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Emil Cioran - filosofia e fisiologia: reflexões com gosto de carne e sangue

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Fisiologia e filosofia em Emil Cioran
    *
Resumo ● O filósofo romeno Emil Cioran (1911-1995) atribui à insônia que o assolou desde a juventude
a origem de seu pensamento desiludido, sarcástico e demolidor. Em contraposição às abstrações vazias,
insípidas e equilibradas dos sistemas da tradição filosófica, o autor de Nos cumes do desespero apreciava as
reflexões que tivessem um gosto de carne e sangue, e sobretudo que fossem oriundas de exaltações e
depressões nervosas. Em outras palavras, na perspectiva pessimista de Cioran, filosofia e fisiologia estão
visceralmente ligadas, fato que deve ser considerado como fundamental na compreensão e análise das
doutrinas.
Palavras-chave ● consciência, fisiologia, suicídio.
Title ● Physiology and Philosophy in Emil Cioran
Abstract ● The Romanian philosopher Emil Cioran (1911-1996) attributes to insomnia, which has
pestered on him since his youth, the origin of his deluded, sarcastic and demolishing thought. In opposition
to the empty, uninspired and balanced abstractions of the systems in traditional philosophy, the author of
On Top of Despair appreciated reflections tasting flesh and blood, particularly the ones based on exaltation
and nervous depression. In other words, from Cioran’s pessimistic perspective, philosophy and physiology
and intimately linked, something that must be regarded as basic for the comprehension and analysis of
doctrines.
Keywords ● awareness, physiology, suicide.
Data de recebimento: 03/10/2005.
Data de aceitação: 25/11/2005.
Versão modificada da palestra proferida no I Encontro de
Filosofia Francesa Contemporânea, realizado na FFLCH-USP,
em 21 de maio de 2003.
* Doutor em Filosofia pela USP e professor de Filosofia da
USJT. E-mail: prof.piva@usjt.br.
.   
Em carta ao amigo Franz Overbeck, o pensador
alemão Friedrich Nietzsche relata seu regozijo de
ter deparado fortuitamente numa livraria com as
Memórias do subsolo, novela de Fiódor Dostoiévski
publicada em 1864, tendo sido redigida durante
os últimos suspiros de sua esposa, tuberculosa, e
que o autor de O anticristo definiu de forma efusiva
como “a voz do sangue” (citado em SCHNAIDERMAN,
2001, p. 9).
Divisora de águas na obra do romancista-
filósofo russo, as Memórias são protagonistas da
fase do naturalismo dostoievskiano, mais precisa-
mente dos “ensaios fisiológicos”, conforme a nomen-
clatura da crítica literária de sua terra natal.
A atmosfera fisiológica das Memórias do subsolo
é, com efeito, bastante perceptível. Logo nas pri-
meiras frases de um narrador sombrio e sarcás-
tico lemos: “Sou um homem doente... Um homem
mau. Um homem desagradável. Creio que sofro
do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha
doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo.
Não me trato e nunca me tratei, embora respeite
a medicina e os médicos. Ademais, sou supersti-
cioso ao extremo; bem, ao menos o bastante para
respeitar a medicina. [...] Mas, apesar de tudo,
não me trato por uma questão de raiva. Se me
dói o fígado, que doa ainda mais” (DOSTOIÉVSKI,
2001, p. 15). Algo mais visceral e patológico impos-
sível. Mas o protagonista das Memórias, um desem-
pregado que já fora em outros tempos um
funcionário público desonesto e sem escrúpulos,
não pára por aí. Ele afirma que a consciência –
esta peculiaridade tão humana e historicamente
tão idolatrada pela filosofia – é em si mesma uma
doença (id., ibid., p. 19). E, quanto mais perspicaz
e afiada ela for, mais doentio e infortunado será o
indivíduo que a possui. Essa consciência clarivi-
dente e latejante Dostoiévski chama de “consciên-
cia hipertrofiada” (id., ibid., p. 20), a qual teria
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como antípoda, isto é, como consciência de natu-
reza oposta, a “consciência humana comum”
(DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 18). Esta consciência, por sua
vez, também chamada pelo autor de “consciência
do mingau” (id., ibid., p. 21), nada mais seria do
que a consciência dos homens do cotidiano, ou
seja, a consciência daqueles que, por viverem
submersos em seus afazeres rotineiros de subsis-
tência e por sentirem-se amparados por seus pre-
conceitos e por suas ilusões, acabariam não se
aprofundando em reflexões e questionamentos
mais essenciais. Essa consciência totalmente vol-
tada para as necessidades do estômago correspon-
deria a 1/4 da consciência hipertrofiada (id., ibid.,
p. 18). Segundo o protagonista da obra, 1/4 seria a
porção ideal, a fração menos mórbida, por assim
dizer, para quem quer ter uma vida consciente
tranqüila e sem dissabores vãos. Porção maior
do que essa de contato com a realidade, “uma cons-
ciência muito forte do inevitável da própria condi-
ção” (id., ibid., p. 20), seria, sugere o narrador, um
abscesso, por conseguinte, uma aberração fatal.
