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112 Unidade III Unidade III O MOVIMENTO EXISTENCIALISTA Veremos agora as características epistêmicas e conceituais da frente existencialista. Para isso, introduziremos a teoria pelo viés de Kierkegaard, que nos ensinará sobre a importância da singularidade existencial, e finalizaremos com Sartre e sua filosofia-literária, em que se destaca a discussão sobre a liberdade do ser. Segundo Carrasco (2018), o existencialismo é: Uma vertente filosófica que busca compreender a existência humana em seus aspectos concreto, afetivo, histórico e singular, valorizando a liberdade de ser e as particularidades de cada indivíduo. A palavra existir vem do latim exsistere, que significa ser, estar, manifestar-se, aparecer, emergir. Representa o movimento de ser lançado e de estar fora, junto às coisas do mundo, expressando seu modo de ser e assumindo como se deseja ser. Segundo Beaufret (1976), quando ouvimos o termo existencialismo, o que sobressai é a existência, com o sufixo “ismo”, que comumente indica uma doutrina e que nos sugere que o existencialismo seria por si a filosofia da existência. No século XVII, o movimento escolástico recobrava o sentido aristotélico de exsistere (em latim) ao apontar ek-stase ou existência como a saída de um estado para outro, ou seja, a mudança. Mas a história do termo e da sua associação à humanidade data de bem antes, ainda com Sócrates, quando na peça Antígona, na voz de Creonte, é anunciada a estranheza da existência do homem: “O que de estranho há no homem é que ele existe” (BEAUFRET, 1976, p. 59). Beaufret (1976) localizará nessa existência humana o elemento diferenciado entre o homem e as outras coisas e seres viventes, pois estes, como as pedras e as árvores, apenas são e se dispõem no mundo, enquanto o homem existe, assim como Søren Kierkegaard (1979) também concordará, afirmando que o homem possui uma particularidade existencial, afinal, ele existe. Além disso, Beaufret (1976) aponta que a diferenciação do homem diante das outras coisas e seres é porque somente no homem a individualidade e a singularidade se dão como superiores aos imperativos da espécie biológica; nos destacamos da massa bio para nos afirmamos diante nossa individualidade. O homem existe, e isso também significa existir como pertencer ao tempo, não àquele universal e sucessivo, que dita ritmo de mudança e envelhecimento biofísico em outras espécies, mas ao tempo do vivencial, o homem sempre se vê enredado pela precipitação do instante, como Beaufret (1976, p. 61) nos relata: 113 FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO Assim, o existente é aquele para quem alguma coisa é instante, e que, por isso, sente-se tão pressionado, interpelado, reclamado pela instância. Aquele para quem nada é instante, não existe. O homem, porém, existe sempre, pois mesmo se se tornar esquecido de si próprio, isto é, daquilo que lhe é realmente instante, a instância persiste, num segundo plano, a partir do qual ela perturba insidiosamente a segurança do que está em primeiro plano. O existencialismo foi um movimento eclético de pensamento filosófico, iniciado no século XIX, com autores precursores, como Kierkegaard e Nietzsche, e que alcançou mais tardiamente nomes como Sartre e Heidegger. Obviamente, há nuances diferenciais entre eles, mas como Abbagnano (2006, p. 20) afirma, há um ponto em comum: as questões da filosofia existencialista dizem respeito ao problema do ser do homem, mas não de um ser abstrato, mas àquele singular e concreto, que possui a possibilidade de escolhas e que se (des)constrói com isso, como podemos vislumbrar, “é o problema que o homem põe a si mesmo em torno de si mesmo, é o próprio ser do homem como problema de si mesmo; faz dele o ser que busca o ser” (ABBAGNANO, 2006, p. 20). Para os existencialistas, o existir implica o filosofar como uma ação de enfrentamento do destino e da capacidade de colocar para si mesmo questões que se desdobram no caminho vivencial no mundo com outros seres humanos. Portanto, para essa frente teórica, a ação vital do ser humano implica na possibilidade de escolher, decidir, comprometer-se, responsabilizar-se, apaixonar-se e desesperar-se num mundo e em relação com outros homens. São essas ações de implicação existencial, afetiva e corporal que fazem do homem um ser que sempre irá buscar e ultrapassar a dimensão biológica da sobrevivência. Daí os existencialistas comumente apontarem o homem como ser de ultrapassagem ou transcendência, porque estão se fazendo além da condição básica da vida biofísica. Existir implica, segundo Beaufret (1976), um vocativo, um chamamento para inaugurar algo novo, para si e para os outros, ou como Kierkegaard nos ensina, poder realizar um giro em torno de si mesmo. Segundo Penha (1998), o existencialismo moderno surgiu na França, principalmente no contexto da Segunda Guerra Mundial, em meio a uma crise ética e moral da humanidade. Conforme o autor nos relata: Logo após o término da Segunda Guerra Mundial, numa Europa mergulhada nas sequelas do conflito, sufocada numa crise geral (política, social, econômica, moral, financeira etc.), irradia-se do continente europeu, espraiando-se por todo o mundo, o movimento filosófico existencialista. A experiência traumática da guerra gerou um ambiente de desânimo e desespero, sentimentos que atingiram particularmente a juventude, descrente dos valores burgueses tradicionais e da capacidade de o homem solucionar racionalmente as contradições da sociedade (PENHA, 1998, p. 7). Segundo Carrasco (2018), o termo existencialista foi usado em 1940 por Gabriel Honoré Marcel (1889-1973), um dramaturgo e filósofo francês, para tipificar as teorias existenciais de Jean-Paul Sartre, Albert Camus e Simone de Beauvoir, que enalteciam a existência concreta humana em vez de assumirem 114 Unidade III visões metafísicas e/ou idealistas do homem. Porém, o autor aponta que a reflexão sobre a existência não é mérito apenas do povo francês. Podemos localizar esse tipo de questionamento desde os gregos, além de representantes no campo estético artístico, como os escritores Dostoiévsky, Tolstói, Oscar Wilde, Fernando Pessoa, Clarice Lispector, entre outros. Figura 16 – Gabriel Honoré Marcel (à direita) com Carl von Fotograaf (à esquerda) em Rotterdam (1969) Saiba mais Para compreender como literários e poetas contribuíram com a percepção dos ditames existencialistas, indicamos a leitura de trechos do livro Memórias do subsolo, de Dostoiévski, publicado em 1864, e que você assista ao filme Notas do subterrâneo, que também retrata a obra do autor russo. DOSTOIÉVSKI, F. Memórias do subsolo. Tradução: Boris Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2009. NOTAS do subterrâneo. Direção: Gary Walkow. 1995. 88 min. Para Penha (1998), o existencialismo, além de uma doutrina de pensamento filosófico, tornou-se um modo de vida cultuado pelos intelectuais e artistas do Pós-guerra, o que constituiu uma mítica própria ao movimento, associando ao existencialismo pessoas com aparência alternativa, descuidada, rebeldes diante das normas, promíscuas, pessimistas e sombrias. A França, sem dúvidas, foi um país que agregou muitos pensadores existencialistas. Isso não foi ao acaso, deveu-se a um contexto social, histórico e cultural pré Segunda Guerra Mundial, em que os pensadores se envolviam ativamente com a vida cultural das cidades francesas, como Paris, e tratavam de temas profundos nas suas produções teatrais e literárias. 115 FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO Saiba mais Para ilustrar o contexto propiciador ao pensamento existencialista, assista ao filme que narra o encontro do renomado Jean-Paul Sartre e a feminista Simone de Beauvoir, dois nomes importantes do movimento. CAFÉ de Flore. Direção: Jean-Marc Vallée. Canadá; França: Item 7, 2011. 120 min. Figura 17 – Café de Flore, na atualidade, em Paris Outra marca em comum entre os pensadores existencialistas é que estes comumente criticam a hegemonia racionalista do século XIX – em que o homem seriadefinido pela sua capacidade racional e lógica – e passam a afirmar o primado da existência por sobre as possíveis essências. O homem não possui uma essência que o faz ser algo primeiro que existe, nem mesmo o cogito de Descartes, nem o inconsciente freudiano o definem a priori (CARRASCO, 2018). Uma das afirmações mais conhecidas do existencialismo é que o homem escolhe seu destino e o faz porque é livre. Obviamente, isso envolve um contexto complexo, desde a sua própria situação naquele momento até o horizonte histórico ao qual pertence, mas, de qualquer modo, para os existencialistas, o homem é um ser livre que pode escolher e se responsabilizar por suas escolhas. 