso, refletem a consciência desses grupos que representam interesses voltados para a produção. Esse perfil cultural do processo econômico torna necessária uma explicação de cada um desses aspectos operacionais, que em seu conjunto compõem a praxis da produção; e que, no transcurso da experiência dos grupos envolvidos na produção, passa por modificações, produzidas pelas interrelações entre o domínio das práticas, das técnicas e das reflexões teóricas sobre os diversos aspectos dos processos de produção e de consumo. 3.2. A mercantilização e os usos do tempo O estudo da sociedade econômica moderna é o da canalização do tempo para a produção de mercadorias que cheguem a um número cada vez maior de possíveis usuários. Esse processo se estende a uma proporção cada vez maior da atividade produtiva - inclusive tornando econômicas atividades que não o eram - mas não abrange toda ela; e há inúmeros casos em que o desenvolvimento do processo de produção representa um recrudescimento da produção que não é destinada a mercado, ou em que o desenvolvimento do mercado é seletivo em termos de produtos trocados, de grupos participantes e de conseqüências das trocas em outras atividades. O processo de produção de mercadorias é, também, o de conversão de um determinado potencial de tempo na realização de um conjunto de produtos que uma sociedade pode, efetivamente, utilizar. Os produtos que não podem ser utilizados são inassimiláveispela sociedade, pelo que não chegam a constituir valor ou perdem seu valor, como um par de esquís na selva ou um aparelho eletrônico para pessoas primitivas. Marx explicou o processo de conversão de usos gerais em usos restritos do tempo, mostrando que a substituição de um grande número de usos independentes de tempo por um conjunto restrito de usos interdependentes, é o modo de converter comunidades capazes de resolver a maior parte dos problemas de sua reprodução em comunidades que dependem completamente de um processo unificado de produção. A análise de Marx explica os mecanismos que tornam comparáveis os usos do tempo, que são aqueles indicados pelos períodos de produção. Mas ao analisar as transformações da produção transcorridas desde então, tornam-se necessários alguns esclarecimentos sobre o papel do tempo no funcionamento dos sistemas de produção. A expansão da produção organizada em um mesmo mercado, traduz-se, sempre, em maior diversidade dos participantes do sistema de produção e das condições em que eles participam. Os mesmos grupos sociais mudam de posição ao longo do tempo, bem como mudam seus modos específicos de consumir e de produzir. Com isso, muda a composição dos postos de trabalho. Assim, manter uma determinada posição de classe implica em 55 poder manter ou mudar de posição no trabalho e no consumo, seja, manter posição durante os diversos movimentos de conversão entre formas de capital. Daí que cada vez há mais problemas para explicar, no relativo ao tratamento do tempo na análise do processo econômico. No desenvolvimento da produção capitalista, o tempo pode ser visto, objetivamente, de dois modos: como representado pelos lapsos em que transcorrem os períodos de produção; e como indicado pela duração da produção comparada com a da transformação do produto em dinheiro. São duas operações distintas mas interdependentes. Há um corpo de problemas de produção e outro de problemas de realização do produto em dinheiro, que constituem dois aspectos da atividade econômica. Os tempos dos períodos de produção, na prática, podem ser comparados uns com os outros em função do tempo absorvido na comercialização, isto é, na concretização das vendas da produção. Para o produtor, os riscos se materializam nos momentos de venda da produção, apesar de que se formam ao longo do período de produção, em que sua liquidez desaparece, e dá lugar a um estoque de produtos terminados. No plano subjetivo, o tempo que conta na atividade de produzir é o das experiências dos participantes dos processos de produção. Elas podem ser isoladas umas das outras, ou interligadas. Há experiências que se perdem para a reprodução da vida econômica, como as dos trabalhadores especializados e precocemente aposentados; e outras que realimentam a relação entre a produção e o consumo, refletindo-se na formação de capital, como a daqueles que continuam a aperfeiçoar-se e aumentam de qualificação. No plano subjetivo da análise, o tempo de produção é o que corresponde à produção de cada mercadoria; sendo que a combinação dos tempos de produção de diversas mercadorias é regulada pela produção daquelas mercadorias cuja produção é estratégica para a das demais. As proporcionalidades de tempo denotam, portanto, equivalências tecnológicas, quando não interdependências tecnológicas entre diferentes linhas de produção (1). Igualmente, se reconhece que há mercadorias que não têm equivalente, por isto tendo uma posição estratégica na reprodução de cada sistema, em cada um de seus sucessivos patamares de tecnologia. As rodas de carruagem desempenhavam esse papel nas economias movidas a tração animal, que depois foi desempenhado pelos carburadores e agora pela injeção eletrônica. A idéia de equivalência, portanto, está ligada ao papéis que cada tecnologia desempenha em cada sistema ao longo do tempo. A falta de equivalência resulta, portanto, de que esses papéis não sejam comparáveis. Por exemplo, o papel das técnicas de preparação de madeira quando esse era o principal insumo da construção civil; e hoje, quando seus usos são opcionais, e em todo caso, essas técnicas já não são necessárias para garantir a durabilidade dos edifícios. 