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Capítulo II
Trabalho e precarização numa ordem neoliberal
c Ricardo Antunes*
I
A sociedade contemporânea, particularmente nas últimas duas décadas,
presenciou fortes transformações. O neoliberalismo e a reestruturação
produtiva da era da acumulação flexível, dotadas de forte caráter
destrutivo, têm acarretado, entre tantos aspectos nefastos, um monumental
desemprego, uma enorme precarização do trabalho e uma degradação crescente,
na relação metabólica entre homem e natureza, conduzida pela lógica societal
voltada prioritariamente para a produção de mercadorias, que destrói o meio
ambiente em escala globalizada. 
Curiosamente, entretanto, tem sido frequentes as representações destas
formas de (des)sociabilização, que se expressam como se a humanidade tivesse
atingido seu ponto alto, o seu télos. Muitas são as formas de fetichização: desde
o culto da sociedade democrática, que teria finalmente realizado a utopia do
preenchimento, até a crença na desmercantilização da vita societal, no fim das
ideologias. Ou ainda aqueles que visualizam uma sociedade comunicacional,
capaz de possibilitar uma interação subjetiva, para não falar daqueles que
visualizam o fim do trabalho como a realização concreta do reino da liberdade,
nos marcos da sociedade atual, desde que um pouco mais regulamentada e regida
por relações mais contratualistas. 
35
* Professor Livre Docente de Sociologia do Trabalho no IFCH-Unicamp e autor, entre outros, dos livros: Os
Sentidos do Trabalho (Boitempo, 1999); Adeus ao Trabalho? (Cortez, 1995). Coordenador da Coleção Mundo do
Trabalho (Ed. Boitempo).
A Cidadania Negada
Ao contrário destas formulações, pode-se constatar que a sociedade
contemporânea presencia um cenário crítico, que atinge também os países
capitalistas centrais. Paralelamente à globalização produtiva, a lógica do sistema
produtor de mercadorias vem convertendo a concorrência e a busca da
produtividade num processo destrutivo que tem gerado uma imensa sociedade
dos excluídos e dos precarizados, que hoje atinge também os países do Norte. Até
o Japão e o seu modelo toyotista, que introduziu o “emprego vitalício” para cerca
de 25% de sua classe trabalhadora, hoje já ameaça extinguí-lo, para adequar-se à
competitividade que reemerge do ocidente “toyotizado”.
Depois de desestruturar o Terceiro Mundo e eliminar os países pós-
capitalistas do Leste Europeu, a crise atingiu também o centro do sistema
produtor de mercadorias (Kurz, 1992). E quanto mais se avança na
competitividade inter-capitalista, quanto mais se desenvolve a tecnologia
concorrencial, maior é a desmontagem de inúmeros parques industriais que não
conseguem acompanhar sua velocidade intensa. Da Rússia à Argentina, da
Inglaterra ao México, da Itália à Portugal, passando pelo Brasil, os exemplos são
crescentes e acarretam repercussões profundas no enorme contingente de força
humana de trabalho presente nestes países. O que dizer de uma forma de
sociabilidade que desemprega ou precariza mais de 1 bilhão e 200 milhões de
pessoas, algo em torno de um terço da força humana mundial que trabalha,
conforme dados recentes da OIT?
Essa lógica destrutiva permitiu que Robert Kurz afirmasse, não sem razão,
que regiões inteiras estão, pouco a pouco, sendo eliminadas do cenário industrial,
derrotadas pela desigual concorrência mundial. A experiência dos países asiáticos
como a Coréia, Hong Kong, Taiwan, Cingapura, entre outros, inicialmente bem
sucedidos na expansão industrial recente, são, em sua maioria, exemplos de
países pequenos, carentes de mercado interno e totalmente dependentes do
Ocidente para se desenvolverem (Kurz, 1992). Não podem, portanto, se
constituír em modelos alternativos a serem seguidos ou transplantados para
países continentais, como Índia, Rússia, Brasil, México, entre outros. Suas
recentes crises financeiras são exemplo da sua fragilidade estrutural. E é bom
reiterar que estes “novos paraísos” da industrialização utilizam-se intensamente
das formas nefastas de precarização da classe trabalhadora. Só à título de
exemplo: na Indonésia, mulheres trabalhadoras da multinacional Nike ganham 38
dolares por mês, por longa jornada de trabalho. Em Bangladesh, as empresas Wal-
Mart, K-Mart e Sears utilizam-se do trabalho feminino, na confecção de roupas,
com jornadas de trabalho de cerca de 60 horas por semana com salários menores
que 30 dolares por mês1.
Portanto, entre tantas destruições de forças produtivas, da natureza e do meio
ambiente, há também, em escala mundial, uma ação destrutiva contra a força
humana de trabalho, que encontra-se hoje na condição de precarizada ou
36
excluída Em verdade, estamos presenciando a acentuação daquela tendência que
István Mészáros sintetizou corretamente, ao afirmar que o capital, desprovido de
orientação humanamente significativa, assume, em seu sistema metabólico de
controle social, uma lógica que é essencialmente destrutiva, onde o valor de uso
das coisas é totalmente subordinado ao seu valor de troca (Mézáros, 1995,
especialmente parte2).
Se se constitui num grande equívoco imaginar-se o fim do trabalho na
sociedade produtora de mercadorias e, com isso, imaginar que estariam criadas as
condicões para o reino da liberdade é, entretanto, imprescindível entender quais
mutações e metamorfoses vêm ocorrendo no mundo contemporâneo, bem como
quais são seus principais significados e suas mais importantes consequências. No
que diz respeito ao mundo do trabalho, pode-se presenciar um conjunto de
tendências que, em seus traços básicos, configuram um quadro crítico e que têm
direções assemelhadas em diversas partes do mundo, onde vigora a lógica do
capital. E a crítica às formas concretas da des-sociabilização humana é condição
para que se possa empreender também a crítica e a desfetichização das formas de
representação hoje dominantes, do ideário que domina nossa sociedade
contemporânea. 
Nas paginas seguintes pretendemos oferecer um esboço analítico (resumido)
de alguns pontos centrais da crise contemporânea, com particular destaque para
o universo do mundo do trabalho .
II
O capitalismo contemporâneo, com a configuração que vem assumindo nas
últimas décadas, acentuou sua lógica destrutiva. Num contexto de crise estrutural
do capital, desenham-se algumas tendências, que podem assim ser resumidas:
1) o padrão produtivo taylorista e fordista3 vem sendo crescentemente
substituído ou alterado pelas formas produtivas flexibilizadas e
desregulamentadas, das quais a chamada acumulação flexível e o modelo
japonês ou toyotismo3 são exemplos;
2) o modelo de regulação social-democrático, que deu sustentação ao
chamado estado de bem estar social, em vários países centrais, vêm também
sendo solapado pela (des)regulação neoliberal, privatizante e anti-social.
Pelo próprio sentido que conduz estas tendências (que, em verdade,
constituem-se em respostas do capital à sua própria crise), acentuam-se os
elementos destrutivos que presidem a lógica do capital. Quanto mais aumentam
a competitividade e a concorrência inter-capitais, inter-empresas e inter-potências
políticas do capital, mais nefastas são suas consequências.
37
Ricardo Antunes
A Cidadania Negada
Duas manifestações são mais virulentas e graves: a destruição e/ou
precarização, sem paralelos em toda era moderna, da força humana que trabalha
e a degradação crescente, na relação metabólica entre homem e natureza,
conduzida pela lógica voltada prioritariamente para a produção de mercadorias
que destroem o meio ambiente. 
Trata-se, portanto, de uma aguda destrutividade, que no fundo é a expressão
mais profunda da crise estrutural que assola a (des)sociabilização contemporânea:
destrói-se força humana que trabalha; destroçam-se os direitos sociais;
brutalizam-se enormes contingentes de homens e mulheres que vivem do
trabalho; torna-se predatória a relação produção/natureza, criando-se uma
monumental “sociedade do descartável”, que joga fora tudo que serviu como
“embalagem” para as mercadorias e o seu sistema, mantendo-se, entretanto, o
circuito reprodutivotrabalho no Reino Unido, mais de 
900 mil trabalhadores, e cresce exponencialmente a partir de 2012. O contrato 
regulamenta a condição de trabalhador just-in-time, possibilitando às empresas a 
utilização da mão de obra de acordo com sua necessidade, a custos e encargos 
reduzidos. 
3 Para discussão sobre o trabalhador amador: Dujarier, M. Le travail du consommateur. 
Paris, La Découverte, 2009. Abílio, L.C. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão 
de revendedoras de cosméticos. São Paulo : Boitempo, 2014. 
4 Fazendo o cálculo custo-benefício, centenas de motoristas Uber concluíram que 
custos com o desgaste do carro, entre outros, são maiores na realização de pequenas 
corridas. Uma das saídas encontradas foi buscar as corridas mais longas a partir do 
aeroporto de Guarulhos. Essa decisão se traduziu na formação de bolsões de 
estacionamento, nos quais formam-se gigantescas filas de espera pelo próximo 
trabalho. O motorista pode passar horas (12 horas, como diz a notícia) esperando por 
um chamado vindo do aeroporto – o qual ele tem de aceitar sem saber seu destino nem 
o valor a ser ganho. Motoristas passam o dia jogando baralho e dominó, e em torno 
deles já se formou uma rede de trabalhadores informais fornecedores de marmitas, 
bebidas, banheiros químicos. 
5 Na pesquisa que realizei com motofretistas ficou claro que a maioria dos entrevistados 
tem uma jornada de 14 horas por dia ou mais sobre a moto, em meio ao trânsito de São 
Paulo. 
6 Harvey, D. A condição pos-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança 
cultural. São Paulo : Loyola, 1992. Bernardo, J. Democracia totalitária: teoria e prática 
da empresa soberana. São Paulo: Cortez, 2004. 
7 No Brasil a uberização é ainda potencializada por uma nova figura jurídica, criada no 
governo Dilma, do Microempreendedor Individual (MEI). A princípio estabeleceu-se 
como um meio para a formalização de trabalhadores informais de baixa renda, que 
então se tornam pessoas jurídicas, podendo emitir nota fiscal, sem terem as 
responsabilidades jurídicas de uma empresa. O MEI não pode faturar mais de 60 mil 
reais por ano e contribui para a Previdência Social, tendo acesso a benefícios sociais 
tais como auxilio maternidade, auxílio doença e aposentadoria. A figura do MEI tornou-
se ao mesmo tempo instrumento governamental para a redução da taxa do trabalho 
informal no Brasil e veículo extremamente eficaz da pejotização dos trabalhadores de 
baixa qualificação e rendimento. 
8 Em 2009 o governo Lula reconheceu e regulamentou a profissão de motofretista e 
mototaxista. As prefeituras encarregam-se das regulamentações locais. Em São Paulo 
a regulamentação foi o mote de diversas manifestações em que centenas de 
motofretistas bloquearam vias principais da cidade com seu instrumento de trabalho. A 
regulamentação envolve uma série de custos para os motoboys. Até hoje, apesar de 
estar implementada na cidade de São Paulo, não é fiscalizada, permanecendo opcional 
para o trabalhador. As empresas-aplicativo de motofrete cadastram apenas profissionais 
regularizados. Para elas a regulamentação é extremamente propícia, na medida em que 
certifica o trabalhador autônomo, operando como uma forma de burocratização da 
http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2016-10/temer-sanciona-nova-lei-do-supersimples-e-lei-do-salao-parceiro
http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2016-10/temer-sanciona-nova-lei-do-supersimples-e-lei-do-salao-parceiro
http://www.boitempoeditorial.com.br/v3/titles/view/sem-maquiagem
http://www.boitempoeditorial.com.br/v3/titles/view/sem-maquiagem
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/02/1857136-por-corrida-cara-motorista-do-uber-acampa-por-12-h-perto-de-aeroporto.shtml
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/02/1857136-por-corrida-cara-motorista-do-uber-acampa-por-12-h-perto-de-aeroporto.shtml
relação de confiança que é fundamental para que o consumidor contrate o serviço. 
Assim sendo, os motoboys que trabalham com aplicativos são motofretistas-MEI. 
9 A entrada dos aplicativos e o crescimento da adesão de motoristas amadores vêm 
fazendo com que a jornada de trabalho tanto destes motoristas como dos taxistas 
aumente de forma brutal. 
10 Howe, Jeff. Crowdsourcing: How the power of the crowd is driving the future of 
business. Nova York, Rondon House, 2008. 
11 Oliveira, F. Crítica à razão dualista/ O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003. 
12 Ver seções “O flex é feminino” e “O sistema de vendas diretas e a exploração do 
trabalho tipicamente feminino” em Abílio, L.C. Sem maquiagem.., cit. 
13 Telles, V. Mutações do trabalho e experiência urbana. Tempo social, n.18, v.1, 2006, 
p. 173-95. 
14 Castel, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: 
Vozes, 1998. 
15 Cardoso, A. Ensaios de sociologia do mercado de trabalho brasileiro. Rio de Janeiro: 
FGV, 2013. 
16 CABANES, R.; GEORGES, I.; RIZEK, C. & TELLES, V (orgs.). Saídas de 
emergência: Ganhar/perder a vida na periferia de São Paulo. São Paulo: Boitempo, 
2011; FELTRAN, G. O valor dos pobres. Cadernos CRH, Salvador, v.27, n.72, p. 495-
512, Dez. 2014; TELLES, V. S.; CABANES, R. (Orgs.). Nas Tramas da Cidade – 
trajetórias urbanas e seus territórios. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006. 
17 Gig economy é o termo que hoje nomeia a sobrevivência por meio de bicos, contratos 
de trabalho temporário, atividades como a do Uber. O termo dá a dimensão da 
globalização da viração (ver aqui e aqui). 
18 Oliveira, F. Passagem na neblina. In: Stédile, J., Genoíno, J. (orgs.) Classes sociais 
em mudança e luta pelo socialismo. São Paulo: Perseu Abramo, 2000. Klein, N. Sem 
logo: a tirania das marcas em um planeta vendido. São Paulo: Record, 2002. 
 
http://www1.folha.uol.com.br/saopaulo/2016/07/1794373-efeito-uber-reduz-precos-mas-leva-motorista-a-jornada-de-quase-24h.shtml
http://www1.folha.uol.com.br/saopaulo/2016/07/1794373-efeito-uber-reduz-precos-mas-leva-motorista-a-jornada-de-quase-24h.shtml
http://www1.folha.uol.com.br/saopaulo/2016/07/1794373-efeito-uber-reduz-precos-mas-leva-motorista-a-jornada-de-quase-24h.shtml
http://www.boitempoeditorial.com.br/v3/titles/view/saidas-de-emergencia
http://www.boitempoeditorial.com.br/v3/titles/view/saidas-de-emergencia
https://www.wired.com/insights/2013/09/the-gig-economy-the-force-that-could-save-the-american-worker/
https://www.theguardian.com/commentisfree/2015/jul/26/will-we-get-by-gig-economy
 
Revista Brasileira de Educação
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
rbe@anped.org.br 
ISSN (Versión impresa): 1413-2478
BRASIL
 
 
 
 
2007 
Dermeval Saviani
TRABALHO E EDUCAÇÃO: FUNDAMENTOS ONTOLÓGICOS E HISTÓRICOS 
Revista Brasileira de Educação, janeiro-abril, año/vol. 12, número 034 
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação 
São Paulo, Brasil 
pp. 152--165 
 
 
 