116 Unidade III Abbagnano (2006) afirma que, na visão existencial, a existência implica decisão, mas que esta não se dá apenas pela vontade do homem, mas se define como um ato de indeterminação problemático. Assim, quando eu decido sobre algo em meu percurso, comprometo todo meu ser nessa escolha, a isso se chama ato existencial, que implica uma indeterminação. Afinal, nunca poderei controlar tudo ao meu redor, nem as consequências globais do meu ato por sobre o mundo, nem sobre como isso atinge aos outros; porém, ao mesmo tempo, sempre sou incumbido a escolher, mesmo quando aparentemente não escolho; isso se perfaz em uma decisão ontológica, que se dá antes do meu pensar sobre a escolha em si. Outra característica do ato existencial é que ele tende a ser uma decisão autêntica, ou seja, o homem tende a decidir por si mesmo, na busca por si e em autopossuir-se. Como Abbagnano (2006) bem descreve, por meio de uma escolha autêntica, o homem assume o seu destino, se reconhece como uma unidade fusionada entre o passado e a abertura do futuro que se revela no instante da escolha. Mas o autor nos alerta, há sempre a possibilidade do inautêntico, quer dizer, de o homem se permitir viver sem escolher, disperso diante da sua própria vida, vivendo a vida de outros ou, então, isolado do mundo, sem engajar-se na coexistência vital ao ser autêntico. Percebe-se que meu ato existencial implica sempre um outro ser, como quando Sartre nos relata que, quando escolhemos, sempre o fazemos por nós mesmos e pelos outros. Isso também está contemplado na obra de Abbagnano (2006), que define a decisão do homem sempre ancorada num dever-ser, numa dimensão normativa em que é levado em conta o ser da comunidade coexistente. Além desse outro, existe também a temporalidade – que vincula o dever-ser com a consciência diante da finitude humana, que o joga ante o risco de findar-se – ou, ainda, a relação com a nulidade, tão bem comentada por Sartre na sua obra magistral O ser e o nada. A problematicidade em seu aspecto temporal é a nulidade possível da possibilidade humana, ou seja, a possibilidade – ligada a todas as possibilidades que o homem escolhe e assume – de não chegar a se fundar no ser e de se perder (ABBAGNANO, 2006, p. 22). Carrasco (2018) aponta de modo didático os princípios em comum do existencialismo, que podem ser agrupados nos seguintes tópicos: • Não há uma essência que defina o homem, todo homem é livre para fazer escolhas e, ao mesmo tempo, ser responsável por elas. • Entende-se que o homem vive em constante movimento de devir, de transformação, o que nos faz seres únicos e singulares. • Vivemos e nos deparamos com diversos modos de vida existencial, e nossa experiência nessa vida coexistencial se dá pela nossa imersão corporal e afetiva. 117 FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO Para ilustrar de modo histórico e conceitual o movimento existencialista, escolhemos dois importantes marcos, primeiramente a obra e o arcabouço de Søren Kierkegaard (1813-1855), um pensador dinamarquês considerado como um dos primeiros existencialistas de peso no mundo moderno do século XIX. Posteriormente, apresentaremos a obra e o marco conceitual de Jean-Paul Sartre (1905-1980), o múltiplo pensador, dramaturgo e literário, o mais famoso existencialista do século XX. 7 O EXISTENCIALISMO (CRISTÃO) DE KIERKEGAARD A estudiosa francesa Farago (2011) caracteriza Søren Kierkegaard como um dinamarquês intempestivo, como um ser existente sensível que soube retratar uma vida autenticamente humana que, em tempos de modernidade industrial e das massas emburrecidas, propôs resgatar o mistério da existência por meio da fé incondicional na vida e no sagrado. Num mundo moderno, que investe na industrialização a todo vapor, na hiperprodutividade dos tempos novos, a obra de Kierkegaard irá resgatar o valor da interioridade humana, valorizando no homem não seu intelecto instrumental, mas sua subjetividade viva e complexa. Apesar de viver num país à margem da Europa Central, como fora a França ou mesmo a Inglaterra, o dinamarquês foi um ser sensível ao seu tempo e às suas contradições sociais, históricas e religiosas. Saiba mais Para ilustrar o modo de vida moderno e seus dilemas, assista ao filme Tempos modernos (1936), ele ilustra o modo de vida moderno, que marca a Era da Industrialização nos idos do século XIX. TEMPOS modernos. Direção: Charlie Chaplin. EUA: Charlie Chaplin Productions, 1936. 87 min. Como apóstolo da existência, Kierkegaard trouxe para a modernidade a existência como aspecto central do seu pensamento, enfrentando os ditames racionalistas como poucos. Realizou uma analítica existencial da angústia como patamar ontológico, ou seja, aquilo que seria a força criadora da existência humana. Sua obra realizou-se embrenhada aos seus terremotos biográficos, como veremos em seguida. 7.1 Notas biográficas e obras de Kierkegaard Sören Aabye Kierkegaard nasceu em 5 de maio de 1813, na cidade de Copenhague – capital da Dinamarca desde o século XV –, que significava “Baía dos mercadores”, retratando sua economia portuária e uma história mítica ligada aos vikings. 118 Unidade III Figura 18 – Mapa da Dinamarca Kierkegaard foi filho caçula de Michael Pedersen Kierkegaard, de 56 anos, e de uma mulher simplória, Anne Srensdatter, de 44 anos. Daí vem uma das notações mais famosas dos diários do pensador, que ele fora filho da velhice. Teve uma história familiar conturbada, atravessada pelas mortes precoces dos irmãos, depois pelo falecimento da mãe, pela presença ambivalente de um pai severo, mas presente, altamente perturbado por um cristianismo tradicional, marcado pela culpa e pelo castigo. Esses fatos constituem uma biografia que marcou a obra desse pensador, considerado o pai do existencialismo (FARAGO, 2011). Figura 19 – Estátua de Kierkegaard localizada em Copenhague 119 FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO Segundo Chaui (apud KIERKEGAARD, 1979, introdução), Kierkegaard, desde muito cedo, recebeu em sua formação a experiência da devoção religiosa. Seu pai, sempre muito rigoroso, lhe imputou o ensino de latim e grego, além de instigá-lo a participar de interpretações teatrais, o que lhe desenvolveu uma atividade imaginativa criativa. A profundidade diante do sentimento religioso o acompanhou a vida toda e o levou a frequentar o curso de Teologia na Universidade de Copenhague por quase dez anos. Dessa forma, a filosofia de Kierkegaard não se separa da fé, e esta, por sua vez, está embrenhada na experiência existencial humana. Segundo Farago (2011), a vida do Kierkegaard alimenta sua filosofia e suas obras, do seu diário íntimo a um tratado sobre a angústia, entre a elevação do misticismo cristão e a poeticidade de um ser sensível, encontramos romances como O diário de um sedutor (1843), Temor e tremor (1843), O conceito de angústia (1844), O banquete (1845), As obras do amor (1847) e Diário (1847). Suas críticas ao cristianismo estão em Os instantes (1855). Há ainda sermões na obra Discursos edificantes, e tratados religiosos em Pureza do coração (1845) e no conhecido Tratado do desespero (1849). Kierkegaard também desenvolveu obras de cunho mais filosófico, como Migalhas filosóficas (1845) e As etapas no caminho da vida (1845). Uma notação interessante sobre a biografia e as obrasdesse jovem é o uso recorrente de pseudônimos, tais como Victor Eremita, Johannes de Silentio, Constantin Constantio, Johannes Climacus, Nicolaus Notabene, Virgilius Haufniensis, entre outros. Farago (2011, p. 61) faz uma interpretação interessante sobre porque Kierkegaard utiliza esses pseudônimos com frequência, afirmando que estes são usados para figurar as diversas partes da estrutura antropológica triádica – corpo, alma e espírito, varrendo “o espectro dos possíveis, do campo humano e das abordagens mais diferenciadas e mais opostas do problema da existência”. Por exemplo, na obra O diário de um sedutor (1843), escrita por Johannes Climacus, Kierkegaard quer retratar o estilo de vida estético e vulgar, preso às paixões e ao impulso do imediato. A relação do jovem Kierkegaard com o cristianismo foi marcada por diferentes imagens e sentimentos. Inicialmente, quando criança, o pai do pensador o ensinara a visão do cristo crucificado, como o Salvador do mundo, que veio à Terra para salvar os homens; uma história marcada por traição, castigo e culpa. No seu diário, Kierkegaard comenta que, nesse momento, ele havia assumido para si um novo caminho: lutar contra aqueles que injustiçaram o justo perseguido. Porém essa visão mudaria com a juventude de Kierkegaard, que percebeu a distorção do pai, pois: O cristianismo que o pai lhe transmitira não era, como ele havia crido, feito de confiança e esperança, mas consistia acima de tudo em se aferrar com angústia e desespero a uma fé incapaz de socorrê-lo. Esse cristianismo, com a obsessão do pecado, lhe pareceu a mais desumana das crueldades, e toda a coragem que ele tinha para enfrentar a vida se levantou para se rebelar contra esta religião de sofrimento e castigo (FARAGO, 2011, p. 30). Ao terminar o estudo secundário, Kierkegaard precisava escolher um caminho universitário, dedicou-se inicialmente às humanidades. Realizou o bacharelado em Filosofia e Filologia em 1830. Posteriormente, cursou Teologia por quase dez anos, de modo instável, se afastando do curso em vários momentos. 120 Unidade III Apenas em 1834 o jovem dinamarquês inicia sua carreira como escritor, publicando artigos, por exemplo, sobre a natureza da mulher. Em seguida inicia-se uma crise pessoal na vida do pensador, que abandona o curso de Teologia e passa a viver como um jovem mundano, com uma vida boêmia, repleta de dívidas de jogos, mulheres e bebida. Dedica-se a esse tormento existencial, à poesia e às questões estéticas. Qualifica-se como um artista da ironia, como o mito de Jano, em que uma de suas faces sorri, porém a outra, introspectiva, volta-se para dentro, sofre e chora. Sustentado pela riqueza do pai, critica a vida burguesa, denominando-a de inútil e superficial (FARAGO, 2011). Saiba mais Janus ou Jano foi um deus romano marcado pelas transições. Com duas faces, demonstrava a força das mudanças e das antinomias da vida. Para saber mais, leia: O MITO de Jano. Mitologia em Português. 2011. Disponível em: https:// www.mitologia.pt/68525.html. Acesso em: 24 jun. 2020. Figura 20 – Foto de Jano exposta no Museu do Vaticano Em 1840, ficou noivo de uma jovem chamada Regine Olsen, porém, apesar de nutrir sentimentos legítimos, Kierkegaard rompe com a moça meses depois, pois considerava que o amor carnal o afastaria da busca pelo eterno. Arrepender-se-ia por toda a vida. Carregando luto e dor, o pensador os assumiu, apontando-os como necessários para seu segundo nascimento, a fim de realizar uma vida autêntica. Seu tom melancólico e seus tormentos existenciais não souberam lidar com um amor feliz. O modo de ser de Olsen, alegre e espontâneo, assustavam-no, levando-o ao desespero. Chegou a justificar a separação afirmando que a moça se livrara de uma companhia atormentada e dilacerada. Em 1841, após essa crise juvenil, Kierkegaard decidiu retomar os estudos teológicos e publicou sua tese de doutorado, denominada Sobre o conceito de ironia, na qual recobra um tema que lhe era caro, o uso da ironia em Sócrates. A partir disso, Kierkegaard mergulha nas leituras e se autointitula como um 121 FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO pensador solitário, transformando sua vida em um exercício de reflexão absoluto diante da instabilidade da vida, e, assim como Nietzsche fizera, também viveu na carne seu projeto filosófico. Kierkegaard morreu em 11 de novembro de 1855, tendo sido chamado por muitos de “Sócrates” de um cristianismo mais vivo e subjetivo. 