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.⁄ .⁄ . ● ● , º ● - 59 Fisiologia e filosofia em Emil Cioran * Resumo ● O filósofo romeno Emil Cioran (1911-1995) atribui à insônia que o assolou desde a juventude a origem de seu pensamento desiludido, sarcástico e demolidor. Em contraposição às abstrações vazias, insípidas e equilibradas dos sistemas da tradição filosófica, o autor de Nos cumes do desespero apreciava as reflexões que tivessem um gosto de carne e sangue, e sobretudo que fossem oriundas de exaltações e depressões nervosas. Em outras palavras, na perspectiva pessimista de Cioran, filosofia e fisiologia estão visceralmente ligadas, fato que deve ser considerado como fundamental na compreensão e análise das doutrinas. Palavras-chave ● consciência, fisiologia, suicídio. Title ● Physiology and Philosophy in Emil Cioran Abstract ● The Romanian philosopher Emil Cioran (1911-1996) attributes to insomnia, which has pestered on him since his youth, the origin of his deluded, sarcastic and demolishing thought. In opposition to the empty, uninspired and balanced abstractions of the systems in traditional philosophy, the author of On Top of Despair appreciated reflections tasting flesh and blood, particularly the ones based on exaltation and nervous depression. In other words, from Cioran’s pessimistic perspective, philosophy and physiology and intimately linked, something that must be regarded as basic for the comprehension and analysis of doctrines. Keywords ● awareness, physiology, suicide. Data de recebimento: 03/10/2005. Data de aceitação: 25/11/2005. Versão modificada da palestra proferida no I Encontro de Filosofia Francesa Contemporânea, realizado na FFLCH-USP, em 21 de maio de 2003. * Doutor em Filosofia pela USP e professor de Filosofia da USJT. E-mail: prof.piva@usjt.br. . Em carta ao amigo Franz Overbeck, o pensador alemão Friedrich Nietzsche relata seu regozijo de ter deparado fortuitamente numa livraria com as Memórias do subsolo, novela de Fiódor Dostoiévski publicada em 1864, tendo sido redigida durante os últimos suspiros de sua esposa, tuberculosa, e que o autor de O anticristo definiu de forma efusiva como “a voz do sangue” (citado em SCHNAIDERMAN, 2001, p. 9). Divisora de águas na obra do romancista- filósofo russo, as Memórias são protagonistas da fase do naturalismo dostoievskiano, mais precisa- mente dos “ensaios fisiológicos”, conforme a nomen- clatura da crítica literária de sua terra natal. A atmosfera fisiológica das Memórias do subsolo é, com efeito, bastante perceptível. Logo nas pri- meiras frases de um narrador sombrio e sarcás- tico lemos: “Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo. Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. Ademais, sou supersti- cioso ao extremo; bem, ao menos o bastante para respeitar a medicina. [...] Mas, apesar de tudo, não me trato por uma questão de raiva. Se me dói o fígado, que doa ainda mais” (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 15). Algo mais visceral e patológico impos- sível. Mas o protagonista das Memórias, um desem- pregado que já fora em outros tempos um funcionário público desonesto e sem escrúpulos, não pára por aí. Ele afirma que a consciência – esta peculiaridade tão humana e historicamente tão idolatrada pela filosofia – é em si mesma uma doença (id., ibid., p. 19). E, quanto mais perspicaz e afiada ela for, mais doentio e infortunado será o indivíduo que a possui. Essa consciência clarivi- dente e latejante Dostoiévski chama de “consciên- cia hipertrofiada” (id., ibid., p. 20), a qual teria 60 ● Emil Cioran como antípoda, isto é, como consciência de natu- reza oposta, a “consciência humana comum” (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 18). Esta consciência, por sua vez, também chamada pelo autor de “consciência do mingau” (id., ibid., p. 21), nada mais seria do que a consciência dos homens do