 
Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal
Universidad Autónoma del Estado de México
http://redalyc.uaemex.mx
 
mailto:rbe@anped.org.br
http://redalyc.uaemex.mx/
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152
Dermeval Saviani
 Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007
A primeira observação que me ocorre a propósi-
to do próprio enunciado do tema é que, na verdade,
da perspectiva em que me coloco para analisar o pro-
blema, os termos “ontológico” e “histórico” não se-
riam ligados por uma conjunção coordenativa aditiva
como está posto no enunciado do título. Não se trata-
ria de examinar os fundamentos ontológicos e depois,
em acréscimo, examinar os fundamentos históricos,
ou vice-versa. Isso porque o ser do homem e, portan-
to, o ser do trabalho, é histórico. Assim, talvez o títu-
lo deste trabalho ficasse mais preciso se fosse enun-
ciado assim: “Trabalho e educação: fundamentos
ontológico-históricos”.
No entanto, constatado o estreito vínculo onto-
lógico-histórico próprio da relação entre trabalho e
educação, impõe-se reconhecer e buscar compreen-der como se produziu, historicamente, a separação
entre trabalho e educação.
Feito esse comentário preliminar, adianto o per-
curso que pretendo fazer no tratamento do tema que
me foi encomendado.
Começarei procurando indicar, em suas linhas
básicas, os fundamentos histórico-ontológicos da rela-
ção trabalho-educação. Em seguida, tratarei de mos-
trar como, não obstante a indissolubilidade da referida
relação, se manifestou na história o fenômeno da sepa-
ração entre trabalho e educação. No terceiro momento
abordarei o tortuoso e difícil processo de questiona-
mento da separação e restabelecimento dos vínculos
entre trabalho e educação. Finalmente, esboçarei a con-
formação do sistema de ensino sob a égide do trabalho
como princípio educativo e encerrarei com a discussão
do controvertido tema da educação politécnica.
Fundamentos histórico-ontológicos
da relação trabalho-educação
Trabalho e educação são atividades especifica-
mente humanas. Isso significa que, rigorosamente
falando, apenas o ser humano trabalha e educa. As-
sim, a pergunta sobre os fundamentos ontológicos da
Trabalho e educação:
fundamentos ontológicos e históricos*
Dermeval Saviani
Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação
* Apresentado em sessão especial do Grupo de Trabalho
Trabalho e Educação na 29ª Reunião da Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa e Educação (ANPEd), realizada em
Caxambu, MG, de 16 a 20 de outubro de 2006.
Trabalho e educação
Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007 153
relação trabalho-educação traz imediatamente à mente
a questão: quais são as características do ser humano
que lhe permitem realizar as ações de trabalhar e de
educar? Ou: o que é que está inscrito no ser do ho-
mem que lhe possibilita trabalhar e educar?
Perguntas desse tipo pressupõem que o homem
esteja previamente constituído como ser possuindo
propriedades que lhe permitem trabalhar e educar.
Pressupõe-se, portanto, uma definição de homem que
indique em que ele consiste, isto é, sua característica
essencial a partir da qual se possa explicar o trabalho
e a educação como atributos do homem. E, nesse caso,
fica aberta a possibilidade de que trabalho e educa-
ção sejam considerados atributos essenciais do ho-
mem, ou acidentais.
Na definição de homem mais difundida (animal
racional), o atributo essencial é dado pela racionali-
dade, consoante o significado clássico de definição
estabelecido por Aristóteles: uma definição dá-se pelo
gênero próximo e pela diferença específica. Pelo gê-
nero próximo indica-se aquilo que o objeto definido
tem em comum com outros seres de espécies diferen-
tes (no caso em tela, o gênero animal); pela diferença
específica indica-se a espécie, isto é, o que distingue
determinado ser dos demais que pertencem ao mes-
mo gênero (no caso do homem, a racionalidade). Con-
seqüentemente, sendo o homem definido pela racio-
nalidade, é esta que assume o caráter de atributo
essencial do ser humano.
Ora, assim entendido o homem, vê-se que, em-
bora trabalhar e educar possam ser reconhecidos como
atributos humanos, eles o são em caráter acidental, e
não substancial. Com efeito, o mesmo Aristóteles,
considerando como próprio do homem o pensar, o
contemplar, reputa o ato produtivo, o trabalho, como
uma atividade não digna de homens livres.
Diversamente, Bergson, ao analisar o desenvol-
vimento do impulso vital na obra Evolução criadora,
observa que “torpor vegetativo, instinto e inteligên-
cia” são os elementos comuns às plantas e aos ani-
mais. E, definindo a inteligência pela fabricação de
objetos, fenômeno identificado como comum aos ani-
mais, encontra no homem a particularidade da fabri-
cação de objetos artificiais, o que lhe permite avan-
çar a seguinte conclusão:
Se pudéssemos nos despir de todo orgulho, se, para
definir nossa espécie, nos ativéssemos estritamente ao que
a história e a pré-história nos apresentam como a caracte-
rística constante do homem e da inteligência, talvez não
disséssemos Homo sapiens, mas Homo faber. Em conclu-
são, a inteligência, encarada no que parece ser o seu em-
penho original, é a faculdade de fabricar objetos artifi-
ciais, sobretudo ferramentas para fazer ferramentas e de
diversificar ao infinito a fabricação delas. (Bergson, 1979,
p. 178-179, grifos do original)
No entanto, embora essa citação esteja sugerindo
que o trabalho seja a característica essencial que defi-
ne o homem em sua totalidade, Bergson não leva essa
conclusão às últimas conseqüências. Ao contrário, con-
siderará que sendo o instinto, em contraponto à inteli-
gência, uma das duas extremidades das duas princi-
pais linhas divergentes da evolução, ele é irredutível à
inteligência. Esta é adequada para lidar com a matéria
inerte; o instinto dá-nos a chave das operações vitais.
É a intuição, isto é, “o instinto que se tornou despren-
dido, consciente de si mesmo, capaz de refletir seu
objeto e de o ampliar infinitamente”, que nos conduz
“ao próprio interior da vida” (idem, p. 201).
Portanto, embora o ato de fabricar em que se
expressa a racionalidade seja específico do homem,
Bergson não o considera suficiente para definir a es-
sência humana.
Essas considerações feitas a propósito da filoso-
fia bergsoniana ilustram o que há de comum à grande
maioria das tentativas de definir o homem que po-
voam a história da filosofia. Expressões como o “ho-
mem é um animal político”; “é um animal simbóli-
co”, isto é, “um animal que fala”; “o homem não é
senão sua alma”; “o homem é apenas corpo”; “é uma
substância composta de dois elementos incompletos
e complementares, o corpo e a alma”; “é um espírito
encarnado”, padecem do mesmo problema detectado
na fórmula “o homem é um animal racional”, assim
como na concepção bergsoniana. Compõem a visão
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Dermeval Saviani
 Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007
que predominou no desenvolvimento do pensamento
filosófico e que se cristalizou no senso comum, mar-
cada por um caráter especulativo e metafísico contra-
posto à existência histórica dos homens. Partem de
uma idéia abstrata e universal de essência humana na
qual estaria inscrito o conjunto dos traços caracterís-
ticos de cada um dos indivíduos que compõem a es-
pécie humana. Certamente trabalho e educação fari-
am parte desse conjunto de traços.
Diferentemente dessa maneira de entender o ho-
mem, cumpre partir das condições efetivas, reais.
Voltando-nos para o processo de surgimento do
homem vamos constatar seu início no momento em
que determinado ser natural se destaca da natureza e
é obrigado, para existir, a produzir sua própria vida.
Assim, diferentemente dos animais, que se adaptam
à natureza, os homens têm de adaptar a natureza a si.
Agindo sobre ela e transformando-a, os homens ajus-
tam a natureza às suas necessidades:
Podemos distinguir o homem dos animais pela cons-
ciência, pela religião ou por qualquer coisa que se queira.
Porém, o homem se diferencia propriamente dos animais a
partir do momento em que começa a produzir seus meios
de vida, passo este que se encontra condicionado por sua
organização corporal. Ao produzir seus meios de vida, o
homem produz indiretamente sua própria vida material.
(Marx & Engels, 1974, p. 19, grifos do original)
Ora, o ato de agir sobre a natureza transforman-
do-a em função das necessidades humanas é o que
conhecemos com o nome de trabalho. Podemos, pois,
dizer que a essência do homem é o trabalho. A essên-
cia humana não é, então, dada ao homem; não é uma
dádiva divina ou natural; não é algo que precede a
existência do homem. Ao contrário, a essência huma-
na é produzida pelos próprios homens. O que o ho-
mem é, é-o pelo trabalho. A essência do homem é um
feito humano. É um trabalho que se desenvolve, se
aprofunda e se complexifica ao longo do tempo: é um
processo histórico.
É, portanto, na existência efetiva dos homens, nas
contradições de seu movimento real, e não numa es-sência externa a essa existência, que se descobre o que
o homem é: “tal e como os indivíduos manifestam sua
vida, assim são. O que são coincide, por conseguinte,
com sua produção, tanto com o que produzem como
com o modo como produzem” (idem, ibidem).
Se a existência humana não é garantida pela na-
tureza, não é uma dádiva natural, mas tem de ser pro-
duzida pelos próprios homens, sendo, pois, um pro-
duto do trabalho, isso significa que o homem não nasce
homem. Ele forma-se homem. Ele não nasce sabendo
produzir-se como homem. Ele necessita aprender a
ser homem, precisa aprender a produzir sua própria
existência. Portanto, a produção do homem é, ao mes-
mo tempo, a formação do homem, isto é, um proces-
so educativo. A origem da educação coincide, então,
com a origem do homem mesmo.
Diríamos, pois, que no ponto de partida a rela-
ção entre trabalho e educação é uma relação de iden-
tidade. Os homens aprendiam a produzir sua existên-
cia no próprio ato de produzi-la. Eles aprendiam a
trabalhar trabalhando. Lidando com a natureza, rela-
cionando-se uns com os outros, os homens educavam-
se e educavam as novas gerações. A produção da exis-
tência implica o desenvolvimento de formas e
conteúdos cuja validade é estabelecida pela experiên-
cia, o que configura um verdadeiro processo de apren-
dizagem. Assim, enquanto os elementos não valida-
dos pela experiência são afastados, aqueles cuja
eficácia a experiência corrobora necessitam ser pre-
servados e transmitidos às novas gerações no interes-
se da continuidade da espécie.
Nas comunidades primitivas a educação coinci-
dia totalmente com o fenômeno anteriormente des-
crito. Os homens apropriavam-se coletivamente dos
meios de produção da existência e nesse processo
educavam-se e educavam as novas gerações. Preva-
lecia, aí, o modo de produção comunal, também cha-
mado de “comunismo primitivo”. Não havia a divi-
são em classes. Tudo era feito em comum. Na unidade
aglutinadora da tribo dava-se a apropriação coletiva
da terra, constituindo a propriedade tribal na qual os
homens produziam sua existência em comum e se
educavam nesse mesmo processo. Nessas condições,
Trabalho e educação
Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007 155
a educação identificava-se com a vida. A expressão
“educação é vida”, e não preparação para a vida, rei-
vindicada muitos séculos mais tarde, já na nossa épo-
ca, era, nessas origens remotas, verdade prática.
Estão aí os fundamentos histórico-ontológicos da
relação trabalho-educação. Fundamentos históricos
porque referidos a um processo produzido e desen-
volvido ao longo do tempo pela ação dos próprios
homens. Fundamentos ontológicos porque o produto
dessa ação, o resultado desse processo, é o próprio
ser dos homens.
A emergência histórica da
separação entre trabalho e educação
O desenvolvimento da produção conduziu à di-
visão do trabalho e, daí, à apropriação privada da ter-
ra, provocando a ruptura da unidade vigente nas co-
munidades primitivas. A apropriação privada da terra,
então o principal meio de produção, gerou a divisão
dos homens em classes. Configuram-se, em conse-
qüência, duas classes sociais fundamentais: a classe
dos proprietários e a dos não-proprietários. Esse acon-
tecimento é de suma importância na história da hu-
manidade, tendo claros efeitos na própria compreen-
são ontológica do homem. Com efeito, como já se
esclareceu, é o trabalho que define a essência huma-
na. Isso significa que não é possível ao homem viver
sem trabalhar. Já que o homem não tem sua existên-
cia garantida pela natureza, sem agir sobre ela, trans-
formando-a e adequando-a às suas necessidades, o
homem perece. Daí o adágio: ninguém pode viver sem
trabalhar. No entanto, o advento da propriedade pri-
vada tornou possível à classe dos proprietários viver
sem trabalhar. Claro. Sendo a essência humana defi-
nida pelo trabalho, continua sendo verdade que sem
trabalho o homem não pode viver. Mas o controle
privado da terra onde os homens vivem coletivamen-
te tornou possível aos proprietários viver do trabalho
alheio; do trabalho dos não-proprietários que passa-
ram a ter a obrigação de, com o seu trabalho, mante-
rem-se a si mesmos e ao dono da terra, convertido em
seu senhor.
Na Antigüidade, tanto grega como romana, con-
figura-se esse fenômeno que contrapõe, de um lado,
uma aristocracia que detém a propriedade privada da
terra; e, de outro lado, os escravos. Daí a caracteriza-
ção do modo de produção antigo como modo de pro-
dução escravista. O trabalho é realizado dominante-
mente pelos escravos.
Ora, essa divisão dos homens em classes irá pro-
vocar uma divisão também na educação. Introduz-se,
assim, uma cisão na unidade da educação, antes iden-
tificada plenamente com o próprio processo de traba-
lho. A partir do escravismo antigo passaremos a ter
duas modalidades distintas e separadas de educação:
uma para a classe proprietária, identificada como a
educação dos homens livres, e outra para a classe não-
proprietária, identificada como a educação dos escra-
vos e serviçais. A primeira, centrada nas atividades
intelectuais, na arte da palavra e nos exercícios físi-
cos de caráter lúdico ou militar. E a segunda, assimi-
lada ao próprio processo de trabalho.
A primeira modalidade de educação deu origem
à escola. A palavra escola deriva do grego e
significa, etimologicamente, o lugar do ócio, tempo
livre. Era, pois, o lugar para onde iam os que dispu-
nham de tempo livre. Desenvolveu-se, a partir daí,
uma forma específica de educação, em contraposição
àquela inerente ao processo produtivo. Pela sua espe-
cificidade, essa nova forma de educação passou a ser
identificada com a educação propriamente dita, per-
petrando-se a separação entre educação e trabalho.
Estamos, a partir desse momento, diante do pro-
cesso de institucionalização da educação, correlato
do processo de surgimento da sociedade de classes
que, por sua vez, tem a ver com o processo de apro-
fundamento da divisão do trabalho. Assim, se nas so-
ciedades primitivas, caracterizadas pelo modo coleti-
vo de produção da existência humana, a educação
consistia numa ação espontânea, não diferenciada das
outras formas de ação desenvolvidas pelo homem,
coincidindo inteiramente com o processo de trabalho
que era comum a todos os membros da comunidade,
com a divisão dos homens em classes a educação tam-
bém resulta dividida; diferencia-se, em conseqüên-
156
Dermeval Saviani
 Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007
cia, a educação destinada à classe dominante daquela
a que tem acesso a classe dominada. E é aí que se
localiza a origem da escola. A educação dos mem-
bros da classe que dispõe de ócio, de lazer, de tempo
livre passa a organizar-se na forma escolar, contra-
pondo-se à educação da maioria, que continua a co-
incidir com o processo de trabalho.
Vê-se, pois, que já na origem da instituição edu-
cativa ela recebeu o nome de escola. Desde a Anti-
güidade a escola foi-se depurando, complexificando,
alargando-se até atingir, na contemporaneidade, a
condição de forma principal e dominante de educa-
ção, convertendo-se em parâmetro e referência para
aferir todas as demais formas de educação. Mas essa
constatação não implica, simplesmente, um desenvol-
vimento por continuidade em que a escola teria per-
manecido idêntica a si mesma, conservando a mesma
qualidade e desenvolvendo-se tão-somente no aspec-
to quantitativo. As continuidades podem ser observa-
das, é claro, sem prejuízo, porém, de um desenvolvi-
mento por rupturas mais ou menos profundas.
Manacorda assinala essa questão quando apro-
xima os ensinamentos de Ptahhotep, no antigo Egito,
que datam de 2.450 a.C., de Quintiliano, que viveu
na antiga Roma entre os anos 30 e 100 de nossa era.
Constatando que o “falar bem” é o conteúdo e o obje-
tivo do ensinamento de Ptahhotep, observa que não
se trata, porém, do falar bem “em sentido estético-literário”, mas da “oratória como arte política do co-
mando”, ou seja, nos termos de Quintiliano, “uma
verdadeira institutio oratoria, educação do orador ou
do homem político”. E acrescenta:
Entre Ptahhotep e Quintiliano passaram-se mais de dois
milênios e meio, mais do que entre Quintiliano e nós; além
disso, as civilizações egípcia e romana são muito diferentes
entre si. Não obstante, acho que se pode legitimamente con-
firmar esta continuidade de princípio na formação das castas
dirigentes nas sociedades antigas, e não somente naquelas.
Encontraremos as confirmações disto no decorrer do estudo,
mas devemos precisar agora que a continuidade e a afinida-
de não vão além deste objetivo proclamado, a saber, a for-
mação do orador ou político, e que a inspiração e os conteú-
dos, a técnica e a situação serão profundamente diferentes de
uma sociedade para outra. (Manacorda, 1989, p. 14)
Manacorda retoma o mesmo tema na conclusão
de sua História da educação, referindo-se à descober-
ta, já no antigo Egito, de uma “constante da história da
educação, uma daquelas constantes que sempre são
repropostas, embora sob formas diferentes e peculia-
res”, descrevendo-a com as seguintes oposições:
A separação entre instrução e trabalho, a discrimina-
ção entre a instrução para os poucos e o aprendizado do
trabalho para os muitos, e a definição da instrução “institu-
cionalizada” como institutio oratoria, isto é, como forma-
ção do governante para a arte da palavra entendida como
arte de governar (o “dizer”, ao qual se associa a arte das
armas, que é o “fazer” dos dominantes); trata-se, também,
da exclusão dessa arte de todo indivíduo das classes domi-
nadas, considerado um “charlatão demagogo”, um meduti.
A consciência da separação entre as duas formações do
homem tem a sua expressão literária nas chamadas “sátiras
dos ofícios”. Logo esse processo de inculturação se trans-
forma numa instrução que cada vez mais define o seu lugar
como uma “escola”, destinada à transmissão de uma cultu-
ra livresca codificada, numa áspera e sádica relação peda-
gógica. (idem, p. 356)
Se é possível detectar certa continuidade, mes-
mo no longuíssimo tempo, na história das instituições
educativas, isso não deve afastar nosso olhar das rup-
turas que, compreensivelmente, se manifestam mais
nitidamente, ao menos em suas formas mais profun-
das, com a mudança dos modos de produção da exis-
tência humana.
Assim, após a radical ruptura do modo de produ-
ção comunal, nós vamos ter o surgimento da escola,
que na Grécia se desenvolverá como paidéia, enquanto
educação dos homens livres, em oposição à duléia,1
1 Jogo, aqui, com as duas palavras gregas e .
A primeira significa educação enquanto inserção da criança na
cultura; a segunda, significando escravidão, remete à educação
enquanto conformação do escravo à sua condição.
Trabalho e educação
Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007 157
que implicava a educação dos escravos, fora da esco-
la, no próprio processo de trabalho. Com a ruptura do
modo de produção antigo (escravista), a ordem feu-
dal vai gerar um tipo de escola que em nada lembra a
paidéia grega. Diferentemente da educação ateniense
e espartana, assim como da romana, em que o Estado
desempenhava papel importante, na Idade Média as
escolas trarão fortemente a marca da Igreja católica.
O modo de produção capitalista provocará decisivas
mudanças na própria educação confessional e colo-
cará em posição central o protagonismo do Estado,