7.2 As interlocuções filosóficas e epistêmicas de Kierkegaard Figura 21 – Desenho baseado no jovem Kierkegaard feito por Christian Kierkegaard Uma das principais interlocuções de Kierkegaard provém do meio religioso. É participante e crítico da Igreja Luterana Dinamarquesa, principalmente na sua institucionalização, que empobreceu a fé e a experiência religiosa. Critica a visão moralizante e de conformismo social difundida por essa igrega, e recusou-se a receber os sacramentos do famoso luterano Hans Larsen Martensen (1808-1884). Figura 22 – Hans Larsen, importante teólogo dinamarquês 122 Unidade III Como muitos de sua época, Kierkegaard foi um estudioso de Hegel. Apesar de certa admiração pela obra do alemão, tornou-se seu forte crítico por dois grandes aspectos: • Era uma filosofia sistemática, o que lhe desagradava, pois, na visão kierkegaardiana, todo pensamento que se enclausura num sistema de ideias fechadas empobrece o sujeito que o vive. Chaui (apud KIERKEGAARD, 1979, p. X) nos relata que “Kierkegaard combateu a filosofia hegeliana como um sistema que esvazia a existência humana de todo caráter concreto, dissolvendo-a em puros conceitos racionais”. • Atribuía grande peso à visão histórica em seu sistema, como um absoluto comandado por uma instância idealista chamada razão. Dessa forma, a filosofia hegeliana ficava limitada a esse absoluto e perdia-se a pessoa humana sensível. Enquanto Hegel dedicou-se a uma fenomenologia do espírito universal, destacando a história, o dinamarquês escolheu o eterno e o espírito individual, como Farago (2011, p. 70) bem explica: Por outro lado, e contra Hegel, Kierkegaard lembra que não é a razão que dirige o mundo, mesmo sob os véus da paixão sem a qual, certamente, nada de grande se poderia realizar. A razão pode ser apenas reguladora, mas a matéria que ela deve regular mergulha nas profundezas de um irracional. A filosofia de Kierkegaard recebe a herança amorosa de Sócrates, apaixonado pela ironia e pelo interesse com o mundo político. Kierkegaard vive em um primeiro momento mergulhado na política, mas, rapidamente, volta sua preocupação para a religião, que seria para ele a única sabedoria que poderia socorrer o homem dos infortúnios próprios da vida. Por meio da fé religiosa, o pensador defendia a ideia de que o homem precisava buscar a eternidade como horizonte existencial para salvar-se, essa busca faria dele um ser melhor, inclusive socialmente. Com relação ao uso da ironia socrática, Kierkegaard a compreende como um recurso fundamental para que o homem se liberte do apego à realidade e às coisas ao seu redor. A ironia alimentaria o homem de uma força interna capaz de desconstruir verdades e a concentrar-se no seu eu, como Farago (2011, p. 41) nos conta, a “ironia ensina ser preciso começar aprendendo a se conhecer a si mesmo”. Além disso, o uso da ironia como recurso lúdico e desconstrucionista colabora com o antissistematicismo, caro a Kierkegaard, e ainda promove um humor ácido que lhe abre os olhos para o que é inexorável na vida, como o sofrimento inerente a ela. Observação Segundo Abbagnano (2006), a ironia socrática era o modo como Sócrates conscientemente se subestimava em relação aos adversários com quem discutia. Assim, o filósofo elevava aqueles que desejava refutar, dizendo o contrário do que pensava e empregando, de bom grado, a simulação. 123 FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO No universo acadêmico de Copenhague, Kierkegaard assistiu aulas com Nicolai Clausen, um astuto leitor de Schleirmacherque foi considerado um dos pais da hermenêutica. Essa vivência na Dinamarca impregna a visão kierkegaardiana de um cristianismo experencial, ou seja, vivido por cada um e governado por um sentimento espontâneo que o joga para o infinito ou eterno. Em sua passagem por Berlim, Kierkegaard aproxima-se dos estudos sobre Kant ao indicar a importância deste para o cenário filosófico moderno e ocidental, pois operou uma ruptura entre a ontologia e a antropologia. Afirma que Kant problematizou a realidade em duas esferas: entre uma dimensão do real, que seria inapreensível, “a coisa em si”; e o fenômeno como aquilo que pode ser explicado pelo olhar e pela lógica humanos. Kierkegaard realiza uma crítica severa ao projeto deontológico kantiano, limitado pelo dever-ser, que, por sua vez, seria controlado pela supremacia da razão. Com isso, o dinamarquês acusa parte da teoria kantiana de perder a riqueza subjetiva do eu humano, que inclui a fé, que é da instância passional (FARAGO, 2011). Para Kierkegaard, apesar disso, há uma pergunta kantiana que o interessa, afinal, que é o homem? Essa dúvida atravessa toda sua obra, o que o leva a afirmar que o homem não se prende a nenhuma essência a priori, pelo contrário, o reafirma como ser livre, capaz de autodeterminar-se, num vir-a-ser aberto e perpétuo dado pelo movimento existencial. Outra diferença é que Kierkegaard inclui a fé como instância suprema que humaniza e liberta o homem das coisas mundanas e fúteis, em vez do uso da razão prática kantiana. Ou seja, em Kierkegaard, o âmbito religioso se coloca como superior ao ético, o que para Kant seria impensável. Portanto, contra Hegel e Kant, Kierkegaard opera a mesma crítica radical, afirmando que: Não é a razão que dirige o mundo, mesmo sob os véus da paixão sem a qual, certamente, nada de grande se poderia realizar. A razão pode ser apenas reguladora, mas a matéria que ela deve regular mergulha nas profundezas de um irracional (FARAGO, 2011, p. 70). Desse modo, Kierkegaard afasta-se gradativamente de toda uma tradição filosófica racionalista, dedicando-se à compreensão larga, profunda e dolorosa sobre a existência e a subjetividade humana. Kierkegaard viveu, ao mesmo tempo, seu próprio pathos existencial, com seus tormentos e descobertas. 7.3 Filosofia existencial de Kierkegaard A seguir, iremos conhecer melhor o arcabouço teórico desse homem paradoxal. Filosofia da gênese de si mesmo, o pensamento de Kierkegaard é, por definição, eletivamente, uma filosofia da juventude, pode-se dizer até da adolescência, da dificuldade de ser jovem, da desgraça e da chance ao mesmo tempo de ser inacabado. Ela vale para todas as idades da vida, mas se acha notavelmente muito longe do esquecimento dos tormentos juvenis que detêm o saber inconsciente do que é ser um homem (FARAGO, 2011, p. 94). 124 Unidade III A filosofia de Kierkegaard, atento ao movimento subjetivo, vivo e inacabado, rejeita o determinismo de qualquer espécie. Para ela, o homem é absolutamente livre e, portanto, plenamente responsável pelas escolhas que realiza. Daí a caracterização de existencialista do seu arcabouço de pensamento. Portanto, seu projeto filosófico não se aparta do viés antropológico, e ainda defende que devemos receber a vida gratuitamente, como uma dádiva divina, nossa responsabilidade em assumir ativamente o destino e a opção de viver. Acredita na primazia da existência do indivíduo, que se impõe sobre a do ser biológico, pois é o indivíduo que se desenvolve por suas escolhas, constituindo sua personalidade singular diante dos dilemas da salvação humana. Lembrete Iniciado no século XIX, com autores como Kierkegaard e Nietzsche, o existencialismo foi um movimento eclético de pensamento filosófico. Mais tardiamente, alcançou nomes como Sartre e Heidegger. A vivência humana não é isenta de sofrimento, pelo contrário, ela só se autentica e se possui à medida que o homem assume de modo corajoso seus tormentos internos, indicando sua vitalidade e aceitação da liberdade. Ou seja, Kierkegaard critica os imediatismos e o culto ao que é obtido muito facilmente, destacando o caráter salvífico da inquietude humana. O projeto antropológico de Kierkegaard, influenciado pelo cristianismo e pelo helenismo, reafirma uma cisão importante no homem, entre sua alma e seu corpo. Para superá-la, existe apenas um caminho: o exercício da fé, que, exercida pelo espírito, num processo de criação e transcendência, convoca-o para uma possível união e síntese, que seria o que o pensador chama de espírito (FARAGO, 2011). Além disso, Kierkegaard enaltece a subjetividade humana como a forma que permite que a existência se manifeste, portanto, não há uma realidade objetiva única, pois ela sempre parte de um homem subjetivo e vivo. “A subjetividade é a verdade, a subjetividade é a realidade” (KIERKEGAARD apud PENHA, 1998, p. 16). Para explicar o seu projeto antropológico existenciário, Kierkegaard debruça-se sobre grandes categorias, como Farago (2011) nos conta, tais como existência, angústia, desespero, liberdade e beatitude (ou graça). Para o pensador dinamarquês, a existência não é um objeto de estudo, pelo contrário, ela se encontra na origem de tudo. A partir dela, o homem vive, pensa, sente e age no mundo. “Para o homem, sua existência é uma tarefa, uma exigência: a de ter que devir, edificar-se” (FARAGO, 2011, p. 74). O homem, então instigado pelo “tornar-se o que se é”, move-se e faz escolhas, ele ek-siste, ou seja, mantém-se fora de si, sendo o único ente que pode existir diante do indefinido, na abertura dos possíveis que se abrem como fendas a sua frente. Portanto, o homem ,munido da sua condição biológica, tem que se realizar e atualizar sua humanidade para além dela. Nesse interim, ele é lançado como corpo no mundo, dotado de alma, que tudo sente e vê ao seu redor. Diante, então, dessa tarefa, deve buscar uma síntese reflexiva sobre o que se é e se quer ser; somente aí o homem alcança a