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SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS AULA 5 Prof. Rafael Alves Cazuza 2 CONVERSA INICIAL Nesta aula, focaremos nas principais intervenções existentes nos dias de hoje para detecção e intervenção de transtornos relacionados ao abuso de drogas. Abordaremos questões referentes às internações voluntárias, involuntárias e compulsórias, além de temas atuais sobre redução de danos (RD). O foco será na discussão ética e sobre eficácia terapêutica no tratamento de problemas decorrentes do uso de substâncias psicoativas. A ética permeará esta aula e será a linha base na condução da compreensão e tratamento de transtornos associados ao uso de substâncias psicoativas (SPAs). Todas as abordagens de tratamento levam em consideração princípios éticos e que norteiam a conduta médica e do psicólogo. Sendo assim, o objetivo será discutir temas importantes na detecção e tratamento de usuários com problemas no uso de SPAs, apontando questões éticas que possibilitem a garantia dos direitos individuais do usuário e ampliem a eficácia dos tratamentos nesses casos. Abordaremos também questões de conflitos éticos como as internações involuntárias e compulsórias, no que se refere à garantia das liberdades individuais. TEMA 1 – DIAGNÓSTICOS Neste primeiro tema, abordaremos os principais diagnósticos referentes aos transtornos decorrentes do uso de drogas e seus transtornos relacionados como ansiedade, depressão e psicoses. Os transtornos, segundo o Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais (DSM-V, APA, 2014), podem ser separados pela sua gravidade – leve, moderada e forte – e estão associados ao uso das substâncias, à abstinência e à toxicidade provocada pelo excesso. Nesse sistema estão inclusos os transtornos ocasionados pelo álcool, tabaco, cafeína, cannabis, alucinógenos em geral, psicoestimulantes e opioides. Os transtornos decorrentes do uso de SPAs se caracterizam por um conjunto de sinais e sintomas cognitivos, comportamentais e fisiológicos indicando o uso contínuo ou exacerbado pelo indivíduo. Determinadas substâncias promovem sintomas mais ou menos fortes e, em alguns casos, os sintomas não se apresentam em sua totalidade, como no caso de alguns alucinógenos inalatórios. 3 Uma característica importante dos transtornos por uso de SPAs é a alteração nos circuitos cerebrais, que persistem após a retirada da droga. Esses efeitos de neuroplasticidade podem provocar transtornos e outros sintomas de longo prazo como impacto cognitivo e comportamental. Um dos principais sintomas presentes nessa remodulação cerebral é a recaída, a fissura pela droga e sintomas de abstinência, como as convulsões e a irritabilidade. Além disso, estímulos pareados ao uso dessas substâncias também podem provocar esses efeitos deletérios. O diagnóstico de um transtorno por uso de SPA identifica um padrão patológico de comportamentos relacionados ao seu uso, estabelecido por uma relação causal e temporal. Segundo o DSM, alguns critérios são utilizados para o diagnóstico do uso de substâncias, como deterioração social, perda do controle sobre o próprio uso, uso arriscado e critérios farmacológicos (associados à especificidade da substância). Além disso, o consumo da substância em grandes quantidades ao longo do tempo e o aumento do consumo acima do pretendido estão relacionados ao diagnóstico. Outro critério é a tentativa repetida e malsucedida de reduzir ou regular o uso. Ainda, outro critério é o gasto excessivo de tempo, esforço e dinheiro para usar uma substância e ter seu efeito. Por fim, o controle da droga sobre a vida da pessoa, em que toda sua atividade gira em torno de adquirir a substância de escolha. O ambiente pode estar associado ao uso de substância, então, a frequência nesses lugares é caracterizada também como problema relacionado ao uso. Já o condicionamento da fissura pela droga se enquadra como problema relacionado. E o efeito tem por base a alteração da plasticidade em circuitos cerebrais de recompensa. O uso recorrente de substâncias resulta em uma dificuldade em cumprir atividades básicas diárias, como trabalho e estudos. Além disso, esses efeitos são preditores de recaídas no uso. Nesse sentido, o indivíduo continua utilizando a substância mesmo com danos interpessoais e sociais causados pela substância, como a violência, afastamento e criminalidade. Em relação ao uso problemático, o indivíduo apresenta um outro fator de problemas associados ao uso de substâncias. Isso significa dizer que o indivíduo usa a droga mesmo quando presente riscos à saúde e integridade física, usar a substância mesmo sabendo dos problemas, além do problema em deixar de usar a droga. 