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Edição Reformulada Para compreender SAUSSURE EDITORA VOZES de Carvalhoho tem didát superior é lógica, extraida dr Curso Lingüí. suas essencia continua válida. ez en portuguesa, se uma a ção sistema LOS unda lingüística sau uria Pro Elia EDITO ISBN 326.1784-0 VO Uma vida bom livro 9 78853 617842 Josiane E-mail: com.brCastelar de Carvalho gilmar 314- 41271 Para compreender SAUSSURE Fundamentos e visão crítica edição reformulada VOZES Petrópolis 2000© 2000, Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luís, 100 25689-900 Petrópolis, RJ Internet: http://www.vozes.com.br Brasil Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. ISBN 85.326.1784-0 Este livro foi impresso pela Editora Vozes Ltda.In memoriam Prof. Sílvio Elia gilmarSUMÁRIO Apresentação, 9 Advertência da edição, 11 Advertência da edição, 12 Advertência da edição, 13 Advertência da edição, 14 I - A Lingüística Pré-Saussuriana, 15 II - A Lingüística Saussuriana, 21 A Teoria do Signo Lingüístico, 26 Língua/Fala, 49 Sincronia/Diacronia, 70 Relações Sintagmáticas e Paradigmáticas, 86 A Noção de Valor, 103 III - Repercussões das Idéias de Saussure, 113 Apêndice: A Glossemática, 127 Louis Hjelmslev (1899/1965), 145 Bibliografia, 146 Índice, 149APRESENTAÇÃO Os estudos saussurianos continuam na ordem do dia. Pode-se até dizer que o livro póstumo de 1916, o tão famoso Cours de Linguistique Générale, com o cor- rer do tempo, renova a sua atualidade. O surto do movimento estruturalista data, por exemplo, da década de 30 retardado, senão interrompido pelo desencade- ar-se da Segunda Grande Guerra e, no entanto, as suas bases teóricas já estavam solidamente fincadas com os ensinamentos do mestre genebrino. Do Cours de- ver-se-á falar como de uma "obra aberta", tais as perspectivas que oferece a quem costuma relê-lo com visão reflexiva. Facilmente então se imagina que outros ca- minhos iriam surgir e que se poderiam aprofundar os antigos, depois que, às pági- nas lúcida e escrupulosamente redigidas por Bally e Sechehaye, foram acrescen- tados novos materiais da lavra do próprio Saussure. Tal o que se deu em 1957, quando Godel publicou as Sources Manuscrites du Cours de Linguistique Générale. Não creio que se possa afirmar que se tenha ini- ciado então um processo revisionista da doutrina delineada no Cours; mas, sem dúvida, os manuscritos contribuíram para aclarar certos aspectos do pensamento lingüístico de Saussure, insuficientemente ou obscuramente expostos nesse gran- de livro. Também os Cahiers Ferdinand de Saussure têm trazido novos elemen- tos para melhor compreensão da lingüística saussuriana, como se deu com as "Notas Inéditas", publicadas pelo mesmo Godel, ou com as cartas de Saussure a Meillet, tornadas conhecidas por intervenção de Benveniste. Em 1967, aparece em Bari a tradução italiana do Cours, comentada por Tullio De Mauro: Corso di Linguistica Generale (há uma edição revista de 1970). Esse livro uma análise clarividente da obra de Saussure tornou-se indispensável. Tanto na Introdução como nos Comentários, Tullio De Mauro procura atingir a coe- rência profunda da doutrina exposta no Cours, reflexo, infelizmente, de um pensa- mento que não chegou ao seu termo. E fá-lo com mestria, inteligência e lucidez. Nessa linha de captação das reais e profundas idéias do mestre suíço, funda- mental é a edição crítica de Rudolf Engler (1968), onde se faz um confronto do texto do CLG com as notas de estudantes que lhe serviram de base. Do mesmo Engler é o Lexique de la Terminologie Saussurienne (1968). 9Mas a vitalidade do pensamento saussuriano parece estar sempre renascendo. Outros estudos têm aparecido, multiplicam-se as pesquisas e os ensaios de inter- pretação. Em 1970, sai em Roma, da lavra de R. Simone, uma Introduzione al 2° Corso di Linguistica Generale (1908-1909). E é de 1975 o livro de René Amacker, discípulo de De Mauro, intitulado singelamente Linguistique Saussurienne. Tra- ta-se, na verdade, de uma tentativa de revisão do CLG, com base exatamente no mate- rial recolhido após a publicação póstuma do Cours, na qual se procura revelar Saussure como um teórico avançado, cujos princípios epistemológicos estariam bastante próximos de certos postulados da ciência moderna, particularmente no seu aspecto hipotético-dedutivo. Embora haja renunciado a apresentar no referido livro a dou- trina saussuriana como uma "formalização fraca", por motivos de ordem prática (p. 12), Amacker demonstra particular predileção pela interpretação do saussuria- nismo contida nestas palavras de Saussure em carta de 1911 a M.L. Gautier: "Pour le moment, la linguistique générale m 'apparaît comme un système de géo- métrie. On aboutit à des théorèmes qu 'il faut démontrer" (p. 14). Tudo isso mostra como, sessenta anos depois, continua vivo e fecundo o pen- samento saussuriano. Justificada está, pois, esta introdução do Prof. Castelar de Carvalho ao estudo das basilares dicotomias saussurianas. O trabalho tem finalidades didáticas e destina-se aos alunos dos nossos cursos superiores de Letras e de Comunicação. A linguagem é clara, a ordenação, lógica, a doutrina, extraída do CLG nas suas linhas essenciais, continua válida. É a primeira vez que, em língua portuguesa, se faz uma apresentação sistemática e coerente dos fundamentos metodológicos da lingüística saussuriana. Os nossos alunos de Letras geralmente entram em contato com a Lingüística logo no primeiro ano de suas ati- vidades universitárias. O Curso de Lingüística Geral que de início se lhes põe em mãos não é fácil de digerir. Essa constatação pesou para que o Prof. Castelar de Car- valho se abalançasse a esta introdução. O livro, portanto, ao atingir a finalidade a que visou terá certamente e certeiramente cumprido o seu destino. E generoso desti- no. Porque a trajetória fascinante da Lingüística moderna começa realmente quan- do se transpõem as portas iluminadas do Curso de Lingüística Geral. Por conseguinte, os nossos parabéns não só ao Prof. Castelar de Carvalho, mas igualmente a todos os universitários dos cursos superiores de Letras e de Co- municação do país. Rio de Janeiro, março de 1976. Sílvio Elia Presidente do Círculo Lingüístico do Rio de Janeiro 10ADVERTÊNCIA DA EDIÇÃO Este trabalho pretende ser um manual de consulta permanente, escrito em lin- guagem simples, didática e prática, porém sem empobrecimento da objetividade científica inerente a uma obra dessa natureza. Especialmente preocupado em aclarar as dúvidas e responder às interrogações de quantos se iniciam nos estudos lingüísticos em nossas Faculdades de Letras, proporciona-lhes, ao mesmo tempo, uma visão crítica sobre os pontos fundamentais da nossa ciência. Nosso livrinho não inova em nada, nem se arroga tal finalidade. Sua originali- dade (se alguma existe) consiste, a nosso ver, no tratamento sistematizante e emi- nentemente pedagógico que dispensamos a assuntos tão fugidios a alunos ainda não iniciados nas lides da ciência lingüística. A experiência da sala de aula (esse insubstituível laboratório de Didática), em vários anos de contato direto com as turmas, fez-nos sentir a falta de uma obra que destrinçasse a teoria revolucionária exposta no Curso (onde nem sempre ela se apresenta suficientemente clara) e a reunisse em um compêndio único, sintetiza- dor. É que a doutrina de Saussure teve repercussões extraordinárias, imprevisí- veis à época da primeira edição do Curso de Lingüística Geral (1916), carreando para seu autor a consagração póstuma e o reconhecimento do meio universitário, que hoje o considera, sem favor, o fundador da Lingüística científica. Por essa ra- zão, rica e díspar é a bibliografia sobre o assunto. Rica e geralmente complexa, nem sempre especificamente voltada para aquele aluno recém-saído do vestibu- lar, que jamais ouvira falar de Saussure e, o mais grave, não familiarizado com uma linguagem de natureza técnico-científica. É nesse sentido que pretendemos estar oferecendo uma modesta contribuição aos alunos de Letras, aos estudiosos em geral, e mesmo aos já iniciados e experi- entes colegas de magistério. Destes esperamos que nos honrem com sua leitura e nos enriqueçam o saber com suas críticas. Desde já, nossos agradecimentos, em especial ao Professor Sílvio Elia, incen- tivador e mestre, cujas lições tivemos o privilégio de haurir. Rio de Janeiro, fevereiro de 1976. Castelar de Carvalho 11ADVERTÊNCIA DA EDIÇÃO Mais do que antes, continua válida a advertência feita quando da edição. O espírito da obra não mudou. Na verdade, consolidou-se e enriqueceu-se, do que dá testemunho o esgotamento da edição anterior. O presente volume, além da revisão de praxe, tem a mais uma breve notícia sobre as Escolas Estruturalistas, um número relativamente grande de exercícios objetivos sobre cada unidade e um apêndice especial sobre a Glossemática. Trata- mo-la separada e detidamente, pela magnitude de sua importância dentro da Lin- güística saussuriana. Reiteramos nossos agradecimentos ao Professor Sílvio Elia, paciente revisor críti- assim como aos alunos e aos colegas pela acolhida carinhosa dada a este trabalho. Rio, julho de 1979. Castelar de Carvalho 12ADVERTÊNCIA DA EDIÇÃO No presente volume, procuramos enriquecer a noção de forma e os capítulos consagrados às dicotomias sintagma/paradigma e sincronia/diacronia. Acrescen- tamos também algumas achegas à parte que trata da arbitrariedade do signo lin- güístico. No mais, esta edição conserva, em espírito e em conteúdo, a orienta- ção dada às edições anteriores. É com grande prazer que registramos, mais uma vez, nossos agradecimentos ao mestre e amigo Prof. Sílvio Elia por suas valiosas e perspicazes observações críticas. Agradecemos igualmente aos alunos e aos colegas pela acolhida carinho- sa que têm dado a este trabalho. Rio, janeiro de 1982. Castelar de Carvalho 13ADVERTÊNCIA DA EDIÇÃO A presente edição conserva o espírito e o conteúdo das anteriores, em respeito ao público leitor, que nos tem honrado com sua atenção nos vinte e quatro anos de sucessivas reedições deste livro. Fizemos apenas a correção de gralhas tipográfi- cas, atualizamos e acrescentamos informações e incluímos algumas achegas rela- tivas à Lingüística Textual. Nesta