forjando a idéia da escola pública, universal, gratui-
ta, leiga e obrigatória, cujas tentativas de realização
passarão pelas mais diversas vicissitudes.
Essa perspectiva da análise da história da escola
pelo aspecto das rupturas permitirá abordagens mais
radicais, como aquela que se apresenta ao final do li-
vro de Baudelot e Establet, A escola capitalista na Fran-
ça, no qual os autores levantam três hipóteses de traba-
lho. Para efeitos deste texto, destaco a terceira:
Enfim, nós colocaremos a hipótese, e será preciso bus-
car verificá-la, que a realização da forma escolar no aparelho
escolar capitalista é diretamente responsável pelas modali-
dades segundo as quais este concorre para a reprodução das
relações de produção capitalistas. Isto supõe evidentemente
que nós elaboraríamos pouco a pouco uma definição siste-
mática da forma escolar, da qual nós simplesmente indica-
mos que ela repousa fundamentalmente sobre a separação
escolar, a separação entre as práticas escolares e o trabalho
produtivo. (Baudelot & Establet, 1971, p. 298)
Essa hipótese sugere o peso decisivo, senão ex-
clusivo da escola na responsabilidade pela reprodu-
ção do modo de produção capitalista. E a via para o
cumprimento desse papel reprodutor é o desenvolvi-
mento da escola como uma instituição apartada do
trabalho produtivo. Repõe-se, portanto, a “constante
da história da educação” de que falava Manacorda: a
separação entre instrução e trabalho. Não deixa de
ser interessante essa constatação: uma hipótese for-
mulada no âmbito do modo de produção capitalista a
partir de uma análise minuciosa do funcionamento
da escola francesa em pleno século XX; essa análise,
centrada no entendimento da escola como um apare-
lho ideológico de Estado exclusivamente capitalista,
termina por afirmar exatamente uma constante da his-
tória da educação cujas origens remontam ao antigo
Egito. Tratar-se-ia, então, de uma continuidade na
descontinuidade?
Conclui-se, portanto, que o desenvolvimento da
sociedade de classes, especificamente nas suas for-
mas escravista e feudal, consumou a separação entre
educação e trabalho. No entanto, não se pode perder
de vista que isso só foi possível a partir da própria
determinação do processo de trabalho. Com efeito, é
o modo como se organiza o processo de produção –
portanto, a maneira como os homens produzem os
seus meios de vida – que permitiu a organização da
escola como um espaço separado da produção. Logo,
a separação também é uma forma de relação, ou seja:
nas sociedades de classes a relação entre trabalho e
educação tende a manifestar-se na forma da separa-
ção entre escola e produção.
Essa separação entre escola e produção reflete,
por sua vez, a divisão que se foi processando ao lon-
go da história entre trabalho manual e trabalho inte-
lectual. Por esse ângulo, vê-se que a separação entre
escola e produção não coincide exatamente com a
separação entre trabalho e educação. Seria, portanto,
mais preciso considerar que, após o surgimento da
escola, a relação entre trabalho e educação também
assume uma dupla identidade. De um lado, continua-
mos a ter, no caso do trabalho manual, uma educação
que se realizava concomitantemente ao próprio pro-
cesso de trabalho. De outro lado, passamos a ter a
educação de tipo escolar destinada à educação para o
trabalho intelectual.
Como assinalei em outro momento (Saviani,
1994, p. 162), a escola, desde suas origens, foi posta
do lado do trabalho intelectual; constituiu-se num ins-
trumento para a preparação dos futuros dirigentes que
se exercitavam não apenas nas funções da guerra (li-
derança militar), mas também nas funções de mando
(liderança política), por meio do domínio da arte da
palavra e do conhecimento dos fenômenos naturais e
158
Dermeval Saviani
 Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007
das regras de convivência social. Como já foi aponta-
do, isso pode ser detectado no Egito desde as primei-
ras dinastias até o surgimento do escriba, assim como
na Grécia, em Roma e na Idade Média, cujas escolas,
restritas, cumpriam a função de preparar os também
restritos quadros dirigentes (intelectuais) então reque-
ridos. Nesses contextos, as funções manuais não exi-
giam preparo escolar. A formação dos trabalhadores
dava-se com o concomitante exercício das respecti-
vas funções. Mesmo no caso em que se atingiu alto
grau de especialização, como no artesanato medie-
val, o sistemade aprendizado de longa duração fica-
va a cargo das próprias corporações de ofícios: o
aprendiz adquiria o domínio do ofício exercendo-o
juntamente com os oficiais, com a orientação do mes-
tre, por isso mesmo chamado de “mestre de ofícios”.
Questionamento da separação e
tentativas de restabelecimento
do vínculo entre trabalho e educação
A relação trabalho-educação irá sofrer uma nova
determinação com o surgimento do modo de produ-
ção capitalista.
Como se sabe, a sociedade capitalista ou burgue-
sa, ao constituir a economia de mercado, isto é, a pro-
dução para a troca, inverteu os termos próprios da
sociedade feudal. Nesta, dominava a economia de
subsistência. Produzia-se para atender às necessida-
des de consumo, e só residualmente, na medida em
que a produção excedesse em certo grau as necessi-
dades de consumo, podia ocorrer algum tipo de troca.
Mas o avanço das forças produtivas, ainda sob as re-
lações feudais, intensificou o desenvolvimento da
economia medieval, provocando a geração sistemáti-
ca de excedentes e ativando o comércio. Esse proces-
so desembocou na organização da produção especifi-
camente voltada para a troca, dando origem à
sociedade capitalista. Nessa nova forma social, inver-
samente ao que ocorria na sociedade feudal, é a troca
que determina o consumo. Por isso esse tipo de so-
ciedade é também chamado de sociedade de merca-
do. Nela, o eixo do processo produtivo desloca-se do
campo para a cidade e da agricultura para a indústria,
que converte o saber de potência intelectual em po-
tência material. E a estrutura da sociedade deixa de
fundar-se em laços naturais para pautar-se por laços
propriamente sociais, isto é, produzidos pelos próprios
homens. Trata-se da sociedade contratual, cuja base é
o direito positivo e não mais o direito natural ou con-
suetudinário. Com isso, o domínio de uma cultura
intelectual, cujo componente mais elementar é o alfa-
beto, impõe-se como exigência generalizada a todos
os membros da sociedade. E a escola, sendo o instru-
mento por excelência para viabilizar o acesso a esse
tipo de cultura, é erigida na forma principal, domi-
nante e generalizada de educação. Esse processo as-
sume contornos mais nítidos com a consolidação da
nova ordem social propiciada pela indústria moderna
no contexto da Revolução Industrial.
O advento da indústria moderna conduziu a uma
crescente simplificação dos ofícios, reduzindo a ne-
cessidade de qualificação específica, viabilizada pela
introdução da maquinaria que passou a executar a
maior parte das funções manuais. Pela maquinaria,
que não é outra coisa senão trabalho intelectual mate-
rializado, deu-se visibilidade ao processo de conver-
são da ciência, potência espiritual, em potência mate-
rial. Esse processo aprofunda-se e generaliza-se com
a Revolução Industrial levada a efeito no final do sé-
culo XVIII e primeira metade do século XIX.
Vê-se, então, que o fenômeno da objetivação e
simplificação do trabalho coincide com o processo
de transferência para as máquinas das funções pró-
prias do trabalho manual. Desse modo, os ingredien-
tes intelectuais antes indissociáveis do trabalho ma-
nual humano, como ocorria no artesanato, dele
destacam-se, indo incorporar-se às máquinas. Por esse
processo, dá-se a mecanização das operações manu-
ais, sejam elas executadas pelas próprias máquinas
ou pelos homens, que passam a operar manualmente
como sucedâneos das máquinas. Pode-se, pois, esta-
belecer uma relação entre o caráter abstrato do traba-
lho assim organizado, com o caráter abstrato próprio
das atividades intelectuais: o trabalho tornou-se abs-
trato, isto é, simples e geral, porque organizado de
Trabalho e educação
Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007 159
acordo com os princípios científicos, também eles
abstratos, elaborados pela inteligência humana.
Essa nova forma de produção da existência hu-
mana determinou a reorganização das relações sociais.
À dominância da indústria no âmbito da produção
corresponde a dominância da cidade na estrutura so-
cial. Se a máquina viabilizou a materialização das
funções intelectuais no processo produtivo, a via para
objetivar-se a generalização das funções intelectuais
na sociedade foi a escola. Com o impacto da Revolu-
ção Industrial, os principais países assumiram a tare-
fa de organizar sistemas nacionais de ensino, buscan-
do generalizar a escola básica. Portanto, à Revolução
Industrial correspondeu uma Revolução Educacional:
aquela colocou a máquina no centro do processo pro-
dutivo; esta erigiu a escola em forma principal e do-
minante de educação.
A universalização da escola primária promoveu
a socialização dos indivíduos nas formas de convi-
vência próprias da sociedade moderna. Familiarizan-
do-os com os códigos formais, capacitou-os a inte-
grar o processo produtivo. A introdução da maquinaria
eliminou a exigência de qualificação específica, mas
impôs um patamar mínimo de qualificação geral,
equacionado no currículo da escola elementar. Pre-
enchido esse requisito, os trabalhadores estavam em
condições de conviver com as máquinas, operando-
as sem maiores dificuldades. Contudo, além do tra-
balho com as máquinas, era necessário também reali-
zar atividades de manutenção, reparos, ajustes,
desenvolvimento e adaptação a novas circunstâncias.
Subsistiram, pois, no interior da produção, tarefas que
exigiam determinadas qualificações específicas, ob-
tidas por um preparo intelectual também específico.
Esse espaço foi ocupado pelos cursos profissionais
organizados no âmbito das empresas ou do sistema
de ensino, tendo como referência o padrão escolar,
mas determinados diretamente pelas necessidades do
processo produtivo. Eis que, sobre a base comum da
escola primária, o sistema de ensino bifurcou-se en-
tre as escolas de formação geral e as escolas profis-
sionais. Estas, por não estarem diretamente ligadas à
produção, tenderam a enfatizar as qualificações ge-
rais (intelectuais) em detrimento da qualificação es-
pecífica, ao passo que os cursos profissionalizantes,
diretamente ligados à produção, enfatizaram os as-
pectos operacionais vinculados ao exercício de tare-
fas específicas (intelectuais e manuais) no processo
produtivo considerado em sua particularidade.
Constatamos, portanto, que o impacto da Revolu-
ção Industrial pôs em questão a separação entre instru-
ção e trabalho produtivo, forçando a escola a ligar-se,
de alguma maneira, ao mundo da produção. No entan-
to, a educação que a burguesia concebeu e realizou
sobre a base do ensino primário comum não passou,
nas suas formas mais avançadas, da divisão dos ho-
mens em dois grandes campos: aquele das profissões
manuais para as quais se requeria uma formação práti-
ca limitada à execução de tarefas mais ou menos deli-
mitadas, dispensando-se o domínio dos respectivos
fundamentos teóricos; e aquele das profissões intelec-
tuais para as quais se requeria domínio teórico amplo a
fim de preparar as elites e representantes da classe di-
rigente para atuar nos diferentes setores da sociedade.
A referida separação teve uma dupla manifesta-
ção: a proposta dualista de escolas profissionais para
os trabalhadores e “escolas de ciências e humanida-
des” para os futuros dirigentes; e a proposta de escola
única diferenciada, que efetuava internamente a dis-
tribuição dos educandos segundo as funções sociais
para as quais se os destinavam em consonância com
as características que geralmente decorriam de sua
origem social.
Esboço de organização do sistema de ensino
com base no princípio educativo do trabalho
Inspirado nas reflexões de Gramsci sobre o tra-
balho como princípio educativo da escola unitária,
procurei delinear a conformação do sistema de ensi-
no tendo em vista as condições da sociedade brasilei-
ra atual.
Conforme Gramsci, a escola unitária correspon-
deria à fase que hoje, no Brasil, é definida como a
educação básica, especificamente nosníveis funda-
mental e médio.
160
Dermeval Saviani
 Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007
O modo como está organizada a sociedade atual
é a referência para a organização do ensino funda-
mental. O nível de desenvolvimento atingido pela
sociedade contemporânea coloca a exigência de um
acervo mínimo de conhecimentos sistemáticos, sem
o que não se pode ser cidadão, isto é, não se pode
participar ativamente da vida da sociedade.
O acervo em referência inclui a linguagem es-
crita e a matemática, já incorporadas na vida da so-
ciedade atual; as ciências naturais, cujos elementos
básicos relativos ao conhecimento das leis que regem
a natureza são necessários para compreender as trans-
formações operadas pela ação do homem sobre o meio
ambiente; e as ciências sociais, pelas quais se pode
compreender as relações entre os homens, as formas
como eles se organizam, as instituições que criam e
as regras de convivência que estabelecem, com a con-
seqüente definição de direitos e deveres. O último
componente (ciências sociais) corresponde, na atual
estrutura, aos conteúdos de história e geografia. Eis
aí como se configura o currículo da escola elementar.
A base em que se assenta a estrutura do ensino
fundamental é o princípio educativo do trabalho. O
estudo das ciências naturais, assinala Gramsci, visa
introduzir as crianças na societas rerum, e pelas ciên-
cias sociais elas são introduzidas na societas hominum:
O conceito e o fato do trabalho (da atividade teórico-
prática) é o princípio educativo imanente à escola elemen-
tar, já que a ordem social e estatal (direitos e deveres) é
introduzida e identificada na ordem natural pelo trabalho.
O conceito do equilíbrio entre ordem social e ordem natu-
ral sobre o fundamento do trabalho, da atividade teórico-
prática do homem, cria os primeiros elementos de uma in-
tuição do mundo liberta de toda magia ou bruxaria, e forne-
ce o ponto de partida para o posterior desenvolvimento de
uma concepção histórico-dialética do mundo... (Gramsci,
1975, v. III, p. 1.541; na edição brasileira, 1968, p. 130)
Uma vez que o princípio do trabalho é imanente
à escola elementar, isso significa que no ensino fun-
damental a relação entre trabalho e educação é implí-
cita e indireta. Ou seja, o trabalho orienta e determina
o caráter do currículo escolar em função da incorpo-
ração dessas exigências na vida da sociedade. A es-
cola elementar não precisa, então, fazer referência
direta ao processo de trabalho, porque ela se constitui
basicamente como um mecanismo, um instrumento,
por meio do qual os integrantes da sociedade se apro-
priam daqueles elementos, também instrumentais,
para a sua inserção efetiva na própria sociedade.
Aprender a ler, escrever e contar, e dominar os rudi-
mentos das ciências naturais e das ciências sociais
constituem pré-requisitos para compreender o mun-
do em que se vive, inclusive para entender a própria
incorporação pelo trabalho dos conhecimentos cien-
tíficos no âmbito da vida e da sociedade.
Se no ensino fundamental a relação é implícita e
indireta, no ensino médio a relação entre educação e
trabalho, entre o conhecimento e a atividade prática
deverá ser tratada de maneira explícita e direta. O sa-
ber tem uma autonomia relativa em relação ao pro-
cesso de trabalho do qual se origina. O papel funda-
mental da escola de nível médio será, então, o de
recuperar essa relação entre o conhecimento e a prá-
tica do trabalho.
Assim, no ensino médio já não basta dominar os
elementos básicos e gerais do conhecimento que resul-
tam e ao mesmo tempo contribuem para o processo de
trabalho na sociedade. Trata-se, agora, de explicitar
como o conhecimento (objeto específico do processo
de ensino), isto é, como a ciência, potência espiritual,
se converte em potência material no processo de pro-
dução. Tal explicitação deve envolver o domínio não
apenas teórico, mas também prático sobre o modo como
o saber se articula com o processo produtivo.
Um exemplo de como a atividade prática, ma-
nual, pode contribuir para explicitar a relação entre
ciência e produção é a transformação da madeira e do
metal pelo trabalho humano (cf. Pistrak, 1981, p. 55-
56). O trabalho com a madeira e o metal tem imenso
valor educativo, pois apresenta possibilidades amplas
de transformação. Envolve não apenas a produção da
maioria dos objetos que compõem o processo produ-
tivo moderno, mas também a produção de instrumen-
tos com os quais esses objetos são produzidos. No
Trabalho e educação
Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007 161
trabalho prático com madeira e metal, aplicando os
fundamentos de diversificadas técnicas de produção,
pode-se compreender como a ciência e seus princí-
pios são aplicados ao processo produtivo, pode-se
perceber como as leis da física e da química operam
para vencer a resistência dos materiais e gerar novos
produtos. Faz-se, assim, a articulação da prática com
o conhecimento teórico, inserindo-o no trabalho con-
creto realizado no processo produtivo.
O ensino médio envolverá, pois, o recurso às ofi-
cinas nas quais os alunos manipulam os processos
práticos básicos da produção; mas não se trata de re-
produzir na escola a especialização que ocorre no pro-
cesso produtivo. O horizonte que deve nortear a or-
ganização do ensino médio é o de propiciar aos alunos
o domínio dos fundamentos das técnicas diversifica-
das utilizadas na produção, e não o mero adestramen-
to em técnicas produtivas. Não a formação de técni-
cos especializados, mas de politécnicos.
Politecnia significa, aqui, especialização como
domínio dos fundamentos científicos das diferentes
técnicas utilizadas na produção moderna. Nessa pers-
pectiva, a educação de nível médio tratará de concen-
trar-se nas modalidades fundamentais que dão base à
multiplicidade de processos e técnicas de produção
existentes.
Essa é uma concepção radicalmente diferente da
que propõe um ensino médio profissionalizante, caso
em que a profissionalização é entendida como um
adestramento em uma determinada habilidade sem o
conhecimento dos fundamentos dessa habilidade e,
menos ainda, da articulação dessa habilidade com o
conjunto do processo produtivo.
A concepção anteriormente formulada implica a
progressiva generalização do ensino médio como for-
mação necessária para todos, independentemente do
tipo de ocupação que cada um venha a exercer na so-
ciedade. Sobre a base da relação explícita entre tra-
balho e educação desenvolve-se, portanto, uma esco-
la média de formação geral. Nesse sentido, trata-se
de uma escola de tipo “desinteressado” como
propugnava Gramsci (1975, v. I, p. 486-487; na edi-
ção brasileira, 1968, p. 123-125) . É assim que ele
entendia a escola ativa, e não na forma como essa
expressão aparecia no movimento da Escola Nova,
isto é, a escola única diferenciada preconizada pela
burguesia. E, para ele, o coroamento dessa escola ati-
va era a escola criativa, entendida como o momento
em que os educandos atingiam a autonomia. Com-
pletava-se, dessa forma, o sentido gramsciano da es-
cola mediante a qual os educandos passariam da
anomia à autonomia, pela mediação da heteronomia.
Finalmente, à educação superior cabe a tarefa de
organizar a cultura superior como forma de possibili-
tar que participem plenamente da vida cultural, em
sua manifestação mais elaborada, todos os membros
da sociedade, independentemente do tipo de ativida-
de profissional a que se dediquem.
Assim, além do ensino superior destinado a for-
mar profissionais de nível universitário (a imensa
gama de profissionais liberais e de cientistas e tecnó-
logos de diferentes matizes), formula-se a exigência
da organização da cultura superior com o objetivo de
possibilitar a toda a população a difusão e discussão
dos grandes problemas que afetam o homem contem-
porâneo. Terminada a formação comum propiciada
pela educação básica, os jovens têm diante de si doiscaminhos: a vinculação permanente ao processo pro-
dutivo, por meio da ocupação profissional, ou a espe-
cialização universitária.
Ora, em lugar de abandonar o desenvolvimento