4 Um fator importante para o diagnóstico é a tolerância à droga, ou seja, o aumento da dose ao longo do tempo com finalidade de obter o mesmo efeito. Para essa avaliação, os níveis da substância no sangue podem ser usados como exame da função da droga na produção de crises de tolerância. Além disso, a abstinência é um fator preponderante no diagnóstico de transtorno relacionado ao uso de drogas, ou seja, estão presentes sintomas da abstinência, como ansiedade, agitação psicomotora e convulsões. Entretanto, algumas substâncias apresentam pouca ou nenhuma crise de abstinência (West; Gossop, 1994). É importante ressaltar que o diagnóstico é importante na detecção de um transtorno, entretanto, é nas intervenções que acontecerão as remodulações necessárias ao tratamento e melhora da qualidade de vida do usuário de drogas. TEMA 2 – INTERVENÇÕES Neste tema, abordaremos as principais intervenções no cuidado e prevenção dos transtornos decorrentes do uso de substâncias psicoativas. É importante verificar que algumas medidas são tomadas com o usuário de drogas. As intervenções variam desde o acompanhamento ambulatorial, internações voluntárias ou involuntárias, ou até mesmo compulsória, tratamentos farmacológicos e a busca pela abstinência. Discutiremos o tema específico da abstinência e das internações nos temas seguintes. As intervenções de saúde mental no uso de álcool e outras drogas são preconizadas por órgãos de saúde como a Organização Mundial de Saúde (OMS) e, no Brasil, pelo Sistema Único de Saúde (SUS) (Souza et al., 2012). Essas ações são balizadas por princípios dos direitos humanos, integralidade, equidade e universalidade do SUS. Dentro desse sistema, as ações utilizam métodos baseados em intervenções farmacológicas, psicoterápicas e hospitalares. Nas intervenções hospitalares, é importante notar que a internação ainda se encontra como foco do tratamento de transtornos de dependência de drogas. As ações no cuidado ao usuário de drogas no Brasil são classificadas como diretas ou indiretas. Dentre as ações diretas estão atendimento médico, enfermagem, medicação, cuidado intensivo, cuidado ambulatorial, reunião com usuários, participação de equipe no controle de crises e psicoterapias. No caso das ações indiretas, são bons exemplos as ações de saúde mental, estratégias de promoção de saúde e manejo ambiental (Souza et al., 2012). 5 É importante notar que as estratégias indiretas fazem parte de um conjunto de ações sobre a caracterização de protocolos de saúde mental, psicoeducação e desenvolvimento de ações públicas que extrapolam a saúde. Nesse sentido, a modificação de estruturas sociais, o cuidado na atenção primária sendo ampliado e a educação relacionada ao uso de drogas se tornam importantes ferramentas no controle do uso de drogas na comunidade. Se essas ações não alcançarem o objetivo em casos específicos, são preconizadas ações de redução de danos e, em último caso, internações e intervenções farmacológicas. TEMA 3 – ABSTINÊNCIA Neste tema, discutiremos a questão da abstinência como foco das ações de cuidado com o usuário de SPAs. A síndrome de abstinênciacontinua ocupando um lugar importante no estudo dos vícios. É interessante por si só e em relação ao desenvolvimento e manutenção do uso compulsivo de drogas. Apesar da atenção dedicada aos fenômenos de abstinência por muitos anos, a demarcação precisa dos sintomas de abstinência associados às drogas da dependência tem se mostrado difícil de ser alcançada. A abstinência de todas as drogas de dependência parece levar a distúrbios do humor, embora não esteja claro até que ponto estes