oportunidade, reverenciamos a memória do querido e saudoso mestre, Prof. Sílvio Elia, falecido em novembro de 1998. Suas imorredouras lições de vida e de saber lingüístico continuam a orientar a trajetória desta obra. Agradecemos mais uma vez aos alunos e professores pela acolhida carinhosa que têm dispensado ao nosso trabalho. Um agradecimento especial a Pedro e Mariza, pela inestimável ajuda prestada no preparo desta edição. Rio, fevereiro de 2000. Castelar de Carvalho 14I A LINGÜÍSTICA PRÉ-SAUSSURIANA deVisão Geral da Lingüística antes de Saussure A Lingüística, definida hoje como o estudo científico da linguagem humana, é, como diz Mounin (1972: 25), "um saber muito antigo e uma ciência muito jo- vem". O Prof. Mattoso Camara Jr., em seu Dicionário de lingüística e gramática, a define como estudo científico e desinteressado dos fenômenos Mas nem sempre um estudo científico e muito menos desinteressado caracterizou sua trajetória secular. Na verdade, a Lingüística só foi adquirir status de ciência a partir do século XIX. Até então o que havia era o estudo assistemático e irregular dos fatos da linguagem, de caráter puramente normativo ou prescritivo, ou ainda, retrocedendo à Antigüidade grega, especulações filosóficas sobre a origem da lin- guagem mescladas com estudos de Filologia. Até chegar a delimitar-se e defi- nir-se a si própria, a Lingüística passou por três fases sucessivas. Fase: Filosófica Os gregos foram os precursores com suas profundas reflexões em torno da ori- gem da linguagem. Seus estudos, calcados na Filosofia, abrangeram a Etimologia, a Semântica, a Retórica, a Morfologia, a Fonologia, a Filologia e a Sintaxe. Basea- vam-se na Lógica (analogistas) ou no uso corrente (anomalistas). Tinham de início finalidades eminentemente práticas: era uma Gramática voltada para a práxis, para a ação, o fazer. Dionísio da Trácia (séc. I a.C.) a chamou de Tékhné Grammatiké, expressão traduzida mais tarde pelos romanos como Ars Grammatica. Desse modo, a Gramática surgiu no Ocidente como arte de ler e escrever, como disciplina normativa que, por seu comprometimento filosófico, estava des- provida de uma visão científica e desinteressada da língua em si mesma. Domina- da doutrinariamente pela corrente dos analogistas (aristotélica) ou pela dos ano- malistas (estóicos), a Gramática grega será reproduzida pelos romanos, que, numa tentativa de conciliar aquelas duas posições, fazem nascer a Gramática regras e das exceções". A influência grega se fez sentir durante muitos séculos. Marcando toda a Ida- de Média, chegou a motivar na França, em 1660, a elaboração de uma Gramática 17geral, a famosa "Grammaire de Port-Royal", de base puramente lógica, coinci- dindo com a fase do Racionalismo. O mérito dos estudiosos gregos é imenso, nes- se sentido, pelo seu caráter precursor. Na verdade, as raízes do pensamento lin- güístico ocidental mergulham profundamente na Grécia Antiga. Fase: Filológica A Filologia se constitui numa segunda fase dos estudos lingüísticos. Surgida em Alexandria por volta do século II a.C., batia-se pela autonomia dos referidos estudos. Os alexandrinos queriam-nos mais filológicos e menos filosóficos. Defi- nindo-se historicamente como o estudo da elucidação de textos, a Filologia dos alexandrinos, de preocupação marcadamente gramatical, dedicou-se à Morfolo- gia, à Sintaxe e à Fonética. Tendo influenciado bastante a Idade Média, os estudos filológicos encontra- ram, mais tarde, em Friedrich August Wolf um de seus maiores divulgadores. A partir do final do século XVIII, a escola alemã de Wolf veio estendendo conside- ravelmente o campo e o âmbito da Filologia. Além de interpretar e comentar os textos, a Filologia procura também estudar os costumes, as instituições e a histó- ria literária de um povo. Entretanto, seu ponto de vista crítico torna-se limitado, pelo fato de ela ater-se demasiadamente à língua escrita, deixando de lado a lín- gua falada. Contudo, é forçoso reconhecer que as pesquisas filológicas serviram de base para o surgimento e a consolidação da Lingüística histórico-comparatista. fase: Histórico-comparatista A terceira fase da história da Lingüística começa com a descoberta do sânscri- to entre 1786 e 1816, mostrando as relações de parentesco genético do latim, do grego, das línguas germânicas, eslavas e célticas com aquela antiga língua da India. A preocupação diacrônica em saber como as línguas evoluem, e não como funcionam, é que vai marcar toda essa fase. Franz Bopp (1791-1867), o que melhor aproveitou o conhecimento do sâns- crito, é considerado o fundador da Lingüística Comparatista. Seu livro Sobre sistema de conjugação do sânscrito, de 1816, abriu então novas perspectivas lin- güísticas. Para Bopp, a fonte comum das flexões verbais do latim, do grego, do persa e do germânico era o sânscrito. Para ele, o sânscrito era o idioma que mais se aproximava, por sua estrutura morfológica, de uma espécie de protolíngua indo-eu- ropéia. Apesar de não ter sido o descobridor do sânscrito, é para Bopp que conver- ge o mérito de haver sido o primeiro a realizar o estudo sistemático de línguas afins como matéria de uma ciência autônoma. Ao lado do nome de Bopp, citam-se também como pioneiros da Lingüística histórico-científica o dinamarquês Rasmus Rask (1787-1832) e o alemão Jacob Grimm (1785-1863). Rasmus Rask escreveu um trabalho sobre a origem do velho 18nórdico (1818). Rask mostra aí os pontos de contato entre as principais línguas indo-européias e as línguas nórdicas. Jacob Grimm foi o primeiro a escrever uma gramática comparada das línguas germânicas: a Deutsche Grammatik, publicada em 1819. Grimm é considerado o pai do que mais tarde se chamariam "leis fonéti- cas". Os termos metafonia (Umlaut) e apofonia (Ablaut) são criações de Grimm. Com o desenvolvimento da Filologia Comparada, a Lingüística indo-euro- péia experimentou extraordinário impulso. A tendência dessa fase inicial da Lingüística Comparatista era identificar-se com as ciências da natureza, consoante o espírito da segunda metade do século XIX. Essa tendência deu às primeiras idéias lingüísticas desse século um enfoque naturalista, a princípio de base biológica (o biologismo lingüístico: as línguas nascem, crescem e morrem, como os organismos biológicos), e a seguir de base física (leis da Lingüística se aproximam das leis físicas: leis fonéticas). Neste caso, salientou-se o papel dos neogramáticos pelo excessivo esquematismo que deram às suas postulações. A Lingüística Histórica ainda se prolonga por mais algumas décadas, desdo- brando-se, em um segundo momento, numa reação aos neogramáticos caracteri- zada como "fase culturalista" (1890-1930). O culturalismo lingüístico combatia o naturalismo então reinante: era a oposição cultura/natura. Os estudiosos dessa fase afirmavam não haver correspondência entre as chamadas "leis fonéticas" e as leis da natureza. As leis fonéticas são cronológicas e circunstanciais, têm validade apenas para um determinado período histórico, sofrem limitação espacial e só se manifestam em condições particulares. As leis naturais, ao contrário, são atempo- rais e, o mais importante, universais. Ora, se as "leis fonéticas" fossem de fato leis naturais, argumentavam os culturalistas, o latim teria resultado numa única língua na França, na Itália, na Espanha, em Portugal e nos demais domínios do Império Romano. Portanto, para o culturalismo lingüístico não existem leis fonéticas no sentido fisicalista. Há, isto sim, circunstâncias histórico-culturais que condicio- nam as alterações fonéticas. Segundo o pensamento culturalista, as línguas não existem por si mesmas. São instrumentos culturais condicionados por fatores so- ciais, históricos, geográficos, psicológicos e, por isso mesmo, de previsibilidade relativa e comportamento inconstante, justamente o oposto do que acontece no campo das ciências naturais. Em síntese, podemos esquematizar o quadro dos estudos lingüísticos no sécu- lo XIX (e parte do séc. XX) da seguinte maneira: fase naturalista (1810-1890) preocupação com a história interna da língua. fase culturalista (1890-1930) preocupação com fatores externos, condicionadores da língua (= histórico-culturais). 19II A LINGÜÍSTICA SAUSSURIANAFerdinand de Saussure (1857/1913): Formação e obras À época em que Saussure recebeu sua formação acadêmica, o Comparativismo indo-europeu dominava os estudos lingüísticos. Fase decisiva e cujos êxitos marcan- tes sobre pontos importantes e essenciais da nossa ciência se constituíram no princi- pal legado do século XIX ao século XX. Saussure não poderia ficar imune a essa atmosfera científica e dela participou brilhantemente. Tendo vivido em Leipzig e Berlim de 1876 a 1878, aí manteve contato com os expoentes da Lingüística Compa- ratista de então, dos quais recebeu sólido embasamento e decisiva influência. Assim é que mais tarde, durante os onze anos (1880/1891) em que foi diretor da École Prati- que des Hautes Études, em Paris, passaram pelas suas mãos os mais importantes comparatistas franceses, que dele receberam formação, influência e continuidade. É de 1879 a publicação da Mémoire sur le primitif système des voyelles dans les langues indo-européenes. Apesar da orientação atomística própria da corrente neogramática, Saussure inova em sua Mémoire situando o problema da reconstitui- ção fonética do indo-europeu sob uma perspectiva sistemática. Sua tese de doutora- mento, um ano mais tarde, intitulava-se De l'emploi du absolu en sanskrit. Além de artigos de Gramática comparada, infelizmente nada mais nos legou em vida o genial mestre genebrino. Seu Cours de linguistique générale (CLG), como sabemos, resultou da compilação por dois discípulos seus dos três cursos de Lin- güística Geral que ministrara de 1906 a 1911 na Universidade de Genebra, onde era titular desde 1896. Esses dois alunos foram Charles Bally e Albert Sechehaye, com a colaboração de outro discípulo, Albert Riedlinger. Trata-se, portanto, de obra pós- tuma e inacabada, calcada em anotações colhidas em aula por seus alunos e, como tal, explicam-se as possíveis obscuridades e contradições das idéias de Saussure. Nela se reconhecem fórmulas de aspecto por vezes paradoxal, onde salta aos olhos o estilo de ensino oral. Apesar desse fato, as idéias motrizes de sua obra póstuma, por oposição ao método histórico-comparatista dominante até então, vieram revo- lucionar completamente o pensamento lingüístico ocidental. Na verdade, Saussure foi um espírito mais projetado para o século XX do que voltado para o século XIX, como soía acontecer com os intelectuais de seu tempo. 