terceira dimensão existencial: a espiritual. Ou seja, percebe que a existência não é dada gratuitamente a ele, ao contrário da vida biológica. A existência é gerada numa tensão insuperável e eterna que deve ser enfrentada pelo ser, com coragem 125 FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO e amor; somente então a alma alcançará o estágio religioso da beatitude, em que deve se amar a Deus como o eterno, conforme Kierkegaard (1979, p. 118) nos relata em sua obra Temor e tremor (1843), “porque aquele que se amou a si próprio foi grande pela sua pessoa; quem amou a outrem foi grande dando-se; mas o que amou a Deus foi o maior de todos”. Diante da premência da escolha para ser, o homem experimenta o nada, que é tonalizado por um sentimento agudo de chamamento, que Kierkegaard denomina de angústia, conforme podemos aprender: Assim, a existência é o indivíduo no sentido mais elevado do termo: não o indivíduo biológico que se define pela preocupação vital, mas o indivíduo livre, definido pelo cuidado do ser. É o homem que joga seu destino no tempo, no coração da finitude e na presença da morte, o homem que, por sua decisão, pode se perder ou se ganhar, vir a si ou falhar. Este poder ser ou de não ser ligado a uma decisão que ninguém pode tomar por ele, não pode senão abalar profundamente o indivíduo que de repente o descobre, para lá do hábito de viver. A angústia é o frêmito da liberdade mais personalizada que dá vida à realidade que cada um leva em si, que o põe na situação de se escolher (FARAGO, 2011, p. 85). Kierkegaard (2010, p. 47), na obra O conceito de angústia, a define, como aquilo do qual não podemos fugir, que surge da difícil relação entre o corpo, a alma e a possibilidade de síntese espiritual, pois sempre haverá luta. O pensador cristão nos bem relata “o espírito não pode desembaraçar-se de si mesmo, tampouco pode apreender-se a si mesmo, enquanto ele se mantiver fora de si mesmo”. Ou seja, o homem ao se relacionar consigo e com o mundo, não pode fugir da angústia, que lhe atravessae lhe move. A Angústia é um patamar ontológico para Kierkegaard, isso nos lança ao seu projeto antropológico. Penha (1998, p. 17) assim define a visão de homem para o existencialismo kierkegaardiano: “o homem é espírito, é a síntese de finito e infinito, de temporal e eterno, de liberdade e necessidade”. Ou seja, o homem é relação diante um eterno girar-se sobre si mesmo. Na obra O desespero humano: doença até a morte, Kierkegaard assim o define logo na primeira parte: O homem é espírito, mas o que é o espírito? É o eu. Mas, nesse caso, o eu? O eu é uma relação, que não se estabelece com qualquer coisa de alheio a si, mas consigo próprio. Mais e melhor do que na relação propriamente dita, ele consiste no orientar-se dessa relação para a própria interioridade. O eu não é a relação em si, mas sim o seu voltar-se sobre si própria, o conhecimento que ela tem de si própria depois de estabelecida (KIERKEGAARD, 1979, p. 195). Para Kierkegaard, é a espiritualidade é que revela a mais elevada especificidade humana: o homem espiritual é aquele que se renova, numa continuidade entre sua condição finita, imediata e o eterno. A confiança na vida é cultivada pela fé, que é gerada e mantida pela ferida interminável da existência, devotada entre dois pólos: poder ser e não poder ser, ou seja, o que se quer ser. “A fé é a ferida da finitude, a única feriada capaz de curá-la por sua abertura ao infinito. A fé é a abertura ao ser, um poder de fazer ligação com o ser” (FARAGO, 2011, p. 148). Ou seja, a fé não elimina o trágico e a dor da existência humana, nem nos joga em outro mundo, como se fosse um exílio sagrado, pelo contrário, 126 Unidade III ela nos liga ao mundo, nos possibilita desfrutar da vida, mesmo diante a repetição do mesmo, em que reafirmamos nosso ser. A fé nos possibilita conectar com a dimensão do eterno, da abertura ao futuro e do tornar-se o que se é, conforme Kierkegaard nos relata em sua obra Temor e tremor (1843), sob o pseudônimo de Joahnnes de Silentio: [...] era então a fé um compromisso aceite para a vida inteira: porque, pensava-se a aptidão para crer não se adquire em poucos dias, ou escassas semanas. Quando, depois de ter combatido em luta leal e conservado a fé, o velho lutador experimentado chegava ao ocaso da vida, o coração mantinha suficiente juventude para não esquecer o tremor e a angústia que o tinham disciplinado (KIERKEGAARD, 1979, p. 110) Para o jovem Kierkegaard, a fé se caracteriza como um paradoxo, isso aparecerá em diferentes obras. Por exemplo, em Temor e tremor, ele assim a caracteriza como inacessível ao pensar humano, pois ela apresenta ao homem o seguinte dilema: como ser individual num mundo moral e geral? Assim o pensador nos leva a pensar com ele: A fé é justamente aquele paradoxo segundo o qual o Indivíduo se encontra como tal acima do geral, sobre ele debruçado e sempre de tal maneira que, note-se, é o Indivíduo quem depois de ter estado como tal subordinado ao geral, alcançar ser agora, graças ao geral o Indivíduo, e como tal superior a este; de andeira que o Indivíduo como tal encontra-se numa relação absoluta com o absoluto (KIERKEGAARD, 1979, p. 142). Portanto, para o pensador a fé não é adquirida num exercício racional, pelo contrário, seu movimento deve acontecer em virtude do absurdo da vida, seu ocaso e falta de sentido a priori. O homem deve acatá-lo, para isso é preciso coragem e elasticidade, aceitando o absoluto e o eterno, tornando-se um cavaleiro da fé ou do infinito, como Kierkegaard o nomina. Esses cavaleiros são equiparados com os bailarinos que saltam no ar e não se amedrontam de quedar-se, reconhecendo a queda como um passatempo divertido, como ele nos descreve este ser, que: Converte em resignação infinita a profunda melancolia da vida; conhece a felicidade do infinito; experimentou a dor da total renúncia aquilo que mais ama no mundo, e no entanto, saboreia o finito com tão pleno prazer como se nada tivesse conhecido melhor, não mostra indício de sofrer inquietação ou temor, diverte-se com uma tal tranquilidade, que, parece nada há de mais certo que este mundo finito. E, no entanto, toda essa representação do mundo que ele figura é nova criação do absurdo (KIERKEGAARD, 1979, p. 132). Percebe-se que a percepção da eternidade é uma condição chave para a liberdade humana em Kierkegaard, não como marca do tempo estática, mas como uma experiência inerente ao tempo interno e vivido do/pelo ser. Ou seja, aquilo que apazigua a alma humana e a faz compreender largamente, que tudo se esvai, mas o apaixonamento pela vida e por si, prevalecem. 127 FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO Kierkegaard chama de instante, esse ponto de contato entre o finito e o infinito, que possibilita o salto da percepção do tempo imediato para outra instância suprassensível, que é o eterno. Ou seja, o instante é a condição intratemporal que sustenta de modo amoroso a vida, lhe dando sentido e orientação. Compreendemos então, que é o instante que chama o homem a decisão existencial, propondo-lhe a possibilidade de ser mais autêntico, para o crescimento do ser e a assumpção da abertura frente a eternidade. Porém, se por contingência e fraqueza de si, o homem não se realiza, não se consagra existente, surge o desespero, como um pecado, como aquilo que não se realizou. Kierkegaard porém, afirma que todos nós somos atravessados pelo desespero, mesmo as vidas mais pacatas e amenas. O desespero, por mais doloroso que nos seja, é o que nos faz saltar, superando o imediato e potencialmente, podendo alçar estágios mais libertários, como o religioso. O desespero é um indício vertiginoso de que a existência está sendo emperrada por alguma ausência ou negligência, como um grito de alerta. Esse tema é caro ao pensador dinamarquês, que escreve uma obra para bem descrevê-lo em 1849, que resulta num tratado analítico sobre O desespero humano- doença até a morte. Define-o como uma categoria espiritual, que surge entre os dilemas que se dão entre as exigências do corpo, da alma e do eu, ou o self, que constituirá a dimensão espiritual para Kierkegaard. Ainda, o compreende como uma dialética entre ser uma vantagem e uma imperfeição. Nos dá vantagem evolutiva, pois o desespero nos coloca em posição superior ao do mundo animal, porque nos arma diante os perigos da existência. E ainda, favorece aquele homem religioso, que passou a ter consciência do desespero, tornando-se um ser mais preparado para lidar com as inconstâncias da condição humana. Mas há também um lado tenebroso do desespero, quando ele se torna uma doença, quando o homem tenta eliminá-lo, negando-o em seu cotidiano, torna-se inautêntico, por exemplo, não consegue lidar com finitude, entre outras questões. Kierkegaard (1979, p. 199) assim nos relata sobre a forma do desespero doentia, “o ser mortalmente doente, é não poder morrer, um suplício contraditório, essa enfermidade do eu, eternamente morrer, morrer sem todavia morrer, morrer a morte”. No livro I desse tratado sobre o desespero, Kierkegaard apresenta três formas de desespero que acometem o homem. Primeiramente, aquele que surge quando este se dá conta de que tem um eu a construir, isso ocorre na adolescência geralmente; depois há o desespero que luta contra o desejo de ser próprio, de ser um eu autêntico e por fim; o desespero que move o homem ao desejo de ser próprio, aquilo que quer tornar-se, mas ainda não se tornou. Para o pensador luterano, a existência se dá em três estágios, que ele denomina de etapas do caminho da vida: • Estágio estético: dominado pelo apego do homem ao imediato. • Estágio ético: mantido pelas exigências da sociedade, pelas normas e pelo dever-ser. • Estágio religioso: caracterizado pela aceitação do eterno, em que o eu aceita a vida com as suas instabilidades existenciais, ou seja, se assume o transcendente como rotineiro. 