são devidos às ações farmacológicas de drogas semelhantes ou a outros processos fisiológicos ou psicológicos. Os distúrbios do sono também são comuns, embora as ligações diretas com as ações farmacológicas do medicamento retirado ainda não tenham sido estabelecidas. A abstinência de álcool, benzodiazepínicos e opiáceos costuma estar associada a sintomas somáticos. Nos dois primeiros casos, isso pode envolver sudorese, tremor e, ocasionalmente, convulsões. Também foram relatados distúrbios perceptivos. No caso dos opiáceos, sintomas semelhantes aos da gripe são frequentemente relatados, incluindo dores musculares e distúrbios gástricos. No caso da nicotina, o aumento da irritabilidade foi estabelecido como um efeito direto de retirada farmacológica. A caracterização da abstinência de estimulantes ainda é incerta. Há pouca evidência de sintomas somáticos, mas a depressão pode ocorrer como resultado de um rebote fisiológico. Também há incerteza sobre o papel que os sintomas de abstinência farmacológica desempenham na manutenção do uso compulsivo. 6 Avanços adicionais em nossa compreensão da natureza e importância dos sintomas de abstinência dependerão do uso de definições operacionais precisas de características de abstinência (West; Gossop, 1994). A questão da abstinência deve ser bem contextualizada. Nem sempre a busca da abstinência é um desejo do usuário. Por vezes, a necessidade do usuário é ressignificar o seu uso, buscando formas de manter uma relação mais ou menos saudável com a substância. Nesse sentido, deve-se respeitar o desejo do usuário. Além disso, ações que buscam a abstinência como método deve ter consciência de que a abstinência provoca reações que podem gerar comportamentos de recaída e fissura pela droga. Além disso, uma questão epistemológica é associada à abstinência como método. Isso significa dizer que a “cura” é a própria abstinência, então, como exigir a cura a partir do usuário? Exigir do paciente a própria cura se apresenta como um problema epistemológico do próprio método de tratamento. Nesse contexto, buscamos sempre o controle do uso de substâncias por redução de danos, por meio de drogas substitutivas, redução gradativa e formação de vínculos sociais com o usuário. Caso seja o desejo do usuário abster-se, os trabalhos devem ser direcionados no sentido de desintoxicar por vias alternativas e gradativas até que o objetivo do usuário se concretize. TEMA 4 – INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA A internação compulsória se apresenta como conflito ético no tratamento de usuários de drogas. Neste tema, abordaremos essa questão polêmica e discutiremos os casos específicos nos quais se preconiza a internação quando o indivíduo não se encontra na posição de decidir sobre a própria saúde. Para discutir a internação precisamos abordar a questão da tutela e emancipação do sujeito. O Estado já foi capaz de executar ações catastróficas no que se refere a direitos humanos no tratamento de transtornos mentais. Sendo assim, ações que valorizam a autonomia do usuário devem ser sempre primárias e preconizadas, garantindo os direitos fundamentais do indivíduo. A tutela hospitalar é um problema histórico, no qual pacientes considerados inaptos para o exercício de suas atividades sociais ou perigosos para si e para os outros deveriam ser afastados da sociedade e obrigados a se asilarem. Nesse contexto, a instituição ou o Estado teriam a tutela do indivíduo. Hoje em dia se preconiza a emancipação do sujeito, garantindo sua liberdade. 7 Apesar da emancipação estar atrelada à humanização do cuidado à pessoa com transtornos mentais, ainda hoje algumas ações se movimentam no sentido oposto, como é o caso das internações involuntárias e as internações compulsórias. No Brasil, a internação é preconizada em condições bem específicas. Segundo o art. 4º da Lei n. 10.216, de outubro de 2001, a internação só será indicada quando os recursos extra-hospitalares forem insuficientes, ou seja, o mais importante é a necessidade de manutenção de estratégias de tratamento no território. Caso essas estratégias tenham se esgotado, que seja considerada a necessidade de internação