cultural dos trabalhadores a um processo difuso, tra-
ta-se de organizá-lo. É necessário, pois, que eles dis-
ponham de organizações culturais por meio das quais
possam participar, em igualdade de condições com
os estudantes universitários, da discussão, em nível
superior, dos problemas que afetam toda a sociedade
e, portanto, dizem respeito aos interesses de cada
cidadão. Com isso, além de propiciar o clima estimu-
lante imprescindível à continuidade do desenvolvi-
mento cultural e da atividade intelectual dos traba-
lhadores, tal mecanismo funciona como um espaço
de articulação entre os trabalhadores e os estudantes
universitários, criando a atmosfera indispensável para
vincular de forma indissociável o trabalho intelectual
e o trabalho material.
162
Dermeval Saviani
 Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007
Ressalte-se que essa proposta é bem diversa da
atual função da extensão universitária. Não se trata
de estender à população trabalhadora, enquanto
receptora passiva, algo próprio da atividade universi-
tária. Trata-se, antes, de evitar que os trabalhadores
caiam na passividade intelectual, evitando-se ao mes-
mo tempo que os universitários caiam no academi-
cismo. Aliás, Gramsci (1968, p. 125-127) imaginava
que tal função viesse a ser desempenhada exatamen-
te pelas academias que, para tanto, deveriam ser reor-
ganizadas e totalmente revitalizadas, deixando de ser
os “cemitérios da cultura” a que estão reduzidas atual-
mente.
Conclusão:
a controvérsia relativa à politecnia
Abordei mais extensamente a questão da educa-
ção politécnica no livro Sobre a concepção de politecnia
(Saviani, 1989), que resultou do Seminário “Choque
Teórico” organizado pelo Politécnico da Saúde Joaquim
Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz. Nesse momen-
to considerei que na abordagem marxista o conceito
de politecnia implica a união entre escola e trabalho
ou, mais especificamente, entre instrução intelectual e
trabalho produtivo. Tendo em vista, porém, as contro-
vérsias que se têm manifestado, voltei a essa questão
em 2002, quando fiz as seguintes considerações.
Após minuciosos estudos filológicos da obra de
Marx, Manacorda concluiu que a expressão “educa-
ção tecnológica” traduziria com mais precisão a con-
cepção marxiana do que o termo “politecnia” ou “edu-
cação politécnica”. Mostrando a contemporaneidade
entre o texto das Instruções aos delegados ao I Con-
gresso da Associação Internacional dos Trabalhado-
res, escrito em 1866, e O capital, Manacorda consta-
ta que, em ambos os textos, há uma substancial
identidade na definição do ensino que é adjetivado de
“tecnológico” tanto nas Instruções como n’O capi-
tal, aparecendo o termo “politécnico” apenas nas Ins-
truções (Manacorda, 1991, p. 30). Contudo, para além
da questão terminológica, isto é, independentemente
da preferência pela denominação “educação tecnoló-
gica” ou “politecnia”, é importante observar que, do
ponto de vista conceitual, o que está em causa é um
mesmo conteúdo. Trata-se da união entre formação
intelectual e trabalho produtivo, que no texto do Ma-
nifesto aparece como “unificação da instrução com a
produção material”; nas Instruções, como “instrução
politécnica que transmita os fundamentos científicos
gerais de todos os processos de produção”; e n’O ca-
pital, se enuncia como “instrução tecnológica, teóri-
ca e prática”.
Compreendo as preocupações filológicas de
Manacorda que o levaram a propor uma distinção
sugerindo que o termo “politecnicismo” se refere à
“disponibilidade para os diversos trabalhos e suas
variações”, enquanto “tecnologia”, implicando a uni-
dade entre teoria e prática, destacaria a omnilaterali-
dade que caracteriza o homem:
O primeiro termo, ao propor uma preparação pluri-
profissional, contrapõe-se à divisão do trabalho específica
da fábrica moderna; o segundo, ao prever uma formação
unificadamente teórica e prática, opõe-se à divisão originá-
ria entre trabalho intelectual e trabalho manual, que a fábri-
ca moderna exacerba. O primeiro destaca a idéia da multi-
plicidade da atividade (a respeito da qual Marx havia fala-
do de uma sociedade comunista na qual, por exemplo, os
pintores seriam “homens que também pintam”); o segundo,
a possibilidade de uma plena e total manifestação de si
mesmo, independentemente das ocupações específicas da
pessoa. (idem, p. 32, grifo do original)
Essas considerações são feitas a partir da obser-
vação de que Marx, n’O capital, se refere às “escolas
politécnicas e agronômicas” e também às “escolas de
ensino profissional onde os filhos dos operários rece-
bem algum ensino tecnológico e são iniciados no
manejo prático dos diferentes instrumentos de produ-
ção” (Marx, 1968, p. 559). Assim, o autor reconhece
a existência dessas escolas criadas pela própria bur-
guesia, detectando aí um movimento contraditório que
envolve a necessidade de atender à exigência objeti-
va, imposta pela grande indústria, de substituir o in-
divíduo parcial pelo indivíduo completamente desen-
Trabalho e educação
Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007 163
volvido. E Manacorda entende, em conseqüência, que
o adjetivo “politécnica” se refere à escola doada pela
burguesia aos operários, onde já se faz presente, de
forma limitada, o conteúdo pedagógico da “educação
tecnológica”.
Sem desconsiderar a validade das distinções
efetuadas por Manacorda, penso que, grosso modo,
pode-se entender que, em Marx, “ensino tecnológi-
co” e “ensino politécnico” podem ser considerados
sinônimos. Se na época de Marx o termo “tecnolo-
gia” era pouco utilizado nos discursos econômicos, e
o era menos ainda nos discursos pedagógicos da bur-
guesia, de lá para cá essa situação modificou-se sig-
nificativamente. Enquanto o termo “tecnologia” foi
definitivamente apropriado pela concepção dominan-
te, o termo “politecnia” sobreviveu apenas na deno-
minação de algumas escolas ligadas à atividade pro-
dutiva, basicamente no ramo das engenharias.
Assim, a concepção de politecnia foi preservada
na tradição socialista, sendo uma das maneiras de
demarcar essa visão educativa em relação àquela
correspondente à concepção burguesa dominante
(Saviani, 2002, p. 144-146).
Paolo Nosella (2006), em estudo denominado
“Trabalho e perspectivas de formação dos trabalha-
dores: para além da formação politécnica”, retoma o
aspecto polêmico. Nesse texto Paolo faz duas ressal-
vas à abordagem apresentada nas linhas anteriores.
A primeira refere-se à minha afirmação de que, gros-
so modo, as expressões “ensino tecnológico” e “ensi-
no politécnico” podem ser consideradas sinônimas em
Marx. Diz ele: “a expressão cautelosa grosso modo
não surte efeito, uma vez que as análises de Manacorda
são contundentes no destacar a diferença entre as duas
expressões para Marx, que atribuía à moderna ciên-
cia da tecnologia um sentido mais progressista do que
a politecnia” (p. 11).
No entanto, devo reiterar que nessa conclusão
eu me apoiei exatamente em Manacorda, quando ele
constata que, em Marx, há uma substancial identida-
de na definição do ensino que é adjetivado de “tecno-
lógico” tanto nas Instruções como n’O capital, apa-
recendo o termo “politécnico” apenas nas Instruções
(Manacorda, 1991, p. 30). Meu entendimento é que a
posição de Manacorda, como bom filólogo, está apoia-
da na análise lingüística da etimologia das palavras,
com o que, aliás, eu concordo. De fato, a palavra
“politecnia”, como eu próprio também destaquei no
livro mencionado, publicado em 1989, literalmente
significa múltiplas técnicas, multiplicidade de técni-
cas; daí o risco de entender esse conceito como a to-
talidade das diferentes técnicas fragmentadas, auto-
nomamente consideradas. Tecnologia, por sua vez,
literalmente significa estudoda técnica, ciência da
técnica ou técnica fundada cientificamente. Daí, a
conclusão de Manacorda reportando a noção de tec-
nologia à unidade entre teoria e prática que caracteri-
za o homem.
Em minha análise não me fixei na etimologia,
mas na semântica, entendida como o estudo da evo-
lução histórica do significado das palavras. E isso já
me conduz à outra ressalva apresentada por Nosella.
A segunda ressalva diz respeito à referência que
fiz sobre a preservação do termo politecnia na tradi-
ção socialista. Paolo pergunta-se a que “tradição so-
cialista” eu estaria me referindo e diz ser necessário
distinguir entre tradição cultural socialista e socialis-
mo real. Todavia, ele mesmo dá as respostas. Afirma
que “na União Soviética, sobretudo após Lenin, a ca-
tegoria de politecnia deixou de ser vista como estru-
tura estruturante do sistema de ensino como um todo”
(2006, p. 12). Portanto, quando falei em “tradição
socialista”, não era ao socialismo real que eu estava
me referindo. Mais adiante, Nosella vai fazer a se-
guinte consideração:
Se a hermenêutica de Manacorda sobre os textos
marxianos é correta, como explicar que a tradição marxista
na União Soviética, pelo menos até a morte de Lenin, tenha
privilegiado o termo “politecnia” nas políticas educacionais
socialistas? A resposta de Manacorda é precisa: “Remonta
exatamente a Lênin, na passagem citada, a escolha do termo
‘politécnico’ em vez de tecnológico para o ensino na pers-
pectiva do socialismo. Foi precisamente a sua autoridade que,
posteriormente, determinou o uso constante de ‘politécnico’
não só na terminologia pedagógica de todos os países socia-
164
Dermeval Saviani
 Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007
listas, mas também – o que é filologicamente incorreto – em
todas as traduções oficiais dos textos marxianos em russo e,
daí, em todas as demais línguas” (Manacorda, 1991, p. 41,
nota 25). (Nosella, 2006, p. 13-14)
Está explicado, então, como se formou a tradi-
ção socialista que preservou o termo politecnia, à qual
me referi. E o próprio Paolo reconhece, no mesmo
texto (p. 16), que o sentido geral que Lenin deu ao
termo foi “genuinamente marxista”. Assim, indepen-
dentemente das razões que levaram Lenin a esse en-
tendimento, o certo é que a semântica do termo
politecnia deixou de corresponder ao seu sentido
etimológico. Respeitando o seu significado semânti-
co, conceituei politecnia como dizendo respeito aos
fundamentos científicos das múltiplas técnicas que
caracterizam a produção moderna. Assim proceden-
do, em verdade, articulei, no conceito de politecnia,
os significados etimológicos dos termos utilizados por
Marx: educação politécnica e educação tecnológica,
destacados por Manacorda nas denominações de
“politecnicismo” e “tecnologia”.
Portanto, sem negar a existência de outras lei-
turas no interior do movimento socialista, importa
reconhecer que a tradição que se impôs é essa por
mim destacada. Para ilustrar isso, tomo, ao acaso, um
exemplo retirado de Paschoal Lemme. No texto “A
reforma do ensino na Albânia”, por ele elaborado em
1960, na ocasião do 16º aniversário da Proclamação
da República Democrática da Albânia, podemos ler:
O ensino politécnico, que tem por objetivo iniciar os
alunos nos princípios fundamentais dos processos essen-
ciais dos ramos mais importantes da produção moderna e
os dotar de noções sobre o emprego dos principais instru-
mentos de produção, será dado através das matérias de cul-
tura geral (Matemática, Física, Química, Biologia, Geogra-
fia, Desenho Técnico) e por meio do ensino do trabalho e
de excursões aos centros de trabalhos (canteiros de cons-
truções, usinas, fábricas, parques automobilísticos, centrais
elétricas, cooperativas, fazendas, etc.). (Lemme, 2004, v. 5,
p. 131)
Parece claro que Marx e Lenin, assim como
Gramsci, não pretendiam supervalorizar o instrumento
de trabalho deslocando o foco de análise do ser hu-
mano para o instrumental técnico. Esse destaque fei-
to por Nosella a partir de Gramsci é também minha
preocupação central. Aliás, nesse contexto é oportu-
no lembrar que minha concepção global de educação
não se expressa por meio do termo “politecnia”, mas
pela denominação “histórico-crítica” (Saviani, 2005).
No interior dessa concepção, cuja inspiração princi-
pal se reporta a Gramsci, incorporei o termo “politec-
nia” quando tratei do problema relativo à explicita-
ção da relação entre instrução e trabalho produtivo,
como diretriz para a organização da educação de ní-
vel médio. E isso foi feito tendo em vista o significa-
do semântico que esse termo adquiriu no âmbito da
tradição socialista, como procurei esclarecer.
Finalmente, registro que minha tendência é en-
dossar in totum a linha de análise desenvolvida por
Paolo Nosella no texto citado. Particularmente, com-
partilho da centralidade que pretendeu conferir à ques-
tão da liberdade na organização do ensino. Isso, com
efeito, foi o que registrei na parte final do texto por
ele comentado (SAVIANI, 2002, p. 147-148). E o fiz
apoiando-me, mais uma vez, no próprio Manacorda,
quando externei as seguintes considerações:
Como assinala Manacorda em Il marxismo e
l’educazione, estamos diante de uma problemática que
é central no marxismo: o caminho da humanidade,
movendo-se da genérica natureza humana originária
caracterizada por múltiplas ocupações, passa pela for-
mação de uma capacidade produtiva específica provo-
cada pela divisão natural do trabalho; e chega à con-
quista de uma capacidade omnilateral, baseada, agora,
numa divisão do trabalho voluntária e consciente, en-
volvendo uma variedade indefinida de ocupações pro-
dutivas em que ciência e trabalho coincidem. Está em
causa, aí, a momentosa questão da passagem do reino
da necessidade ao reino da liberdade:
Sobre a base daquele reino da necessidade, lá onde
cessa o trabalho voltado para uma finalidade externa, e para
Trabalho e educação
Revista Brasileira de Educação v. 12 n. 34 jan./abr. 2007 165
além da esfera da produção material propriamente dita, sur-
ge, de fato, para Marx, o verdadeiro reino da liberdade,
vale dizer, o desenvolvimento das capacidades humanas
como fim em si mesmo. (Manacorda, 1964, p. 15)
Enfim, creio poder afirmar que as análises for-
muladas por Nosella e aquelas por mim desenvolvi-
das não se chocam, mas, ao contrário, complemen-
tam-se e enriquecem-se mutuamente. Não será o uso
ou não de determinado termo que as colocará em con-
fronto. Se assim for, posso proclamar sem hesitação:
abrirei mão do termo politecnia, sem prejuízo algum
para a concepção pedagógica que venho procurando
elaborar.
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. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproxima-
ções. 9. ed. rev. e ampl. Campinas: Autores Associados, 2005.
DERMEVAL SAVIANI, doutor em filosofia da educação
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e
livre-docente em história da educação pela Universidade Estadual
de Campinas (UNICAMP), é professor emérito da Faculdade de
Educação da UNICAMP e coordenador geral do Grupo de Estu-
dos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil”
(HISTEDBR). Publicou grande número de livros, capítulos de li-
vros e artigos em revistas nacionais e internacionais. Entre eles
destacam-se: Educação: do senso comum à consciência filosófica
(Campinas: Autores Associados, 1980 – 17. ed., 2006); Escola e
democracia (Campinas: Autores Associados, 1983 – 38. ed., 2006);
Pedagogia histórico-crítica. (Campinas: Autores Associados, 1991
– 9. ed., 2005); A nova lei da educação: trajetórias, limites e pers-
pectivas (Campinas, Autores Associados, 1997 – 10. ed., 2006);
Da nova LDB ao novo Plano Nacional de Educação: por uma
outra política educacional (Campinas: Autores Associados, 1997
– 5. ed., 2004). E-mail: dermevalsaviani@yahoo.com.br
Recebido em outubro de 2006
Aprovado em dezembro de 2006do capital. 
Neste cenário, caracterizado por um tripé que domina o mundo (com os
Estados Unidos da América e o seu Nafta, a Alemanha à frente da Europa
unificada e o Japão liderando os demais países asiáticos), quanto mais um dos
pólos da tríade se fortalece, mais os outros se ressentem e se debilitam. Por isso
a crise freqüentemente muda de centro, ainda que ela esteja presente em vários
pontos, assumindo mesmo uma dimensão mundial. 
No embate cotidiano que empreendem para se expandir pelas partes do
mundo que interessam e também para co-administrar as suas situações mais
explosivas, em suma, para disputar e ao mesmo tempo gerenciar as crises,
acabam por acarretar ainda mais destruição e precarização. A América Latina se
“integra” à chamada mundialização destruindo-se socialmente. Na Ásia, a
enorme expansão se dá às custas de uma brutal superexploração do trabalho, de
que as recentes greves dos trabalhadores da Coréia do Sul, em 1997/8, são firme
denúncia. Superexploração que atinge profundamente mulheres e crianças. 
É preciso que se diga de forma clara: desregulamentação, flexibilização,
terceirização, bem como todo esse receituário que se esparrama pelo “mundo
empresarial”, são expressões de uma lógica societal onde o capital vale e a força
humana de trabalho só conta enquanto parcela imprescindível para a reprodução
deste mesmo capital. Isso porque o capital é incapaz de realizar sua auto-
valorização sem utilizar-se do trabalho humano. Pode diminuir o trabalho vivo,
mas não eliminá-lo. Pode precarizá-lo e desempregar parcelas imensas, mas não
pode extinguí-lo.
O claro entendimento desta configuração atual do mundo do trabalho nos
leva a entender suas principais mutações, o que procuraremos fazer de modo um
pouco mais detalhado a seguir.
Nas últimas décadas, particularmente depois de meados de 70, o mundo do
trabalho vivenciou uma situação fortemente crítica, talvez a maior desde o
38
nascimento da classe trabalhadora e do próprio movimento operário inglês. O
entendimento dos elementos constitutivos desta crise é de grande complexidade,
uma vez que, neste mesmo período, ocorreram mutações intensas, de ordens
diferenciadas e que, no seu conjunto, acabaram por acarretar consequências
muito fortes no interior do movimento operário, e em particular, no âmbito do
movimento sindical. O entendimento deste quadro, portanto, supõe uma análise
da totalidade dos elementos constitutivos deste cenário, empreendimento ao
mesmo tempo difícil e imprescindível, que não pode ser tratado de maneira
ligeira. 
Vamos indicar alguns elementos que são centrais, em nosso entendimento,
para uma apreensão mais totalizante da crise que se abateu no interior do
movimento operário e sindical. Seu desenvolvimento seria aqui impossível, dada
a amplitude e complexidade de questões. A sua indicação, entretanto, é
fundamental por que afetou tanto a materialidade da classe trabalhadora, a sua
forma de ser, quando a sua esfera mais propriamente subjetiva, política,
ideológica, dos valores e do ideário que pautam suas ações e práticas concretas
Começamos dizendo que neste período vivenciamos um quadro de crise
estrutural do capital, que se abateu no conjunto das economias capitalistas a
partir especialmente do início dos anos 70. Sua intensidade é tão profunda que
levou o capital a desenvolver práticas materiais da destrutiva auto-reprodução
ampliada possibilitando a visualização do espectro da destruição global, ao invés
de aceitar as necessárias restrições positivas no interior da produção para
satisfação das necessidades humanas (Mészáros, 1995)4.
Esta crise fez com que, entre tantas outras conseqüências, o capital
implementasse um vastíssimo processo de reestruturação do capital, com vistas à
recuperação do ciclo de reprodução do capital e que, como veremos mais adiante,
afetou fortemente o mundo do trabalho.
Um segundo elemento fundamental para o entendimento das causas do
refluxo do movimento operário decorre do explosivo desmoronamento do Leste
Europeu (e da quase totalidade dos países que tentaram uma transição socialista,
com a ex-União Soviética à frente), propagando-se, no interior do mundo do
trabalho, a falsa idéia do “fim do socialismo”. 
Embora a longo prazo as conseqüências do fim do Leste europeu sejam
eivadas de positividades (pois coloca-se a possibilidade da retomada, em bases
inteiramente novas, de um projeto socialista de novo tipo, que recuse entre outros
pontos nefastos, a tese staliniana do “socialismo num só país” e recupere
elementos centrais da formulação de Marx), no plano mais imediato houve, em
significativos contingentes da classe trabalhadora e do movimento operário, a
aceitação e mesmo assimilação da nefasta e equivocada tese do “fim do
socialismo” e, como dizem os defensores da ordem, do fim do marxismo.
39
Ricardo Antunes