56 Com o desenvolvimento dos sistemas industriais de produção, passou-se de sistemas conduzidos pela produção de uma mercadoria principal, ou de um conjunto de mercadorias equivalentes, para sistemas que contêm diversas mercadorias líderes, ou ainda, que operam com uma pauta de diversas mercadorias que não dependem umas das outras. A pluralidade de tecnologias descreve certos modos de funcionamento atual dos sistemas de produção; e as peculiaridades de alguns de seus componentes. Por exemplo, a pluralidade de tecnologias de pequena produção de energia elétrica que podem ser utilizadas hoje no meio rural; e a peculiaridade dos aeroportos e dos centros de comunicações de rádio e televisão, onde se cruzam técnicas e funções não comparáveis; e que são espaços não comparáveis com quaisquer outros de etapas anteriores da industrialização. A ampliação do sistema de produção significa, portanto, uma alteração dos modos como a formação de capital pode ser viabilizada, que implica em progressivas modificações nos usos do tempo, na produção e no consumo. Destacam-se a multiplicidade e a especificidade dos usos do capital, que são aspectos, em tempo assinalados por Lachmann (2). Os conteúdos culturais são fundamentais nesse movimento, já que a efetivação do consumo depende, em todo caso, de que as pessoas estejam capacitadas para realiza-lo. Entendendo, no entanto, que essa capacitação é um resultado da distribuição dos resultados sociais da produção, é preciso reconhecer que há uma realimentação entre a diversificação do sistema de produção e as condições em que se realiza o consumo. Mas, produção e consumo são dispêndios de energia que têm durações e intensidade determinadas, com correspondências desiguais nas oportunidades e nas durações com que são realizados. Representam momentos em que se converte energia de umas atividades a outras, que portanto podem ser analisados como liberação e uso de energia. Nesse sentido, a atividade econômica é vista por seu aspecto físico, em que ela insome recursos físicos, animais e humanos e gera resultados materiais e culturais. A moderna visão ecológica retoma, de fato, algumas das teses mais antigas de Heráclito e de Nagarjuna sobre a realidade como transformação e sobre a atividade humana como uma dentre outras atividades da natureza. O reconhecimento de que a produção capitalista tem uma diferença essencial em relação com as demais formas de produção, e que levou a uma formidável liberação de energia das sociedades modernas, é a principal observação da análise marxiana, que levou, a seguir, à identificação da mercadoria como o objeto referência da atividade produtiva. Essa liberação de energia é um processo que atinge os aspectos objetivos do relacionamento entre grupos nas sociedades e as condições psicológicas desse relacionamento. Os trabalhos da Escola de Frankfurt sobre a articulação da análise das 57 relações de produção com a dos mecanismos sociais de repressão, e ainda, sobre a ligação entre o movimento civilizatório da repressão e o desejo de acumular capital, são aspectos que hoje estão incorporados ao saber nesta matéria, que entretanto apenas abriram novas portas para novos questionamentos sobre a pluralidade social e das formas de produção, bem como sobre os contextos culturais da produção capitalista. O capitalismo implica em planejamento da produção, por parte de empresas e produtores autônomos. O movimento do capitalismo começa com a substituição de uma pluralidade de usos do tempo, decididos por quem o usapara fins próprios - que deixa excedentes físicos variados - por usos dirigidos à produção de mercadorias. A lista de mercadorias produzidas é sempre um elenco limitado, comparado com o das pretensões dos potenciais consumidores que integram cada sociedade. O aparecimento do capitalismo e o da mercadoria são inseparáveis, porque só a mercadoria incorpora a possibilidade de repetição infinita de trocas. Se bem que as possibilidades de multiplicação de trocas concretamente variam ao longo do tempo, de uma sociedade a outra, e em relação com uma ou outra mercadoria, há uma suposição geral de que na produção capitalista uma grande parte - e uma parte crescente - das