cotidiano, ou seja, a consciência daqueles que, por viverem submersos em seus afazeres rotineiros de subsis- tência e por sentirem-se amparados por seus pre- conceitos e por suas ilusões, acabariam não se aprofundando em reflexões e questionamentos mais essenciais. Essa consciência totalmente vol- tada para as necessidades do estômago correspon- deria a 1/4 da consciência hipertrofiada (id., ibid., p. 18). Segundo o protagonista da obra, 1/4 seria a porção ideal, a fração menos mórbida, por assim dizer, para quem quer ter uma vida consciente tranqüila e sem dissabores vãos. Porção maior do que essa de contato com a realidade, “uma cons- ciência muito forte do inevitável da própria condi- ção” (id., ibid., p. 20), seria, sugere o narrador, um abscesso, por conseguinte, uma aberração fatal. Ocorre que não nos é dado o direito de esco- lher com qual tipo de consciência gostaríamos de nascer, se a dos “homens diretos e de ação” ou a dos “homens de pensamento” (id., ibid., p. 21). Nascemos doentios ou convalescentes, ingênuos ou amargos, histéricos ou melancólicos, sátiros ou santos, conforme o movimento cego e a interação fortuita dos átomos, das circunstâncias históricas e, sobretudo, do excesso ou da falta de serotonina no organismo. Desses fatos casuais implacáveis depende nosso êxito ou nosso fracasso existencial. É o que parece sustentar o personagem de Dos- toiévski em suas Memórias. . As reflexões de Dostoiévski nas Memórias fizeram escola. Seu conterrâneo Máximo Górki, por exem- plo, sustenta que todo o pensamento nietzschiano está concentrado nessa obra (citado em SCHNAIDER- MAN, 2001, p. 10). E, de Nietzsche ao existencialismo, passando por Freud e Albert Camus, a consciência agressiva, torturada e ressentida do personagem de Dostoiévski fez várias vítimas, em especial, o pen- sador romeno de escrita francesa Emil Cioran. Cioran é indubitavelmente o autor de um dos mais iconoclásticos, rancorosos e lúcidos discursos filosóficos do século XX, certamente o responsável por um dos mais fulminantes e bem-humorados ataques metafísicos já feitos na história do pen- samento ocidental contra a existência em sua es- sência, superfluidade e totalidade. Seus aforismos e ensaios breves, dotados de uma sofisticada iro- nia e de um estrondoso laconismo, reduzem o uni- verso, a vida e, em especial, o homem, com as suas justificativas existenciais e esperanças, a um gro- tesco e fastidioso nada. Tal como o narrador das Memórias, Cioran foi um pensador visceralmente orgânico, como podemos constatar numa passagem inesquecível de seu primeiro livro, ainda escrito em romeno, Nos cumes do desespero, de 1934: “Amo o pensa- mento que guarda um gosto de carne e sangue, e a uma abstração vazia prefiro mil vezes uma refle- xão surgida de uma exaltação dos sentidos ou de uma depressão nervosa. Os homens ainda não compreenderam que o tempo das preocupações superficiais é passado, e que um uivo de desespero é mais revelador que o mais sutil dos argumentos e que uma lágrima tem sempre origens mais profundas que um sorriso” (CIORAN, 1995a, p. 31; grifo nosso). As idéias e as obsessões de sua consciência hiper- trofiada verteram, ao que tudo indica, de um orga- nismo carente de serotonina e particularmente de sono. Também como o narrador das Memórias, Cioran era um insone, um corpo assolado por insônias insuportáveis que o condenavam a marti- rizantes depressões. Um homem assim, evidentemente, não podia sonhar. Sua vida, muito pelo contrário, foi um lon- go pesadelo, composto por alterações de ânimo que oscilavam entre a mais profunda melancoliae o mais paralisante dos tédios. E Cioran atribuiu a causa desse pesadelo de 84 anos a dois aconteci- mentos marcantes da sua vida, acontecimentos estes que determinaram não só a sua percepção da existência, mas, sobretudo, o rumo de seu pen- samento. O primeiro episódio teve como estopim sua mãe, uma senhora incrédula e melancólica, casada com um padre ortodoxo. .