A Cidadania Negada
Como consequência do fim do chamado “bloco socialista”, os países
capitalistas centrais vêm rebaixando brutalmente os direitos e as conquistas
sociais dos trabalhadores, dada a “inexistência”, segundo o capital, do perigo
socialista hoje. Portanto, o desmoronamento da União Soviética e do Leste
europeu, ao final dos anos 80, teve enorme impacto no movimento operário.
Bastaria somente lembrar a crise que se abateu nos partidos comunistas
tradicionais, e no sindicalismo a eles vinculado.
Um terceiro elemento fundamental para a compreensão da crise do mundo do
trabalho refere-se ao desmoronamento da esquerda tradicional da era stalinista.
Ocorreu um agudo processo político e ideológico de socialdemocratização da
esquerda e a sua conseqüente atuação subordinada à ordem do capital. Esta opção
s o c i a l d e m o c r á t i c a atingiu fortemente a esquerda sindical e partidária,
repercutindo, conseqüentemente, no interior da classe trabalhadora. Ela atingiu
também fortemente o sindicalismo de esquerda, que passou a recorrer, cada vez
mais frequentemente, à institucionalidade e a burocratização, que também
caracterizam a socialdemocracia sindical.
É preciso acrescentar ainda - e este é o quarto elemento central da crise atual
- que, com a enorme expansão do neoliberalismo a partir de fins de 70 e a
consequente crise do welfare state, deu-se um processo de regressão da própria
socialdemocracia, que passou a atuar de maneira muito próxima da agenda
neoliberal. O Neoliberalismo passou a ditar o ideário e o programa a serem
implementados pelos países capitalistas, inicialmente no centro e logo depois nos
países subord i n a d o s, contemplando reestruturação produtiva, privatização
acelerada, enxugamento do estado, políticas fiscais e monetárias, sintonizadas
com os organismos mundiais de hegemonia do capital como Fundo Monetário
Internacional.
A desmontagem dos direitos sociais dos trabalhadores, o combate cerrado aos
sindicalismo classista, a propagação de um subjetivismo e de um individualismo
exacerbados da qual a cultura “pós-moderna”, bem como uma clara animosidade
contra qualquer proposta socialista contrária aos valores e interesses do capital, são
traços marcantes deste período recente (Harvey, 1992; McIlroy, 1997; Beynon, 1995).
Vê-se que se trata de uma processualidade complexa que podemos assim
resumir: 
1) há uma crise estrutural do capital ou um efeito depressivo profundo que
acentuam seus traços destrutivos;
2) deu-se o fim do Leste Europeu, onde parcelas importantes da esquerda se
socialdemocratizaram;
3 ) esse processo efetivou-se num momento em que a própria
socialdemocracia sofria um forte crise;
40
4) expandia-se fortemente o projeto econômico, social e político neoliberal.
Tudo isso acabou por afetar fortemente o mundo do trabalho, em várias
dimensões.
Vamos indicar a seguir as tendências mais significativas que vêm ocorrendo
no interior do mundo do trabalho.
III
Como resposta do capital à sua crise estrutural, várias mutações vêm
ocorrendo e que são fundamentais nesta viragem do século XX para o século
XXI. Uma delas, e que tem importância central, diz respeito às metamorfoses no
processo de produção docapital e suas repercussões no processo de trabalho. 
Particularmente nos últimos anos, como respostas do capital à crise dos anos
70, intensificaram-se as transformações no próprio processo produtivo, através do
avanço tecnológico, da constituição das formas de acumulação flexível e dos
modelos alternativos ao binômio taylorismo/fordismo, onde se destaca, para o
capital, especialmente, o toyotismo. Estas transformações, decorrentes, por um
lado, da própria concorrência inter-capitalista e, por outro, dada pela necessidade
de controlar o movimento operário e a luta de classes, acabaram por afetar
fortemente a classe trabalhadora e o seu movimento sindical e operário (Murray,
1983; Bihr, 1998).
Fundamentalmente, essa forma de produção flexibilizada busca a adesão de
fundo, por parte dos trabalhadores, que devem aceitar integralmente o projeto do
capital. Procura-se uma forma daquilo que chamei, em Adeus ao Trabalho?, de
envolvimento manipulatório levado ao limite, onde o capital busca o
consentimento e a adesão dos trabalhadores, no interior das empresas, para
viabilizar um projeto que é aquele desenhado e concebido segundo os
fundamentos exclusivos do capital. 
Em seus traços mais gerais, o toyotismo (via particular de consolidação do
capitalismo monopolísta do Japão do pós-45) pode ser entendido como uma
forma de organização do trabalho que nasce a partir da fábrica Toyota, no Japão
e que vem se expandindo pelo Ocidente capitalista, tanto nos países avançados
quanto naqueles que se encontram subordinados. Suas características básicas (em
contraposição ao taylorismo/fordismo) são: 
1) sua produção muito vinculada à demanda;
2) ela é variada e bastante heterogênea;
3) fundamenta-se no trabalho operário em equipe, com multivariedade de
funções; 
41
Ricardo Antunes
A Cidadania Negada
4) tem como princípio o just in time, o melhor aproveitamento possível do
tempo de produção e funciona segundo o sistema de kanban, placas ou
senhas de comando para reposição de peças e de estoque que, no Toyotismo,
devem ser mínimos. Enquanto na fábrica fordista cerca de 75% era produzido
no seu interior, na fábrica toyotista somente cerca de 25% é produzido no seu
interior. Ela horizontaliza o processo produtivo e transfere à “terceiros”
grande parte do que anteriormente era produzido dentro dela5.
A falácia de “qualidade total” passa a ter papel de relevo no processo
produtivo. Os Círculos de Controle de Qualidade (CCQ) proliferaram,
constituindo-se como grupos de trabalhadores que são incentivados pelo capital
para discutir o trabalho e desempenho, com vistas a melhorar a produtividade da
empresa. Em verdade, é a nova forma de apropriação do saber fazer intelectual
do trabalho pelo capital. 
O despotismo torna-se então mesclado com a manipulação do trabalho, com
o “envolvimento” dos trabalhadores, através de um processo ainda mais
profundo de interiorização do trabalho alienado (estranhado). O operário deve
pensar e fazer pelo e para o capital, o que aprofunda (ao invés de abrandar) a
subordinação do trabalho ao capital. No Ocidente, os CCQs têm variado quanto
à sua implementação, dependendo das especificidades e singularidades dos países
em que eles são implementados. 
Esta forma flexibilizada de acumulação capitalista, baseada na reengenharia,
na empresa enxuta, para lembrar algumas expressões do novo dicionário do
capital, teve consequências enormes no mundo do trabalho. Podemos aqui tão
somente indicar as mais importantes: 
1)há uma crescente redução do proletariado fabril estável, que se
desenvolveu na vigência do binômio taylorismo/fordismo e que vem
diminuindo com a reestruturação, flexibilização e desconcrentração do
espaço físico produtivo, típico da fase do toyotismo;
2) há um enorme incremento do novo proletariado, do subproletariado fabril e
de serviços, o que tem sido denominado mundialmente de trabalho precarizado.
São os “terceirizados”, subcontratados, “part-time”, entre tantas outras formas
assemelhadas, que se expandem em inúmeras partes do mundo. Inicialmente,
estes postos de trabalho foram preenchidos pelos imigrantes, como os
g a s t a r b e i t e r s na Alemanha, o l a v o ro nero na Itália, os c h i c a n o s nos EUA, os
d e k a s e g u i s no Japão etc. Mas hoje, sua expansão atinge também os
trabalhadores especializados e remanescentes da era taylorista-fordista;
3) vivencia-se um aumento significativo do trabalho feminino, qua atinge
mais de 40% da força de trabalho nos países avançados, e que tem sido
preferencialmente absorvido pelo capital no universo do trabalho precarizado
e desregulamentado;
42
4) há um incremento dos assalariados médios e de serviços, o que
possibilitou um significativo incremento no sindicalismo destes setores,
ainda que o setor de serviços já presencie também níveis de desemprego
acentuado;
5) há exclusão dos jovens e dos idosos do mercado de trabalho dos países
centrais: os primeiros acabam muitas vezes engrossando as fileiras de
movimentos neonazistas e aqueles com cerca de 40 anos ou mais, quando
desempregados e excluídos do trabalho, dificilmente conseguem o reingresso
no mercado de trabalho;
6) há uma inclusão precoce e criminosa de crianças no mercado de trabalho,
particularmente nos países de industrialização intermediária e subordinada,
como nos países asiáticos, latino-americanos etc.
7) há uma expansão do que Marx chamou de trabalho social combinado
(Marx, 1978), onde trabalhadores de diversas partes do mundo participam do
processo de produção e de serviços. O que, é evidente, não caminha no
sentido da eliminação da classe trabalhadora, mas da sua precarização e
utilização de maneira ainda mais intensificada. Em outras palavras:
aumentam os níveis de exploração do trabalho.
Portanto, a classe trabalhadora f r a g m e n t o u - s e , h e t e rogeneizou-se e
complexificou-se ainda mais (Antunes, 1998). Tornou-se mais qualificada em
vários setores, como na siderurgia, onde houve uma relativa intelectualização do
trabalho, mas desqualificou-se e precarizou-se em diversos ramos, como na
indústria automobilística, onde o ferramenteiro não tem mais a mesma
importância, sem falar na redução dos inspetores de qualidade, dos gráficos, dos
mineiros, dos portuários, dos trabalhadores da construção naval etc. 
Criou-se, de um lado, em escala minoritária, o trabalhador “polivalente e
multifuncional” da era informacional, capaz de operar com máquinas com
controle numérico e de, por vezes, exercitar com mais intensidade sua dimensão
mais intelectual. E, de outro lado, há uma massa de trabalhadores precarizadados,
sem qualificação, que hoje está presenciando as formas de part-time, emprego
temporário, parcial, ou então vivenciando o desemprego estrutural. 
Estas mutações criaram, portanto, uma classe trabalhadora mais heterogênea,
mais fragmentada e mais complexificada, dividida entre trabalhadores
qualificados e desqualificados, do mercado formal e informal, jovens e velhos,
homens e mulheres, estáveis e precários, imigrantes e nacionais, brancos e negros
etc, sem falar nas divisões que decorrem da inserção diferenciada dos países e de
seus trabalhadores na nova divisão internacional do trabalho.
Ao contrário, entretanto, daqueles que defendem o “fim do papel central da
classe trabalhadora” no mundo atual, o desafio maior da classe-que-vive-do-
43
Ricardo Antunes
A Cidadania Negada
trabalho, nesta viragem do século XX para o XXI, é soldar os laços de
p e rtencimento de classe existentes entre os diversos segmentos que
compreendem o mundo do trabalho. E, desse modo, procurando articular desde
aqueles segmentos que exercem um papel central no processo de criação de
valores de troca, até aqueles segmentos que estão mais à margem do processo
produtivo, mas que, pelas condições precárias em que se encontram, constituem-
se em contingentes sociais potencialmente rebeldes frente ao capital e suas
formas de (des)sociabilização (Bihr: 1998). 
A lógica societal, em seus traços dominantes, é dotada, portanto, de uma
aguda destrutividade, queno fundo é a expressão mais profunda da crise que
assola a (des)sociabilização contemporânea, condição para a manutenção do
sistema de metabolismo social do capital, conforme expressão de Mészáros
(1995) e seu circuito reprodutivo. 
Neste sentido, desregulamentação, flexibilização, terceirização, downsizing,
“empresa enxuta”, bem como todo esse receituário que se esparrama pelo
“mundo empresarial”, são expressões de uma lógica societal onde tem-se a
prevalência do capital sobre a força humana de trabalho, que é considerada
somente na exata medida em que é imprescindível para a reprodução deste
mesmo capital. Isso porque o capital pode diminuir o trabalho vivo, mas não
e l i m i n á - l o. Pode intensificar sua utilização, pode precarizá-lo e mesmo
desempregar parcelas imensas, mas não pode extinguí-lo.
Estas consequências no interior do mundo do trabalho evidenciam que, sob o
capitalismo, não se constata o fim do trabalho como medida de valor, mas uma
mudança qualitativa, dada, por um lado, pelo peso crescente da sua dimensão
mais qualificada, do trabalho multifuncional, do operário apto a operar com
máquinas informatizadas, da objetivação de atividades cerebrais (Lojkine,
1995). Por outro lado, pela intensificação levada ao limite das formas de
exploração do trabalho, presentes e em expansão no novo proletariado, no
subproletariado industrial e de serviços, no enorme leque de trabalhadores que
são explorados crescentemente pelo capital, não só nos países subordinados, mas
no próprio coração do sistema capitalista. 
Tem-se, portanto, cada vez mais uma crescente capacidade de trabalho
socialmente combinada, que se converte no agente real do processo de trabalho
total, o que torna, segundo Marx, absolutamente indiferente o fato de que a
função de um ou outro trabalhador seja mais próxima ou mais distante do
trabalho manual direto (Marx, 1978). E, ao invés do fim do valor-trabalho, pode-
se constatar uma inter-relação acentuada das formas de extração de mais valia
relativa e absoluta, que se realiza em escala ampliada e mundializada.
Estes elementos - aqui somente indicados em suas tendências mais genéricas -
não possibilitam conferir estatuto de validade às teses sobre o fim do trabalho sob o
44
modo de produção capitalista. O que se evidencia ainda mais quando se constata
que a maior parte da força de trabalho encontra-se dentro dos países do chamado
Terceiro Mundo, onde as tendências anteriormente apontadas tem inclusive um
ritmo bastante p a rt i c u l a r i z a d o e d i f e re n c i a d o. Restringir-se à Alemanha ou à
França e, a partir daí, fazer g e n e r a l i z a ç õ e s e u n i v e r s a l i z a ç õ e s sobre o fim do
t r a b a l h o ou da classe trabalhadora , desconsiderando o que se passa em países
como Índia, China, Brasil, México, Coréia do Sul, Rússia, A rgentina etc, para
não falar do Japão, configura-se como um equívoco de grande significado. Va l e
acrescentar que a tese do fim da classe trabalhadora, mesmo quando restrita aos
países centrais é, em nossa opinião, desprovida de fundamentação, tanto empírica
quanto analítica. Uma noção a m p l i a d a de trabalho, que leve em conta seu caráter
multifacetado, é forte exemplo desta evidência. 
Isso sem mencionar que a eliminação do trabalho e a generalização desta
tendência sob o capitalismo contemporâneo - nele incluído o enorme
contingente de trabalhadores do Terceiro Mundo - suporia a destruição da
própria economia de mercado, pela incapacidade de integralização do processo
de acumulação de capital, uma vez que os robôs não poderiam participar do
mercado como consumidores. 
A simples sobrevivência da economia capitalista estaria comprometida,
sem falar em tantas outras consequências sociais e políticas explosivas que
adviriam desta situação. Tudo isso evidencia que é um equívoco pensar na
desaparição ou fim do trabalho enquanto perdurar a sociedade capitalista
produtora de mercadorias e — o que é fundamental — também não é possível
perspectivar nenhuma possibilidade de eliminação da classe-que-vive-do-
t r a b a l h o, enquanto forem vigentes os pilares constitutivos do modo de
produção do capital6.
Tal investigação assume especial importância especialmente pela forma pela
qual estas transformações vêm afetando o movimento social e político dos
t r a b a l h a d o re s (nele incluído o movimento sindical), particularmente em países
que se diferenciam dos países capitalistas centrais, como é o caso do Brasil, onde
há traços particulares bastante diferenciados da crise vivenciada nos países
centrais. Se estas transformações são eivadas de significados e consequências
para a classe trabalhadora e seus movimentos sociais, sindicais e políticos, nos
países capitalistas avançados, também o são em países i n t e r m e d i á r i o s e
s u b o rd i n a d o s, porém dotados de relevante p o rte industrial, como o Brasil. 
O ententimento abrangente e totalizante da crise que atinge o mundo do
trabalho passa, portanto, por este conjunto de problemas que incidiram
diretamente no movimento operário, na medida que são complexos que
afetaram tanto a economia política do capital, quando as suas esferas política e
ideológia.
45
Ricardo Antunes
A Cidadania Negada
Claro que esta crise é particularizada e singularizada pela forma pela qual
estas mudanças econômicas, sociais, políticas e ideológicas afetaram mais ou
menos direta e intensamente os diversos países que fazem parte dessa
mundialização do capital que é, como se sabe, desigualmente combinada . Para
uma análise detalhada do que se passa no mundo do trabalho, o desafio é buscar
essa totalização analítica que articulará elementos mais gerais deste quadro, com
aspectos da singularidade de cada um destes países. Mas é decisivo perceber que
há um conjunto abrangente de metamorfoses e mutações que vem afetado a classe
trabalhadora, nesta fase de transformações no mundo produtivo dentro de um
universo onde predominam elementos do neoliberalismo.
46
Bibliografia
Amin, Ash (ed.) (1996) Post-Fordism a Reader (Oxford: Blackwell).
Antunes, Ricardo (1998) Adeus ao Trabalho? Ensaio sobre as Metamorfoses
e a Centralidade do Mundo do Trabalho (São Paulo: Cortez).
Beynon, Huw (1995) “The Changing Practices of Work”, em International
Centre for Labour Studies (Manchester).
Bihr, Alain (1998) Da Grande Noite À Alternativa (O Movimento Operário
Europeu em Crise) (São Paulo: Boitempo).
Chesnais, François (1996) A Mundialização do Capital (São Paulo: Xãma).
Gounet, Thomas (1991) “Luttes Concurrentielles et Stratégies D’accumulation
dans L’industrie Automobile”, em Etudes Marxistes (Bruxelas) Nº 10.
Gounet, Thomas (1992) “Penser à L’envers. Le Capitalisme, Dossier
Toyotisme”, em Etudes Marxistes (Bruxelas) Nº 14.
Harvey, David (1992) A Condição Pós-Moderna (São Paulo: Loyola).
Kurz, Robert (1992) O Colapso da Modernização (Da Derrocada do
Socialismo de Caserna à Crise da Economia Mundial) (São Paulo: Paz e
Terra).
Lojkine, Jean (1995) A Revolução Informacional (São Paulo: Cortez).
Marx, Karl (1978) Capítulo VI (Inédito) (São Paulo: Ciências Humanas).
Mészáros, István (1995) Beyond Capital - Towards a Theory of Transition
(Londres: Merlin Press).
Mcilroy, John (1997) “Trade Unions in Retreat – Britain Since 1979”, em
International Centre for labour Studies (Manchester).
Murray, Fergus (1983) “The Descentralisation of Production- The Decline of
the Mass-Collective Worker?”, em Capital & Class (Londres) Nº 19.
Notas
1 Dados extraídos de “Time for a Global New Deal”, em Foreign Affairs
(Londres) jan/fev/1994, Vol. 73, n. 1, pág. 8.
2 Entendemos o taylorismo e o fordismo como o padrão produtivo capitalista
desenvolvido ao longo do século XX e que se fundamentou basicamente na
produção em massa, em unidades produtivas concentradas e verticalizadas,
com um controle rígido dos tempos e dos movimentos, desenvolvidos por um
proletariado coletivo e de massa, sob forte despotismo e controle fabril.
47
Ricardo Antunes
A Cidadania Negada
3 O toyotismo expressa a formaparticular de expansão do capitalismo
monopolista do Japão no Pós-45, cujos traços principais serão desenvolvidos
adiante.
4 Ver também Chesnais (1996) e Kurz (1992).
5 Ver especialmente Gounet (1991; 1992) e a coletânea organizada por Amin
(1996).
6 Utilizamos a expressão classe-que-vive-do-trabalho como sinônimo de
classe trabalhadora. Ao contrário de autores que defendem o fim do trabalho
e o fim da classe trabalhadora, está expressão pretende enfatizar o sentido
contemporâneo da classe trabalhadora (e do trabalho). Ela compreende: 1)
todos aqueles que vendem sua força de trabalho, incluindo tanto o trabalho
produtivo quanto o improdutivo (no sentido dado por Marx); 2) inclui os
assalariados do setor de serviços e também o proletariado rural; 3) inclui
proletariado precarizado, sem direitos e também os trabalhadores
desempregados, que compreendem o exército industrial de reserva; 4) e exclui,
naturalmente, os gestores e altos funcionários do capital, que recebem
rendimentos elevados ou vivem de juros. Essa expressão incorpora
integralmente a idéia marxiana do trabalho social combinado, tal como
aparece no Capítulo VI (Inédito), à qual nos referimos anteriormente (Marx,
1978)
48
 