Ocorre que não nos é dado o direito de esco-
lher com qual tipo de consciência gostaríamos de
nascer, se a dos “homens diretos e de ação” ou a
dos “homens de pensamento” (id., ibid., p. 21).
Nascemos doentios ou convalescentes, ingênuos
ou amargos, histéricos ou melancólicos, sátiros ou
santos, conforme o movimento cego e a interação
fortuita dos átomos, das circunstâncias históricas
e, sobretudo, do excesso ou da falta de serotonina
no organismo. Desses fatos casuais implacáveis
depende nosso êxito ou nosso fracasso existencial.
É o que parece sustentar o personagem de Dos-
toiévski em suas Memórias.
.  
As reflexões de Dostoiévski nas Memórias fizeram
escola. Seu conterrâneo Máximo Górki, por exem-
plo, sustenta que todo o pensamento nietzschiano
está concentrado nessa obra (citado em SCHNAIDER-
MAN, 2001, p. 10). E, de Nietzsche ao existencialismo,
passando por Freud e Albert Camus, a consciência
agressiva, torturada e ressentida do personagem de
Dostoiévski fez várias vítimas, em especial, o pen-
sador romeno de escrita francesa Emil Cioran.
Cioran é indubitavelmente o autor de um dos
mais iconoclásticos, rancorosos e lúcidos discursos
filosóficos do século XX, certamente o responsável
por um dos mais fulminantes e bem-humorados
ataques metafísicos já feitos na história do pen-
samento ocidental contra a existência em sua es-
sência, superfluidade e totalidade. Seus aforismos
e ensaios breves, dotados de uma sofisticada iro-
nia e de um estrondoso laconismo, reduzem o uni-
verso, a vida e, em especial, o homem, com as suas
justificativas existenciais e esperanças, a um gro-
tesco e fastidioso nada.
Tal como o narrador das Memórias, Cioran
foi um pensador visceralmente orgânico, como
podemos constatar numa passagem inesquecível
de seu primeiro livro, ainda escrito em romeno,
Nos cumes do desespero, de 1934: “Amo o pensa-
mento que guarda um gosto de carne e sangue, e a
uma abstração vazia prefiro mil vezes uma refle-
xão surgida de uma exaltação dos sentidos ou de
uma depressão nervosa. Os homens ainda não
compreenderam que o tempo das preocupações
superficiais é passado, e que um uivo de desespero
é mais revelador que o mais sutil dos argumentos
e que uma lágrima tem sempre origens mais
profundas que um sorriso” (CIORAN, 1995a, p. 31;
grifo nosso).
As idéias e as obsessões de sua consciência hiper-
trofiada verteram, ao que tudo indica, de um orga-
nismo carente de serotonina e particularmente de
sono. Também como o narrador das Memórias,
Cioran era um insone, um corpo assolado por
insônias insuportáveis que o condenavam a marti-
rizantes depressões.
Um homem assim, evidentemente, não podia
sonhar. Sua vida, muito pelo contrário, foi um lon-
go pesadelo, composto por alterações de ânimo
que oscilavam entre a mais profunda melancoliae o mais paralisante dos tédios. E Cioran atribuiu
a causa desse pesadelo de 84 anos a dois aconteci-
mentos marcantes da sua vida, acontecimentos
estes que determinaram não só a sua percepção
da existência, mas, sobretudo, o rumo de seu pen-
samento.
O primeiro episódio teve como estopim sua mãe,
uma senhora incrédula e melancólica, casada com
um padre ortodoxo.