⁄ .⁄ . ● ● , º ● - 61 Certa feita, devastado por sua crônica depres- são, Cioran desabafou à sua pobre mãe que ele não agüentava mais viver. Sua mãe simplesmente o mirou e, num misto de indiferença e culpa, dis- se-lhe que, se soubesse desse seu desgosto, o teria abortado (CIORAN, 1994, p. 19). As palavras espon- tâneas e a maneira fria com que sua mãe as profe- riu soaram-lhe como uma bomba, quase que como uma revelação mística. Graças a essa franqueza atroz, o ainda jovem Cioran sentiu intensamente em suas células a gratuidade de sua existência, o quanto ela era for- tuita e sem necessidade. O segundo acontecimento marcante na vida de Cioran – e ao qual ele atribui a causa não só de seu drama existencial, mas, em especial, de seu pessimismo filosófico – foi a insônia. Aos 20 anos, Cioran virou um tresnoitado, um imprestável insone (id., ibid.). Cioran eleva então a insônia à condição de fonte filosófica, em última instância, ao estatuto de categoria filosófica, algo curiosa- mente singular na história da filosofia. O filósofo romeno entendia a insônia como um fenômeno muito mais amplo e complexo do que um mero distúrbio fisiológico. A seus olhos, a insônia seria um estado orgânico fundamental para compreen- der-se a essência, melhor dizendo, a falta de essência da existência, ou seja, seu vazio metafísico dissimu- lado pelas inúmeras fés que atrofiam as consciên- cias. Cioran, a propósito, expressava um certo desprezo – talvez misturado a uma certa inveja – por aqueles que conseguiam dormir. Em seu enten- der, aqueles que dormem sentem o tempo de uma maneira muito diferente da do insone. Para os indivíduos que conseguem dormir, o tempo é muito mais simples, brando e mecânico: inicia-se quando acordam, prolonga-se no trabalho e nas tarefas do cotidiano e finda-se quando dormem, para recomeçar novamente com um outro desper- tar e com a repetição dos velhos rituais da rotina. A experiência reiterada deste ciclo provoca a ilusão de um novo dia, persuade a consciência de que o tempo renova-se, o que torna a vida de quem dorme uma fatalidade suportável (id., ibid., p. 20). Já para o insone a percepção do tempo é radical- mente distinta. Ele não desfruta da ilusão da descontinuidade que o sono provoca. O insone sente intensamente que o tempo não tem inter- rupção, que é permanentemente contínuo. Por- tanto, ele não vê nenhuma diferença essencial entre os segundos e os minutos, entre os dias e as noites. Para o insone, o tempo nunca passa. E sem a convic- ção da renovação, sem a ilusão redentora do ciclo que os relógios fomentam, o tempo revela-se insí- pido, vazio, absurdo e sem finalidade, o que torna sua existência desesperadora. “Consciência do tempo: atentado contra o tempo...” (CIORAN, 1991, p. 34). Eis que Cioran descobre o grande segredo da condição humana: o sono (idem, 1994, p. 20). É a faculdade de dormir que torna a vida humana suportável, pois é ela que nos impede a consciência de que o tempo é interminável e sem finalidade, e, por conseqüência, a consciência de que nossas vidas são efêmeras e gratuitas. No entender de Cioran, nós dormimos não para descansar, mas sim para esquecer o tempo, para fecharmos os olhos diante de nossa nulidade metafísica (id., ibid.). Não é à toa que a proibição do sono já foi utilizada como tortura para arrancar confissões de prisioneiros renitentes. Mais: Cioran assevera que, se um dia toda a humanidade fosse impedida de dormir, a história se consumiria rapidamente por meio de carnificinas e de suicídios coletivos (id., ibid.). Em suma, a insônia foi a maior e mais determi- nante experiência filosófica de Cioran, na medida em que lhe revelou o nada de tudo o que existe, respira e resiste. Nas palavras dele próprio, “as noites em branco são de uma importância capital” (id., ibid.). . Em Cioran, a insônia tem como principal corolário filosófico a lucidez, a qual, por sua vez, é o resultado de uma consciência levada às últimas conseqüências em seus questionamentos metafí- sicos. Em outras palavras, a insônia é o meio pelo qual obtemos a consciência do vazio, da gratui- dade e do Nada do Ser, em termos dostoievskianos, a condição propícia para o desenvolvimento de uma consciência hipertrofiada. “A lucidez com- pleta é o nada”, declara Cioran (id., ibid., p. 22). 