hospitalar. No caso de internação, o tratamento deverá ter como finalidade a reinserção social do paciente em seu meio e a manutenção dos laços e vínculos familiares e sociais. Além disso, a internação deve ser estruturada para oferecer assistência integral, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, entre outros. Por fim, a lei prevê que será vedada a internação de pessoas com transtornos mentais em instituições com características asilares (Brasil, 2001). A internação compulsória é uma das modalidades da internação em situações de risco no uso de SPAs. Internações compulsórias são internações decididas por quem possui a tutela do usuário quando o mesmo se encontra em situação de alto risco e está incapacitado de responder por si de maneira consciente. Um exemplo da internação compulsória fora do contexto do uso de drogas é quando alguém sofre um acidente e se encontra inconsciente. Nesse caso, um familiar ou até mesmo um agente de saúde pode encaminhar o indivíduo à internação para tratamento até que o mesmo tenha condições de despertar e pedir alta médica. No caso do uso de substâncias psicoativas, algumas drogas podem induzir efeitos de inibição da consciência. Isso significa dizer que um conjunto de sinais e sintomas demonstram que o usuário se encontra em situação de risco de si ou de outros e não consegue ter consciência de seus atos. A avaliação da internação compulsória para algum usuário de SPAs é muito mais difícil que quando alguém se encontra inconsciente. Entretanto, quando, por exemplo, há ameaça de vida de alguém ou é identificado que um usuário está sob alto efeito de embriaguez, com fala extremamente confusa, sem conseguir manter a relação com a realidade e ainda está em situação de alto risco de vida, é prescrita a internação. 8 A internação voluntária é mais fácil de se prescrever. Ela se refere à decisão única e exclusivamente do usuário e deve ter como objetivo fornecer um ambiente médico multidisciplinar que dê suporte às necessidades do usuário para que identifique os problemas que o levam ao transtorno associado às SPAs e exercitar a manutenção da autonomia do usuário. É importante separar internação compulsória de internação involuntária. No primeiro caso, há uma tutela temporária e bem demarcada de um familiar ou agente de saúde, se um usuário de SPAs não estiver em condições de responder. Embora esse conceito, por vezes, seja esticado e confundido com internação involuntária, esta pressupõe uma incapacidade atemporal do usuário de drogas e não se detém a se apossar da tutela de maneira arbitrária. A internação involuntária está relacionada à internação do usuário sem sua vontade mesmo em condições em que esteja capaz de decidir (Azevedo; Souza, 2017). Isso é bem ilustrado no Brasil no caso dos usuários de crack, sobre os quais discutiremos na sessão “Na Prática”. TEMA 5 – UMA ALTERNATIVA: REDUÇÃO DE DANOS A redução de danos é uma proposta ética que se opõe à lógica de internação como promotora de saúde e resolução do problema com as drogas. O uso de drogas é inevitável. O ser humano possui consciência e é comum que ele queira experimentar alterações naconsciência. O uso de substâncias psicoativas é uma constante ao longo da história, incluso na pré-história e em outros animais (Escohotado, 2002). Nesse sentido, a perspectiva da redução de danos entende que o uso de substâncias é quase inevitável e que o problema real está nas pessoas que apresentam transtornos relacionados a essas SPAs. A RD possui como pressuposto a autonomia do usuário de substâncias, valorizando sua posição como ser humano e conhecedor das próprias questões, autônomo e protagonista da própria história. É importante ressaltar que a redução de danos não se opõe à internação, mas a vê como última opção no cuidado com o usuário (Passos; Souza, 2011). A RD surge baseada no dilema ético entre o tratamento e o cuidado dos usuários de drogas, quando devemos garantir as liberdades e direitos individuais e, simultaneamente, cuidar de casos em que o uso problemático de substâncias tira a autonomia e liberdade de escolha do indivíduo (Fonseca, 2012). Isso significa dizer que o uso