128 Unidade III Kierkegaard descreverá essas fases na obra de 1845, As etapas no caminho da vida. Essas fases podem ser compreendidascomo modos de vida. Farago (2011, p. 120) bem nos explica essa necessidade kierkegaardiana de apresentá-las: Todas as concepções da existência se classificam segundo graus de interiorização do indivíduo porque se a vida é uma caminhada, ascensão rumo a si mesmo, isso exige etapas. Elas se escalonam, sem dúvida, no tempo, mas nem por isso se abolem umas após as outras, em um esquema simplista. Em termos mais precisos, a noção de etapa designa um estilo de vida, um tipo de aliança do temporal e do eterno na existência. Chaui (apud KIERKEGAARD, 1979) comenta-as, aponta que a opção estética é impulsiva, tenta se apegar e resolver todas as questões ao seu redor, num atropelo existencial, que leva o sujeito ao efêmero e a ânsia por novidades, o que caracterizaria o modo de vida do consumo excessivo na atualidade. Já no modo de vida ético, apresentado na obra Temor e tremor, com versões bíblicas comentadas da história de Abraão e Isaac, explora-se a vive-se na intensidade do dever, o que gera ainda uma dependência das regras e normas da sociedade em que se vive. E somente no terceiro estágio, o religioso é que se alça a serenidade e a fé integrada ao espírito. Então para o pensador dinamarquês, apenas quando se alcança o modo de vida religioso, se supera os paradoxos e sofrimentos inerentes aos outros dois modos de vida, conforme podemos aprender com Chaui (apud KIERKEGAARD, 1979, p. XII) em seus comentários, pois “a conduta estética levada às últimas consequências culmina no desespero, a etapa ética, atingindo seus limites supremos, faz surgir a contradição”. Portanto, a passagem do ético ao religioso tornar-se então necessária, o que exige enorme coragem e poder de resignação, ao aceitar o absurdo da vida, a priori sem sentido e repleto de dilemas, um caminho repleto de fé e desespero. Pois o homem é: [...] um ser em situação, mas trata-se de uma situação de um ser dilacerado entre o tempo e a eternidade. Esta dupla referência é que faz o homem, que é o homem, o peregrino do absoluto. Negar um ou outra significa ocultar a condição humana. A beatitude não consiste em esquecer a existência, mas em estar presente a ela, e a beatitude eterna consiste em saborear a eternidade do tempo (FARAGO, 2011, p. 152) Segundo Penha (1998), o pensamento kierkegaardiano assumiu maior importância apenas no século XX, alçando outras fronteiras, além da Dinamarca, chegando até a Alemanha, com Heidegger e na França com Sartre. Obteve maior divulgação pelas traduções dos russos Berdiàev (1874-1948) e Leon Chestov (1863-1938). Farago (2011) afirma que a obra de Kierkegaard nunca se fez tão atual, pois o homem contemporâneo perdeu a capacidade de se relacionar com o sagrado e o mistério ontológico, aquilo que o fundaria como ser autêntico. Vive-se hoje, portanto, preso ao modo de vida esteta, numa dinâmica de auto-referência e modismos passageiros. Portanto, o projeto antropológico kierkegaardiano relembra a esse homem, que é preciso se auto escolher, auto possuir-se, não num individualismo dilacerante, mas num horizonte mais autêntico e compassivo, acatando as forças do inesperado e do absurdo da vida. 129 FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO Agora que já conhecemos alguns conceitos e o modo de pensar kierkegaardiano, que é considerado pioneiro do existencialismo, faz-se necessário conhecer um outro projeto, considerado como o ápice do movimento contemporâneo, a filosofia existencial de Sartre. 8 O EXISTENCIALISMO SARTREANO O movimento existencialista possuiu diferentes pensadores e perspectivas, mas sem dúvida, é a filosofia existencial de Jean-Paul Sartre (1905-1980) que mais desperta o interesse, seja pela diversidade de suas obras, ou mesmo suas posturas estéticas e políticas, que muitas vezes soavam controversas, como Penha nos relata: Nenhum filósofo desfrutou neste século de maior popularidade quanto Jean-Paul Sartre. Tampouco, algum outro despertou tanta polêmica. Em parte, porque- como bem salientou uma prestigiosa intérprete de seu pensamento, Colette Audry – Sartre nunca deixou de desconcertar seu público. Por isso mesmo – ainda é a citada crítica que o afirma- Sartre reúne todas as condições para ser mal compreendido; mais ainda do que incompreendido, violentamente atacado. Mas também apaixonadamente incompreendido (PENHA, 1998, p. 37). Considerado como um “papa do existencialismo” e chamado de intelectual total, faz-se necessário conhecer melhor as passagens biográficas e epistêmicas que justificam sua ampla repercussão no campo da filosofia e da literatura, em que Sartre deixou suas marcas, em inúmeras obras. Como poucos, o pensador francês soube mesclar gêneros, afinal, era ele um filósofo que se arriscava escritor, ou então um escritor, que filosofava sob a roupagem dos personagens que inventara sob a escrita literária? Ou ainda, o teatrólogo ou cineasta, como roteirista? Afinal, quem era Sartre? Henri-Lévy (2001), admirador sartreano, atualmente considerado uma personalidade destacável do mundo francês, no teatro e no cinema, além de escritor, escreveu uma obra sobre Sartre, nominada, O século de Sartre: inquérito filosófico, nela aponta que o francês inventou além de obras, um novo estilo de vida. Além disso, Sartre mostrou ao mundo um espetáculo do pensamento vivo em movimento, como Lévy (2001, p. 29) aponta, “ uma espécie de Partido do eu-sozinho, um Estado-espetáculo permanente do qual ele seria o ator, o autor, o diretor, o cenógrafo, do qual o planeta inteiro é o campo do exercício, o teatro”. Afirma que Sartre chama a atenção também pela sua capacidade de ocupar o espaço literário e cultural do seu tempo, atravessando diferentes gêneros, misturando filosofia e literatura com talento e provocação. Assume diferentes perspectivas e vozes, de posicionamentos políticos às atividades de percepção e imaginação do homem, um operador de ideias, como Lévy (2001, p. 65) nos destaca: É a primeira grande originalidade de Sartre, entre todos os seus contemporâneos: ter sabido fazer da filosofia conforme aliás, uma de suas vocações mais antigas, porém das mais esquecidas, e desde muito antigamente- uma ferramenta ótica, um olho íntimo, um operador de olhar e, na linha desse olhar, um operador de ideias e de verdade. 130 Unidade III Cohen-Solal (2005) afirmará que Sartre é um dos pensadores mais originais do seu tempo, englobando diferentes habilidades do campo psicológico ao filosófico, do teatro ao literário, a força desse homem é: […] ter um projeto estético muito forte que instrumentaliza todo o resto. Para ele, a filosofia é ao mesmo tempo uma ferramenta de compreensão de si e uma ferramenta de produção literária, o que ele próprio confirmará anos mais tarde, “A partir do momento em que soube o que era a filosofia, pareceu-me normal exigi-la do escritor” (COHEN-SOLAL, 2005, p. 47). Saiba mais Segundo Oricchio (2006), em 1958, John Huston encomendou a Sartre o roteiro do filme que queria fazer sobre a vida de Freud. Huston admirava Sartre e havia montado sua peça “Entre quatro paredes”. Para mais informações sobre essa relação, leia o artigo a seguir: ORICCHIO, L. Z. Huston e Sartre em um roteiro do inconsciente (filme Freud Além da Alma). O Estado de S. Paulo, 7 maio 2006. A partir desses inúmeros elogios, faz-se necessário conhecer melhor a biografia desse pensador-escritor e múltiplo homem de seu tempo, um filósofo artista como poucos. 8.1 Notas biográficas e obras de Sartre Figura 23 – Jean-Paul Sartre na capa do Jornal La Cause du Peuple 131 FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO Jean-Paul Sartre nasce em Paris, no dia 21 de junho de 1905, provindo da família materna dos Schweitzer, sua mãe Anne-Marie Schweitzer Sartre; e da família paterna dos Thiviers, de Jean Baptiste Marie Eymard Sartre, que era oficial da Marinha Francesa. Tornou-se órfão de pai muito cedo, com apenas 2 anos de idade, o que marcou a vida do pensador, que fora educado principalmente pelo seu avô materno na cidade de Meudon, próximo a capitalfrancesa. Marilena Chaui (apud SARTRE, 1987), na introdução biográfica do volume sobre Sartre da coleção Os pensadores, afirma que a falta do pai fez de Sartre um homem livre, que acreditava que quem determinaria a vida seria o próprio sujeito, mesmo que situado num mundo social complexo. Além disso, foi um jovem que leu muito, o que lhe proveu uma imaginação criativa. Também a leitura fez o pequeno desvelar o mundo através da linguagem, que se tornou seu ofício, pois aos 10 anos ganhou uma máquina de escrever e desde então não parou de revelar o mundo através das palavras. Foi um jovem envolto em dilemas familiares, perto de 1916, por exemplo, ao ver sua mãe se casar novamente, sentiu-se solitário e traído. Estudou no Liceu La Rochelle, ao se mudarem para a cidade que levava o mesmo nome. Essa experiência lhe preparou para seu ingresso em 1924, na Escola Normal Superior de Paris no curso de filosofia. Figura 24 – Jean-Paul Sartre Colen-Sohal (2005), uma das suas mais notáveis biógrafas, caracterizou a tradição das famílias de Sartre envolvidas em conflitos histórico-culturais, tipicamente franceses. Um mundo dividido entre o estilo de vida francês urbano e o rural; e ainda, entre uma visão católica e outra protestante, o que marcou a vida de Sartre, constituindo em si uma postura ética acostumada com a ruptura. O pensador, inclusive, afirmará que, em uma de suas últimas obras, As palavras, de 1963, ele constrói uma narrativa que retrata três histórias de amor fracassadas, o que seria o correlato do que vira em sua própria história familiar. 