62 ● Emil Cioran A radicalidade e a contundência dessa lucidez afetaram o pessimista romeno por inteiro, cor- roendo o fundamento de todos os seus valores, de todas as suas crenças e entusiasmos primevos. Tanto é assim que, para ele, o pesadelo seria a única forma compatível com a idéia de lucidez, como podemos ler em Silogismos da amargura: “Neste ‘grande dormitório’, como um texto taoísta chama o universo, o pesadelo é a única forma de lucidez” (CIORAN, 1991, p. 20). No fundo, o que Cioran quer dizer é que ele perdeu a capaci- dade de ter fé e de embriagar-se com absolutos e promessas de redenção. Deus, Verdade, Justiça, Belo, Razão, todos esses entes e conceitos meta- físicos e religiosos desintegraram-se diante de sua consciência hipertrofiada. Cioran passou a sentir- se ridículo almejando-os e dando-lhes assentimen- to. Os exuberantes e descarnados sistemas filosóficos, com suas fascinantes linguagens sem mau hálito, com suas sofisticações lógicas sem sangue, e com suas categorias sedutoras, mas sem úlceras, perderam para ele todo o significado e sentido, passando a ser assimilados por sua consciência como poesias dissimuladas, devaneios racionais, como idios- sincrasias megalomaníacas, em suma, como puro palavrório. A mesma descrença Cioran expressou em relação às doutrinas e ideologias políticas e a todos os demais discursos constituídos por promes- sas de paraíso e felicidade perene. Nem mesmo a arte escapou de seu pensar implacável. É o caso da poesia, por exemplo. “Mais que um erro de fundo, a vida é uma falta de gosto que nem a morte, nem mesmo a poesia conseguem corrigir”, sentencia (id., ibid.). Ainda nessa direção Cioran escreve com seu característico senso de humor: “Metafísica, poesia – impertinências de piolho” (id., ibid., p. 25). Enfim: a fisiologia de Cioran o condenou à insônia e ao filosofar iconoclástico, que o conde- naram por sua vez à lucidez, que o condenou à depressão e ao desespero da dúvida, que o conde- naram, por fim, ao fracasso existencial. . Mas o que significa exatamente fracassar, na pers- pectiva cioraniana? Cioran constata o fenômeno do fracasso já no sentimento místico e na idéia da divindade. Deus seria o maior de todos os fracas- sados, mais precisamente, o fracassado supremo, o “fracassado do alto” (CIORAN, 1991, p. 62). E sua primeira expressão de fracasso seria a criação do universo – “A Criação foi o primeiro ato de sabo- tagem” (id., ibid., p. 61), seguida da criação do homem, este também fracassado desde Adão (id., ibid., p. 82). Em termos humanos, fracassam existencial- mente todos aqueles que se entregam à volúpia camicase de ir às últimas conseqüências na tenta- tiva de desvendamento metafísico do mundo, de destruição das ilusões, dos mitos, das esperanças e de todas as demais tolices que tornam uma vida minimamente respirável. A esses indivíduos falta-riam a prudência, a mediocridade de pôr rédeas em nossa temerária vontade de verdade. Entregue à sua consciência despudorada, a seus instintos desmistificadores, esse doente da reflexão, o “meta- físico involuntário” (id., ibid, p. 92), depois de desen- cantar tudo, passa a sentir em sua profundidade o vazio da existência como um fardo insuportável. Nesse sentido, assevera Cioran: “O intelectual repre- senta a maior desgraça, o fracasso culminante do homo sapiens” (id., ibid., p. 55). Por outro lado, o fracasso também seria uma experiência extraor- dinária pela clarividência que proporciona. Uma clarividência