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Certa feita, devastado por sua crônica depres-
são, Cioran desabafou à sua pobre mãe que ele
não agüentava mais viver. Sua mãe simplesmente
o mirou e, num misto de indiferença e culpa, dis-
se-lhe que, se soubesse desse seu desgosto, o teria
abortado (CIORAN, 1994, p. 19). As palavras espon-
tâneas e a maneira fria com que sua mãe as profe-
riu soaram-lhe como uma bomba, quase que como
uma revelação mística.
Graças a essa franqueza atroz, o ainda jovem
Cioran sentiu intensamente em suas células a
gratuidade de sua existência, o quanto ela era for-
tuita e sem necessidade.
O segundo acontecimento marcante na vida
de Cioran – e ao qual ele atribui a causa não só
de seu drama existencial, mas, em especial, de seu
pessimismo filosófico – foi a insônia. Aos 20 anos,
Cioran virou um tresnoitado, um imprestável
insone (id., ibid.). Cioran eleva então a insônia à
condição de fonte filosófica, em última instância,
ao estatuto de categoria filosófica, algo curiosa-
mente singular na história da filosofia. O filósofo
romeno entendia a insônia como um fenômeno
muito mais amplo e complexo do que um mero
distúrbio fisiológico. A seus olhos, a insônia seria
um estado orgânico fundamental para compreen-
der-se a essência, melhor dizendo, a falta de essência
da existência, ou seja, seu vazio metafísico dissimu-
lado pelas inúmeras fés que atrofiam as consciên-
cias. Cioran, a propósito, expressava um certo
desprezo – talvez misturado a uma certa inveja –
por aqueles que conseguiam dormir. Em seu enten-
der, aqueles que dormem sentem o tempo de uma
maneira muito diferente da do insone. Para os
indivíduos que conseguem dormir, o tempo é
muito mais simples, brando e mecânico: inicia-se
quando acordam, prolonga-se no trabalho e nas
tarefas do cotidiano e finda-se quando dormem,
para recomeçar novamente com um outro desper-
tar e com a repetição dos velhos rituais da rotina.
A experiência reiterada deste ciclo provoca a ilusão
de um novo dia, persuade a consciência de que o
tempo renova-se, o que torna a vida de quem
dorme uma fatalidade suportável (id., ibid., p. 20).
Já para o insone a percepção do tempo é radical-
mente distinta. Ele não desfruta da ilusão da
descontinuidade que o sono provoca. O insone
sente intensamente que o tempo não tem inter-
rupção, que é permanentemente contínuo. Por-
tanto, ele não vê nenhuma diferença essencial entre
os segundos e os minutos, entre os dias e as noites.
Para o insone, o tempo nunca passa. E sem a convic-
ção da renovação, sem a ilusão redentora do ciclo
que os relógios fomentam, o tempo revela-se insí-
pido, vazio, absurdo e sem finalidade, o que torna
sua existência desesperadora. “Consciência do
tempo: atentado contra o tempo...” (CIORAN, 1991,
p. 34).
Eis que Cioran descobre o grande segredo da
condição humana: o sono (idem, 1994, p. 20). É a
faculdade de dormir que torna a vida humana
suportável, pois é ela que nos impede a consciência
de que o tempo é interminável e sem finalidade, e,
por conseqüência, a consciência de que nossas
vidas são efêmeras e gratuitas. No entender de
Cioran, nós dormimos não para descansar, mas
sim para esquecer o tempo, para fecharmos os
olhos diante de nossa nulidade metafísica (id.,
ibid.). Não é à toa que a proibição do sono já foi
utilizada como tortura para arrancar confissões
de prisioneiros renitentes. Mais: Cioran assevera
que, se um dia toda a humanidade fosse impedida
de dormir, a história se consumiria rapidamente
por meio de carnificinas e de suicídios coletivos
(id., ibid.).
Em suma, a insônia foi a maior e mais determi-
nante experiência filosófica de Cioran, na medida
em que lhe revelou o nada de tudo o que existe,
respira e resiste. Nas palavras dele próprio, “as
noites em branco são de uma importância capital”
(id., ibid.).
.  