23Hoje, mais de meio século depois de seu desaparecimento, Saussure é estuda- do com o respeito, o cuidado e a atenção que merecem os gênios. Todos quantos se aprofundam na pesquisa de suas póstulações adquirem consciência da importância do Cours para a Lingüística moderna e passam a compreender por que Saussure é considerado um divisor de águas no estudo científico da linguagem. A Doutrina de Saussure O grande mérito de Saussure está, antes de tudo, no seu caráter metodológico, um prolongamento da sua personalidade perfeccionista. Era preciso, em primeiro lugar, pôr ordem nos estudos lingüísticos. Para poder criar e postular suas teorias com perfei- ção científica, impunha-se-lhe, antes, um trabalho metodológico preliminar. Os lin- güistas até então tratavam de coisas diferentes com nomes iguais e vice-versa. A au- sência de uma terminologia adequada, precisa, objetiva, de alcance universal (e sabe- mos, desde os gregos, que só há ciência do universal), instrumento de trabalho im- prescindível a qualquer ciência digna do nome, tolhia-lhes a expressão das idéias. Por exemplo, o termo língua tinha para alguns lingüistas um determinado sentido; para outros, já adquiria conotação totalmente diversa. A Lingüística ressentia-se de uma linguagem equívoca, verdadeira colcha de retalhos terminológica, e Saussure neces- sitava de uma linguagem unívoca, de um padrão lingüístico, de uma metalinguagem, isto é, de uma nova linguagem para expressar suas elucubrações. Sua primeira tarefa, portanto, foi "limpar o terreno" para poder depois trabalhar. A Lingüística, escreveu ele, "jamais se preocupou em determinar a natureza do seu objeto de estudo. Ora, sem essa operação elementar, uma ciência é incapaz de estabelecer um método para si própria" (CLG, 10). O esquema abaixo dá a idéia exata do que, segundo Saussure, é "a forma ra- cional que deve assumir o estudo lingüístico" (p. 115):4 relações associativas (= paradigmáticas) sincronia língua relações sintagmáticas diacronia linguagem fala 24Além disso, inova também com sua famosa e polêmica Teoria do Signo Lingüístico: significante signo significado arbitrariedade princípios do signo linearidade 25A TEORIA DO SIGNO LINGÜÍSTICO significado Signo significante Introdução: Tipos de Sinais Saussure considera a língua como um sistema de signos formados pela "união do sentido e da imagem Tentemos agora aprofundar essa noção formu- lada pelo mestre genebrino. Comecemos antes esclarecendo sinteticamente alguns pontos básicos, vesti- bulares à teoria do signo. A Semiologia (ou Semiótica) distingue dois tipos de si- nais: os naturais e os convencionais. 0 sinal natural manifesta-se em forma de indí- cio (físico), como a fumaça, a trovoada, nuvens negras, rastros, som, o cheiro, a luz, etc.; ou em forma de sintoma (fisiológico): a pulsação, a contração, a dor, a fe- bre, a fome, o suor, o espasmo, etc. O sinal convencional envolve maior complexi- dade e pressupõe a existência de uma cultura (antropologicamente falando) já esta- belecida, da qual ele é resultado e expressão, produto e instrumento a um só tempo. Pode apresentar-se em forma de icone, símbolo ou signo. O ícone (do grego eikón = imagem) é imagístico, por exemplo, uma foto, uma estatueta, um desenho de al- guém ou de algum lugar, e caracteriza-se também por ser não-arbitrário (v. princí- pio da arbitrariedade); o signo, totalmente arbitrário, é a própria palavra², enquanto que o símbolo, semi-arbitrário, é um tipo intermediário entre o ícone e o signo; por 1. A Semiologia (ou Semiótica) difere da Lingüística por sua maior abrangência: enquanto a Lingüística é o estudo científico da linguagem humana, a Semiologia preocupa-se não apenas com a linguagem humana e verbal, mas tam- bém com a linguagem dos animais e de todo e qualquer sistema de comunicação, seja ele natural ou convencional. Desse modo, a Lingüística insere-se como uma parte da Semiologia. Semiologia e Semiótica são termos permutáveis. A surgiu na Europa, com Saussure, e a segunda, nos Estados Unidos, com o filósofo Charles Sanders Peirce. 2. Além da concepção saussuriana (signo = palavra) com que é empregado neste trabalho, o termo signo comporta um sentido mais amplo. Neste caso, os signos seriam não só as palavras, mas também os gestos, as imagens, os sons não estritamente lingüísticos, como o apito de um trem, o repicar de um sino, as batidas do telégrafo, o tilintar de uma campainha. Compreende-se assim a definição de Peirce (1975: 94): signo, ou seu representamem, é algo que, sob certo aspecto ou de algum modo, representa alguma coisa para alguém". 26exemplo, a balança é símbolo da Justiça, a espada, símbolo do Exército, a cruz simboliza o Cristianismo (uma vez que seu fundador nela morreu), etc. Por que Signo e não Símbolo Voltando ao CLG (p. 82), convém lembrar, antes de mais nada, por que Saus- sure preferiu adotar o termo signe (signo): Utilizou-se a palavra símbolo para designar o signo lingüístico ou, mais exatamente, o que chamamos de significante. Há in- conveniente em admiti-lo, justamente por causa do nosso pri- meiro princípio [o da arbitrariedade do signo]. O símbolo tem como característica não ser jamais completamente arbitrário; ele não está vazio, existe um rudimento de vínculo natural en- tre o significante e o significado. O símbolo da justiça, a balan- ça, não poderia ser substituído por um objeto qualquer, um car- ro, por exemplo. A Natureza do Signo Retomando a definição inicial do signo como a "união do sentido e da imagem verificamos que o que Saussure chama de "sentido" é a mesma coisa que conceito ou idéia, isto é, a representação mental de um objeto ou da realidade social em que nos situamos, representação essa condicionada, plasmada pela formação sociocultural que nos cerca desde o berço. Em outras palavras, para Saussure, con- ceito é sinônimo de significado, algo como a parte espiritual da palavra, sua contra- parte inteligível, em oposição ao significante, que é sua parte sensível. Por outro lado, a imagem acústica "não é o som material, coisa puramente fi- sica, mas a impressão psíquica desse som" (CLG, 80)³. Melhor dizendo, a ima- gem acústica é o significante. Com isso, temos que o signo lingüístico é "uma en- tidade psíquica de duas faces" (CLG, 80), semelhante a uma moeda e que Saussu- re representou pela seguinte figura: conceito imagem acústica 3. Mais tarde, Jacobson e a Escola Fonológica de Praga irão definitivamente a distinção entre som mate- rial e imagem acústica. Ao primeiro designaram defone, objeto de estudo da Fonética. À imagem acústica denomina- ram de fonema, conceito amplamente aceito e consagrado hoje na Fonologia. 27Os dois elementos significante e significado que constituem o signo "es- tão intimamente unidos e um reclama o outro" (CLG, 80). São interdependentes e inseparáveis. Exemplificando, diríamos que quando um falante de português re- cebe a impressão psíquica que lhe é transmitida pela imagem acústica ou signifi- cante /kaza/, graças à qual se manifesta fonicamente o signo casa, essa imagem acústica, de imediato, evoca-lhe psiquicamente a idéia de abrigo, de lugar para vi- ver, estudar, fazer suas refeições, descansar, etc. Figurativamente diríamos que o falante associa o significante /kaza/ ao significado domus (tomando-se o termo la- tino como ponto de referência para conceito). Fazendo uso da figura de Saussure, teríamos neste caso: domus casa /kaza/ Podemos designar, portanto, o significante como a parte perceptível do signo e o significado como sua contraparte inteligível⁴. É importante advertir a esta altu- ra que o signo une sempre um significante a um conceito, a uma idéia, a uma evo- cação psíquica, e não a uma coisa, pois, segundo R. Barthes (1972: 46), signifi- cado não é uma coisa, mas uma representação psíquica da coisa". O próprio Saus- sure teve o cuidado de chamar a atenção para o perigo de se supor que o signo une um objeto a um nome, a um rótulo. O lingüista deve ter sempre em mente que "os termos implicados no signo lingüístico são ambos psíquicos e estão unidos, em nosso cérebro, por um vínculo de associação" (CLG, 80). Desse modo, o signo lingüístico resulta ser o produto concreto da união signi- ficante + significado e, nesse sentido, Émile Benveniste (1971: 142) sintetiza com feliz propriedade o pensamento de Saussure: El significante y el significado, la representación mental y la imagen acústica son, por lo tanto, las dos caras de una misma 4. Confronte-se, a propósito, com o ponto de vista dos Estóicos (os que mais aprofundaram os estudos lingüísticos na Grécia Antiga), segundo os quais o sêmeion (signo) era constituído pela relação existente entre o sêmainon (signifi- cante) e o sêmainomenon (significado). A posição de Saussure é uma salutar retomada de uma concepção e de uma terminologia que já eram boas no século II a.C., o que vem corroborar o que afirmamos no início deste trabalho: as raí- zes do pensamento lingüístico ocidental mergulham profundamente na Grécia Antiga. 28noción y se integran a título de incorporante e incorporado. El significante es la traducción fónica de un concepto; el signifi- cado, el correlato mental del significante. Esta consustanciali- dad del significante y el significado asegura la unidad estructu- ral del signo lingüístico. Ao incluir o significado na formulação do signo lingüístico, Saussure de- monstrou ter consciência plena de que não podem existir conceitos ou representa- ções sem a respectiva denominação correspondente e, com isso, lançou as bases da Semântica moderna. Uma Crítica à Teoria do Signo Do mesmo modo que outras postulações saussurianas, também esta tem sido alvo da crítica de alguns lingüistas contemporâneos. A mais importante delas refere-se ao fato de Saussure, em virtude de encarar o signo como uma entidade bifacial, não ter incluído um terceiro termo a coisa significada na sua teoria. No caso, seu esquema seria "corrigido" ou "completa- do", segundo seus contraditores, se se adotasse em substituição o famoso triângu- lo de Ogden e Richards, que vêem o signo constituído por uma relação triádica, da seguinte maneira: pensamento ou referência símbolo referente ou coisa Como podemos verificar, o triângulo inclui o referente ou coisa significada, embora ressalvando (por meio da linha pontilhada da base) que não existe ne- nhum vínculo direto entre a coisa e o símbolo, o que o leva, por outro caminho, à relação bipolar e de natureza psíquica formulada por Saussure. 