mercadorias pode ser objeto de diversas trocas. Ao canalizar a energia da sociedade para produzir mercadorias, o capitalismo reduz a variedade de relações entre grupos e pessoas, àquelas ligadas ao horizonte das trocas. A visibilidade de cada pessoa frente ao interesse dos demais, reduz-se a sua participação na produção e no consumo. Chega-se à coisificação das relações e das próprias pessoas, até a coisificação da intencionalidade dos seus comportamentos: a reificação. Esta se traduz em movimentos de exclusão de grupos e de pessoas, em diversos momentos e partes do processo de produção e em aspectos do consumo, resultando numa integração da restrição dos espaços das pessoas com a restrição da visibilidade que umas pessoas têm das outras. Assim, o capitalismo tem que traduzir a participação das pessoas na produção em termos de tempo, já que o tempo que elas põem na produção é uma parte do seu tempo total disponível: aquela parte que lhes é comprada. E é o tempo comprometido na produção que regula o significado das demais frações de tempo. Marx precisou do conceito de jornada de trabalho, e da concepção industrial da produção, para explicar a universalização dessa redução da pluralidade de usos do tempo àquele pequeno elenco de usos que pode, finalmente, representar a complexidade do processo de produzir e consumir, que aparece na forma de mercadorias. 58 Tal concepção pressupõe a capacidade de mensuração de um tempo não finito e contínuo, isto é, a existência do relógio. A produção capitalística depende dessa mensuração comparável dos diversos tempos envolvidos na produção de cada mercadoria, que faz com que os mesmos agentes participem de diferentes maneiras na produção de diversas mercadorias. A percepção de tempo é fundamental no capitalismo, na esfera da produção e na do consumo. Assim como é diferente o tempo que se gasta para produzir um estádio de futebol e um aparelho cirúrgico de precisão, também são diferentes os tempos gastos em ouvir uma sinfonia ou em fazer uma refeição rápida.A própria noção de trabalho abstrato é conseqüente dessa possibilidade de traduzir a uma escala unificada de tempo uma pluralidade de usos de tempo cuja composição jamais é integralmente conhecida, mas que é conhecida no que é relevante para o horizonte de informações com que os agentes sociais se movem em seu cotidiano. Esses problemas complicaram-se ao longo dos tempo, à medida que foi preciso reconhecer que os atos e fatos próprios da produção estão sempre ligados a um universo de relações simbólicas, que transmitem a carga cultural com que se realizam as práticas de produção e de consumo. Isso faz com que a industrialização retenha movimentos originados de modos pré-industriais de funcionamento e que a sociedade econômica de hoje contenha elementos aparentemente superados de formas anteriores de vida. Daí que a reprodução do sistema de produção, e o movimento de acumulação que dele resulta, tenham conotações diferentes em diferentes oportunidades e em relação com diferentes experiências. Cada sociedade tem que processar o custo social do engajamento do tempo em atividades de produção, assim como tem que ligar os aspectos materiais da acumulação a um modo de poder; e não somente em seu significado econômico imediato. E o modo como ela processa suas experiências faz com que suas relações com outras sociedades tenham um caráter único. Daí que as análises econômicas baseadas em dados do cotidiano, que o separam da perspectiva formativa dos atuais sistemas de produção e modos de consumo, enfrentam, sempre conjuntos renovados de problemas da produção , onde o manejo de incerteza e risco, de especulação e de diversificação do consumo têm um destaque especial. É sempre uma relação entre o que é conhecido e o que não é conhecido. E é o manejo de margens de incerteza, que não é o mesmo que um componente de imprevisibilidade que simplesmente não pode ser antecipado. 59 3.3. O tratamento do risco A produção capitalista expande-se mediante um processo de subordinação de pessoas e de recursos naturais para a realização de um determinado elenco de produtos, com uma progressiva substituição das formas de consumo. Nela, cada capitalista move-se numa circularidade entre as previsões de consumo, as perspectivas de demanda e a programação da produção. Os atuais produtores, bem como os produtores potenciais, são levados a desenvolver uma capacidade de produção que geralmente perdura mais que a demanda atual, que depende de uma continuidade da demanda, pelo menos suficiente para acompanhar a duração dos equipamentos hoje disponíveis. Essa suposição de duração é que permite contemplar um processo de substituição progressiva de equipamentos, que seja adequada para permitir a continuidade do processo de valorização. Considerando, também, que as pessoas envolvidas no processo de produção têm um período de treinamento e uma previsão de vida profissional