Em Cioran, a insônia tem como principal
corolário filosófico a lucidez, a qual, por sua vez,
é o resultado de uma consciência levada às últimas
conseqüências em seus questionamentos metafí-
sicos. Em outras palavras, a insônia é o meio pelo
qual obtemos a consciência do vazio, da gratui-
dade e do Nada do Ser, em termos dostoievskianos,
a condição propícia para o desenvolvimento de
uma consciência hipertrofiada. “A lucidez com-
pleta é o nada”, declara Cioran (id., ibid., p. 22).
62   ● Emil Cioran
A radicalidade e a contundência dessa lucidez
afetaram o pessimista romeno por inteiro, cor-
roendo o fundamento de todos os seus valores,
de todas as suas crenças e entusiasmos primevos.
Tanto é assim que, para ele, o pesadelo seria a
única forma compatível com a idéia de lucidez,
como podemos ler em Silogismos da amargura:
“Neste ‘grande dormitório’, como um texto
taoísta chama o universo, o pesadelo é a única
forma de lucidez” (CIORAN, 1991, p. 20). No fundo,
o que Cioran quer dizer é que ele perdeu a capaci-
dade de ter fé e de embriagar-se com absolutos e
promessas de redenção. Deus, Verdade, Justiça,
Belo, Razão, todos esses entes e conceitos meta-
físicos e religiosos desintegraram-se diante de sua
consciência hipertrofiada. Cioran passou a sentir-
se ridículo almejando-os e dando-lhes assentimen-
to. Os exuberantes e descarnados sistemas filosóficos,
com suas fascinantes linguagens sem mau hálito,
com suas sofisticações lógicas sem sangue, e com suas
categorias sedutoras, mas sem úlceras, perderam
para ele todo o significado e sentido, passando a
ser assimilados por sua consciência como poesias
dissimuladas, devaneios racionais, como idios-
sincrasias megalomaníacas, em suma, como puro
palavrório. A mesma descrença Cioran expressou
em relação às doutrinas e ideologias políticas e a
todos os demais discursos constituídos por promes-
sas de paraíso e felicidade perene. Nem mesmo a
arte escapou de seu pensar implacável. É o caso da
poesia, por exemplo. “Mais que um erro de fundo,
a vida é uma falta de gosto que nem a morte, nem
mesmo a poesia conseguem corrigir”, sentencia (id.,
ibid.). Ainda nessa direção Cioran escreve com seu
característico senso de humor: “Metafísica, poesia
– impertinências de piolho” (id., ibid., p. 25).
Enfim: a fisiologia de Cioran o condenou à
insônia e ao filosofar iconoclástico, que o conde-
naram por sua vez à lucidez, que o condenou à
depressão e ao desespero da dúvida, que o conde-
naram, por fim, ao fracasso existencial.
.  
Mas o que significa exatamente fracassar, na pers-
pectiva cioraniana? Cioran constata o fenômeno
do fracasso já no sentimento místico e na idéia da
divindade. Deus seria o maior de todos os fracas-
sados, mais precisamente, o fracassado supremo,
o “fracassado do alto” (CIORAN, 1991, p. 62). E sua
primeira expressão de fracasso seria a criação do
universo – “A Criação foi o primeiro ato de sabo-
tagem” (id., ibid., p. 61), seguida da criação do
homem, este também fracassado desde Adão (id.,
ibid., p. 82).
Em termos humanos, fracassam existencial-
mente todos aqueles que se entregam à volúpia
camicase de ir às últimas conseqüências na tenta-
tiva de desvendamento metafísico do mundo, de
destruição das ilusões, dos mitos, das esperanças
e de todas as demais tolices que tornam uma vida
minimamente respirável. A esses indivíduos falta-riam a prudência, a mediocridade de pôr rédeas
em nossa temerária vontade de verdade. Entregue
à sua consciência despudorada, a seus instintos
desmistificadores, esse doente da reflexão, o “meta-
físico involuntário” (id., ibid, p. 92), depois de desen-
cantar tudo, passa a sentir em sua profundidade o
vazio da existência como um fardo insuportável.
Nesse sentido, assevera Cioran: “O intelectual repre-
senta a maior desgraça, o fracasso culminante do
homo sapiens” (id., ibid., p. 55). Por outro lado, o
fracasso também seria uma experiência extraor-
dinária pela clarividência que proporciona. Uma
clarividência inútil, porém, como sugere outro
de seus implacáveis aforismos: “Somos fantoches
clarividentes, capazes apenas de fazer caretas ante
o irremediável” (id., ibid., p. 44).