29Numa adaptação ao esquema saussuriano, teríamos o seguinte: sdo domus OU ste coisa /kaza/ De qualquer forma, a crítica é pertinente, pois o triângulo de Ogden e Ri- chards reintroduz a coisa significada, melhor dizendo, a realidade sociocultural, a qual, quer seja considerada extralingüisticamente ou não, não pode ser deixada de lado pela Semântica. arbitrariedade Princípios do Signo linearidade A Arbitrariedade do Signo Lingüístico Como a soma do significante mais significado resulta num total denominado signo, temos que signo lingüístico é arbitrário" (CLG, 81). Mas o que quer di- zer Saussure com arbitrário? Para ele, arbitrário não deve dar a idéia de que o significado dependa da livre esco- lha do que fala, [porque] não está ao alcance do indivíduo trocar coisa alguma num signo, uma vez esteja ele estabelecido num grupo lingüístico; queremos dizer que significante é imotiva- do, isto é, arbitrário em relação ao significado, com o qual não tem nenhum laço natural na realidade (CLG, 83, grifo nosso). Desse modo, compreendemos por que Saussure afirma que a idéia (ou concei- to ou significado) de mar não tem nenhuma relação necessária e "interior" com a 30seqüência de sons, ou imagem acústica ou significante /mar/. Em outras palavras, o significado mar poderia ser representado perfeitamente por qualquer outro signifi- cante. E Saussure argumenta para provar seu ponto de vista, com as diferenças entre as línguas. Tanto assim que a idéia de mar é representada em inglês pelo significante /si:/ e, em francês, por /mér/. Nesse sentido, alega o autor do CLG (p. 82) que significado da palavra francesa bœuf ("boi") tem por signi- ficante um lado da fronteira franco-germânica e o-k-s (Ochs) do outro". O que pretendia Saussure é que, digamos assim, não existe o "significante verdadeiro". Qualquer um é válido. No entanto, apesar de se tratar do óbvio (que a relação entre os dois constituintes do signo seja arbitrária), esta tem sido a mais discutida e criticada postulação saussuriana, reacendendo a famosa e milenar po- lêmica existente entre os antigos filósofos gregos, os quais se preocupavam em saber se o laço entre significante e significado era natural ou produto da conven- ção humana: a célebre discussão em torno da THÉSEI (relação convencional) e PHYSEI (relação natural). Críticas ao Princípio da Arbitrariedade Alguns dos críticos de Saussure objetaram, entre outras coisas, que o signo, na sua totalidade, não é tão arbitrário como pretendia o mestre, porque uma das suas duas faces (o significante) não poderia combinar-se arbitrariamente com a sua segunda face (o significado) correspondente em outra língua. Por exemplo, o inglês / (teacher) não poderia jamais tornar-se o significante do significado português "professor" (se é que é possível representar-se visualmente um signifi- cado), porque / é parte inseparável e necessária (assim pensam esses críti- cos) de um signo cujo significado não é, em todos os sentidos e nuances, igual à idéia que nós, falantes de português, fazemos de Um outro crítico, Émile Benveniste (1971: 141), chega inclusive a "corrigir" o mestre ao pretender que el nexo que une a ambos (ste e sdo) no es arbitrario; es necesa- rio. El concepto ("significado") "buey" es por fuerza idéntico en mi conciencia al conjunto fónico ("significante") bwéi. Cómo iba a ser de otra manera? Uno y otro, juntos, se han im- preso en mi mente, y juntos se evocan en toda circunstancia. 5. Em nossa língua, tanto o indivíduo que ensina a fazer bolos (sem desfazer nos mestres-cucas) como o que leciona em um colégio ou em uma Universidade do mais elevado gabarito é conhecido como professor em inglês, teacher é reservado apenas para o professor de 1° e graus, enquanto que professor distingue o professor universitário. 31Ora, somos levados a crer que os críticos do mestre de Genebra demonstram não terem apreendido o pensamento saussuriano em toda a sua profundidade e coe- rência. Saussure postulava, isto sim, que O signo como um todo só tem valor situa- do dentro de um determinado sistema lingüístico, do qual é parte integrante. E como que prevendo a posteridade crítica, adverte (CLG, 132) que é uma grande ilusão considerar um termo simplesmente como a união de certo som com um certo conceito. Defini-lo [o valor lin- güístico do signo] assim seria isolá-lo do sistema do qual faz parte. E, comprovando sua argumentação, exemplifica (p. 134): O português "carneiro" [na adaptação da tradução brasileira] ou o francês "mouton" podem ter a mesma significação que o inglês "sheep", mas não o mesmo valor, isso por várias razões, em particular, porque, ao falar de uma porção de carne prepara- da e servida à mesa, o inglês diz "mutton" e não "sheep". A dife- rença de valor entre "sheep" e "mouton" ou "carneiro" se deve a que o primeiro tem a seu lado um segundo termo, o que não ocorre com a palavra portuguesa ou francesa [cf. com nosso ex. ingl. teacher/professor e port. professor]. Além do que foi exposto acima, é muito importante lembrar que, para Saussu- re, a arbitrariedade do signo, e nisso insistimos, repousa no fato de que falante não pode mudar aquilo que seu grupo já consagrou. Não podería- mos jamais chamar mesa de livro e vice-versa ("Ele sentou-se ao livro para jan- tar"; "ele está lendo uma mesa") sem correr o risco de passarmos por insano. Nes- se particular, aliás, a coerência da argumentação saussuriana torna-se mesmo in- comum (CLG, 87/88): Uma língua constitui um sistema. Se (...) esse é o lado pelo qual a língua não é completamente arbitrária e onde impera uma ra- zão relativa, é também o ponto onde avulta a incompetência da massa para transformá-la. Dizemos "homem" e "cachorro", porque antes de nós se disse "homem" e "cachorro". E concluindo (p. 88): Justamente porque o signo é arbitrário, não outra lei senão a da tradição, e é por basear-se na tradição que pode ser arbitrário. 32Na verdade, há dois sentidos para arbitrário: a) o significante em relação ao significado: livro, book, livre, Buch, biblion, etc. (significantes diferentes para um mesmo significado); b) o significado como parcela semântica (em oposição à totalidade de um campo semântico): ingl. teacher/professor port. professor ingl. sheep/mutton port. carneiro Conclui-se daí, como tão bem assinala Prof. Sílvio Elia, que A argumentação saussuriana de fato não foi bem entendida por vários de seus críticos. No sentido A, por exemplo, arbitrário significa simplesmente não-motivado. E aqui Saussure tem plena razão. No sentido B (que não está explícito no CLG), o genebrino também é quem está com a razão. O exemplo tea- cher/professor mostra simplesmente que o corte semântico é arbitrário ao contrário do que pensam acontecer os seus contra- ditores (Comentário em monografia do A.). A Questão das Onomatopéias e Interjeições O contraditor poderia se apoiar nas onomatopéias para dizer que a escolha do significante nem sempre é arbitrária (CLG, 83). Esta é outra objeção freqüente da crítica ao princípio da arbitrariedade do sig- no lingüístico, mas o próprio Saussure já a anulara por antecipação. O problema é que os "contraditores" consideram as onomatopéias palavras motivadas (ao contrário dos outros signos, que são imotivados por não guardarem nenhuma relação natural e lógica entre significante e significado), porque elas su- gerem, pela forma fônica, uma realidade. Por exemplo, dizemos que o gato mia, mas não podemos dizer que o gato muge: a "voz" do gato não faz lembrar em nada a do boi; muge não poderia ser aplicado para descrever o som emitido pelo gato, ao passo que mia se aproxima de algum modo do "miau" de um bichano. Porém, alerta Saussure, tais casos não chegam a constituir "elementos orgânicos de um sistema lingüístico" (CLG, 83), pois ocorrem em número mais reduzido do que se supõe e só em raríssimos casos se encontra uma ligação íntima entre significante e significado. Do mesmo modo, 33as onomatopéias autênticas (aquelas do tipo "gluglu", "tic- tac", etc.) não apenas são pouco numerosas, mas sua escolha é já, em certa medida, arbitrária, pois não passam de imitação aproximativa e já meio convencional de certos ruídos (compa- re-se o francês "ouaoua" e alemão "wauwau"). Além disso, uma vez introduzidas na língua, elas se engrenam mais ou me- nos na evolução fonética, morfológica, etc., que sofrem as ou- tras palavras (cf. "pigeon" do latim vulgar "pipio", derivado também de outra onomatopéia): prova evidente de que perde- ram algo de seu caráter primeiro para adquirir o do signo lin- güístico em geral, que é imotivado (CLG, 83). De fato, o protótipo natural que motivou o surgimento desta ou daquela ono- matopéia parece sugerir a existência de um motivo, de um rudimento de vínculo natural entre esta e seu modelo original, dando a impressão de que o significante é motivado em relação ao significado (isto é, não-arbitrário). Mas tal impressão é ilusória. Ruídos e sons naturais, ao entrarem para um sistema lingüístico através da reprodução aproximada sugerida pelas onomatopéias, amoldam-se ao material fônico da língua e transformam-se numa imitação convencional, por isso variam de língua para língua. O grasnar de um pato, por exemplo, dificilmente será repro- duzido da mesma maneira em duas línguas diferentes: em português quá-quá!; em francês, couin-couin; em dinamarquês, rap-rap; em alemão, gack-gack; em romeno, em italiano, qua-qua; em russo, kriak; em inglês, quack; em catalão, mechmech (v. Serafim S. Neto, 1938: 82). Este é também o pensamento do Prof. Mattoso Camara Jr. (1978: 182), que endossa o que já vimos em Saussure. Para ele, as onomatopéias são constituídas com os fonemas da