132 Unidade III De certo modo, Sartre passa sua vida lutando contra o arcaísmo dessa tradição rural que recebera, Colen-Sohal (2005, p. 44) afirma que: […] nas inúmeras tentativas sartrianas de pensar o moderno, de escapar aos quadros demasiado tradicionais da universidade, de buscar nas culturas estrangeiras um recurso e uma fecundação, de denunciar as covardias e os tabus da história coletiva francesa. Sartre cursou filosofia de 1924 até 1928, como aluno mediano, lá conheceu sua esposa e interlocutora Simone de Beauvoir (1908-1986), que tornou-se uma companheira libertária e revolucionária, expondo ao mundo, com aprovação do próprio Sartre, detalhes da vida privada e pública dos dois, em suas viagens e dilemas emocionais em obras como A força da idade e A força das coisas. Sartre declarava recorrentemente seu amor à Simone, afirmando: “não posso me separar da senhora, que é como a consistência da minha pessoa” (SARTRE apud LÉVY, 2001, p. 18). Simone era conhecida sob o codinome de Castor, assim era chamada carinhosamente pelo esposo-amante, pois o castor seria um animal privilegiado do mundo animal, pois era o arquiteto eficiente e insistente. Isso era o que significava Beauvoir para Sartre: sua casa afetiva e sua leitora mais privilegiada. O casal impactará o mundo sob a égide de uma relação afetivo-sexual aberta, porém sempre leal ao princípio da liberdade e do amor. Não é segredo que existiram outros relacionamentos na vida de Sartre, assim como na da esposa, que teve vários pares amorosos até a velhice, contudo, o casal sempre se reencontrava para fortalecer os laços afetivos, e, ao fim, Beauvoir e Sartre foram enterrados juntos. Figura 25 – Simone de Beauvoir 133 FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO Na conclusão do curso de Filosofia, Sartre enfrenta outro desafio, pois terá uma reprovação do seu exame de fechamento, a banca não legitimou seu escrito sobre a história da filosofia. Essas reprovações serão comuns na biografia sartreana, pois muitos de seus livros serão reprovados por editores renomados na França. Apenas após um ano, obteve êxito e formou-se filósofo, porém sem acreditar na filosofia francesa, assim como muitos do seu tempo, a considerava fraca e vazia, o que talvez explique sua ida ao Instituto Francês em Berlim, onde estudará obras de Husserl, Heidegger, Jaspers e Scheller, o que o levará até o existencialismo cristão de Kierkegaard (COHEN-SOLAL, 2005). Em 1928, depois de finalizado o curso de filosofia, Sartre prestou serviço militar, como meteorologista, na cidade de Tours. Após essa experiência rápida, o pensador conseguiu ocupar uma cadeira de filosofia numa escola secundarista na cidade de Hauvre. Na Segunda Guerra Mundial, Sartre será convocado novamente como meteorologista, o que marcará sua vida, alimentando sua fase de resistência frente ao fascismo. Seus biógrafos comentarão que o fato de ocupar o serviço de meteorologia foi importante para o amadurecimento do pensar sartreano, pois ele tinha tempo para contemplar e realizar algumas leituras filosóficas importantes, como Que é a metafísica?, de Heidegger. Um dos seus primeiros romances foi A lenda da verdade, escrito em sua juventude, fora também reprovado, mas lhe ajudou a escrever uma de suas maiores obras literárias, A náusea, em 1936. Segundo Cohen-Solal(2005), nesse texto Sartre marca sua filosofia do indivíduo, que se opõe ao pensamento da massa. Ainda escreve inúmeras outras obras, como a peça de teatro “Entre quatro paredes”, em 1945, “A idade da razão”, “Sursis” e “Com a morte na alma”. Há de se destacar a publicação do livro Os caminhos da liberdade, em que o autor problematiza um dos seus maiores emblemas: a liberdade e a ação humana (CHAUI apud SARTRE, 1987). A passagem pela Alemanha será importante no horizonte bibliográfico do autor, ali começará a escrever a obra Melancolia, que depois será denominada de A náusea, em 1936, já na França. Na mesma época, também começou a escrever algumas das suas primeiras obras de cunho filosófico, A imaginação e A transcendência do ego, ambos influenciados pela fenomenologia alemã. Em meados de 1938, Sartre reune contos sob o título O muro, e dois anos depois o texto Esboço de uma teoria das emoções, em 1940. Segundo Chaui (apud SARTRE, 1987), percebe-se uma produtividade significativa sartreana na década de 1940, por causa da mobilização afetiva e política que a Segunda Guerra Mundial provocará no pensador, que inclusive ficará por meses num campo de concentração. Sartre fundará um grupo de resistência, chamado Socialismo e Liberdade, produzindo panfletos e ações pontuais contra o domínio alemão, que só será finalizado com o fim da guerra. De certo modo, substitui esse movimento com a revista Os tempos modernos, que funda juntamente com Merleau-Ponty (1908-1961). Sartre ainda mobilizará as atenções ao publicar o polêmico texto O existencialismo é um humanismo, em 1946, para reforçar as teses da sua obra O ser e o nada, que recebera muitas críticas por ser uma obra hermética. Essa conferência provocará uma resposta de Heidegger, que em Carta sobre o humanismo, grifará as diferenças entre sua proposta fenomenológica existencial e o pensamento sartreano. 134 Unidade III O Sartre teatrólogo continuará ativo, no mesmo ano em 1946, produzirá ainda peças como “Mortos em sepultura” e “A prostituta respeitosa”; em 1948, “As mãos sujas”; e “O Diabo e o Bom Deus”, em 1951. Peças que ainda no século XXI são reencenadas. Em 1952, segundo Chaui (apud SARTRE, 1987), existe um fato importante na biografia do pensador francês, ele se aproximará do Partido Comunista francês, mostrando uma fase sartreana próxima aos excluídos, miseráveis e o terceiro mundo. Seria o momento mais engajado politicamente de Sartre, onde ele associa ação e pensamento, tornando-se forte crítico dos movimentos colonialistas, como o que ocorre da própria França na Argélia. Ainda viajará pelo Terceiro Mundo, em países como Cuba e Brasil na década de 1960, além de marcar sua indignação frente a Guerra do Vietnã. Essa marca política levará Sartre a negar o Prêmio Nobel de literatura pela obra As palavras, num gesto de resistência frente a tradição dos poderes europeus. Ainda produzirá na década de 1970, uma obra larga sobre Flaubert, O idiota da família, que reuniu mais de duas mil páginas e que permaneceu inacabado. Em 1973, num momento mais solitário, já cego, com dificuldadesde saúde, ele ainda colaborou com a fundação do jornal francês Libération. Em 1980, Sartre faleceu em Paris, com 74 anos, de edema pulmonar. Seu enterro reuniu mais de cinquenta mil franceses, que acompanharam o enterro de uma das personalidades mais impactantes de seu tempo. 8.2 O itinerário filosófico, epistêmico e estético de Sartre O movimento existencialista tem múltiplas nuances e pensadores, porém, é com Sartre que esse pensamento assume popularidade e povoa o imaginário de uma geração. Iremos acompanhar o caminho da obra sartreana, que se mostrou viva, selvagem e apaixonante, como Lévy (2001, p. 117) nos ajuda a compreender: Sartre é esse grande vivo. Ele é esse selvagem, esse guerreiro, esse ladrão de palavras, que talha no morto-vivo da arte e do pensamento do outro para forjar seus próprios pensamentos e arte. As vezes o guerreiro vai tão longe, afirma com tanta arrogância os direitos da sua leitura e sua onipotência, que absorve, aniquila nadifica o pensamento daquele que ele pensa ler. Mapear o itinerário filosófico e epistêmico da obra sartreana é realmente um desafio, pois como Lévy nos ajudou a pensar, o pensador francês bebe de muitas fontes, nem sempre as explicita, ou ainda, as critica e depois as reafirma, mantendo uma relação paradoxal, como a que ocorre com a obra de Bergson, um referencial francês importante. De qualquer modo, podemos citar algumas fontes importantes para a constituição dessa máquina de guerra que o pensamento e ação de Sartre tornou-se no século XX, em meio às guerras mundiais. Começamos com a sua relação conflitiva com a obra de Henri Bergson, Sartre, que conjuntamente com Merleau-Ponty o acusavam de constituir mais uma exibição filosófica do que um sistema sério de pensamento filosófico, demonstrando sua fraqueza no campo conceitual, apontam que um dos seus 135 FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO principais conceitos – o elã vital – beirava o irracionalismo e incentivara ideologias como o nazismo e o espiritualismo. Afinal de onde viria essa força vital que moveria o homem numa evolução criadora? Será que alguns povos teriam um acesso facilitado a essa energia vital, lhe fazendo superiores? Porém, como Lévy (2001) nos ajuda a pensar, Sartre se aproxima do bergsonismo na sua visão da vida como duração, afirmando que o homem é matéria vital cindido entre os desejos e as resistências sufocantes de uma natureza opaca e fragmentária. Afinal, quando Bergson afirma que a matéria e a liberdade podem conviver em oposição, e mais quando afirma que a vida encontrará um modo de favorecer a potência da liberdade, não é o mesmo que Sartre afirmará em O ser e o nada, enaltecendo-a como aquilo que nos faz humanos e vivos? Henri Bergson (1859-1941) foi um filósofo francês, diplomata, que marcou sua época, ao estudar o tempo e a memória como fluxos sob uma filosofia especulativa, intuicionista mas rigorosa. Apresentava a filosofia como arte e não como ciência, como havia correntes positivistas tentando realizar na França. Uma das suas ideias mais cultuadas dizia respeito ao entendimento da consciência como duração temporal e aliada ao campo do vivido, principalmente descolada da materialidade objetiva do empirismo, em voga na época. Foi conselheiro de príncipes, ganhador do Nobel em literatura em 1927, além de seus cursos sempre cheios no Collège de France, num clima de quase devoção. Publicou importantes obras, tais como Matéria e memória, A evolução criadora e As duas fontes da moral e da religião (LÉVY, 2001). Figura 26 – Henri Bergson Outro interlocutor importante no horizonte sartreano é Husserl, quando o pensador passa por Berlim, se encanta com a obra husserliana, sob diferentes perspectivas. Sartre ficou maravilhado, por exemplo, com o “voltar às coisas mesmas” do alemão, que inspirou Jean-Paul a dizer em alto som nos cafés e bares em Paris que poderia agora debruçar-se sobre seu coquetel de damasco e descrevê-lo em sua essência por uma noite toda e que isso seria filosofia. 