 
 
 
 CARTA DE APRESENTAÇÃO PARA ESTÁGIO OBRIGATÓRIO 
 
Teresópolis, 22 de agosto de 2025.
Prezado(a) Sr.(a) Diretor(a) da Escola Parceira Escola Grandini
Prof. (a) Maria do Rosário Grandini Carneiro
Assunto: Estágio em Educação Fundamental
 
Apresentamos o(a) aluno(a) Vanessa De Souza Gomes, matrícula 23212080311, do Curso de
Licenciatura em Pedagogia, regularmente matriculado na Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, modalidade semipresencial, por meio do Consórcio CEDERJ, no Polo de Teresópolis. 
Acreditamos que esta parceria venha contribuir para o alcance de nossos objetivos, tendo em vista que
podemos, a partir dessa disciplina e atividades, oportunizar uma formação de professores mais
preparados política e tecnicamente para enfrentar os desafios do cotidiano escolar.
Para tanto, solicitamos a indicação de um docente do Quadro Funcional para orientá-lo(a) nas
atividades abaixo sugeridas, tornando-se mediador entre esta Instituição e Faculdade de
Educação/Coordenação do componente curricular/UERJ.
Visitas: reconhecimento do espaço escolar a partir de suas dimensões e estrutura;
Entrevistas: com a Direção; Equipe Técnico-pedagógica; Professores regentes; alunos e
responsáveis por setores da Instituição, como por exemplo, Biblioteca etc
Observações dirigidas: participação em Reuniões de planejamento; Conselhos de Classe;
Centros de estudos; Projetos relacionados à comunidade escolar, dentre outras atividades que
a Instituição entender como de interesse da formação de professores.
Docência compartilhada: atividades de docência compartilhadas com o professor regente da
Pág. 1/2
turma campo de estágio.
Gestão compartilhada: atividades de gestão compartilhadas com diretores, coordenadores,
supervisores e orientadores educacionais.Vale ressaltar que a carga horária estabelecida para
esta etapa do estágio é de, no mínimo , 60 horas durante o período letivo em curso.
Cabe ainda lembrar, que o aluno está cadastrado em ficha própria para esse fim no componente
curricular da EDU/UERJ. O aluno terá também, instrumentos específicos de acompanhamento e
supervisão do desenvolvimento do estágio, expedidos pela Coordenação do Estágio.
O estágio, conforme determina o art. 3º da Lei nº 11.788/08, não cria vínculo empregatício de qualquer
natureza.
Na certeza de que a melhoria da qualidade do ensino e da profissão de professor passam nos
diferentes níveis, pelo envolvimento e estreitamento das relações entre seus profissionais e pelo
compromisso que assumem perante a sociedade, a Faculdade de Educação da UERJ, através da sua
Direção, Coordenação do Curso e de Estágio Supervisionado e Equipe de professores agradecem,
antecipadamente, a cooperação desta instituição.
Número da Apólice: 06.0982.57846.001
Nome da Seguradora: MBM Seguradora S.A.
Data de Vigência: 31/07/2026 
 
Atenciosamente,
 Fabrine Mendes Da Silva
 __________________________________________________
 Diretor(a) do Polo/CEDERJ 
 
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http://www.tcpdf.org
Uberização do trabalho: subsunção real da viração1 
O Uber torna evidente a tendência de transformação do trabalhador em 
microempreendedor e em trabalhador amador produtivo. 
 