de drogas só é um problema quando o usuário 9 compreende que tem um problema, e caso não compreenda, a família e a comunidade têm o dever de dar suporte no sentido da busca de tratamento, com finalidade de que o indivíduo compreenda suas limitações e necessidades de cuidado. Nesse modelo, o vínculo afetivo é de extrema importância na RD. O vínculo parte tanto do terapeuta, médico ou outro profissional de saúde como vínculo familiar. O vínculo também pode ser estabelecido entre o profissional de saúde e a família. Nesse sentido, a relação com a família contribui para a adesão ao tratamento do usuário, assim como favorece a compreensão do contexto geral da vida do usuário. Essa relação fornece informações importantes no entendimento dos fatores de risco e vulnerabilidade presentes no ambiente que pode contribuir para a dependência do indivíduo ou outros transtornos que podem gerar vulnerabilidade. A compreensão do contexto social do usuário é de extrema importância na compreensão do fenômeno como multifatorial. Além disso, as relações de vínculo do profissional de saúde com a família e com o usuário devem sempre estar direcionadas no sentido da busca pela autonomia do usuário. Além disso, a autonomia deve ser alcançada a partir da compreensão do usuário sobre as substâncias que usa e sobre as ferramentas que pode utilizar para evitar danos ocasionados por elas. Isso inclui dependência, transtornos psicológicos e transtornos físicos ocasionados por substâncias tóxicas ou utilizadas em quantidades exageradas. A RD funciona como suporte em diversos ambientes, incluindo clínicos e não clínicos. Nos ambientes clínicos, a RD busca ferramentas como a Gestão Autônoma de Medicamentos (GAM), substituição de substâncias psicoativas, busca por alternativas de tratamento que se adequem à realidade do usuário e a psicoeducação, que inclui mecanismos de compreensão dos métodos que o indivíduo usa para consumir a droga. No ambiente não clínico já existem ações da RD, como, por exemplo, nas regiões de consumo de crack e em ambientes de festas. Em ambientes de festa, a RD busca ações de testagem de substâncias para que o indivíduo que escolha pelo uso da substância saiba exatamente o que e quanto estará consumindo de uma substância. Além disso, ações em festas como disponibilidade de enfermagem, ambientes que acolham o usuário com crises tóxicas do uso e locais que possam educar o indivíduo pelo uso consciente de SPAs. Já nas “cracolândias”, a RD se preocupa com problemas associados ao uso das drogas de maneira geral, sendo pela droga em si como 10 pelo método. Nesse exemplo, a RD educará o usuário a não se colocar em risco no que se refere ao uso de materiais descartáveis no uso de substâncias, qualidade e quantidade da substância. Além disso, buscará a formação de vínculo com os usuários, fornecendo possibilidades de internação ou restituição de laços familiares caso o usuário entenda que isso é uma necessidade. É importante dizer que a função da RD se baseia sempre na necessidade do usuário. Isso inclui a vontade do indivíduo em primazia, mas também da família. Além disso, é importante sempre separar a RD de apologia às drogas. A RD busca uma posição ética como política pública de cuidado com os usuários de drogas. Isso significa retirar a carga de preconceito do profissional de saúde e buscar o cuidado, ou seja, a busca pelo cuidado do usuário partirá das necessidades individuais e sociais do mesmo. Nesse sentido, é entendido pela RD que o cuidado com o método do uso de substâncias, que podem gerar outros problemas, como doenças transmissíveis pelo sangue em drogas injetáveis, é um fator importante a ser considerado. Além disso, nem todo usuário entende que a abstinência é desejável para si, ou que a internação deverá ser o caminho. O respeito à vontade do usuário deve ser preservado. Caso ele entenda que deve ocorrer internação para que se organize e mude sua relação com a droga, assim deve ser. Desse modo, a lógica da RD não se opõe à lógica das internações, mas a compreende de forma contextualizada e de forma que respeite à liberdade do usuário. De preferência, a internação deve ser utilizada