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TEXTO 5 - REFLEXÃO SOBRE A DISTINÇÃO ENTRE FONÉTICA E FONOLOGIA Profa. Dra. Consuelo de Paiva G. Costa Na extensa história do estudo das línguas humanas, antes do aparecimento da Lingüística como “ciência” da linguagem, o que tínhamos eram os chamados Neogramáticos e suas interpretações baseadas sobretudo na escrita. No máximo, dedicava-se um capítulo à „pronúncia‟. A concepção neogramática da língua admitia apenas a pesquisa lingüística histórica. Positivistas, herdeiros dos comparatistas, esses estudiosos tinham por objetivo o estudo dos fatos da evolução nas diferentes línguas. Isto é, tentavam interpretar, em termos de leis, as mudanças lingüísticas. O estudo das línguas era, portanto, limitado à DIACRONIA. Lingüistas, em várias partes do mundo, começaram a perceber que o estudo sincrônico da língua poderia ser muito produtivo para as interpretações dos eventos lingüísticos. As abordagens lingüísticas, nesse período, começavam já a delinear um tratamento mais próximo da abstração psíquica para o fonema - recém-batizado por Baudouin de Courtenay, um lingüista russo – em contraposição ao fone, unidade física do som. Essa grande tendência no estudo da linguagem se manifestava ao mesmo tempo em diversos pontos do globo1: além de Courtenay, havia, em Genebra, Ferdinand de Saussurre que interpretou a linguagem como dicotomias (significante/ significado; langue / parole; sincronia / diacronia...) No leste europeu, o Círculo Lingüístico de Praga - representado principalmente por Roman Jakobson e Nicolai Trubetzkoy – adotavam uma concepção sistêmica ou funcional da língua, na qual cada elemento só existe em oposição a outro(s). Na América formavam-se duas tendências na Lingüística: a concepção fonética, que foi rotulada de DISTRIBUCIONALISTA2, Pike e Blommfield); e a concepção psicológica da língua – de B. de Courtenay, que foi seguida por Edward Sapir. Nesse cenário teórico, no qual começava a delinear-se uma Lingüística que deixava de ser somente histórica, os olhares voltaram-se para os aspectos sincrônicos das línguas: percebeu- se, então, que os sons apresentavam dois níveis de representação. 1 Vejam-se as colocações de Mattoso Câmara Jr. sobre este assunto na “Estrutura” – Câmara Jr, M.J (1970:23). 2 Tendo nos deixado conceitos bastante visitados na fonologia, como distribuição complementar alofonia [tia] x [tia] ; [dia] x [dia] ; [kas‟ka] x [ xaz‟ga] No nível da realização superficial, encontram-se sons que são diferentes, mas o falante nativo sabe que são representantes de um mesmo elemento. Daí surgiu a necessidade de se separar a Fonética da Fonologia, para explicar a existência de alofones. Pensando, sobretudo, no Estruturalismo Europeu, a comparação entre as definições de „fonética e fonologia‟ em alguns autores evidenciam como estes conceitos estavam ainda se esboçando. JAKOBSON, em seu trabalho intitulado Fonema e Fonologia3, define: “FONOLOGIA é a parte da lingüística que trata dos sons da fala em referência à função que eles exercem numa língua dada, ao passo que a FONÉTICA tem como tarefa a investigação dos sons da fala de um ponto de vista puramente fisiológico, físico e psico-acústico.” JÁ SAUSSURE, no capítulo VII do “Curso”4, chamado A FONOLOGIA, chama a atenção para um suposto equívoco: “A fisiologia dos sons é freqüentemente chamada de “Fonética”. Esse termo nos parece impróprio; substituímo-lo por “Fonologia”. Pois Fonética designou a princípio, e deve continuar a designar, o 3 Jakobson, R (1967:11). 