inútil, porém, como sugere outro de seus implacáveis aforismos: “Somos fantoches clarividentes, capazes apenas de fazer caretas ante o irremediável” (id., ibid., p. 44). Fracassar, portanto, é conceber a vida como um “mau gosto da matéria” (id., ibid., p. 56), como uma “ocupação de inseto” (id., ibid., p. 55), é “ter acesso à poesia – sem o suporte do talento” (id., ibid., p. 13), é não mais conseguir regozijar-se com mentiras e trivialidades, é dissolver-se no deses- pero e na letargia, enfim, é concluir que a vida não vale a pena ser vivida. Assim sendo, como pôde Cioran ter vivido os tormentos de seu fracas- so existencial durante tanto tempo, sem ceder ao apelo da idéia da morte voluntária? . O suicídio, à primeira vista, parece uma conse- qüência lógica e fisiológica da lucidez cioraniana. .⁄ .⁄ . ● ● , º ● - 63 “Os homens não se suicidam por razões exterio- res”, pondera Cioran, “mas por causa de um dese- quilíbrio interno, orgânico” (CIORAN, 1995a, p. 55). Como podemos ver, a idéia do suicídio foi uma das maiores obsessões de Cioran. Aliás, como Albert Camus em O mito de Sísifo, Cioran também considerava o suicídio uma das questões cruciais da filosofia. E, como um pensador orgânico, Cioran não pôde deixar de tentar vivenciar o suicí- dio. Entretanto, fracassou nesse paradoxo, mor- rendo naturalmente, em 1995, de mal de Alzheimer. Trata-se de um fato extremamente significativo, pois mostra um duplo fracasso em Cioran: ele foi malsucedido tanto na vida como na morte, já que não conseguiu viver com amor fati e tampouco se matar. E por que Cioran não conseguiu matar-se? Cioran fornece várias justificativas em sua obra para essa aparente incoerência. Ele diz, por exem- plo, que foi graças à idéia do suicídio, da “magia do suicídio” (idem, p. 55) mais exatamente, que ele não se matou, pois ela é de certa forma a saída, a nossa garantia de que podemos livrar-nos de nossa existência quando não mais suportarmos sua asfixia (idem, 1995b, p. 135). Outra explicação para seu não-suicídio é que “só se suicidam os otimistas, os otimistas que não conseguem mais sê-lo. Os outros, não tendo nenhuma razão para viver, por que a teriam para morrer?” (idem, 1991, p. 56). Poderíamos, contudo, retrucar esse argumen- to de Cioran com a seguinte indagação: ora, Cioran, não ter nenhuma razão para viver não seria uma boa razão para suicidar-se? A essa per- gunta Cioran responderia o seguinte: assim como os cães, os peixes e as baratas, os homens também não vivem motivados por razões, mas sim por instintos, por fatores, portanto, irracionais. E, além do mais, não vale a pena nos matarmos, pela simples razão de que sempre é muito tarde para nos suicidarmos. Outra justificativa possível de Cioran diante do dilema é a seguinte: suicidar-se é um ato de fé, é uma postura que deriva de um assentimento a uma tese pessimista que se julga verdadeira em relação à essência do real. Como ele é antes de tudo um cético, ou seja, como ele duvida de si mesmo, e até de suas próprias dúvidas, como seu pensamento não ousa ir além do horizonte da idiossincrasia, enfim, como ele ri de si mesmo e de tudo o que ele pensa e escreve, ele jamais se mata- ria por acreditar que a vida não tem um sentido. E se um dia ele mudasse de idéia e se descobrisse enganado, passando a ver um sentido em tudo, já que viver, segundo ele, significa enganar, ser enga- nado e enganar-se o tempo todo? Cioran sugere também que um pessimista pode acostumar-se com o absurdo e com o Nada, abandonando assim a idéia de matar-se. Viver, para esse inconsolável e sarcástico pessimista, passa a ser um hábito, com o passar do tempo, um vício. Outro fator destacado por Cioran que impede fortemente um pessimista de sua estirpe de suici- dar-se é a resistência natural de nosso instinto de conservação. Talvez seja esse o mais forte de todos os nossos instintos, o maior de todos os obstáculos para o suicida. A