útil, há uma paridade no tempo e no espaço entre os recursos humanos e os de capital, que regula a adequação e a intensidade do uso dos recursos de capital e a dos recursos humanos. A conclusão que se extrai daí, é que quando a renovação do capital é realizada em forma independente da dos recursos humanos, estes últimos têm sua vida útil reduzida, ou tornam-se inadequados para manejar o capital. É o que acontece com os efeitos da renovação do capital naqueles sistemas de produção que não são capazes de manter essa proporcionalidade entre a acumulação de capital e a qualificação do trabalho. Por trás das dasvantagens aparentes entre países produtores de equipamentos e produtores de grãos, tomadas como principais referências da teoria das relações centro-periferia, está o fato de que os sistemas de produção dos países periféricos não preparam recursos humanos adequados e suficientes para acompanhar a renovação do capital. A sustentação das vantagens tecnológicas depende de que cada sociedade, em seu conjunto, e não apenas o sistema de produção, resolva os problemas mais complexos de realimentação, entre a renovação de tecnologias e a da educação. Assim, a interdependência entre o capital e o trabalho pode ser vista no plano da economia mundial e das economias nacionais, levando-se em conta que no nível mundial o sistema funciona com diferentes níveis de mobilidade e horizontes de vida útil do capital e do trabalho; e no nível das economias nacionais, os sistemas funcionam com margens de mobilidade e horizontes de duração do capital e do trabalho, que não são transferíveis de um a outro, ou que somente são transferíveis de modo parcial. 60 O lado positivo desse mecanismo no nível mundial é o aumento de eficiência do sistema; e o negativo é a tendência ao desperdício apontada por Baran (3), além dos aspectos mais amplos de destruição de recursos, que têm que ser contemplados numa teoría econômica do ambiente. Em sua formalização, a teoria econômica utilizou o pressuposto de que é geralmente possívelsubstituir entre recursos equivalentes; e baseou-se nesse pressuposto para chegar à simplificação, obviamente infundada, de que a escassez é sempre relativa, ou o que é o mesmo, que não é necessário levar em conta que todos os recursos são esgotáveis. No essencial, o pressuposto da teoria é que o sistema de produção conseguirá, sempre, adaptar-se ao perfil da escassez. Isso, obviamente, não tem fundamento algum na experiência, nem é provável que aconteça. Pelo contrário, o sistema de produção convive, sempre, com margens de incerteza. E o primeiro problema dos produtores é de serem capazes de conhecer, com antecipação com quais e quantos riscos tratam. Ao relacionar dados objetivos da produção e do consumo de hoje com previsões, o produtor capitalista enfrenta, necessariamente, uma margem de risco. O risco opera negativamente em relação com suas previsões de resultados. Compreende um componente de incerteza, por razões naturais ou não, que é anterior a sua própria participação no mercado; e um componente de risco conseqüente de suas decisões de produção. Como o capitalista precisa produzir para reproduzir seu capital - e deste modo manter-se como capitalista - ele tem que conviver com o risco; e como uma reação de controlar os aspectos negativos do ambiente em que opera, ele tende a transferir risco. Cada capitalista individual tenta transferir risco como parte de seu comportamento cotidiano, ao executar um determinado plano de produção; e nos momentos em que delibera sobre novos programas de produção. Mas as possibilidades de transferir risco variam, entre diferentes linhas de produção, para produtores que operam com diferentes escalas de produção e, principalmente, para produtores que se defrontam com outros mais ou menos poderosos. Assim, a mobilidade em relação com o risco reflete os modos como a atividade de produzir está articulada com a de comercializar a produção. E as estratégias de transferência de risco desenvolvem-se ao longo do processo de produzir e de vender a produção. A capacidade dos capitalistas para transferir riscos varia segundo seu conhecimento objetivo dos custos com que trabalha hoje e das margens de confiabilidade de suas projeções; o horizonte espaço-temporal em que se move; a estruturação institucional de suas relações com o Estado, com os demais capitalistas e com os trabalhadores. Isso significa a institucionalização da produção, não só a repetição dos processos de produção, 61 como a continuidade das relações de produção e entre produtores e consumidores. Trata-se, pois, de uma forma específica de conhecimento, do mercado, que constitui uma qualificação específica dos produtores em seu cotidiano. Trata-se de riscos da produção em processo e em relação com planejamento da produção futura, entendendo-se que: a rentabilidade atual dos empreendimentos depende de um uso médio de capital que