 Ludmila Costhek Abílio2 
 
1. Entre salões e apps 
Em outubro de 2016, o governo de Michel Temer sancionou uma lei que 
passou desapercebida nos embates sobre as terceirizações. A lei “Salão parceiro 
– profissional parceiro” desobriga proprietários de salões de beleza a 
reconhecerem o vínculo empregatício de manicures, depiladora(e)s, 
cabelereira(o)s, barbeiros, maquiadora(e)s e esteticistas. O estabelecimento 
torna-se responsável por prover a infraestrutura necessária – os demais 
trabalhadores seguem sendo reconhecidos como funcionários – para que suas 
“parceiras” e “parceiros”, agora legalmente autônomos, realizem seu trabalho. 
Assim, aquela manicure que trabalha oito horas por dia ou mais, seis vezes por 
semana, para o mesmo salão, poderá ser uma prestadora de serviços. 
Talvez por referir-se ao trabalho tipicamente feminino, aparentemente 
irrelevante e socialmente invisível, a lei foi recebida mais como perfumaria do 
que como a abertura legal da porteira para a uberização do trabalho no Brasil1. 
A uberização, tal como será tratada aqui, refere-se a um novo estágio da 
exploração do trabalho, que traz mudanças qualitativas ao estatuto do 
trabalhador, à configuração das empresas, assim como às formas de controle, 
gerenciamento e expropriação do trabalho. Trata-se de um novo passo nas 
terceirizações, que, entretanto, ao mesmo tempo que se complementa também 
pode concorrer com o modelo anterior das redes de subcontratações compostas 
 
1 Artigo publicado no Blog Boitempo em 22/02/2017. Disponível em: 
https://blogdaboitempo.com.br/2017/02/22/uberizacao-do-trabalho-subsuncao-real-da-viracao/ 
2 Ludmila Costhek Abílio investiga o trabalho de revendedoras de cosméticos da indústria de beleza 
brasileira. O ponto de partida desse estudo inovador é um exército de aproximadamente 1 milhão 
de revendedoras (equivalente à população da cidade de Campinas-SP), responsável pelo sucesso 
comercial de uma das mais importantes e reconhecidas empresas de cosméticos do país, a Natura. 
Ancorada em um rico estudo de campo, a pesquisadora propõe uma abordagem original sobre o 
trabalho informal feminino dentro de um segmento denominado Sistema de Vendas Diretas. 
http://www.boitempoeditorial.com.br/v3/Autores/visualizar/ludmila--costhek-abilio
pelos mais diversos tipos de empresas. A uberização consolida a passagem do 
estatuto de trabalhador para o de um nanoempresário-de-si permanentemente 
disponível ao trabalho; retira-lhe garantias mínimas ao mesmo tempo que 
mantém sua subordinação; ainda, se apropria, de modo administrado e 
produtivo, de uma perda de formas publicamente estabelecidas e reguladas do 
trabalho. Entretanto, essa apropriação e subordinação podem operar sob novas 
lógicas. Podemos entender a uberização como um futuro possível para 
empresas em geral, que se tornam responsáveis por prover a infraestrutura para 
que seus “parceiros” executem seu trabalho; não é difícil imaginar que hospitais, 
universidades, empresas dos mais diversos ramos adotem esse modelo, 
utilizando-se do trabalho de seus “colaboradores just-in-time” de acordo com sua 
necessidade2. Este parece ser um futuro provável e generalizável para o mundo 
do trabalho. Mas, se olharmos para o presente da economia digital, com seus 
motoristas Uber, motofretistas Loggi, trabalhadores executores de tarefas da 
Amazon Mechanical Turk,já podemos ver o modelo funcionando em ato, assim 
como compreender que não se trata apenas de eliminação de vínculo 
empregatício: a empresa Uber deu visibilidade a um novo passo na subsunção 
real do trabalho, que atravessa o mercado de trabalho em uma dimensão global, 
envolvendo atualmente milhões de trabalhadores pelo mundo e que tem 
possibilidades de generalizar-se pelas relações de trabalho em diversos setores. 
A uberização, portanto, não surge com o universo da economia digital: 
suas bases estão em formação há décadas no mundo do trabalho, mas hoje se 
materializam nesse campo. As atuais empresas promotoras da uberização – aqui 
serão tratadas como empresas-aplicativo – desenvolvem mecanismos de 
transferência de riscos e custos não mais para outras empresas a elas 
subordinadas, mas para uma multidão de trabalhadores autônomos engajados 
e disponíveis para o trabalho. Na prática, tal transferência é gerenciada por 
softwares e plataformas online de propriedade dessas empresas, os quais 
conectam usuários trabalhadores a usuários consumidores e ditam e 
administram as regras (incluídos aí custos e ganhos) dessa conexão. 
O fato é que as empresas-aplicativo têm pouca materialidade, mas 
altíssima visibilidade. A empresa Uber tem tamanha atuação pelo mundo que 
torna hoje cabível utilizarmos o termo em questão. A fonte da fetichizada “força 
da marca” neste caso se refere à multidão de trabalhadores e consumidores que 
a empresa consegue mobilizar pelo mundo (apenas na cidade de São Paulo, 
sabe-se que os motoristas já são mais numerosos que os taxistas. Ultrapassam 
os 50 mil; entretanto, a empresa não divulga seus dados). A atuação do Uber 
tocou em questões centrais do desenvolvimento capitalista, como a mobilidade 
urbana e as legislações em torno da economia digital. Tornou-se tema de 
campanhas e debates eleitorais, no terreno arenoso da permeabilidade entre 
empresas e Estado, que envolve interesses dos consumidores-eleitores, 
conflitos dos trabalhadores e embates de titãs sobre o tal “livre” mercado. Porém, 
mais do que isso, o Uber tornou evidente tendências mundiais do mercado de 
trabalho, que envolvem não só a transformação do trabalhador em 
microempreendedor, mas também do trabalhador em trabalhador 
amador3 produtivo, questão que desenvolvo ao longo da análise. 
As empresas-aplicativo firmam-se no mercado como mediadoras entre 
consumidores e trabalhadores-microempreendedores, provendo a infraestrutura 
necessária – ainda que virtual – para que esse encontro aconteça. Para tanto, 
assim como a proprietária que receberá a comissão pelo trabalho da manicure, 
o Uber recebe uma porcentagem (de 25%) por atuar como mediador entre a 
multidão de consumidores-poupadores e a multidão de motoristas amadores. 
Obviamente, sua atuação é muito mais complexa que isso. Assim como a 
“parceira” manicure não está em relação de igualdade com o proprietário ou a 
proprietária do salão para definir seus ganhos, a intensidade de seu trabalho, a 
extensão de sua jornada, o trabalhador uberizado também tem seu trabalho 
subsumido. Entretanto, as formas de controle, gerenciamento, vigilância e 
expropriação de seu trabalho são ao mesmo tempo evidentes e pouco tangíveis: 
afinal, o estatuto do motorista é de um trabalhador autônomo, a empresa não é 
sua contratante, ele não é um empregado, mas um cadastrado que trabalha de 
acordo com suas próprias determinações; ao mesmo tempo, o que gerencia seu 
trabalho é um software instalado num smartphone: mesmo definindo as regras 
do jogo, a empresa aparece mais como uma marca do que de fato como uma 
empresa. Mas o discurso sobre a “parceria” entre empresas-aplicativo e 
trabalhadores, assim como a imaterialidade destas, rapidamente se esfumaçam 
quando trabalhadores uberizados se apropriam de seu poder enquanto multidão 
http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,total-de-carros-da-uber-e-outros-aplicativos-supera-numero-de-taxistas-em-sp-diz-doria,70001653256
http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,total-de-carros-da-uber-e-outros-aplicativos-supera-numero-de-taxistas-em-sp-diz-doria,70001653256
http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,total-de-carros-da-uber-e-outros-aplicativos-supera-numero-de-taxistas-em-sp-diz-doria,70001653256
e estabelecem formas coletivas de resistência e de negociação. Nesse momento 
as formas de controle, expropriação e opressão ficam explícitas. 
Já estão em ato novas formas de organização política, que envolvem a 
criação de sindicatos de aplicativos, greves e manifestações de trabalhadores 
uberizados. Em 2016 ocorreu uma série de manifestações, greves, processos 
judiciais, formação de sindicatos de trabalhadores de aplicativos pelo 
mundo. Motoristas Uber americanos (atualmente mais de 400 mil) juntaram-se a 
enfermeiras, trabalhadores do setor hoteleiro, entre outros, na campanha “Fight 
for US$15”, que demandava o pagamento mínimo de quinze dólares por hora de 
trabalho. Na Califórnia, a empresa Uber optou por pagar US$100 milhões em 
acordo com dezenas de milhares de trabalhadores (não há dados claros sobre 
esse número) que acionaram coletivamente a justiça, requerendo 
reconhecimento legal do vínculo empregatício com a empresa. O acordo evitou 
que o processo fosse a julgamento (ver aqui e aqui). No final do ano, a justiça 
inglesa determinou que a Uber reconhecesse o vínculo empregatício com seus 
motoristas; o processo ainda está em andamento. 
Os motoboys que trabalham para o aplicativo Loggi também organizaram, 
sob coordenação do SindimotoSP, manifestação que interrompeu faixas da 
Marginal Pinheiros e da Av. Rebouças, contra a nova forma de remuneração por 
entrega implementada pela empresa, que em realidade aumenta sua 
porcentagem de ganhos sobre o trabalho dos motofretistas. Os ciclistas-
entregadores da empresa Foodora organizaram as primeiras greves de 
trabalhadores por aplicativos na Itália, as quais evidenciaram novas formas de 
punição (como o desligamento do aplicativo de lideranças), assim como de apoio 
(as manifestações começaram a contar com a adesão de usuários 
consumidores). Motociclistas do aplicativo Deliveroo, após sete dias de greve, 
conseguiram impedir mudanças que rebaixariam o valor de sua hora de trabalho. 
Também foram criados em 2016 o Sindicato dos Motoristas de Aplicativo de São 
Paulo, a Associação dos Motoristas Autônomos por Aplicativos e Sindicato dos 
Motoristas de Transporte Privado Individual de Passageiros do Estado do 
Pernambuco. No início de 2017, a Uber acionou a justiça da Califórnia, tentando 
impedir a formação de sindicatos. 
 
https://www.tecmundo.com.br/uber/112162-motoristas-uber-entram-greve-eua-em-luta-remuneracao-melhor.htm
https://www.tecmundo.com.br/uber/112162-motoristas-uber-entram-greve-eua-em-luta-remuneracao-melhor.htm
http://money.cnn.com/2016/04/22/technology/uber-drivers-labor-settlement/
http://exame.abril.com.br/negocios/uber-paga-ate-us-100-mi-para-encerrar-processo-de-motoristas/
http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2016/10/justica-do-reino-unido-decide-que-motoristas-sao-empregados-do-uber.html
http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2016/10/justica-do-reino-unido-decide-que-motoristas-sao-empregados-do-uber.html
http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2016/10/justica-do-reino-unido-decide-que-motoristas-sao-empregados-do-uber.html
http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/11/motofretistas-protestam-em-vias-de-sp-contra-cortes-em-servico-de-entrega.html
http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/11/motofretistas-protestam-em-vias-de-sp-contra-cortes-em-servico-de-entrega.html
http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/11/motofretistas-protestam-em-vias-de-sp-contra-cortes-em-servico-de-entrega.html
http://passapalavra.info/2016/12/110141
http://passapalavra.info/2016/12/110141
http://passapalavra.info/2016/12/110141
https://www.theguardian.com/business/2016/aug/11/deliveroo-drivers-protest-london-changes-pay-structure
https://www.theguardian.com/business/2016/aug/11/deliveroo-drivers-protest-london-changes-pay-structurehttp://g1.globo.com/tecnologia/noticia/por-que-a-uber-quer-impedir-motoristas-de-criar-sindicatos-nos-eua.ghtml
http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/por-que-a-uber-quer-impedir-motoristas-de-criar-sindicatos-nos-eua.ghtml
2. O trabalhador-perfil e o consumidor-vigilante 
Basicamente, a empresa Uber promove a conexão entre uma multidão de 
motoristas amadores pagos e uma multidão de usuários em busca de tarifas 
reduzidas em relação aos táxis; em algumas cidades se estabelece como uma 
opção economicamente acessível, menos degradante e mais veloz que o 
transporte público. Entrando de forma totalmente predatória e com poucas 
regulamentações, rapidamente a empresa reconfigura o mercado privado da 
mobilidade urbana. Tem uma estratégia agressiva de entrada nos mercados 
locais; em muitas cidades o Uber é ilegal, mas segue operando normalmente. 
Para tanto, conta com uma multidão de usuários e recruta – na passiva (melhor 
seria, conta com a adesão permanente de) – uma multidão de motoristas 
amadores, que encontram nessa atividade uma forma de geração de renda. 
O Uber, assim como outras empresas que operam com a mesma lógica, 
estabelece regras, critérios de avaliação, métodos de vigilância sobre o 
trabalhador e seu trabalho, ao mesmo tempo que se exime de responsabilidades 
e de exigências que poderiam configurar um vínculo empregatício. Consumo, 
avaliação, coleta de dados e vigilância são elementos inseparáveis. Em 
realidade, o controle sobre o trabalho é transferido para a multidão de 
consumidores, que avaliam os profissionais a cada serviço demandado. Essa 
avaliação fica visível para cada usuário que for acessar o serviço com aquele 
trabalhador. A certificação sobre o trabalho vem agora da esfera do consumo, 
por meio dessa espécie de gerente coletivo que fiscaliza permanentemente o 
trabalhador. A multidão vigilante, na forma multidão, é então quem garante de 
forma dispersa a certificação sobre o trabalho. A confiança, elemento chave para 
que o consumidor entregue seus bens e documentos nas mãos do motoboy, para 
que adentre o carro de um desconhecido que será seu motorista (e que, 
diferentemente do taxista, não passou por um processo de certificação 
publicamente regulamentada), é então garantida pela atividade dessa multidão 
vigilante, que se engaja e também confia no seu papel certificador. Assim o 
trabalhador uberizado se sabe permanentemente vigiado e avaliado. Essa nova 
forma de controle tem se mostrado eficaz na manutenção de sua produtividade, 
na sua adequação aos procedimentos – informalmente estabelecidos – que 
envolvem sua ocupação. Ao adequar-se o trabalhador trabalha para si e para a 
empresa, para si e para o cultivo da marca, que em realidade depende 
inteiramente da atuação dispersa desse exército de motoristas. 
A realização do trabalho conta com a disposição do trabalhador em aceitar a 
tarefa oferecida – o que quer dizer um permanente gerenciamento de sua própria 
produtividade –, mas essa aceitação requer vencer a concorrência entre os 
motoristas disponíveis. A avaliação da multidão de consumidores fornece os 
elementos para o ranqueamento dos trabalhadores. Este opera como um critério 
na determinação – programada, automatizada – de quais trabalhadores terão 
mais acesso a quais corridas. 
Trabalhadores e consumidores tornam-se perfis virtuais, números de um 
cadastro. A atividade de ambos é material e tangível, é ela a fonte que alimenta 
o controle sobre o trabalho, sua organização e distribuição no tempo e no 
espaço, que, no entanto, são programados e executados pelos softwares e seus 
algoritmos. 
Ser um trabalhador-perfil em um cadastro da multidão significa na prática ser 
um trabalhador por conta própria, que assume os riscos e custos de seu trabalho, 
que define sua própria jornada, que decide sobre sua dedicação ao trabalho e, 
também, que cria estratégias para lidar com uma concorrência de dimensões 
gigantescas que paira permanentemente sobre sua cabeça4. 
A uberização, portanto, consolida a passagem do trabalhador para o 
microempreendedor. Essa consolidação envolve novas lógicas que contam, por 
um lado, com a terceirização da execução do controle sobre o trabalho das 
empresas para uma multidão de consumidores vigilantes; e, por outro lado, com 
o engajamento da multidão de trabalhadores com relação à sua própria 
produtividade, além da total transferência de custos e riscos da empresa para 
seus “parceiros”. 
 