fé, por exemplo, seria, segundo Cioran, um dos mais fortes artifícios do instinto de conservação (CIORAN, 1991, p. 89). Portanto, não são razões que fazem não só um pessimista como Cioran, mas os homens de uma maneira geral, sobreviverem ao suicídio, e sim nossas pul- sões mais cegas e vitais. Em suma, o hábito de existir, o ceticismo e a forte resistência do instinto de conservação fize- ram de Cioran um “veterano da dor”, mais exata- mente, um “aposentado do suicídio” (id., ibid., p. 91). No entender desse suicida fracassado, o sui- cídio deveria ser mesmo uma decisão, quase uma obrigação, não dos pessimistas, mas dos otimis- tas, mais precisamente, daqueles otimistas frus- trados com as promessas e com as ilusões típicas do otimismo. Deveriam suicidar-se, portanto, aqueles otimistas frustrados com o fracasso dos seus projetos utópicos e humanistas, pois o res- sentimento destes com a vida seria muito maior do que o ressentimento do mais misantrópico dos pessimistas. . Como seria o cotidiano de um homem preten- samente lúcido e duplamente fracassado feito Cioran? O próprio Cioran explica: “O pessimista deve inventar cada dia novas razões de existir: é 64 ● Emil Cioran uma vítima do ‘sentido’ da vida” (CIORAN, 1991, p. 16). O que ele quer dizer, em outras palavras, é que a vida de um pessimista que não se mata deve resignar-se às pequenas motivações cotidianas. O filósofo aconselha também que um pessimista incoerente, isto é, um suicida fracassado, precisa mudar constantemente de desespero, já que o desespero é indissociável da lucidez (id., ibid., p. 86). Para finalizar, vale ressaltar que se, por um lado, Cioran nunca amou a vida, por outro, nunca con- clamou ninguém a romper com ela. Sua radicali- dade foi tanta, que ele conseguiu envenenar tanto a vida como o suicídio, inviabilizando e desman- telando assim a magia de ambos. É importante salientar também que, apesar de ter feito o diag- nóstico e a crítica das ilusões, Cioran admitia reite- radamente que as ilusões são o fundamento de uma existência suportável. Nesse sentido, diz, escarne- cendo, “só o idiota está equipado para respirar” (id., ibid., p. 56). Portanto, quanto mais ilusões, quanto mais esperanças, quanto mais entorpe- centes e idiotices existirem na vida de um homem, mais suportável será existir. Aliás, o próprio Cioran várias vezes se lamenta de ter ilusões conscientes de si, isto é, de ter ilusões que têm a consciência de que são ilusões. Ele sugere que os iludidos que não são conscientes de suas ilusões são seres abençoados. De onde se infere que destruir as fábulas que nossa vontade de ilusão e de felicidade introduz nas coisas e nos fenômenos é um empreendimento de auto-sabotagem, uma iniciativa que torna a vida irrespirável. Se Cioran – que muito admirava a capacidade dos místicos de terem fé – pudesse prever as conseqüências de seu modo corrosivo de pensar e, sobretudo, se ele tivesse o controle de suas células, certamente elenunca teria questionado sua primeira ilusão. Com isso, Cioran talvez tivesse evitado seu duplo fracasso, o que nos teria privado dos encantos tonificantes de sua lucidez... Referências bibliográficas CIORAN, E. Silogismos da amargura. Trad. de J. T. Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. __________. “Leçons de sagesse (propos recueillis par Michael Jakob)”. In: Magazine Littéraire, nº 327, dezembro de 1994. CIORAN, E. “Sur les cimes du désespoir”. In: Œuvres. Paris: Gallimard, 1995a. __________. “Les continents de l’insomnie”. In: LIICEANU, G. Itinéraires d’une vie: E. M. Cioran. Paris: Michalon, 1995b. DOSTOIÉVSKI, F. Memórias do subsolo. Trad. de B. Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2001. SCHNAIDERMAN, B. “Prefácio do tradutor”. In: DOSTOIÉVSKI, F. Memórias do subsolo. Trad. de B. Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2001.
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