língua, que pelo efeito acústico dão melhor reimpressão desse ruído. Não se trata, portanto, de imitação fiel e direta do ruído, mas da sua interpretação aproximada com os meios que a língua fornece. Quanto às interjeições, como tal, já fazem parte do sistema lingüístico, já es- tão estruturadas convencionalmente dentro de cada língua, variando enormemen- te de uma para outra: ai! em português; aie! em francês; au! em alemão; ouch! em inglês, etc. Como diz Saussure (p. 83), "para a maior parte delas, pode-se negar que haja um vínculo necessário entre significado e o significante". E para corro- borar estas palavras de Saussure, lembremos o exemplo da nossa interjeição ôi! (espécie de cumprimento, de saudação), que aos ouvidos dos falantes de espanhol soa como o advérbio hoy (hoje). Concluímos, portanto, que a questão levantada em torno das onomatopéias e interjeições não abala de modo algum o princípio da arbitrariedade do signo lin- 34uma vez que estas "são de importância secundária, a sua origem simbó- lica é em parte (CLG, 84). Arbitrário Absoluto/Arbitrário Relativo Apesar de haver postulado que o signo lingüístico é, em sua origem, arbitrá- rio, Saussure não deixa de reconhecer a possibilidade da existência de certos graus de motivação entre significante e significado (CLG, 152): O princípio fundamental da arbitrariedade do signo não impe- de distinguir, em cada língua, o que é radicalmente arbitrário, vale dizer, imotivado, daquilo que só o é relativamente. Ape- nas uma parte dos signos é absolutamente arbitrária; em ou- tras, intervém um fenômeno que permite reconhecer graus no arbitrário sem suprimi-lo: signo pode ser relativamente moti- vado (grifo no original). Em coerência com seu ponto de vista dicotômico, Saussure propõe a existên- cia de um "arbitrário absoluto" e de um "arbitrário relativo". Como exemplo de arbitrário absoluto, o mestre de Genebra cita os números dez e nove, tomados in- dividualmente, e nos quais a relação entre o significante e o significado seria to- talmente arbitrária, isto é, essa relação não é necessária, é imotivada. Já na com- binação de dez com nove para formar um terceiro signo, a dezena dezenove, Saussure acha que a arbitrariedade absoluta original dos dois numerais se apresenta rela- tivamente atenuada, dando lugar àquilo que ele classificou como arbitrariedade relativa, pois do conhecimento da significação das partes pode-se chegar à signi- ficação do todo. O mesmo acontece no par pera/pereira, em que pera, enquanto palavra pri- mitiva, serviria como exemplo de arbitrário absoluto (signo imotivado). Por sua vez, pereira, forma derivada de pera, seria um caso de arbitrário relativo (signo motivado), devido à relação sintagmática pera (morfema lexical) + -eira (morfe- ma sufixal) e à relação paradigmática estabelecida a partir da associação de perei- ra a laranjeira, bananeira, etc., uma vez que é conhecida a significação dos ele- mentos formadores. 6. Parece-nos que a única possível exceção ao princípio geral da arbitrariedade dar-se-ia quando o signo lingüístico é usado literariamente com intenção estética. A nosso ver, neste caso, o signo literário, enquanto tal, não deve ser consi- derado como imotivado, ao contrário, ele é totalmente motivado. Fazer literatura implica uma seleção estético-voca- bular, havendo, portanto, motivo da parte do escritor para preferir tais e tais signos e rejeitar outros. Se alguma arbitra- riedade existe, no caso, ela reside na própria escolha do escritor, mas não é a esse tipo de que nos referi- mos, e sim à do significante em relação ao significado. Os signos que forem de fato empregados com intenção estética (e unicamente estes) ao longo de uma obra-de-arte, seja prosa ou poesia, terão um motivo para estarem ali impressos, isto é, eles são motivados. Mas, alertamos: referimo-nos ao signo literário, o que não contradiz de forma alguma nossa posição quanto à arbitrariedade do signo lingüístico em geral. 35Mais adiante, Saussure (p. 154) esclarece que "as línguas em que a imotiva- ção atinge o máximo são mais lexicológicas, e aquelas em que se reduz ao míni- mo, mais gramaticais" (grifos no original). Línguas lexicológicas, formadas por uma maioria de signos imotivados, seriam o inglês e o chinês, segundo Saussure. Por outro lado, como exemplos de línguas gramaticais, cita o mestre o caso do latim, do sânscrito e do alemão, idiomas em que predominam os signos mais ou menos motivados, isto é, palavras formadas pelo relacionamento morfossintático entre os seus constituintes imediatos. Motivação e Arbitrariedade Partindo da dicotomia arbitrário absoluto/arbitrário relativo, a Lingüística pós-saussuriana deu conseqüência ao pensamento infelizmente inacabado do mestre de Genebra. Pierre Guiraud, por exemplo, propõe a existência de dois ti- pos de motivação: a interna e a externa. A motivação interna ocorre dentro do próprio sistema lingüístico, a partir das possibilidades de relacionamento existentes entre palavras ou entre unidades da lín- gua. Trata-se, portanto, das relações internas (sintagmáticas e paradigmáticas) do sistema, responsáveis pelo funcionamento desse mesmo sistema. Diz Guiraud (1972: 31): A motivação é interna quando tem a sua fonte no interior do sistema lingüístico. A relação motivante não está mais aqui en- tre a coisa significada e a forma significante, mas entre a pala- vra e outras palavras que já existem na língua. A motivação interna (ou intralingüística) é de natureza morfológica e compreen- de a derivação e a composição. Corresponde à arbitrariedade relativa de Saussure. A derivação, como instrumento de criação de palavras motivadas, pode ser: a) prefixal: in + feliz b) sufixal: per + eira c) prefixal e sufixal: in + feliz + mente d) parassintética: en + tard + ectetr e) regressiva ou deverbal: atrasoA composição pode ocorrer por: a) justaposição: televisão, edificio-garagem, minissaia b) aglutinação: planalto (plano + alto), aguardente (água + ardente) Além da derivação e da composição, acrescentaríamos outros processos motivadores, de natureza morfológica, típicos das línguas modernas, a saber: a) abreviação: fotofuncionamento da língua do que a motivação externa. A motivação externa é mais fortuita, mais limitada, realizando-se de fora para dentro do sistema lingüístico. A motivação interna, mais geral, atua de dentro para fora do sistema, oferecendo possibilidades teoricamente ilimitadas de renovação do léxico. Para concluir, acrescentaríamos o seguinte: para Saussure, o princípio da arbitrariedade do signo é um fenômeno geral, resulta historicamente de uma convenção (arbitrário = convencional) social e é ele que assegura o funcionamen- to a-histórico do sistema lingüístico. Para Saussure, o signo é imotivado a priori, isto é, em suas origens, ressalva feita unicamente para os casos que ele situou como "arbitrariedade estes surgidos a posteriori. Pierre Guiraud, entretanto, considera que o signo nasce sempre motivado para se desmotivar posteriormente, a partir do momento em que ele se socializa através do uso pela massa falante. Afirma Guiraud (1972: 29): Toda palavra é sempre motivada em sua origem e ela conserva tal motivação, por maior ou menor tempo, segundo os casos, até o momento em que acaba por cair no arbitrário, quando a motivação deixa de ser percebida. Guiraud reconhece, portanto, o caráter arbitrário do signo lingüístico, mas o vê instaurar-se, ao contrário de Saussure, a posteriori e não a priori. Tentemos ilustrar o ponto de vista do lingüista francês com um exemplo em nossa língua: o substantivo romaria resultou da relação sintagmática entre Roma e o sufixo -aria, porque significava historicamente "peregrinação a Roma para ver o Papa". Um caso, portanto, de motivação a priori, diria Guiraud. O uso, entretanto, desgas- tou-lhe o sentido original e hoje romaria significa "qualquer tipo de peregrinação ou de procissão religiosa". Quando o falante ouve o signo romaria, não passa pela sua cabeça, em momento algum, a idéia de "peregrinação a Roma", a menos que venha explicitado: "romaria ao Vaticano". Por exemplo, entre nós, são muito fre- qüentes as romarias a Aparecida do Norte, em São Paulo. O vocábulo romaria, a seguir-se o raciocínio de Guiraud, teria, portanto, se desmotivado a posteriori, as- sumindo, em conseqüência, o caráter arbitrário dos signos lingüísticos em geral. A Linearidade do Significante Esta segunda característica do signo é tão importante quanto a primeira, con- forme teremos oportunidade de constatar, em "Relações Aqui ampliaremos a noção deste segundo princípio do signo lingüístico, a partir daqui- lo que a Lingüística moderna tem chamado de unidades discretas. O princípio da discreção (neologismo referente às "unidades cf. discrição = qualidade de ser discreto, reservado) baseia-se no fato de que "toda 38unidade lingüística tem valor único sem matizes como diz Borba (1971: 58). Em outras palavras, os elementos de um enunciado lingüístico são diferentes entre si, limitados, independentes, sem variações. Ou pronunciamos "faca" ou "vaca". Não existe um meio termo entre /f/ e /v/, que são, desse modo, unidades discretas, isto é, separáveis, descontínuas. o princípio do tudo ou nada, digamos assim, que caracteriza, em síntese, as unidades discretas. Martinet (1971-a: 20) nos esclarece de vez com os exemplos de "bata" e "pata": Se um locutor articular mal, se houver barulho no ambiente, se a situação não me facilitar o papel de ouvinte, poderei hesitar em interpretar o que ouvi como "é uma linda bata" ou como "é uma linda pata"; mas sou obrigado a escolher uma ou outra das duas interpretações e não há, evidentemente, possibilidade de admitir uma mensagem intermediária. Com isso, concluímos que as unidades discretas têm de ser emitidas sucessiva- mente. Elas não são concomitantes, não são coexistentes, não são simultâneas. Ao contrário, são sucessivas e, por isso, só podemos emitir um fonema de cada vez, em linha, ou melhor, linearmente. Muito menos podemos emitir duas palavras ao mes- mo tempo. A língua, em seu funcionamento, pode ser descrita, portanto, como uma sucessão de unidades discretas, tanto no eixo paradigmático como no sintagmático. Mas é necessário lembrar que a linearidade é do significante