136 Unidade III Beauvoir (2017, p. 148), em A força da idade, descreverá o encontro de Sartre com a fenomenologia husserliana do seguinte modo: “Sartre empalideceu de emoção ou quase, era examente que ambicionava há anos: falar das coisas tal como as tocava, e que fosse filosofia”. Descreve ainda que Husserl lhes ensinou a ultrapassar as dicotomias apresentadas pelo idealismo ou materialismo, considerando a primazia da consciência junto ao mundo. Afirma que Sartre ficou muito entusiasmado e enquanto devorava as obras do pensador alemão, escrevera sua obra A transcendência do ego, em 1936. Cohen-Solal (2005) apresenta a aproximação de Sartre a Husserl entre os anos de 1933 e 1934, concebendo a fenomenologia como uma filosofia refinada, técnica e complexa, afirmando que: Husserl reinstalou o horror e o encanto nas coisas, restitui-nos o mundo dos artistas e dos profetas: assustador, hostil, perigoso, com enseadas de graça e de amor. Não é não retiro, seja lá qual for, que nos descobriremos: é na estrada, na cidade, no meio da cidade, coisa entre as coisas, homem entre os homens (SARTRE apud COHEN-SOLAL, 2005, p. 65). Há versões ainda que dizem que Sartre alcançou a fenomenologia também por indicação de Lévinas, que lhe indicou a leitura da Teoria da intuição de Husserl, o que teria ocorrido antes da ida a Berlim, mas deixando de lado essas versões dissonantes, o que é inquestionável é o impacto que a obra husserliana teve em Sartre sob quatro aspectos que Lévy (2001) nos aponta: • Voltar à coisa mesma: possibilitou à Sartre superar a visão de Bergson, que afirmara que a percepção humana se dá como mero efeito de consciências, que funcionam como duração temporal em contato com o mundo ao seu redor. Voltar as coisas mesmas implicava para Sartre em alcançar uma materialidade imanente do mundo em consciência, sem separar consciência do objeto, seja da folha branca em cima da mesa à humilhação do povo judeu. Portanto, buscar o eidos (essência) como Husserl lhe ensinara, o incentivará a constituir uma descrição fenomenológica da imaginação, na obra A imaginação. • Subjetividade: Husserl lhe ensinará que a subjetividade é esvaziada de interioridade e de unidade, diferente do conceito comum às filosofias do sujeito da era moderna, fundadas a partir de Descartes. Sartre aprenderá que a subjetividade é aquilo que resiste às coisas, como parte da consciência pré-reflexiva, que independe dos estímulos externos, ou seja, ligada a uma visão de consciência vazia e frágil, porém irredutível as coisas do mundo, como Sartre adotará também em sua filosofia. • A consciência e as coisas: Husserl na visão de Sartre supera as dicotomias entre as coisas e a consciência, entre o sujeito e objeto, comuns as visões idealistas e realistas, pois a consciência é sempre consciência de algo, o que a tornava intencional. • Intersubjetividade: Husserl em uma fase tardia ensinará Sartre sobre a existência de um espaço do mundo percebido em comum, que constituirá o espaço da intersubjetividade, que se dá num movimento de transcendência entre o humano e o além-humano, ou seja, o outro também implicado na relação com o mundo. Esse mundo da vida em que estamos todos envoltos e em 137 FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO comunhão ultrapassaria a filosofia que explicava o homem como um ser de ego, uns separados dos outros de forma atomística. Esse mundo do não eu e dos outros favorecerá Sartre a afirmar que o homem se encontra já sempre engajado, ou mesmo que ao escolher, escolhe-se por si mas principalmente pelos outros. Inspirado por Husserl, Sartre (1987, p. 22) afirmará que a filosofia deve “expulsar as coisas da consciência e restabelecer a verdadeira relação entre esta e o mundo, a saber, a consciência como consciência posicional do mundo”. Portanto, a consciência não é um lugar ou coisa interna, mas é intencional, movimento de explosão entre o homem e o mundo. O outro maravilhamento de Sartre se deu junto a obra de Heidegger, queno pós-guerra, foi um expoente filosófico importante pois assumiu a missão filosófica como originária, retomando a questão do Ser como poucos, o que incentivou o francês a escrever seu grande tratado, O ser e o nada, que é uma releitura da obra heideggeriana, retomando temas como existência, o ser, a morte, o nada, o originário. Sartre demorou a entrar em contato com a tradução de Ser e tempo, apenas nos anos 1940-1941, afirmando que Heidegger “era ele, porque era o si mesmo, tudo, em mim, esperava por ele, tudo nele, anunciava a mim” (SARTRE apud LÉVY, 2001, p. 137). Lévy (2001) afirmou que a visão de Sartre sobre alguns conceitos heideggerianos foram distorcidos, por exemplo, na noção de Dasein; o francês traduzirá como realidade humana, subjetivando o Ser-aí, ignorando a dimensão pré-ontológica que envolve problematizá-lo, como aquele lugar que o homem se sustentaria como ser-no-mundo. Sartre, por sua vez, irá inscrevê-lo numa visão humanista, quando o que Heidegger (2012a) irá sustentar é o oposto, retirando o problema do Ser do escopo do humanismo, pois para este último a filosofia não deveria tratar dos entes, mas sim da ontologia (ser). Aliás aí mora uma grande ruptura entre os dois, pois Heidegger operará uma crítica radical a todo e qualquer projeto humanista, sempre grifando que seu projeto não deveria ser de cunho antropológico, mas ontológico fundamental. Sartre por sua vez elaborará uma conferência que ficará famosa, O existencialismo é um humanismo, que afirmará que o que existe é apenas o mundo dos homens e apenas homens, defendendo uma re-significação do que que seja o humanismo. Isso afetará a relação dos dois, que ensaiaram inclusive encontros presenciais, que nunca ocorreram, porém Heidegger se pronunciará sobre o texto de Sartre, construindo uma resposta denominada Carta sobre o humanismo (1946), em que explicita sua discórdia radical com relação ao projeto sartreano. Apesar das diferenças, Sartre (1987, p. 59) cita Heidegger na sua obra magistral O ser e o nada, quando por exemplo, problematiza a concepção fenomenológica do Nada, ao afirmar que o ser da realidade humana se dá como ser-no-mundo, e “o mundo é o complexo sintético das realidades-utensílios da medida em que o homem, a partir deste complexo, faz-se anunciar o que é”. Investido de Heidegger e negando Hegel, Sartre afirmará que o Ser existe antes do nada, e o Dasein é o que possibilita que nadifiquemos o mundo e realizemos tentativas de compreender o nada, não como uma condição primeira do ser, mas como condição do ser em movimento, que entra inevitavelmente em contato com o vazio da indeterminação, que o joga a escolher, como ele mesmo nos ensina: 138 Unidade III O nada não sustentado pelo ser, dissipa-se enquanto nada, e recaímos no ser. O nada não pode nadificar-se a não ser sobre um fundo de ser: se um nada pode existir, não é antes ou depois do ser, nem de modo geral, fora do ser, mas no bojo do ser, em seu coração como um verme (SARTRE, 1987, p. 64). Saiba mais Com a leitura do artigo a seguir você pode comparar o conceito de humanismo de Sartre e o de Heidegger, ressaltando as suas diferenças. ONATE, N. R. Sobre o sentido do humanismo em Martin Heidegger. Revista Intuitio, Porto Alegre, v. 11, n. 2, p. 87-100, 2018. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/intuitio/article/ view/24420/17474. Acesso em: 24 jun. 2020. Apesar dessas diferenças abissais, Beauvoir (2017) num relato autobiográfico, narra que Sartre apreciava em demasia a filosofia de Heidegger, porque, antes de qualquer coisa, era um dos poucos do seu tempo, que salvaria a realidade do mundo, reconciliando o que é objetivo e subjetivo. Um outro pressuposto epistêmico ao qual Sartre refere-se, sempre de um ponto de vista crítico, mas com uma certa simpatia principalmente pela proposta política que fora aliada a esse paradigma, foi o materialismo histórico dialético, vulgo marxismo. Beauvoir (2009) relata que sob seu ponto de vista Sartre estaria distante de compreender a fecundidade e potência do paradigma, ele estava ainda muito envolvido e seduzido pela fenomenologia. Mesmo quando publica um artigo na Revista Os Tempos Modernos, chamado “Materialismo e revolução”, colocará em cheque o marxismo mais ortodoxo, enfocando uma crítica a dialética da natureza, que ainda estaria presa aos gregos, e ainda, apontava que o materialismo histórico dialético teria se tornado um mito revolucionário esvaziado de sentido. Para Sartre existiam entraves complexos sob seu entendimento de uma postura favorável ao sistema dialético; primeiramente, porque assim como o idealismo ou o realismo, separava-se de modo dicotômico, sujeito e objeto de conhecimento, perdendo-se de vista uma discussão mais integradora e ontológica. De outro lado, o pensador francês também se incomoda com o apagamento da subjetividade a dialética marxista ocasionava, pois como Beauvoir (2009, p. 18) nos relata: “A dialética tal como a concebia na época o abolia enquanto indivíduo; ele acreditava na intuição fenomenológica, que apresenta imediatamente a coisa em carne e osso”. Sartre ainda acusava o marxismo de perder a dimensão humana ontológica, massificando problemáticas existenciais, que independeriam do tempo e da cultura, tal como a angústia diante a escolha, a finitude e a morte entre outros, como podemos ler no texto Questão de método: 139 FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO O existencialismo pode renascer e se manter porque reafirma a realidade dos homens. Então, existencialismo e marxismo visam ao mesmo objeto, mas o segundo reabsorveu o homem na ideia e o primeiro procurou-o por toda parte onde ele está, no seu trabalho, em sua casa, na rua (SARTRE, 1987, p. 123). Ainda assim, esse dilema atravessará os diferentes momentos de sua obra, em 1960 por exemplo, ele escreverá um texto que avança na crítica e se abre a uma nova possibilidade de diálogo entre o existencialismo e o marxismo, chamado Questão de método e crítica da razão dialética, que