4 Curso de Lingüística Geral: Sausurre, F. (1916: 42). estudo das evoluções dos sons; não se deveriam confundir no mesmo título dois estudos absolutamente distintos.” O fato de se considerar a fonologia de uma língua como um sistema que relaciona alofones a representações subjacentes (fonemas) continuou sendo uma constante em SPE5 e, como conseqüência, em todo o Gerativismo. Fonemas e alofones, apesar dos traços distintivos, mantêm uma representação “aproximadamente alfabética”, como coloca Albano (1999:94), o que serve para marcar as correspondências entre o fonema estruturalista e o gerativista. No quadro dos modelos fonológicos não-lineares, entre eles a Fonologia Autossegmental, o caráter de sucessão temporal do fonema gerativo é conservado na camada temporal (X) ou skeleton. Contudo, em meados da década de 80, começam a surgir trabalhos que repensam esta divisão das disciplinas entre Fonética e Fonologia e apontam para a junção das duas áreas, considerando-se um único nível de representação fônico: o gesto articulatório, que é um movimento carregado de “intenção”, portanto, é, ao mesmo tempo, fonético e fonológico. De fato, a Fonologia Articulatória (FAR), proposta por Browman & Goldstein (1985), intentava uma interpretação fônica que unisse a Fonética à Fonologia, já que tanto o planejamento 5 Chomsky e Halle (1968). quanto a execução da fala estão contidos em unidades fônicas como os gestos6. O gesto não tem relação de 1 para 1 nem com os segmentos nem com os traços: Por um lado, pensando na relação entre segmento e gesto articulatório, considere-se um gesto como „fechamento bilabial‟. Ele está presente em todas as consoantes bilabiais, como /b/, /m/ e também /p/. Para qualquer dos segmentos bilabiais, há também abertura ou não da glote (o que dirá se o som é surdo ou sonoro), assim o som vai requerer os dois movimentos diferentes: p. ex., /p/ tem fechamento bilabial combinado a glote aberta (já que é surdo), isto é, a produção de /p/ requer os dois movimentos (gestos) articulatórios diferentes. Por outro lado, observe-se que um único gesto de fechamento bilabial corresponderia a muitos traços ao mesmo tempo: [-contínuo], [+anterior], [-coronal], [+consonantal], [- vocálico]... 6 Veja a definição dos autores: “Gestos são caracterizações abstratas de eventos articulatórios discretos (fisicamente reais) que acontecem durante o processo de produção da fala. Gestos são comparativamente abstratos – eles não são os movimentos articulatórios em si mesmos, mas antes, as funções subjacentes aos movimentos observados” (B&G1990b:306). Apud D‟Angelis (1998:307) Albano propõe a Fonologia Acústico-Articulatória (FAAR) baseada no modelo na FAR - de Browman & Goldstein (1985) - levando-se em consideração também a duração (intervalo de tempo) do movimento articulatório7. As “Fonologias Articulatórias” trazem um importante ganho para a teoria fonológica que é o fato de a representação gestual ser uma representação fônica única e apontar a tendência de que os padrões fônicos das línguas do mundo sejam representados por “entidades” que unem o abstrato ao físico, no que se refere aos sons. Porém, parece realmente distante de nós uma realidade na teoria fonológica (ou, deveria dizer, nas escolas de Lingüística) que, hoje em dia, desconsidere a tradicional divisão entre Fonética e Fonologia. Bibliografia: ALBANO, Eleonora C. (1999). O gesto e suas bordas: esboço de fonologia acústico-articulatória do português brasileiro. LAFAPE, IEL, UNICAMP. Browman & Goldstein (1985), 7 Esse movimento pode encolher ou expandir-se sobre os demais. “Assim, um gesto de fechamento glotal, por exemplo, pode encolher, dando lugar a uma sonora parcialmente desvozeada.” Albano (1999:99). Câmara Jr, J. M. Estrutura da língua portuguesa. Petrópolis, R.J.: Vozes, 1970. CHOMSKY, Noam & HALLE, Morris. The sound pattern of English. New York: Harper & Row, 1968. D‟ANGELIS, Wilmar da Rocha. Traços de modo e modos de traçar geometrias: Línguas Macro-Jê & Teoria fonológica. Campinas, SP: IEL – UNICAMP. Tese de Doutorado, 1998 JAKOBSON, Roman. Fonema e Fonologia. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1967. SAUSSURE, Ferdinand de (1949). Cours de Linguistique Générale. Org. por Charles Bally e Albert Sechehaye. Paris: Payot, (1ª ed. 1916).
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