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Quando a maré subiu numa madrugada de maio e invadiu a rua principal de Porto das Águas, dona Marília acordou com as paredes frias e a geladeira boiando. Ela virou a água em pão e memórias: fotos de netos emolduradas, documentos em sacos plásticos que não resistiram ao sal. No dia seguinte, a prefeitura instalou lonas e caminhões, o estado fez um gabinete de crise, e os repórteres falaram em “evento extremo”. Para muitos ali, porém, não era só um evento: era a confirmação de um medo antigo — o clima mudou e o direito ainda corre para alcançá-lo. Essa cena contém o cerne do Direito dos Desastres e das Mudanças Climáticas: a interseção entre fenômenos físicos mensuráveis e direitos humanos, responsabilidades administrativas e lacunas institucionais. Cientificamente, sabemos que o aquecimento global amplifica a frequência e intensidade de extremos hidrometeorológicos. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) indica com alta confiança que ondas de calor, chuvas intensas e eventos costeiros são mais prováveis e mais severos em um mundo 1,5–2 °C mais quente. A subida média do nível do mar — impulsionada pelo aquecimento e pela perda de gelo — aumenta o risco de inundação costeira, enquanto a urbanização e a ocupação de várzeas ampliam a exposição humana. O direito precisa traduzir essa ciência em normas preventivas e reativas. O paradigma clássico do direito de desastres — resposta emergencial e reconstrução pontual — é insuficiente. É necessária uma transição para um regime baseado em redução de risco, antecipação e resiliência. Isso implica integrar o Sendai Framework for Disaster Risk Reduction 2015–2030, o Acordo de Paris e obrigações de direitos humanos em normas domésticas: planos municipais de uso do solo com mapas de risco, códigos de construção que reflitam novos padrões de precipitação e vento, sistemas de alerta precoce com cobertura universal e financiamento previsível para adaptação. Do ponto de vista normativo, surgem questões concretas e espinhosas: quem paga a conta quando uma enchente ligada ao clima destrói uma comunidade inteira? O regime internacional já reconheceu o conceito de “loss and damage”, mas os mecanismos de reparação permanecem escassos e politicamente difíceis. Há também o debate sobre responsabilidade e reparação: podem-se atribuir responsabilidades a emissores históricos e grandes corporações? Litígios climáticos têm avançado em vários países, usando argumentos de nexo causal probabilístico e violação de deveres estatais de proteção, mas o reconhecimento de responsabilidade por desastres específicos enfrenta limitações técnicas e jurídicas. Em nível local, o direito deve ser sensível à justiça climática. As populações mais expostas e com menor capacidade adaptativa — comunidades ribeirinhas, favelas costeiras, povos indígenas — sofrem desproporcionalmente e costumam ter menor acesso a instrumentos jurídicos. Assim, instrumentos de proteção devem combinar medidas técnicas (barreiras, drenagem, realocação) com garantias processuais: consulta prévia, participação significativa e proteção de direitos coletivos. A “realocação planejada” é uma ferramenta legítima, mas exige regras claras sobre critérios, compensação, moradia digna e preservação cultural. No campo da governança financeira, o Direito dos Desastres precisa criar estruturas para financiar risco e resiliência: fundos de emergência, seguros paramétricos, pools regionais, linhas de crédito contingente e mecanismos de transferência de recursos que atendam rapidamente às necessidades. A experiência internacional sugere que instrumentos financeiros só são efetivos se integrados a políticas públicas que reduzam exposição e vulnerabilidade. A integração entre ciência e direito passa pela linguagem das provas: modelagem de atribuição de eventos extremos, cenários de risco, avaliações econômicas de danos e monitoramento de cumprimento normativo. Jurisprudência inovadora vem pedindo que tribunais aceitem evidência científica probabilística para responsabilizar omissões estatais. Isso reforça a ideia de que o direito não só reprime condutas, mas ordena políticas públicas de mitigação e adaptação. Como editorialista, defendo uma reforma normativa ambiciosa e pragmática: (1) consagrar a redução do risco de desastres como obrigação constitucional/regulatória correlata a direitos fundamentais; (2) instituir planos obrigatórios de adaptação com metas verificáveis e responsabilidade administrativa clara; (3) criar mecanismos de financiamento estáveis para perda e dano, com contribuição progressiva de grandes emissores; (4) regular a realocação planejada garantindo participação, reparação e futuro digno; (5) fortalecer capacidade técnica do Judiciário para lidar com provas climáticas. A cena de dona Marília é aviso e chamado. O Direito dos Desastres e das Mudanças Climáticas deve abandonar a rédea frouxa do improviso e assumir uma função proativa: regulamentar riscos, proteger vulneráveis, responsabilizar omissões e institucionalizar solidariedade. Não se trata apenas de responder ao próximo dilúvio, mas de tornar previsível, justo e humano o processo de conviver com um clima que já não segue os mapas do passado. Legisladores, juízes, cientistas e comunidades precisam escrever, juntos, normas que transformem dados em proteção — antes que o próximo inverno leve mais do que móveis: leve vidas e dignidade. PERGUNTAS E RESPOSTAS 1) O que é Direito dos Desastres e como se relaciona com mudanças climáticas? Resposta: É o conjunto de normas para prevenção, resposta e reconstrução. Com as mudanças climáticas, amplia-se foco em redução de risco, adaptação e responsabilidade por perdas. 2) Quais instrumentos internacionais orientam políticas domésticas? Resposta: Destacam-se o Sendai Framework (redução de risco) e o Acordo de Paris (adaptação e perda e dano), além de normas de direitos humanos. 3) O Estado pode ser responsabilizado por desastres climáticos? Resposta: Sim, quando houver omissão injustificada na proteção de direitos, com base em provas científicas e falhas em políticas públicas preventivas. 4) O que é “loss and damage”? Resposta: Mecanismo para lidar com perdas e danos irreversíveis causados pelo clima; requer financiamento dedicado e apoio internacional. 5) Como garantir justiça para populações vulneráveis? Resposta: Combinar medidas técnicas com participação, acesso à justiça, compensação adequada, proteção cultural e prioridade nos fundos de adaptação.