só pode ser calculado sobre a duração média do conjunto dos equipamentos, que em todo caso excede qualquer período de produção; o detalhamento dos futuros programas de produção depende dos resultados obtidos nos programas em curso. Isso significa que há riscos inerentes aos aspectos reais da produção e riscos decorrentes da gestão financeira, que se distribuem desigualmente no tempo, com desiguais condições de incerteza, e por extensão, com condições irregulares de controle por parte de cada capitalista em particular. A incerteza pertence à circunstância histórica em que a produção se realiza; o risco é próprio de cada empreendimento. A gestão financeira liga os riscos de cada empreendimento com a incerteza prevalecente no mercado, já que é nela que se faz a equivalência entre diferentes empreendimentos em diferentes momentos e lugares. Mas, além disso, enfrenta a incerteza específica do próprio investimento, que de fato só pode ser comparado com outros investimentos análogos, a despeito das simplificações a esse respeito introduzidas pela análise econômica do "bem estar"(4). Mas a comparabilidade financeira, ela própria contém uma margem de risco decorrente da manutenção de valor em cada moeda e da possibilidade de manutenção desse valor na comparação com outras moedas. Esse problema hoje é mais evidente no relativo à influência da inflação na manutenção de valor das moedas. Mas, no essencial, mas de fato corresponde a algo anterior a qualquer movimento inflacionário em particular, que é a intensidade das transações entre sistemas de produção, que dá a indicação de quanto uma moeda é desejável por outros. Esse é outro aspecto, em que as simplificações nas comparações entre investimentos excluem um problema essencial dos capitalistas, que é o de projetar ao futuro suas transferências de riscos (5). O processo de transferência de risco se desenvolve ao longo do tempo, na medida em que cada capitalista consegue transferir uma parte de seus riscos, cada grupo de capitalistas consegue estabelecer um relacionamento estável com o Estado e cada grupo de indústrias consegue estabelecer relações estáveis no mercado de trabalho.A capacidade para transferir risco está ligada ao horizonte de informações de cada capitalista e ao poder político que ele consegue controlar. Por isso, torna-se necessário trabalhar com uma conceituação de poder suficientemente ampla para abranger todos os aspectos de sua 62 institucionalidade e de sua presença nas práticas cotidianas (6). Tal conceituação, adiante, será a base necessária para um exame das relações entre os diversos agentes econômicos: os diversos produtores, empresas e outros tipos de agentes, os diversos tipos de trabalhadores e o Estados, em suas diferentes manifestações. A institucionalização das relações afeta primeiro o mercado de produção, que é onde os capitalistas podem passar riscos ao Estado na forma de protecionismo; e onde podem passar riscos aos trabalhadores, na forma de alterar as condições de contratação de trabalho. É preciso distinguir aquela contratação direta de trabalho, que as empresas realizam com seus próprios recursos, daquele uso indireto de trabalho, com que contam, mediante sua influência, por exemplo, para que o governo contrate pessoas para realizar tarefas que são de seu interesse. Assim, grande parte da transferência de risco se dá no próprio processo de produção. No plano financeiro propriamente dito, as transferências de risco são bastante menores, porque o mercado financeiro sempre está mais integrado que o de bens, constituído de agentes semelhantes, e porque sempre há uma correspondência entre os preços do dinheiro, mesmo quando ele está submetido a diferentes modos de regulamentação. Mais ainda, os riscos estão distribuídos segundo as possibilidades de cada capitalista, de usar as diferenças de regulamentação financeira em favor de empreendimentos específicos. A manipulação financeira de riscos depende de margens institucionais de poder - tais como as apropriadas pelos bancos e pelas instituições de financiamento governamental - sobrepostas ao manejo financeiro, mas não necessariamente resultantes da própria dinâmica financeira. Trata-se, portanto, de incorporar a estrutura de riscos da gestão financeira aos riscos da produção, distribuindo sobre o tempo os custos da espera do retorno dos investimentos. Assim, se reconhece que há um espectro de condições diferenciadas em que o capital opera, tanto pela variedade de empreendimentos geridos por um capitalista, como pela diversidade de condições para os diferentes capitalistas. Isso quer dizer que a administração dos riscos depende do conhecimento das margens de incerteza que cercam cada empreendimento, o qual, obviamente, decorre do prévio manejo objetivo do componente conhecido. Noutras palavras, a possibilidade de delimitar as margens de
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