resultará numa máxima famosa, em que ele afirmará que o marxismo é a filosofia insuperável do século XX. Em sua visão, o existencialismo poderia vir a ajudar a vencer os desafios do seu tempo, ao clarear a possibilidade da liberdade, ou seja, ao fazer existir para todos as escolhas possíveis além dos grilhões deterministas pelo modo de produção capitalista. Sartre afirmava ainda, o saber pode ser explicado pelas ideias marxistas, mas a linguagem é existencialista, um cravado no outro. O que agradava o pensador francês era que o marxismo concebia o homem como seres-em-situação (contingência), o que lhe ajudou a pensar uma das ideias centrais, que antes mesmo de operarmos uma ação intencional de engajamento político por exemplo, já estamos todos engajados na situação da vida. Visão que também se encontra no marxismo, de que o homem é um homem multideterminados por suas condições sociais, históricas e culturais. O que permanece um ponto em fuga na comparação dos dois paradigmas é, a que ponto existe a liberdade num modelo determinista, como o de Marx? Esse era o incomodo de Sartre: é possível ser livre se só se pensa o homem agrilhoado aos modos de produção? (SARTRE, 1987). Aliás, é nesse texto que Sartre esclarece as contribuições de outro nome importante, Kierkegaard. Beauvoir (2017) relata que por muitas vezes, Sartre deixou de lado as traduções das obras kierkegaardianas para ler Heidegger e Husserl, porém em algum momento, elas fizeram mais sentido. Sartre (1987) apresentará a potência de Kierkegaard, pois como ele, esse é um pensador que não quer ser encerrado em nenhum sistema filosófico, pois combate o intelectualismo com força. Além disso, é um pensador que defende a dimensão do vivido (traduzido pela força da fé), como algo do irredutível, ou seja, não pode ser explicado pela razão, apenas vivido por cada sujeito que assume a angústia por si mesmo. Como Sartre (1987, p. 116) relata em Questão de método: O homem existente nãopode ser assimilado por um sistema de ideias; por mais que se possa dizer e pensar sobre o sofrimento, ele escapa ao saber, na medida em que é sofrido em si mesmo, para si mesmo, onde o saber permanece incapaz de transformá-lo. Kierkegaard ensina a Sartre que a existência passa pela valorização da interioridade, como vida subjetiva, que se afirma por toda a vida, profundamente, traduzindo-se em uma aventura pessoal e sofrida, como podemos ler com Sartre (1987, p. 116): “Kierkegaard tem razão: a dor, a necessidade, a paixão, o sofrimento dos homens, são realidades brutas que não podem ser superadas nem modificados pelo saber”. 140 Unidade III Exemplo de aplicação Para melhor compreender as relações possíveis entre o existencialismo e Marxismo, indica-se a leitura do texto Questão de método, de Sartre (1987). Indica-se ao aluno que grife os trechos mais importantes, atentando-se aos seguintes aspectos e questões problematizadoras: Como Sartre define a missão da filosofia diante o mundo em ebulição, em meio as guerras mundiais? Sartre aponta três projetos paradigmáticos no campo filosófico na modernidade, quais são eles? Sartre afirma em determinado ponto do texto, que o existencialismo é um sistema parasitário, explique essa afirmativa. Sartre apresenta as contribuições de Kierkegaard ao existencialismo nesse texto, quais seriam elas? Quais são as críticas que Sartre tece sobre o marxismo em seu texto? Qual a missão do existencialismo no século XX diante o marxismo: uma aliança ou uma crítica radical? Após a leitura atenta do texto, o aluno deve voltar ao roteiro de estudo aqui exposto e elaborar comentários por escrito, para refletir e melhor fixar o conteúdo apresentado. Sartre inicia seu texto com uma questão essencial: é possível, em nossos tempos, em meio às guerras mundiais e tamanho mal-estar civilizatório construir uma única filosofia que se constitua como uma larga antropologia estrutural e histórica? Para responder a isso, Sartre arrisca-se a dizer que se o existencialismo e o marxismo avançarem em suas posições epistêmicas e conceituais isso poderia vir a acontecer. Ou seja, fica claro que Sartre apontará que a Filosofia deveria unificar os saberes, orientando-os de acordo com alguns esquemas vinculados as realidades, principalmente daqueles que são marginalizados. Senão correria o risco, de se perder em esquemas totalizantes e abstratos, sem nenhuma relação com a realidade o ser que a vive. A partir daí o texto desenvolve-se, inicialmente num itinerário filosófico minucioso, buscando as raízes do marxismo em Hegel por exemplo, na visão do Ser e do conhecimento nesse filósofo marcante. Nesse momento, encontramos um Sartre crítico, que desconstrói alguns pilares do pensar moderno, mesmo reconhecendo-o sob três patamares, como são os criados por Descartes e Locke, depois por Kant e Hegel e, por fim, o do marxismo. Arraigado nessas críticas, que ofuscaram a dimensão ontológica do Ser, que se tornaram leituras abstratas do real, Sartre propõe que o Existencialismo esteja junto ao terceiro paradigma revolucionário moderno, do marxismo. Qualifica o existencialismo como parasitário, no sentido que como ideologia, vive e se nutri de um determinado saber, mas que tem potência, pois se opôs a tudo e poderia vir a se integrar como máquina de guerra, propondo novos modos de ser e estar no mundo, redimensionando o humano dentro do marxismo. 141 FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO Há, ainda, outros maravilhamentos muitos comentados por Sartre que pertencem ao universo literário, prática que ele elege como essencial a qualquer pensador, como a esposa-amante nos narra, “Sartre vivia para escrever: tinha por missão testemunhar as coisas e retomá-las por sua conta e a luz da necessidade” (BEAUVOIR, 2017, p. 18). O desapego a qualquer pertencimento, seja de classe social, a profissão ou a geração, marcaram a vida de Sartre e isso abria o futuro com uma força que fazia desse pensador-artista uma máquina disponível para imaginar. Além de criar, inspirava-se em muitos literários, que suscintamente vamos citar, para ilustrar a pluralidade de influências que marcaram a trajetória desse projeto libertário de faces filosóficas e estéticas. Porque afinal, Sartre dirá: Todos os filósofos são escritores! Sartre escreve um livro paradigmático sobre a literatura, Que é a literatura?, no qual afirma que todo escritor e sua literatura devem se engajar, numa missão existencial, não como um ato político, mas como filosófico, como Lévy nos (2001, p. 73-74) ajuda a compreender melhor: A conceito de engajamento não é um conceito político que insiste nos deveres sociais do escritor, é um conceito filosófico que designa os poderes metafísicos da linguagem. Falar de engajamento não é requisitar os homens de letras; é lembrar-lhes de cada um sabe ou deveria saber que cada ato de nomeação integra-se no espírito objetivo; que com isso, ele dá à palavra ou à coisa uma dimensão nova; que cada palavra pronunciada contribui para desvelar o mundo e que o desvendar será sempre, e desde já, mudá-lo. Lévy (2001, p. 95) nos relata que um dos primeiros balaústres literários admirados por Sartre, será o grande André Gide (1869-1951), escritor francês, que marcou uma geração por tratar de temas disruptivos, como a homossexualidade, sem nenhuma restrição moral. Um experimentalista em seus romances, “seu gosto pelos jogos de espelhos e por construções a beira do abismo, a arte da variação dos pontos de vistas e das múltiplo as focalizações, toda uma nova técnica”. Gide ainda marcará o cenário francês e a vida de Sartre, porque tornou-se no meio editorial importante ícone, ao assumir a editora Gallimard e fundar a revista Nouvelle Revue Française. Será essa editora que aprovará e publicará a maior parte das obras de Sartre. O escritor-filósofo francês lerá outros literários de peso, como James Joyce (1882-1941), escritor irlandês, que apesar de ser incompreendido por muitos, agradou a Jean-Paul, porque reencontrou ali o eco de um complexo afetivo significativo para ele, que apesar de perdido em sua biografia, ainda lhe ressoava de forma decisiva, a falta do pai. Esse tema apareceria como uma obsessão nos personagens joycianos, o que atraía a atenção do francês, que se via envolto com o tema da paternidade. Além disso, aprendeu com Joyce, o recurso literário do uso dos monólogos, como ele reutilizou em suas próprios livros, como A náusea e A idade da razão. Ainda cita-se Louis-Ferdinand Céline (1894-1961), um escritor e médico francês, polêmico, por conta de menções as suas teses que foram usados no nazismo, mas que segundo Beauvoir (2017), com a obra Viagem ao fundo da noite, emudeceu o espírito de Sartre. Afirmou ainda, que Céline seria o único que permaneceria através dos tempos. Apesar do incômodo de Sartre com a posição aparentemente nazista 142 Unidade III do autor, e seu desprezo pela simplicidade, Beauvoir nos narra que nessa obra específica, o autor revela uma atmosfera anarquista, crítica e um desprezo pelos lugares comuns, o que agradou muito ao casal Sartre-Beauvoir. Lévy (2001) nos conta que inclusive Sartre usará trechos das obras de Céline em suas, como na epígrafe de A náusea, que se inicia assim “é um rapaz sem importância coletiva, não passa de um indivíduo” (LÉVY, 2001, p. 104). Outro chamariz para Sartre será o campo literário norte americano, que para Lévy (2001), o livrará parcialmente da feitiçaria gidiana, jogando-o diante outros autores de peso. Sartre mantém uma relação complexa com o território norte americano pois recusará o estilo de vida democrático do homem produtivo e feliz aparentado pelos EUA. Cohen-Solal (2005) nos conta que a América para Sartre significava acessar alguns fenômenos culturais desconhecidos, como o jazz moderno, o cinema, e uma certa literatura como Hemingway, Dos Passos e Faulkner. Portanto, serão principalmente os romances americanos que produzirão para Sartre uma revolução técnica, propondo novas
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