em último caso e deve ser a mais reduzida possível. Deve-se buscar manter os vínculos familiares entre o usuário e sua família e sempre promover a autonomia e o protagonismo do usuário. Entender a redução de danos como política pública no combate aos problemas induzidos pelo uso de drogas é entender a psicologia como promotora de autonomia, entendendo o usuário como sujeito conhecedor de si e do mundo em que vive (Passos et al., 2011). A política pública de saúde que utilize a RD busca uma alternativa à “guerra às drogas” que é o modelo vigente em grande parte dos países. O controle das drogas por vias legais e policiais acabam por afetar o usuário no sentido que o põe em condições de risco pelo contato com a criminalidade. Além disso, é um modelo que acaba por gerar a produção de drogas mais tóxicas, viciantes e menos seguras como o crack e o krokodil (droga à base de heroína e solventes utilizada mais no Leste Europeu). No modelo de guerra às drogas, a abstinência é sempre buscada independentemente da 11 vontade do usuário, buscando acabar com o uso de SPAs pela eliminação total da sua existência por vias policiais. A RD busca fugir dessa relação, buscando a saúde do usuário acima da droga em si. NA PRÁTICA Como exemplo prático de medidas de diagnóstico, cuidado e manejo do usuário que apresenta problema com as drogas, usaremos o caso das “cracolândias”. O crack é um problema social no Brasil. Regiões em grandes centros urbanos podem apresentar determinados locais onde se aglomeram usuários de crack, que possuem histórias distintas e motivos distintos para se encontrarem naquela situação. Entretanto, o que vemos geralmente ocorrer nessas regiões é que o caso que deveria ser de saúde, envolvendo políticas públicas, se torna um caso de polícia e internação compulsória. Esse contexto apresenta problemas graves, está atrelado a questão sociais profundas relacionadas à pobreza, à miséria e ao descaso com a saúde pública. O crack é uma droga que possui o mesmo princípio ativo da cocaína, mas com alto grau de impureza; é fumada e muito barata. Isso atrai usuários que não possuem renda para ter acesso a outras drogas menos danosas, acumulando pessoas pobres em torno de uma substância que possui um efeito extremamente forte e rápido, gerando alto grau de tolerância da droga. A tolerância é a chave para a compreensão dos transtornos aditivos. O usuário necessita cada vez de mais droga para atingir o mesmo efeito inicial. Sendo assim, medidas de redução de danos em ambientes de usuários de crack têm sido propostas. Em contrapartida, há um grande apelo popular para o desmanche das cracolândias no sentidode reduzir criminalidade nos grandes centros urbanos, fortalecendo narrativas em favor da internação compulsória desses usuários e prisão dos que traficam a droga. A redução de danos nesse contexto trabalha o vínculo com usuário, estudando formas de ampliar ações de saúde pública na saúde mental e acolhimento de usuários que desejam se recuperar do uso problemático. 12 FINALIZANDO Durante esta aula abordamos os principais modelos de diagnóstico na dependência às drogas. Vimos que o diagnóstico de transtornos relacionados ao uso de substâncias psicoativas se diferencia do transtorno aditivo. O transtorno aditivo se refere à questão da dependência e dificuldades em deixar de usar a substância de forma que isso afete a vida do usuário ou de outros. Já os transtornos relacionados podem ser separados conforme as categorias de drogas. Vimos que transtornos podem aparecer associados ao uso de álcool, tabaco, psicotomiméticos (alucinógenos), cannabis, ansiolíticos, analgésicos, dentre outros. Cada uma dessas substâncias possuirá efeitos psicológicos agudos ou de longo prazo que podem provocar o surgimento de transtornos do tipo depressivo, ansioso ou até psicoses. Além disso, abordamos os transtornos sociais decorrentes do uso de substâncias psicoativas na sociedade. Discutimos questões de criminalidade e impacto na saúde pública. Em relação ao papel do psicólogo nas intervenções em pacientes com transtornos relacionados às SPAs, discutimos a questão do acompanhamento terapêutico, prevenção e promoção