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Houve um tempo, penso eu, em que a contabilidade era vista como um relógio silencioso — ponteiros que marcavam entradas e saídas sem pedir licença ao vento das decisões. Caminhei por esse tempo e, em cada esquina, encontrei duas figuras que conversavam como velhos conhecidos: Competência e Caixa. Competência falava de compromissos assumidos, de receitas que nascem antes de serem recebidas; Caixa, de notas saudando mãos calorosas, do presente palpável. Entre eles, ergueu-se a cidade dos regimes gerais — um mapa de escolhas contábeis e fiscais que exige do contador mais do que técnica: pede juízo, ética e narrativa coerente. Defendo, desde logo, que a contabilidade de regimes gerais não é apenas um manual de lançamentos. É um contrato social entre a entidade e seus interlocutores: sócios, credores, fisco e sociedade. A escolha do regime — notadamente o regime de competência versus o regime de caixa, bem como a aderência a regimes tributários como Lucro Real, Presumido ou Simples — altera a pintura financeira e, por consequência, as decisões estratégicas. Quem lê demonstrações espera coerência temporal e veracidade econômica; negar esse princípio é diluir confiança. Argumento primeiro: o regime define a essência informacional. No regime de competência, a contabilidade procura captar a essência econômica dos fatos, reconhecendo receitas e despesas quando geradas, independentemente do fluxo financeiro. Isso facilita a mensuração de desempenho e a comparabilidade entre períodos. Por outro lado, o regime de caixa, mais simples e intuitivo, revela a liquidez imediata e é frequentemente adotado por pequenas empresas cujo foco é a sobrevivência no curto prazo. Assim, a escolha deve considerar propósito informacional e perfil da entidade. Argumento segundo: impactos tributários e de planejamento. Regimes tributários interagem com critérios contábeis. Uma empresa no Lucro Real, por exemplo, precisa de contabilidade robusta alinhada ao regime de competência para apurar base tributável com precisão. No Simples, a simplicidade fiscal pode tornar desnecessária a sofisticação contábil, mas não elimina a necessidade de controles que preservem patrimônio e assegurem transparência. Portanto, a contabilidade não existe isolada: ela é ferramenta de governança e conformidade. Argumento terceiro: riscos e controles. A adoção inadequada de um regime pode mascarar riscos. Adequar reconhecimento de perdas, provisões e contingências sob o regime de competência exige prudência e técnicas de estimativa. A adoção indiscriminada do regime de caixa pode esconder passivos ou inflar liquidez aparente, conduzindo gestores a decisões arriscadas. Assim, além de escolher um regime, é imperativo implementar políticas contábeis claras, documentação robusta e divulgação consistente. Argumento quarto: transição entre regimes e continuidade. Mudanças de regime — motivadas por crescimento, exigência regulatória ou planejamento tributário — são momentos críticos. A transição demanda reavaliação de saldos, adaptações de sistemas e, sobretudo, transparência explicativa nas notas explicativas. Sem isso, o leitor das demonstrações pode interpretar variações naturais como ruídos ou manobras. A contabilidade responsável transforma a mudança em narrativa compreensível, sustentada em princípios e evidências. Aponto também a dimensão humana. Contabilidade de regimes gerais não é um conjunto de regras frias; é prática que envolve julgamento. O contador, como narrador e guardião da verdade econômica, deve harmonizar técnicas com valores. Em tempos de pressão por resultados, é tentador ajustar reconhecimentos para favorecer metas. É justamente aí que a integridade se mostra decisiva: regimes contábeis podem ser justificados, mas não manipulados para enganar. Por fim, proponho que organizações adotem um tripé de boas práticas: escolha consciente do regime alinhada ao propósito da entidade; governança que assegure controles, políticas e revisões; e comunicação transparente nas demonstrações e notas. Essa tríade une razão e estética: a contabilidade passa a contar uma história fiel, útil e decente. Retorno, enfim, às ruas da cidade onde Competência e Caixa continuam a conversar. Eles não são inimigos; são perspectivas. A arte do contador é ouvi-los, ponderar e escrever, com honestidade, a narrativa que melhor serve aos interesses legítimos de sua entidade e da coletividade. Porque, ao fim, contabilidade de regimes gerais é isso: uma promessa pública de que o passado econômico foi registrado com respeito, para que o futuro seja decidido com clareza. PERGUNTAS E RESPOSTAS 1) O que diferencia regime de competência e regime de caixa? Resposta: Competência reconhece fatos quando ocorrem economicamente; caixa registra quando há efetivo recebimento ou pagamento. Um foca desempenho, o outro, liquidez. 2) Como a escolha do regime afeta tributos? Resposta: Afeta base de apuração e timing de receitas/despesas; empresas no Lucro Real necessitam de contabilidade por competência para apurar imposto com precisão. 3) Quais riscos de usar apenas o regime de caixa? Resposta: Pode mascarar passivos e dificuldades futuras, oferecendo falsa sensação de solvência e comprometendo decisões estratégicas. 4) O que fazer ao mudar de regime contábil? Resposta: Planejar transição com ajustes de saldos, rever políticas e divulgar claramente as razões e efeitos nas notas explicativas. 5) Qual o papel do contador na contabilidade de regimes gerais? Resposta: Ser guardião da verdade econômica: escolher e aplicar políticas com julgamento técnico, ética e comunicação transparente.