e não do significado. Nesse sentido, adverte Saussure (CLG, 84): O significante, sendo de natureza auditiva, desenvolve-se no tem- po, unicamente, e tem as características que toma do tempo: a) representa uma extensão, e b) essa extensão é mensurável numa só dimensão: é uma linha. Do enunciado saussuriano depreendemos que somente a parte material do signo o significante é linear e que o pensamento, em si mesmo, não tem partes, não é sucessivo, só o sendo quando se concretiza através das formas fônicas lineares do significante. Aqui caberia compararmos o pensamento a uma tela, em que todos os elementos aparecem simultaneamente, formando um todo. Tal fato (a simultaneidade) já não é possível numa poesia, por exemplo, seja ela declama- da ou lida silenciosamente. Aliás, esse exemplo fundamenta com bastante clareza o princípio da linearidade do significante e torna oportuno citar o pensamento do próprio Saussure (CLG, 84): os significantes acústicos dispõem apenas da linha do tem- po; seus elementos se apresentam um após outro; formam uma cadeia. Esse caráter aparece imediatamente quando os repre- 39sentamos pela escrita e substituímos a sucessão do tempo pela linha espacial dos signos gráficos. Poderíamos também caracterizar o significado como um bloco, como um todo, como uma unidade que só se decompõe quando falamos ou escrevemos, quando materializamos nosso pensamento em ordem linear, ordem essa que também é arbitrária de língua para língua, uma vez que não existe ordem no pensamento e sim na língua. Atente-se, a propósito, para as palavras bastante esclárecedoras do lingüista dinamarquês Luís Hjelmslev (1968: 43-44): Al mirar un texto impreso escrito vemos que se compone de signos, y que éstos se componen a su vez de elementos que se desarrollan en una dirección determinada (cuando se utiliza el alfabeto latino, se extienden de izquierda a derecha; cuando se utiliza el alfabeto hebreo, se extienden de derecha a izquierda; cuando se utiliza el alfabeto mongol, se extienden de arriba abajo; pero se desarrollan siempre en una dirección determina- da); y cuando oímos un texto hablado, se compone para noso- tros de signos, y estos signos se componen a su vez de elemen- tos que se desarrollan en el tiempo: unos vienen antes, otros después. Los signos forman una cadena [cadeia], y los elemen- tos de cada signo forman asimismo [também] una cadena. O pensamento funciona, desse modo, com uma "força estruturante" da língua, segundo o Prof. Sílvio Elia, o qual, ao mesmo tempo, se indaga se a estrutura pro- funda (de Chomsky) não será, na verdade, o próprio pensamento. Se é, então o pensamento não é uma estrutura, ao contrário, ele é uma "força Nesse caso, segundo o referido mestre, não cabe falar em estrutura profunda e sim em "estrutura subjacente". Uma Crítica ao Princípio da Linearidade O lingüista Roman Jakobson contestou o princípio da linearidade do signifi- cante, argumentando que, num fonema qualquer, por exemplo, /b/, há um feixe de traços fônicos simultâneos (bilabial, oral, oclusivo e sonoro) e não-sucessivos, não-lineares. Mas, para Saussure, esses traços fônicos não passam de elementos do significante que já está formado na língua como um todo. Eis a resposta do próprio autor do CLG (p. 84): Em certos casos, isso [o princípio da linearidade] não aparece com destaque. Se, por exemplo, acentuo uma sílaba, parece que acumulo num só ponto elementos significativos diferentes. Mas trata-se de uma ilusão: a sílaba e seu acento constituem apenas 40um ato fonatório; não existe dualidade no interior desse ato, mas somente oposições diferentes com o que se acha a seu lado [ver capítulo "Relações Sintagmáticas e Paradigmáticas"]. De fato, uma palavra como cavalo também apresenta vários traços sêmicos (ser vivo, irracional, quadrúpede, animal, macho), todos contidos ao mesmo tempo, mas isso em nada abala o princípio da linearidade do significante, porquanto cava- lo, enquanto unidade discreta já formada, já "pronta" na língua, só se materializa fonicamente de forma linear. Por fim, cabe citar aqui a advertência do próprio Saussure (CLG, 84) sobre a relevância dessa segunda característica do signo lingüístico para uma teoria estruturalista (enquanto categoria formal) da linguagem: Esse princípio é evidente, mas parece que sempre se negligen- ciou enunciá-lo, sem dúvida porque foi considerado demasia- damente simples; todavia, ele é fundamental e suas conseqüên- cias são incalculáveis [de fato, na época, o eram]; sua impor- tância é igual à da primeira lei [a da arbitrariedade do signo]. Todo mecanismo da língua depende dele. Em resumo: indício (físico): fumaça, rastros Natural sintoma (fisiológico): pulsação, febre Tipos de Sinal ícone (motivado): estatueta, foto Convencional símbolo (intermédio): balança = justiça signo (imotivado): a palavra 41SIGNO Significante* / Significado* imagem acústica conceito perceptível inteligível psicofísico psíquico impressão psíquica do som evocação psíquica provocada pelo som representante representado tradução fônica de um conceito correlato mental do significante presença ausência som pensamento matéria idéia incorporante incorporado sensorial conceitual sêmainon sêmainomenon signans signatum** Arbitrariedade (do ste em relação ao sdo) Características Linearidade (do ste) Para Saussure: absoluto Arbitrário relativo Para Guiraud: derivação interna morfológica composição Motivação fonética externa metassêmica * Ambos de psíquica. ** Na terminologia de Santo Agostinho. 42O Signo Lingüístico 1. A diferença entre Semiologia e Lingüística é: a) A Semiologia difere da Lingüística por sua maior abrangência. A Lingüís- tica é O estudo científico da linguagem humana. Já a Semiologia estuda todo e qualquer tipo de código de comunicação. b) A Semiologia difere da Lingüística por ser arbitrária e a Lingüística, se- mi-arbitrária. c) A Semiologia e a Lingüística minimizam a linguagem humana. 2. Saussure preferiu termo Signo, e não Símbolo, porque a) O símbolo é totalmente arbitrário, e O signo é semi-arbitrário; b) O símbolo e O signo são ambos semi-arbitrários; c) O símbolo é semi-arbitrário, e O signo é totalmente arbitrário. 3. Relacione as colunas: 1 Signo ( ) Imagem psíquica, conceito ou representação mental que a imagem acústica evoca no falante. 2 Significante ( ) É semi-arbitrário. 3 Símbolo ( ) Imagem acústica, representação sonora (de natureza psicofísica) do vocábulo. 4 Significado Combinação arbitrária de um significante com um significado. 4. Assinale a segunda coluna de acordo com a primeira: 1 Língua ( ) Ciência que estuda as significações. 2 Semântica ( ) Produto e instrumento de uma cultura. 3 Semiologia Indícios de chuva, de fogo, etc. 4 Lingüística Febre, suor, dor, fome, etc. 5 Sinal convencional É a imagem acústica ou visual. É a expres- são da imagem mental. 6 Sinal natural (físico) ( ) Rastros, nuvens negras, luz, som, etc. 437 Sinal natural (fisiológico) É 0 conceito, a idéia que fazemos de um objeto. 8 Significado ( ) Signo. 9 Significante ( ) Teoria geral dos signos. 10 União do sdo + ste ( ) Sistema de signos vocais. ( ) Ciência que estuda OS códigos e sinais de comunicação. ( ) Estudo científico da linguagem humana. 5. O signo lingüístico é arbitrário. Isto quer dizer que: a) Não há uma relação natural entre significante e O significado. b) Há uma ligação natural entre a imagem acústica e O conceito. 6. Sobre as onomatopéias, podemos afirmar: a) Imitações convencionais de sons e ruídos naturais e que variam de lín- gua para língua. b) Imitação fiel e direta de um ruído ou som natural. 7. Marque com V se for verdadeira, e com F se for falsa: ( ) Os enunciados vocais decorrem no tempo e são captados pelo ouvido como sucessões. ( ) O caráter linear dos enunciados explica a sucessividade dos morfemas e fonemas. ( ) Somente a parte material do signo, O significante, é linear. 8. Relacione as duas colunas: 1 Arbitrariedade absoluta ( ) dezoito 2 Arbitrariedade relativa ( ) dez ( ) oito 449. Numere a coluna de acordo com a ( ) Semiologia 1 Representação intelectual de um objeto. ( ) 2 É semi-arbitrário. ( ) Significado 3 Estudo científico de todo e qualquer siste- ( ) Significante ma de comunicação. ( ) Símbolo 4 Não é som material e sim a impressão psíquica desse som. 5 Motivado. 10. "Não existe uma associação natural entre sons vocais e conceitos por eles expressos". Estas palavras saussurianas explicam: a) A teoria do signo. b) A linearidade do signo. c) A arbitrariedade do signo. d) Crítica à arbitrariedade. 11. Apenas uma parte dos signos é absolutamente arbitrária; em outras, inter- vém um fenômeno que permite reconhecer graus no arbitrário sem supri- mi-lo: signo pode ser relativamente motivado. ( ) Certo ( ) Errado 12. Vale-transporte e passatempo são exemplos de motivação formados por 13. No interior de uma mesma língua, todo O movimento da evolução não pode ser assinalado por uma passagem contínua do motivado ao arbitrário e do arbitrário ao motivado. Esse vaivém tem amiúde como resultado alterar sensivelmente as proporções dessas duas categorias de signos. ( ) Certo ( ) Errado 14. O Brasil, por seus contrastes socioeconômicos, tem sido considerado uma espécie de Belíndia (Bélgica + Índia). O neologismo Belíndia é um exemplo de motivação formado por 4515. "Enxugar texto" (torná-lo mais sucinto) e "enxugar a máquina adminis- trativa" (reduzir despesas) são exemplos de motivação do tipo 16. A Morfologia pode constituir uma disciplina distinta da Sintaxe. ( ) Certo ( ) Errado 17. A flexão é uma forma típica da associação das formas lingüísticas no espíri- to do falante. Trata-se de uma categoria gramatical da língua. ( ) Certo ( ) Errado 18. Para se fazer a associação de duas unidades lingüísticas é necessário sentir que elas oferecem algo em comum, e também distinguir a natureza das rela- ções que regem as associações. ( ) Certo ( ) Errado 19. Marque a alternativa correta: Signo é: I O resultado da soma do significante com significado; II a união do sentido com a imagem acústica; III formado de duas faces: significante e significado. a) Somente a alternativa I está correta. b) Somente a alternativa III está correta. c) As alternativas I, II, III estão corretas. d) Todas as alternativas acima estão erradas. 