de saúde a nível básico e especializado. Nos atentamos para a questão da produção de ambientes nutridores no estabelecimento de sociedades saudáveis como promotor de bem-estar e evitação do aparecimento de casos de uso problemático de drogas. Além disso, discutimos sobre a posição do psicólogo na compreensão do uso de drogas e dependência como uma questão biopsicossocial, estando submetida a uma análise interdisciplinar. No contexto de tratamento, discutimos a diferença entre cura e tratamento na questão da abstinência às drogas. Discutimos a questão filosófica da abstinência como cura. Vimos que nem sempre abster-se significa curar-se. Compreendemos também que o ambiente no qual o usuário está inserido permite mais ou menos o uso nocivo de SPAs. Ambientes de tratamento onde não há drogas disponíveis podem indicar uma falsa cura, já que, ao voltar ao ambiente em que há disponibilidade, a fissura da busca e o uso problemático podem voltar a aparecer. Neste sentido, vimos que grande parte dos usuários de alguma SPA não possui problemas com a substância. Sendo assim, devemos buscar formas de tornar o indivíduo autônomo na decisão e controle do próprio 13 uso. Entretanto, vimos a possibilidade de algumas substâncias não permitirem este controle de forma tão forte. Abordamos também a questão da internação compulsória, autonomia e luta antimanicomial. Vimos que em casos em que o indivíduo se encontra em risco, há indicação da internação. A internação voluntária parte do indivíduo em querer se abster; a involuntária se refere à internação sem o consentimento do usuário, mas que se encontre em estado de decisão; e a compulsória se refere a momentos em que o usuário se encontra sem a capacidade de decidir e sem autonomia, devendo ser indicada a internação por um familiar ou agente de saúde. Entretanto, as internações possuem papel extremo, como última cartada no manejo do usuário em uso problemático, mas levando em conta sua capacidade decisória, autonomia e direitos preservados. Vimos também que há controvérsias em relação à efetividade da internação no tratamento do uso problemático, estando mais associada a um momento íntimo do usuário para se reorganizar quanto a sua própria vida e em sua relação com a droga. Nesse sentido, alguns fármacos utilizados podem ajudar a reduzir efeitos adversos da retirada da droga na abstinência e a fissura pela droga. Por fim, falamos da redução de danos como alternativa para o manejo do abuso de drogas. Vimos que a redução de danos é uma abordagem ética que visa a promoção de saúde e autonomia do usuário, compreendendo-o como sujeito com direitos sociais e que tem consciência da sua condição. Nesse sentido, a redução de danos oferece alternativas para o usuário se abster caso queira, se internar caso queira, ou controlar o uso problemático caso não queira deixar de usar a drogas. O redutor de danos oferece ferramentas na promoção da autonomia através da formação de vínculo, cuidado e confiança dos usuários. Vimos a importância do exemplo da redução de danos em ambiente de festas, evitando casos de overdose ou transtornos agudos decorrentes do uso excessivo ou mesclado de substâncias psicoativas. A redução de danos se apresenta atualmente como uma opção viável e ética na condução de casos de transtornos decorrentes do uso de SPAs. 14 REFERÊNCIAS APA – American Psychiatric Association. DSM-5: Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Artmed, 2014. AZEVEDO, A. O.; SOUZA, T. P. Internação compulsória de pessoas em uso de drogas e a Contrarreforma Psiquiátrica Brasileira. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 27, p. 491-510, 2017. BRASIL. Lei 10.216 de 6 de abril de 2001. Brasília: Casa Civil, 2001. ESCOHOTADO, A. Historia general de las drogas. Espasa, 2002. FONSECA, C. J. B. da. Conhecendo a redução de danos enquanto uma proposta ética. Revista Psicologia & Saberes, v. 1, n. 1, 2012. PASSOS, E. H, et al. Redução de danos e saúde pública: construções alternativas à política global de “guerra às drogas”. Psicologia & Sociedade, v. 23, n. 1, p. 154-162, 2011. SOUZA, J. de et al. 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