3. Mais um passo na flexibilização do trabalho 
De saída, o termo flexibilização só tem sentido crítico se o compreendermos 
como mudanças contemporâneas do processo de trabalho ligadas à relação 
entre Estado, capital e trabalho; à relação entre inovações tecnológicas, políticas 
dos Estados nacionais na promoção dos fluxos financeiros e de investimento, 
aumento do desemprego e de novas formas de exploração que também 
envolvem mudanças subjetivas do trabalhador. Refere-se à relação entre a 
mobilidade do capital e a do trabalho em nível global. A flexibilização também 
pode ser compreendida mais simplesmente como as formas contemporâneas de 
eliminação de direitos associados ao trabalho e, ainda mais do que isso, da 
transferência de riscos, custos e trabalho não pago para os trabalhadores. Essa 
transferência envolve a extensão do tempo de trabalho, assim como sua 
intensificação, em formas mais ou menos reconhecíveis. 
Nas últimas décadas ficou claro que também era possível transferir o 
gerenciamento do trabalho para o próprio trabalhador – é óbvio que um 
gerenciamento subordinado, costurado pelas ameaças da concorrência e do 
desemprego. O fato é que a passagem do relógio de ponto para o relógio de 
pulso mostrou-se extremamente eficaz na intensificação do trabalho e na 
extensão do tempo de trabalho. Hoje a jornada de oito horas parece uma 
lembrança distante para trabalhadores das mais diversas qualificações e 
remunerações5. 
O cerne da flexibilização em realidade está nesse movimento que transfere 
para o trabalhador a administração de seu trabalho, dos custos e dos riscos, sem 
com isso perder o controle sobre sua produção. David Harvey ao tratar 
da organização na dispersão, João Bernardo6 ao demonstrar que terceirizar a 
produção não significa perder o controle sobre a mesma são autores que deixam 
evidente que a dispersão do trabalho não significou perda de controle do capital 
ou qualquer tipo de democratização no processo de trabalho. Pelo contrário, o 
que vimos nestas décadas é a enorme centralização do capital acompanhada 
por novas formas de intensificação do trabalho, extensão do tempo de trabalho 
e transferência de riscos e custos para os trabalhadores, em formas cada vez 
mais difíceis de mapear. 
A uberização complementa-se com as terceirizações ao mesmo tempo que 
concorre com elas. Complementa-se na medida em que é mais um passo na 
transferência de custos e responsabilidades sobre a produção. Mas é também 
uma forma de eliminação de empresas terceirizadas que não conseguirão 
bancar a concorrência com as empresas-aplicativo. É o que vemos no segmento 
dos motoboys, hoje legalmente reconhecidos como motofretistas. Nos anos 
1980, o motoboy era diretamente contratado pela empresa, até mesmo a moto 
era de propriedade da contratante e não do trabalhador. A partir dos anos 1990 
empresas terceirizadas de entregas espraiam-se pelo mercado. Hoje são mais 
de 900 mil motoboys no Brasil, na cidade de São Paulo provavelmente mais de 
200 mil. Esse imenso exército de motoqueiros – que dão suas vidas e pernas 
cotidianamente para garantir a circulação de bens de consumo e de documentos 
– foi se expandindo juntamente com a terceirização de seu trabalho. A extensão 
do crédito para os mais pobres permite a aquisição financiada da moto; os 
celulares tornam-se instrumento de trabalho popular, o que reconfigura toda a 
logística e o ritmo de trabalho desses profissionais; a baixa qualificação exigidae a remuneração mais alta que outras ocupações de mesmo nível são elementos 
que contribuem para a consolidação e o espraiamento das empresas 
terceirizadas e de uma ampla oferta de vagas para motoboys. Ao mesmo tempo, 
o crescimento do contingente de trabalhadores e das empresas contratantes 
também está relacionado ao desenvolvimento de São Paulo como metrópole 
colapsada na questão da mobilidade urbana e simultaneamente centro da 
valorização financeira e fundiária. 
Nesse universo bem consolidado de empresas terceirizadas e seu enorme 
exército de trabalhadores, adentram os aplicativos de motofrete. Estão há menos 
de cinco anos no mercado, não há dados precisos, mas já contam com a adesão 
de dezenas de milhares de motofretistas em São Paulo. Para ser um entregador 
da Loggi o motoboy torna-se um microempreendor MEI7 e tem de estar 
regulamentado como motofretista8. Os fundadores da Loggi entraram no 
mercado criando um nicho que não existia até então. Assim como o Uber, o 
aplicativo Loggi conecta consumidores e motoristas (neste caso, motofretistas); 
define o valor da entrega, retendo uma comissão de 20% por essa mediação; 
automatizou a logística, desenvolvendo um software que geolocaliza os 
motofretistas disponíveis e os consumidores. O consumidor faz um pedido, a 
plataforma online torna o pedido visível para os motofretistas mais próximos do 
ponto de partida, quem aceitar primeiro leva. Motofretistas são mapeados antes 
e também ao longo da entrega. O consumidor tem acesso aos dados do 
motofretista – nome, foto, avaliação de outros consumidores – e pode 
acompanhar online seu deslocamento: a vigilância opera como um mecanismo 
central para a confiança do consumidor. Para o motoboy, os aplicativos podem 
ser o meio de livrar-se da exploração da empresa terceirizada (que em geral 
abocanha 40% do valor da entrega realizada) e tornar-se um trabalhador por 
conta própria, o que, por enquanto, pode proporcionar-lhe rendimentos maiores. 
Trabalhar por conta própria requer abrir mão de direitos (caso o motoqueiro seja 
formalizado) e enfrentar a relação permanente entre concorrência e 
rendimentos: quanto mais trabalhadores aderirem aos aplicativos, menor será a 
possibilidade de ganho e provavelmente maior será o tempo de trabalho9. 
Ainda, é possível a articulação e uma retroalimentação entre uberização e 
terceirização clássica. Para muitos, hoje o aplicativo e as terceirizadas se 
combinam: o motofretista preenche com entregas ofertadas no aplicativo os 
poros de não-trabalho na sua jornada para as terceirizadas – uma estratégia que 
requer o saber-fazer de sua própria logística. 
 
4. O admirável mundo doe-marketplace 
Para compreendermos a uberização temos de enfrentar os termos já muito 
familiares ao mercado, mas pouco apropriados pelas armas da crítica (para onde 
mirar?). A economia digital hoje é o novo campo da flexibilização do trabalho, 
enquanto um campo virtual que conecta a atividade de consumidores, 
trabalhadores e empresas, sob formas menos reconhecíveis e localizáveis. 
Atualmente, olhando apenas para o Brasil, motoristas, motofretistas, 
caminhoneiros, esteticistas, operários da construção civil, trabalhadores do setor 
de limpeza, babás, assim como advogados, médicos, professores, entre outros, 
contam com aplicativos que possibilitam a uberização de seu trabalho. O 
mercado de trabalho em geral agora é permeado por um espaço virtual de 
compra e venda de trabalho, conhecido como e-marketplace. Trata-se de um 
universo virtual extremamente propício para a transformação de trabalhadores 
em microemprendedores, assim como de trabalhadores em trabalhadores 
amadores. Como me explica o diretor de uma empresa-aplicativo de motofrete 
em São Paulo, o “e-marketplace é um lugar onde pessoas se encontram para 
fazer compras. Somos um lugar onde pessoas que procuram motofrete 
encontram motofretistas.” 
O e-marketplace tornou-se um universo extremamente profícuo e lucrativo, 
fomentado pelas chamadas startups, que são novos modelos de empresa. 
Loggi, Uber, Google, Facebook são exemplos de startups que deram 
certo. Startup nomeia a combinação contemporânea entre inovação, 
empreendedorismo e um amplo mercado de fundos de investimento (os 
chamados investidores-anjo). São pequenas empresas de alto potencial 
lucrativo; a inovação aqui se refere ao desenvolvimento tecnológico, mas 
também à possibilidade de criarem novos modelos de negócios. Segundo a 
revista Exame, “uma startup é um grupo de pessoas à procura de um modelo de 
negócios repetível e escalável, trabalhando em condições de extrema incerteza”. 
As startups dão uma espécie de materialidade ao espírito empreendedor do 
capitalista contemporâneo e a um novo formato de futuras corporações: a 
empresa Uber é o exemplo de startup bem sucedida; como narra seu site, foi 
criada em 2008, quando dois amigos iluminados, andando nas ruas de Paris, se 
deram conta de que a dificuldade para conseguir um táxi era em realidade um 
belo nicho de mercado. 
Lançada no mercado em 2010, a empresa hoje atua em 540 cidades pelo 
mundo. Em 2016 seu valor de mercado era de mais de 64 bilhões de dólares. 
Livrar-se dos custos do trabalho mantendo os ganhos e controle sobre a 
produção: as startups que se firmam como empresas-aplicativo – tal como as 
compreendo aqui – concretizam o auge do modelo da empresa enxuta, com um 
número ínfimo de empregados e milhares de empreendedores conectados, de 
consumidores engajados, de trabalhadores amadores. São fundamentais na 
consolidação do e-marketplace; mas, se aparecem como mediadoras entre 
oferta e demanda (tais como a Amazon; o site de sebos Estante Virtual; os 
aplicativos móveis para táxis, como Easytaxi; sites de vendas de roupa online, 
como Dafiti), em realidade parte dessas empresas promove uma imensa 
reorganização do mundo do trabalho, estabelecendo novos nichos para diversas 
ocupações, novas formas de controle sobre o trabalho, novas experiências do 
consumo. 
 
5. Crowdsourcing: a multidão produtiva detrabalhadores amadores 
http://exame.abril.com.br/negocios/com-aporte-de-us-2-1-bi-uber-ja-vale-mais-que-ford-ou-gm/
A multidão como um bom negócio. Em 2008, o jornalista Jeff Howe cunhou o 
termo crowdsourcing10. O outsourcing teria chegado ao seu novo estágio, 
a crowd constituía-se como a nova fonte das terceirizações. Navegando na 
celebração da economia compartilhada, o autor em realidade desvendava a 
enorme transferência de trabalho das empresas para os usuários navegantes do 
ciberespaço. O debate é longo e complexo. O que somos nós, usuários do 
Facebook? A cada post, um cent, não para nós, é claro. O que torna a empresa 
uma das de maior valor de mercado no mundo senão a participação de seus 
usuários? O que faz do Youtube o Youtube senão a produção e uploads e 
visualizações permanente de seus usuários? Seria essa atividade trabalho? Mas 
não é preciso enveredar por esse caminho complexo das atividades criativas de 
consumidores que se traduzem magicamente em lucro para empresas. 
 Atualmente, a transferência de trabalho na forma trabalho está explícita em 
diversos sites que contam com a adesão da multidão de usuários-trabalhadores. 
No início dos anos 2000, a NASA criou o projeto Clickworkers e com ele 
descobriu que não precisava ter trabalhadores contratados para identificar 
elementos como crateras nas fotos de Marte: após testar a multidão, comprovou 
que esta era tão eficiente e muito mais rápida no cumprimento da tarefa, 
realizada gratuitamente como forma de “colaboração para o futuro”. O site 
Innocentive hoje congrega cientistas uberizados com corporações como Procter 
& Gamble, Johnson’s & Johnson’s. Estas perceberam que seus departamentos 
de pesquisa e desenvolvimento podem se estender aos laboratórios 
improvisados de profissionais em busca de complemento de renda ou apenas 
motivados pelos “desafios” lançados no site. As soluções propostas pelosusuários podem ser patenteadas pelas empresas, a contrapartida para o usuário 
selecionado são as premiações em dinheiro. 
O crowdsourcing só é possível se o trabalhador for o trabalhador amador. O 
que vamos nos deparando é com uma perda – apropriada de forma lucrativa – 
do lastro do trabalho. A multidão de trabalhadores realiza trabalho sem a forma 
socialmente estabelecida do trabalho, em atividades que podem transitar entre 
o lazer, a criatividade, o consumo e também o complemento de renda. Trata-se 
de uma ausência da forma concreta do trabalho, o que significa a plena 
flexibilidade e maleabilidade de uma atividade que, entretanto, se realiza como 
trabalho (estaríamos vendo o que Francisco de Oliveira, há 14 anos, denominou 
de a plenitude do trabalho abstrato?11). O motorista Uber não é um motorista 
profissional, como o taxista. O resolutor de enigmas do Innocentive pode até ser 
um empregado de algum departamento de Pesquisa e Desenvolvimento, mas 
enquanto usuário, é um cientista amador. Não há local de trabalho definido, não 
há vínculos, não há dedicação requerida, não há seleção, contrato ou demissão 
(ainda que, como vimos, a concorrência opera permanentemente, de forma 
difusa e ilocalizável). Digamos que, na contemporaneidade, todo trabalhador é 
um potencial trabalhador amador. Assim como o motofretista combina seu 
trabalho na terceirizada com o do aplicativo, assim como o engenheiro pejotizado 
passa seus dias entre o computador e a direção do carro Uber, trabalhadores 
dos mais diversos perfis socioeconômicos engajam-se em atividades que não 
têm um estatuto profissional definível, mas que podem ser fonte de rendimento, 
de redução de custos, ou mesmo do exercício de sua criatividade. 
 
6. Da viração para a Gig economy 
Voltando para os salões de beleza, o trabalho tipicamente feminino oferece-
nos as raízes da flexibilização do trabalho que atravessa o mercado de cima a 
baixo. A indistinção entre o que é e o que não é tempo de trabalho, a fusão entre 
esfera profissional e esfera privada e a impossibilidade de mediações 
publicamente instituídas na regulação do trabalho, a indefinição quanto ao que 
é e o que não é trabalho são alguns dos elementos que costuram a vida das 
mulheres. No mais precário trabalho da costureira em domicílio, da empregada 
doméstica, da dona de casa podemos encontrar elementos que hoje tecem a 
exploração do trabalho de forma generalizada12. Olhando para uma ocupação 
tipicamente feminina, foi possível reconhecer tendências em curso no mercado 
de trabalho que hoje desembocam na forma visível da uberização. As 
revendedoras de cosméticos, só para a empresa Natura, hoje são mais de um 
1,4 milhão de mulheres no Brasil. Com os mais diversos perfis socioeconômicos, 
diaristas, secretárias, professoras, donas de casa, entre tantas outras, 
combinam sua profissão, ou a ausência dela, com as revendas. As revendas têm 
uma capilaridade impressionante com a vida pessoal e com outras ocupações. 
Vender ao longo da jornada de trabalho na escola, no escritório, vender nas 
festas de família, promover oficinas de maquiagem nas férias, distribuir produtos 
na repartição pública: o que a pesquisa evidenciou foi uma plena adesão a um 
trabalho sem forma trabalho, e é justamente essa falta de formas que possibilita 
sua permeabilidade com outras atividades. 
A empresa transfere para a multidão de trabalhadoras uma série de riscos e 
custos, e conta com uma dimensão não contabilizável e não paga do trabalho 
dessas mulheres. O espaço da casa, o ambiente de trabalho, o investimento em 
produtos para uso próprio como meio de venda, as relações pessoais funcionam 
como vetores para venda e também para a promoção da marca. Mas o que mais 
nos interessa aqui é perceber a atual adesão de 1,4 milhão de mulheres, 
somente no Brasil, somente para uma empresa, ao trabalho amador. O trabalho 
sem forma trabalho, sem estatuto de trabalho, que opera como um meio de 
complemento de renda, como um exercício de uma identidade profissional 
indefinida, como facilitador para o consumo. Do lado da empresa, o trabalho 
amador informal está muito bem amarrado, traduz-se em informação, em uma 
fábrica que tem sua produção pautada pelo ritmo das vendas desse exército 
gigantesco. 
O motorista Uber tem com seu trabalho uma relação muito parecida com 
a da revendedora Natura: um complemento de renda advindo de uma atividade 
que não confere um estatuto profissional, um bico, um trabalho amador, que 
utiliza o próprio carro, a destreza do motorista, suas estratégias pessoais e sua 
disponibilidade para o trabalho. 
Olhando para esses trabalhadores, vemos em ato a viração, tema atual e 
ao mesmo tempo constitutivo do mercado de trabalho brasileiro desde sua 
formação. A viração – e remeto-me ao uso que Vera Telles fazia do termo já no 
início dos anos 200013 – é pouco tratada nos estudos do trabalho brasileiros, 
inclusive na produção e análise de dados sobre emprego/desemprego; 
entretanto é constitutiva da vida e da sobrevivência dos trabalhadores de baixa 
qualificação e rendimento. O “viver por um fio”14 das periferias brasileiras 
significa um constante agarrar-se às oportunidades, que em termos técnicos se 
traduz na alta rotatividade do mercado de trabalho brasileiro, no trânsito 
permanente entre trabalho formal e informal (como demonstra Adalberto 
Cardoso15), na combinação de bicos, programas sociais, atividades ilícitas e 
empregos (ver pesquisas do viver na periferia, em especial os coordenados por 
Gabriel Feltran, Vera Telles e Cibele Rizek16). A trajetória profissional dos 
motoboys entrevistados deixa isso evidente. Hoje motoboy-celetista e 
entregador de pizza, amanhã motofretista-MEI, ontem montador em fábrica de 
sapatos, manobrista, pizzaiolo, feirante, funileiro, funcionário de lava-rápido. 
Motogirl hoje, antes diarista, copeira, coordenadora de clínica para viciados em 
drogas. Motofretista, serralheiro, repositor de mercadorias; confeiteiro e também 
ajudante de pedreiro. Proprietário de loja de bebidas, trabalhador na roça, 
funcionário do Banco do Brasil e hoje motofretista autônomo. Motoboy hoje, 
antes faxineiro, porteiro e cobrador de ônibus. Este é o movimento com que 
grande parte dos brasileiros tecem o mundo do trabalho. 
Mas a viração agora já tem nome internacional e globalizado, seguimos 
na vanguarda do atraso: a gig economy17 nomeia hoje o mercado movido por 
essa imensidão de trabalhadores que aderem ao trabalho instável, sem 
identidade definida, que transitam entre ser bicos ou atividades para as quais 
nem sabemos bem nomear. A plataforma online da empresa Airbnb, por 
exemplo, hoje conta com a adesão de milhares de usuários que disponibilizam 
seus domicílios para aluguel instantâneo e passageiro; atuando como 
microempreendedores amadores, tornam-se uma espécie de administradores de 
suas próprias casas. A gig economy é feita de serviços remunerados, que mal 
têm a forma trabalho, que contam com o engajamento do trabalhador-usuário, 
com seu próprio gerenciamento e definição de suas estratégias pessoais. 
A gig economy dá nome a uma multidão de trabalhadores just-in-
time (como já vislumbrava Francisco de Oliveira no início dos anos 2000 ou 
Naomi Klein ao mapear o caminho das marcas até os trabalhadores)18, que 
aderem de forma instável e sempre transitória, como meio de sobrevivência e 
por outras motivações subjetivas que precisam ser mais bem compreendidas, às 
mais diversas ocupações e atividades. Entretanto, essas atividades estão 
subsumidas, sob formas de controle e expropriação ao mesmo tempo evidentes 
e pouco localizáveis. A chamada descartabilidade social também é produtiva. Ao 
menos por enquanto. 
 
NOTAS 
 
1 Quando da sanção, o presidente do SEBRAE, Guilherme Afif Domingos, adiantou: “o 
setor de beleza será o modelo para a terceirização em todos os setores”. 
2 O Contrato Zero Hora já abrange 3% da força de

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