20. Marque V ou F: Para Saussure, sentido não é a mesma coisa que conceito ou idéia. ( ) O signo lingüístico é "uma entidade psíquica de duas faces". 21. Marque a alternativa correta: a) Os contraditores consideram as onomatopéias palavras imotivadas. 46b) Existem as onomatopéias autênticas ("tic-tac", "glu-glu"), pouco nume- rosas. c) Mattoso Camara acha que as onomatopéias são imitações fiéis e diretas dos ruídos naturais. 22. As entidades concretas da língua são: ( ) OS signos; ( ) OS conceitos; ( ) as imagens acústicas; 23. A entidade lingüística só existe pela associação do significante e do significado. ( ) Errado 24. Nos exemplos: "Vou tomar (1) a lição." e "Vou tomar (2) café.", tomar (1) e tomar (2) constituem a mesma unidade lingüística, isto é, têm O mesmo valor. 25. O vínculo entre dois empregos da mesma palavra não se baseia nem na identidade material nem na exata semelhança de sentido. ( ) Errado 26. "A espada vence, mas não convence". "Espada" = "força" é um caso de metonímia. Trata-se de uma metassemia, um exemplo de: a) motivação interna; b) motivação externa. 27. Em "guarda-roupa", temos um caso de motivação interna. Justifique a afir- mativa com suas palavras. 47As Dicotomias Saussurianas A doutrina de Saussure baseia-se numa série de pares de distinções, atribuídas por Georges Mounin (1973: 54) à sua "mania Citando o próprio Saussure ("A linguagem é redutível a cinco ou seis dualidades ou pares de coisas"), Mou- nin nos revela que o mestre de Genebra estava bem consciente de sua perspectiva dicotômica, o que, aliás, é confirmado logo nas primeiras páginas do Curso de lin- güística geral. Afirma Saussure (CLG, 15): o fenômeno lingüístico apresenta perpetuamente duas faces que se correspondem e das quais uma não vale senão pela outra". Comecemos pela oposição fundamental: língua/fala. LÍNGUA/FALA Esta é sua dicotomia básica e, juntamente com o par sincronia/diacronia, consti- tui uma das mais fecundas. Fundamentada na oposição social/individual, revelou-se com o tempo extremamente O que é fato da língua (langue) está no campo social; o que é fato da fala ou discurso (parole) situa-se na esfera do individual. Re- pousando sua dicotomia na Sociologia, ciência nascente e já de grande prestígio en- tão, Saussure (p. 16) afirma e adverte ao mesmo tempo: "a linguagem tem um lado individual e um lado social, sendo impossível conceber um sem o outro". A língua Do exame exaustivo do Curso, depreendemos três concepções para língua: acervo lingüístico, instituição social e realidade sistemática e funcional. Analise- mo-las à luz do CLG. - A língua como acervo lingüístico A língua é uma realidade psíquica formada de significados e imagens acústi- cas; "constitui-se num sistema de signos, onde, de essencial, só existe a união do 49sentido e da imagem acústica, onde as duas partes do signo são igualmente psíqui- cas" (p. 23); é "um tesouro depositado pela prática da fala em todos os indivíduos pertencentes à mesma comunidade, um sistema gramatical que existe virtualmen- te em cada cérebro ou, mais exatamente, nos cérebros dum conjunto de indiví- duos" (p. 21); a língua é "uma soma de sinais depositados em cada cérebro, mais ou menos como um dicionário cujos exemplares, todos idênticos, fossem reparti- dos entre os indivíduos" (p. 27). A língua, como acervo lingüístico, é conjunto de hábitos lingüísticos que permitem a uma pessoa compreender e fazer-se compreender" (p. 92) e "as asso- ciações ratificadas pelo consentimento coletivo, e cujo conjunto constitui a lín- gua, são realidades que têm sua sede no cérebro" (p. 23). A língua, enquanto acervo, guarda consigo toda a experiência histórica acu- mulada por um povo durante a sua existência. Disso nos dá testemunho o Latim, símbolo permanente da cultura e das instituições do povo romano. A língua como instituição social Saussure considera (da mesma forma que Whitney) que a língua "não está completa em nenhum indivíduo, e só na massa ela existe de modo completo" (p. 21), por isso, ela é, ao mesmo tempo, realidade psíquica e instituição social. Para Saussure, a língua "é, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade da lin- guagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos" (p. 17); é "a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo, que, por si só, não pode nem criá-la nem mo- dificá-la; ela não existe senão em virtude de uma espécie de contrato estabelecido entre os membros da comunidade" (p. 22). - A língua como realidade sistemática e funcional Este é o conteúdo mais importante do conceito saussuriano a respeito da lín- gua. Para o mestre de Genebra, a língua é, antes de tudo, "um sistema de signos distintos correspondentes a idéias distintas" (p. 18); é um código, um sistema onde, "de essencial, só existe a união do sentido e da imagem acústica" (p. 23). Saussure vê a língua como um objeto de "natureza homogênea" (p. 23) e que, por- tanto, se enquadra perfeitamente na sua definição basilar: "a língua é um sistema de signos que exprimem idéias" (p. 24). A fala, ao contrário da língua, Saussure a apresenta multifacetada e heterogê- nea. Diz o mestre que "a fala é um ato individual de vontade e inteligência, no qual convém distinguir: 1°) as combinações pelas quais o falante realiza o código da língua no propósito de exprimir seu pensamento pessoal; 2°) o mecanismo psi- cofísico que lhe permite exteriorizar essas combinações" (p. 22). Saussure classi- fica a fala como o "lado executivo" da linguagem, cuja "execução jamais é feita pela massa; é sempre individual e dela o indivíduo é sempre senhor; nós a chama- 50remos fala" (p. 21). E fala em oposição a língua. A fala é a própria língua em ação, enérgeia (atividade) e não érgon (produto). Aprofundando a base teórica dessa dicotomia fundamental para a compreen- são da obra de Saussure, somos levados a reconhecer a influência incontestável e decisiva que o debate entre os dois expoentes da Sociologia de então, Durkheim e Tarde, exerceu sobre ele. Sua dicotomia parece ter sido uma tentativa de concilia- ção entre as duas posições sociológicas vigentes. Da idéia de fait social (fato so- cial), de Durkheim, procede a postulação da língua, segundo Lepschy (1971: 30): Porque ambas [tanto a idéia de língua, como a de fato social] se referem a fatos psicossociais, externos ao indivíduo, sobre o qual exercem uma contrainte (coerção), e existentes na cons- ciência coletiva do grupo social. Por outro lado, o reconhecimento do elemento individual, a fala, estaria em consonância com as idéias de Gabriel Tarde. É oportuno lembrar também a con- cepção durkheimiana, segundo a qual a sociedade prima sobre o indivíduo, pois como afirma Giani (s/d: 1957), controle social existe em função da manuten- ção da organização social". O homem não passa de uma parcela do pensamento letivo, ainda segundo Giani (p. 44): "o indivíduo é, em grande parte, aquilo que a sociedade espera que ele seja. Cada grupo social incute em seus membros um con- junto de maneiras de pensar, sentir e agir". Diante disso, compreende-se por que ra- zão Saussure atribuiu papel destacado ao estudo da língua e minimizou a fala. Para Saussure (CLG, 25), sendo a língua uma instituição social, socialmente é que devem ser estudados os seus signos, uma vez que signo é social por nature- za". Considera ele que a língua, como representação coletiva, se impõe ao indiví- duo inapelavelmente. Nenhum indivíduo tem a faculdade de criar a língua, nem de modificá-la conscientemente. Ela é como uma armadura dentro da qual nos movimentamos no dia-a-dia da interação humana. Como qualquer outra institui- ção social, a língua se impõe ao indivíduo coercitivamente. Por isso, ela constitui um elemento de coesão e organização social. A fala A fala, ao contrário da língua, por se constituir de atos individuais, torna-se múltipla, imprevisível, irredutível a uma pauta sistemática. Os atos lingüísticos individuais são ilimitados, não formam um sistema. Os atos lingüísticos sociais, bem diferentemente, formam um sistema, pela sua própria natureza homogênea. Ora, a Lingüística como ciência só pode estudar aquilo que é recorrente, constan- te, sistemático. Os elementos da língua podem ser, quando muito, variáveis, mas jamais apresentam a inconstância, a irreverência, a heterogeneidade característi- cas da fala, a qual, por isso mesmo, não se presta a um estudo sistemático. 51Diz-nos o mestre suíço à p. 18 do CLG: Para atribuir à língua o primeiro lugar no estudo da linguagem, pode-se, enfim, fazer valer o argumento de que a faculdade na- tural ou não [e para Saussure o ser natural ou não é irrelevante: preocupa-se unicamente com a língua em si mesma] de articu- lar palavras não se exerce senão com a ajuda de instrumento criado e fornecido pela coletividade; não é, então, ilusório di- zer que é a língua que faz a unidade da linguagem. E, sustentando a autonomia dos estudos da língua, afirma à p. 22: "a língua é uma coisa de tal modo distinta que um homem privado do uso da fala conserva a língua, contanto que compreenda os signos vocais que ouve". Não obstante, Saussure (p. 27) insiste sempre na interdependência dos dois constituintes da linguagem: esses dois objetos estão estreitamente ligados e se implicam mutuamente: a língua é necessária para que a fala seja inteligí- vel e produza todos os seus efeitos; mas esta é necessária para que a língua se estabeleça. E adverte (p. 27): "historicamente o fato da fala vem sempre antes". É impor- tante, a propósito, registrar a concessão feita por Saussure (p. 27) ao elemento in- dividual, com toda a certeza inspirada em Gabriel Tarde: "é a fala que faz evoluir a língua: são impressões recebidas ao ouvir os outros que modificam nossos hábi- tos É tal a interdependência entre a língua e a fala que Saussure considera a língua, ao mesmo tempo, instrumento e produto da fala. O próprio mecanismo de funcionamento da linguagem repousa nessa interdependência, como ressalta Saussure (p. 27): Como se imaginaria associar uma idéia a uma imagem verbal, se não se surpreendesse de início esta associação num ato de fala? Por outro lado, é ouvindo os outros que aprendemos a lín- gua materna; ela se deposita em nosso cérebro