Fracassar, portanto, é conceber a vida como
um “mau gosto da matéria” (id., ibid., p. 56), como
uma “ocupação de inseto” (id., ibid., p. 55), é “ter
acesso à poesia – sem o suporte do talento” (id.,
ibid., p. 13), é não mais conseguir regozijar-se com
mentiras e trivialidades, é dissolver-se no deses-
pero e na letargia, enfim, é concluir que a vida
não vale a pena ser vivida. Assim sendo, como
pôde Cioran ter vivido os tormentos de seu fracas-
so existencial durante tanto tempo, sem ceder ao
apelo da idéia da morte voluntária?
.  
O suicídio, à primeira vista, parece uma conse-
qüência lógica e fisiológica da lucidez cioraniana.
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“Os homens não se suicidam por razões exterio-
res”, pondera Cioran, “mas por causa de um dese-
quilíbrio interno, orgânico” (CIORAN, 1995a, p. 55).
Como podemos ver, a idéia do suicídio foi uma
das maiores obsessões de Cioran. Aliás, como
Albert Camus em O mito de Sísifo, Cioran também
considerava o suicídio uma das questões cruciais
da filosofia. E, como um pensador orgânico,
Cioran não pôde deixar de tentar vivenciar o suicí-
dio. Entretanto, fracassou nesse paradoxo, mor-
rendo naturalmente, em 1995, de mal de Alzheimer.
Trata-se de um fato extremamente significativo,
pois mostra um duplo fracasso em Cioran: ele foi
malsucedido tanto na vida como na morte, já
que não conseguiu viver com amor fati e tampouco
se matar.
E por que Cioran não conseguiu matar-se?
Cioran fornece várias justificativas em sua obra
para essa aparente incoerência. Ele diz, por exem-
plo, que foi graças à idéia do suicídio, da “magia
do suicídio” (idem, p. 55) mais exatamente, que
ele não se matou, pois ela é de certa forma a saída,
a nossa garantia de que podemos livrar-nos de
nossa existência quando não mais suportarmos sua
asfixia (idem, 1995b, p. 135). Outra explicação para
seu não-suicídio é que “só se suicidam os otimistas,
os otimistas que não conseguem mais sê-lo. Os
outros, não tendo nenhuma razão para viver,
por que a teriam para morrer?” (idem, 1991, p.
56). Poderíamos, contudo, retrucar esse argumen-
to de Cioran com a seguinte indagação: ora,
Cioran, não ter nenhuma razão para viver não
seria uma boa razão para suicidar-se? A essa per-
gunta Cioran responderia o seguinte: assim como
os cães, os peixes e as baratas, os homens também
não vivem motivados por razões, mas sim por
instintos, por fatores, portanto, irracionais. E,
além do mais, não vale a pena nos matarmos, pela
simples razão de que sempre é muito tarde para
nos suicidarmos.
Outra justificativa possível de Cioran diante
do dilema é a seguinte: suicidar-se é um ato de fé,
é uma postura que deriva de um assentimento a
uma tese pessimista que se julga verdadeira em
relação à essência do real. Como ele é antes de
tudo um cético, ou seja, como ele duvida de si
mesmo, e até de suas próprias dúvidas, como seu
pensamento não ousa ir além do horizonte da
idiossincrasia, enfim, como ele ri de si mesmo e de
tudo o que ele pensa e escreve, ele jamais se mata-
ria por acreditar que a vida não tem um sentido.
E se um dia ele mudasse de idéia e se descobrisse
enganado, passando a ver um sentido em tudo, já
que viver, segundo ele, significa enganar, ser enga-
nado e enganar-se o tempo todo? Cioran sugere
também que um pessimista pode acostumar-se
com o absurdo e com o Nada, abandonando assim
a idéia de matar-se. Viver, para esse inconsolável
e sarcástico pessimista, passa a ser um hábito, com
o passar do tempo, um vício.
