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Havia uma cidade inteira feita de pedidos: ruas traçadas por bandejas, calçadas pontilhadas de sacolas, janelas que se abriam apenas para deixar passar motoboys e entregas quentes. Foi nesse labirinto urbano que encontrei, não um romance, mas uma fábula contábil — a contabilidade de empresas de delivery — cuja narrativa mistura urgência, tecnologia e as velhas questões do registro e da prova. Esta resenha pretende falar dessa fábula: suas personagens, seus conflitos e, sobretudo, a maneira como os números tentam traduzir uma economia instantânea. No centro da cena está a plataforma, figura ambígua que ora é palco, ora é ator. Ela anuncia o preço, calcula a taxa, recebe o pagamento e repassa o que lhe convém. Para o contador, a plataforma é um enigma: é intermediária, vendedora, prestadora de serviço? Cada resposta exige um tratamento contábil diferente. O romance contábil começa quando se decide o que é receita: o total movimentado (GMV) ou apenas a "take rate", a receita líquida que permanece no balanço após a comissão dos parceiros. A escolha define margens, impostos e a percepção de valor pela gestão e pelos investidores. A narrativa se complica com os personagens secundários — restaurantes, dark kitchens, entregadores e consumidores — que entram e saem do palco com contratos e recibos. Há empresas que apenas intermediam pedidos; outras vendem mercadorias; algumas alugam a frota; e muitas combinam funções. Assim, o contador precisa classificar vendas, provisões e passivos com a precisão de um crítico literário que separa personagem de narrador. Promoções, cupons e estornos se comportam como pontes narrativas: reduzem o valor a reconhecer, geram provisões e, quando mal conciliados, produzem um final amargo em forma de prejuízo. O sistema de pagamentos cria páginas inteiras de reconciliações: o consumidor paga ao app, o app retém sua comissão, retém tributos, repassa o restante ao restaurante dias depois, e financia incentivos aos entregadores. Essas "contas a pagar" e "contas a receber" não são meras notas fiscais; são pequenos capítulos de fluxo de caixa que exigem conciliação diária entre extratos bancários e relatórios da plataforma. A divisão de responsabilidades em split payments — pagamentos fracionados entre partes — exige lançamentos sofisticados e controles para evitar duplas receitas ou omissão. Tributariamente, a história é perfumada por uma trama de múltiplos atos: ISS sobre serviços de entrega, ICMS quando há circulação de mercadorias, PIS/COFINS e contribuições sociais e a escolha pelo Simples Nacional, Lucro Presumido ou Lucro Real. Cada regime impõe seus ritos e penalidades. Empresas que se apresentam como mera tecnologia, mas operam logística, frequentemente descobrem, no meio do enredo, autuações ou demandas fiscais. O leitor — gestor ou contador — precisa ser um leitor atento dessa legislação mutante. O capítulo mais tenso é o relacionamento com os entregadores. São trabalhadores autônomos ou empregados? A classificação impacta folha, encargos e contingências trabalhistas. A jurisprudência tem oscilado, e a contabilidade deve espelhar o risco: provisões para passivos trabalhistas podem converter um lucro promissor em uma dívida temerosa. Adicione a isso obrigações previdenciárias, seguros e a gestão de benefícios — há verbas que não figuram no fluxo operacional, mas pesam no custo real da entrega. Há também capítulos sobre ativos: frotas próprias, bicicletas e scooters, e depreciação que conta a história do desgaste urbano. Softwares, contratos de licenciamento e plataformas próprias compõem intangíveis que exigem testes de recuperabilidade. Inventários são curtos em empresas pure players, exceto quando há operação de dark kitchens, onde estoques perecíveis contam histórias de perdas e adequação de precificação. Do ponto de vista da governança, a contabilidade em empresas de delivery pede sistemas integrados, automações e controles. Relatórios de conciliação automática, provisionamento de estornos, mapa de impostos por município e análises de rentabilidade por região são as páginas que evitam surpresas. Auditorias internas que verificam a correta alocação de receitas entre marketplace e vendedores salvam credibilidade. Em suma, é uma narrativa de precisão: cada centavo deve ser rastreável até seu momento de reconhecimento. Como resenha, avalio que a contabilidade dessas empresas exige mais que técnica; exige sensibilidade narrativa. Um bom contador é, simultaneamente, autor e arquivista: escreve políticas contábeis claras, mas mantém arquivos que provam cada escolha. As decisões não são neutras — afetam métricas de performance, atração de capital e a reputação frente a órgãos reguladores. A literatura contábil do setor está em construção, entre decisões de curto prazo e a busca por modelos sustentáveis. Fecho esta resenha com uma imagem: um relatório contábil visto ao amanhecer, quando os restaurantes ainda fecham suas portas e a cidade contabiliza entregas. Ali se lêem não apenas números, mas as marcas de um serviço que transformou rotina em economia. A contabilidade de empresas de delivery é, portanto, um ofício que traduz velocidade em memória e incerteza em balanço — e, quando bem feita, confere sentido e continuidade a uma fábula urbana que não para de crescer. PERGUNTAS E RESPOSTAS: 1) Como reconhecer receita em uma plataforma de delivery? R: Reconhece-se a receita líquida (take rate) quando a plataforma age como intermediária; se tiver venda própria ou estoque, registra-se o valor bruto de venda. Cupons e estornos reduzem a receita reconhecida. 2) Como tratar o GMV nos demonstrativos? R: GMV é métrica operacional, não receita. Deve ser divulgado para gestão, mas a receita no DRE costuma ser a parte efetivamente auferida pela plataforma. 3) Quais tributos mais comuns e riscos fiscais? R: ISS, ICMS, PIS/COFINS e contribuições previdenciárias. Riscos incluem classificação equivocada de serviço/mercadoria e incompatibilidade entre notas e repasses. 4) Como contabilizar entregadores autônomos vs empregados? R: Autônomos geram despesas por serviços tomados; empregados exigem folha, INSS e FGTS, além de provisões trabalhistas. A classificação impacta passivos e contingências. 5) Quais controles prioritários para evitar perdas? R: Conciliações diárias entre plataforma e bancos, provisão para estornos, segregação de funções no fechamento, e auditoria de split payments e repasses a parceiros.