somente após inúmeras experiências. Depreende-se do arrazoado saussuriano que tanto o funcionamento quanto a exploração das potencialidades da linguagem estão intimamente ligados às impli- cações mútuas existentes entre os elementos língua e fala. A feliz dicotomia língua/fala é o ponto de partida para Saussure postular uma Lingüística da língua e uma Lingüística da fala (embora Mounin [1973: 69] le- 52vante dúvida a respeito da autenticidade dessa postulação por parte do mestre. Mounin prefere a Bally e Sechehaye), sendo que, para o mestre genebri- no, a Lingüística propriamente dita é aquela cujo único objeto é a língua: "Unica- mente desta última é que cuidaremos" (CLG, 28), ressalva Saussure. Desse modo, vemos que Saussure realmente tinha plena consciência da natu- reza opositiva dos fenômenos lingüísticos. Eis suas próprias palavras (p. 28): "Esta é a primeira bifurcação que se encontra quando se procura estabelecer a teo- ria da linguagem". A razão de Saussure haver preferido tomar o caminho da língua quando se viu diante de sua famosa bifurcação encontra-se em outra oposição conseqüente: sis- tema/não-sistema, isto é, sistema língua :: não-sistema fala. Sendo o sistema superior ao indivíduo (supra-individual), todo elemento lin- güístico deve ser estudado a partir de suas relações com os outros elementos do sistema e segundo sua função ("a língua é um sistema do qual todas as partes po- dem e devem ser consideradas em sua solidariedade CLG, 102), e não por suas características físicas, psicológicas, etc. O conhe- cido exemplo do jogo de xadrez esclarece cabalmente o pensamento saussuriano nesse particular. As peças de um jogo de xadrez são definidas unicamente segundo suas fun- ções e de acordo com as regras do jogo. A forma, a dimensão e a matéria de cada peça constituem propriedades puramente físicas e acidentais, que podem variar extremamente sem comprometer a identidade da peça. Essas características físi- cas são irrelevantes para o funcionamento do sistema (= o jogo de xadrez). Uma peça até pode ser substituída por outra, desde que a substituta venha a ser utilizada con- forme as regras do jogo. Levando para o sistema lingüístico o exemplo de Saussure, temos que todo elemento lingüístico uma vogal, uma consoante, um acento, um fonema, um morfema, etc. deve ser definido lingüisticamente apenas de acordo com suas relações (sintagmáticas e paradigmáticas) com os outros elementos ou por sua função no sistema, e não levando-se em conta suas acidentais proprieda- des: modo de formação, estrutura acústica, variantes morfofonêmicas, etc. Aqui torna-se pertinente introduzir outra postulação saussuriana, segundo a qual "A Língua é uma Forma e não uma Substância" (CLG, 141). Forma, para Saussure, é usada no sentido filosófico, isto é, como essência, e não no sentido estético, como aparência. A teia de relações entre os elementos lingüísticos é que constitui a forma. Os elementos da rede constituem a substân- cia. Voltando ao exemplo do jogo de xadrez, diríamos que as regras do jogo (a teia 53de relações entre as peças) estão para forma, assim como as peças do jogo estão para substância. Uma frase como comprá dois pão" apresenta alteração ape- nas na substância. Sua estrutura, apesar do fator "erro" (desvio em relação à norma culta), continua a ser a de uma frase da língua portuguesa. Ela conserva toda a gramaticalidade sintática do sistema lingüístico português, isto é, da língua portuguesa, e toda a coerência interna inerente aos elementos desse sis- tema: (sujeito) + verbo auxiliar + verbo principal + objeto (determinante + deter- minado). Portanto, sua forma, o que é de fato relevante para o funcionamento do sistema, não sofreu em nada com a mudança acidental das propriedades físicas de sua substância. Dito de outro modo: forma língua :: substância fala. Mesmo tendo dado tanta ênfase ao estudo da língua, Saussure não deixou de tratar também da substância (fala), reconhecendo que a sua função é fazer a liga- ção com a forma, que é, em última análise, para ele, a verdade total. Reportan- do-nos ao pensamento lingüístico da Grécia Antiga, diríamos que Saussure admi- tiu tacitamente que a língua não é só analogia, ela tem também as suas sólidas e saudáveis anomalias. Cabe-nos, entretanto, chamar a atenção para o fato de que, a nosso ver, o con- ceito de forma (estrutura) não exclui o componente semântico. Ao contrário, o componente semântico é que dá sentido à noção de forma, sem o quê, forma corre o risco de tornar-se letra morta, concepção sem serventia para a ciência lingüísti- ca, principalmente para a Lingüística dita estrutural. Como adverte o Prof. Sílvio Elia (1978: 120), "linguagem é Desse modo, concebemos forma como coerência sintática + coerência semânti- ca. Coerência sintática (espécie de sintaxe mental ou estruturação do pensamento) existe, por exemplo, tanto em "O menino chutou a bola" como em "A bola chutou o menino". Em ambas as orações, é inegável a realização sintaticamente coerente de um dos padrões frasais básicos da língua portuguesa, isto é, sujeito + verbo + objeto direto. Só a primeira frase, entretanto, encontra correspondência conceitual (feed- back) ou repercussão lingüística no espírito do falante, justamente por ser a única que contém uma verdade semântica confiável, uma coerência significativa, que constitui, juntamente com a coerência sintática da frase, um todo individualizador e pertinente do ponto de vista da intercomunicação lingüística. Uma Crítica à Língua/Fala Não se pense que a dicotomia saussuriana tenha ficado ao abrigo de críticas nesse seu mais de meio século de existência. A principal delas partiu do lingüista romeno Eugenio Coseriu (1973: 70), que propôs uma divisão tripartida segundo o modelo abaixo, por achar insuficiente a bipartição saussuriana: 54fala uso língua (norma (sistema intermediária) funcional) A divisão de Coseriu (1973: 97) vai do mais concreto (fala) ao mais abstrato (língua), passando por um grau intermediário: a norma. Segundo ele, o sistema funcional (língua) es un conjunto de oposiciones funcionales; la norma es la reali- zación "colectiva" del sistema, que contiene el sistema mismo y, además, los elementos funcionalmente "no-pertinentes", pero normales en el hablar de una comunidad. A fala, por sua vez, na concepção coseriana (1973: 98), es la realización individual-concreta de la norma, que contiene la norma misma y además, la originalidad expresiva de los in- dividuos hablantes. Francisco da Silva Borba (1970: 67) define a norma como um conjunto de realizações constantes e repetidas, de caráter sociocultural e dependente de vários fatores operantes na co- munidade idiomática. Em outras palavras, há realizações consagradas pelo uso e que, portanto, são normais em determinadas circunstâncias lingüísticas, circunstâncias estas pre- visíveis pelo sistema funcional. É à norma que nos prendemos de forma imedia- ta, conforme o grupo social de que fazemos parte e a região onde vivemos. A norma seria assim um primeiro grau de abstração da fala. Considerando-se a lín- gua (o sistema) um conjunto de possibilidades abstratas, a norma seria então um conjunto de realizações concretas e de caráter coletivo da língua. Segundo Co- seriu (1973: 90), a norma é o "como se diz", e não o "como se deve dizer", por isso, "los conceptos que, con respecto a ella, se oponen son normal y anormal, y no correcto e incorrecto". Em resumo, em termos coserianos, a fala é o real indi- vidual, a norma é o real coletivo, e a língua é o ideal coletivo, nem sempre nor- 55mal, embora possível e disponível. Vejamos alguns exemplos da oposição nor- ma/sistema no português do Brasil. O conhecido [š], chiante pós-vocálica, variante de [s], é norma no Rio de Ja- neiro em todas as classes sociais: gás [gaš], mês [meš], basta [bašta]. Já no Sul, a pronúncia sancionada pelo uso (ou norma) é marcadamente alveolar: [basta], [mês], [gás]. No campo da Morfologia, o sistema dispõe dos sufixos -ada e -edo, ambos com o sentido de coleção. Enquanto, para designar grande quantidade de bi- chos, a norma culta prefere o primeiro (bicharada), a norma geral no falar gaúcho consagrou o segundo: bicharedo. O mesmo acontece com os sufixos diminutivos -inho e -ito, ambos disponíveis no sistema funcional: a norma fora do Rio Grande do Sul é dizer-se salaminho; já em terras gaúchas o uso sancionou salamito. No pla- no sintático, a língua (sistema) portuguesa dispõe dos advérbios já e mais que, quando usados numa frase negativa, indicam a cessação de um fato ou de uma ação. A norma brasileira preferiu o segundo (eu não vou mais / não chove mais); a portu- guesa optou pelo primeiro (eu já não vou / já não chove). O português do Brasil prefere descrever um fato em progressão dizendo: estou estudando (aux. + gerún- dio); já em Portugal, a norma é usar-se aux. + infinitivo: estou a estudar. Ainda com relação à norma brasileira, não podemos deixar de mencionar o já consagra- díssimo ter no lugar de haver, com o sentido de "existir", uso inclusive já referen- dado por vários autores nacionais de peso, Drummond e Bandeira, entre outros. Como diz Santos (1979: 19), norma é conjunto das realizações lingüísticas constantes do sistema. É ela que revela como o sistema funciona numa coletivida- de". Por exemplo, a língua portuguesa dispõe de dois prefixos com valor negati- vo: in- e des-. Ambos fazem parte (além de outros) do nosso sistema lingüístico e se encontram à disposição dos falantes de língua portuguesa, isto é, existem em potencial. O uso de um ou de outro vai depender da comunidade lingüística, esta é quem estabelece o que é normal (o que se diz) ou anormal (o que se poderia dizer). Assim sendo, a norma coletiva consagrou infeliz, e não *desfeliz. Inversamente, preferiu descontente e rejeitou *incontente. Ao falante, como parcela do pensa- mento coletivo, só cabe aceitar inapelavelmente o que o seu grupo lingüístico consagrou (v., a propósito, a arbitrariedade do signo lingüístico), pois na língua não existe propriedade privada, tudo é socializado. Do exposto, concluímos que a norma é a realização da língua, e a fala, por sua vez, a realização da norma, como o demonstra figuradamente o modelo coseriano (1973: 95) abaixo: 56