Outro fator destacado por Cioran que impede
fortemente um pessimista de sua estirpe de suici-
dar-se é a resistência natural de nosso instinto de
conservação. Talvez seja esse o mais forte de todos
os nossos instintos, o maior de todos os obstáculos
para o suicida. A fé, por exemplo, seria, segundo
Cioran, um dos mais fortes artifícios do instinto
de conservação (CIORAN, 1991, p. 89). Portanto,
não são razões que fazem não só um pessimista
como Cioran, mas os homens de uma maneira
geral, sobreviverem ao suicídio, e sim nossas pul-
sões mais cegas e vitais.
Em suma, o hábito de existir, o ceticismo e a
forte resistência do instinto de conservação fize-
ram de Cioran um “veterano da dor”, mais exata-
mente, um “aposentado do suicídio” (id., ibid., p.
91). No entender desse suicida fracassado, o sui-
cídio deveria ser mesmo uma decisão, quase uma
obrigação, não dos pessimistas, mas dos otimis-
tas, mais precisamente, daqueles otimistas frus-
trados com as promessas e com as ilusões típicas
do otimismo. Deveriam suicidar-se, portanto,
aqueles otimistas frustrados com o fracasso dos
seus projetos utópicos e humanistas, pois o res-
sentimento destes com a vida seria muito maior
do que o ressentimento do mais misantrópico
dos pessimistas.
.   
Como seria o cotidiano de um homem preten-
samente lúcido e duplamente fracassado feito
Cioran? O próprio Cioran explica: “O pessimista
deve inventar cada dia novas razões de existir: é
64   ● Emil Cioran
uma vítima do ‘sentido’ da vida” (CIORAN, 1991, p.
16). O que ele quer dizer, em outras palavras, é
que a vida de um pessimista que não se mata deve
resignar-se às pequenas motivações cotidianas.
O filósofo aconselha também que um pessimista
incoerente, isto é, um suicida fracassado, precisa
mudar constantemente de desespero, já que o
desespero é indissociável da lucidez (id., ibid.,
p. 86).
Para finalizar, vale ressaltar que se, por um lado,
Cioran nunca amou a vida, por outro, nunca con-
clamou ninguém a romper com ela. Sua radicali-
dade foi tanta, que ele conseguiu envenenar tanto
a vida como o suicídio, inviabilizando e desman-
telando assim a magia de ambos. É importante
salientar também que, apesar de ter feito o diag-
nóstico e a crítica das ilusões, Cioran admitia reite-
radamente que as ilusões são o fundamento de uma
existência suportável. Nesse sentido, diz, escarne-
cendo, “só o idiota está equipado para respirar”
(id., ibid., p. 56). Portanto, quanto mais ilusões,
quanto mais esperanças, quanto mais entorpe-
centes e idiotices existirem na vida de um homem,
mais suportável será existir. Aliás, o próprio Cioran
várias vezes se lamenta de ter ilusões conscientes de
si, isto é, de ter ilusões que têm a consciência de que
são ilusões. Ele sugere que os iludidos que não são
conscientes de suas ilusões são seres abençoados.
De onde se infere que destruir as fábulas que nossa
vontade de ilusão e de felicidade introduz nas
coisas e nos fenômenos é um empreendimento
de auto-sabotagem, uma iniciativa que torna a
vida irrespirável. Se Cioran – que muito admirava
a capacidade dos místicos de terem fé – pudesse
prever as conseqüências de seu modo corrosivo de
pensar e, sobretudo, se ele tivesse o controle de suas
células, certamente elenunca teria questionado sua
primeira ilusão. Com isso, Cioran talvez tivesse
evitado seu duplo fracasso, o que nos teria privado
dos encantos tonificantes de sua lucidez...
Referências bibliográficas
CIORAN, E. Silogismos da amargura. Trad. de J. T. Brum.
Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
__________. “Leçons de sagesse (propos recueillis par
Michael Jakob)”. In: Magazine Littéraire, nº 327,
dezembro de 1994.
CIORAN, E. “Sur les cimes du désespoir”. In: Œuvres. Paris:
Gallimard, 1995a.
__________. “Les continents de l’insomnie”. In:
LIICEANU, G. Itinéraires d’une vie: E. M. Cioran. Paris:
Michalon, 1995b.
DOSTOIÉVSKI, F. Memórias do subsolo. Trad. de B.
Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2001.
SCHNAIDERMAN, B. “Prefácio do tradutor”. In:
DOSTOIÉVSKI, F. Memórias do subsolo. Trad. de B.
Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2001.

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