Buscar

Camille Adorno Marcados para Morrer

Esta é uma pré-visualização de arquivo. Entre para ver o arquivo original

Marcados para morrer.rtf
Marcados para morrer
Camille Adorno
Marcados para morrer
1ª edição: 1997
Gráfica e Editora Kelps
Goiânia
©Copyright by Camille Adorno 
 Caixa Postal 95
Fone/Fax (062) 2531689 
 CEP 74001-970 Goiânia - G0 
			camilleadorno@starmedia.com
1
_________________________________________________
Pelé Problema passou a lâmina ao longo da coxa da mulher, descoberta até o quadril pela fenda em seu vestido longo e escuro.
Cabeção sacudiu os ombros e se abaixou, apertando os olhos, ao som do rap em volume ensurdecedor que ultrapassava os limitações do walkman preso à cintura e se espalhava pelo ambiente. A letra dos Detentos do Rap falava das agruras da vida bandida e da esperança de um tempo novo: crítica penetrante como um punhal, vazada na linguagem crua das ruas.
Petecão se balançava em cima de um banco da plataforma de embarque de passageiros, fumando um baseado.
Pelé encostou a ponta do canivete no espaço entre os seios da mulher, nos seus ombros nus, na reentrância na base do pescoço. Os olhos castanhos pareciam observá-lo com desprezo.
Petecão riu.
 Ei, Problema... Vai transar com essa dona? perguntou sorridente, tentando aproximar-se de Pelé. Falhou: a pergunta estatelou-se feito chumbo na plataforma de concreto da estação de ônibus.
Pelé Problema acompanhou com a ponta da faca a parte interna do braço da mulher, dobrado como um cabide, contornado o antebraço e detendo-se na mão que empunhava um microfone com a logomarca da TV Universal.
O som do motor foi aumentando com a aproximação do coletivo. O vento cortante sibilava, prenunciando a madrugada fria.
 O baú alertou Petecão, escorregando do banco. Apertou os olhos esbugalhados, confirmando a previsão e se aprumou, torcendo as pontas do colarinho do blusão de nylon. Eu falei. Olha aí o baú. Tava mais que na hora.
Cabeção parecia concentrado na busca de outra FM, passando por anúncios, notícias, conversas; procurando mais uma música igual à anterior. Enquanto viajava na onda da droga, levantou-se e foi em direção à pista do ônibus. Os passos ritmados marcaram a cadência da música, o movimento do corpo filtrando vida através da música.
Pelé Problema deu um passo para trás, a fim de poder ver a mulher inteira. Contemplou a imagem no cartaz com indisfarçável desejo. O quadril esquerdo estava jogado para a frente, a mão apoiada levemente na cintura, sem muita firmeza; apenas passando de leve, como um carinho. Sua pele era branca: branca em contraste com o vestido escuro, o cabelo castanho, os lábios pintados de vermelho. No pulso esquerdo ela usava uma pulseira de ouro. No anular direito, um anel de prata. Calçava sapato preto sem salto. Pelé suspirou longamente. Já tinha ido a todos os lugares, feito de tudo e faria tudo outra vez, se houvesse algo novo; mas sabia que sair com ela era quase impossível.
O vento soprou com mais força ao longo do corredor formado pela avenida. O cartaz era maior do que os outros afixados nas colunas da plataforma de embarque; a mulher era quase do tamanho real, fotografada diante de um cenário que reproduzia os contornos de Goiânia: prédios altos delineados contra o céu noturno, sob a lua crescente. O lago e a vegetação do Parque Vaca Brava faziam o contraste entre a paisagem natural e a criação do homem. Na parte superior do cartaz, em letras vermelhas como o batom da mulher, o convite irrecusável: Não durma sem Raquel Azevedo. Abaixo dos seus pés, em letras maiúsculas prateadas, lia-se uma ordem: Assista diariamente às últimas notícias no seu Canal 33 com Raquel Azevedo, ‘De olho na cidade’.
Pelé Problema queria possuir aquela mulher. Encostou a ponta da faca entre as pernas torneadas, à altura da junção das coxas e empurrou-a com força, furando o papelão. Puxou a mão e começou a esfaquear a virilha da mulher.
Petecão ria, batendo nas coxas.
 Mete nela, cara, mete nela. Ei, Cabeção. Saca só. O Pelé tá metendo na puta.... Petecão contorcia-se e sacudia o corpo, soluçando de tanto rir. 
Cuidadosamente, Pelé Problema cortou o pescoço da mulher.
O ônibus aproximou-se suavemente da plataforma, o ruído do motor possante engolindo o chiado insistente do walkman, enchendo o silêncio da estação de barulho. Pelé Problema afastou-se do cartaz, recolheu a lâmina do canivete, guardou-o no bolso da blusa e virou de costas.
 Ei! Vamos nessa, cara Petecão estava parado na porta dianteira do coletivo, metade do corpo balançando do lado fora, sustentado pela mão direita firmada à porta.
 Solte a porta e suba a voz do motorista parecia cansada.
Petecão ergueu o dedo e fez um gesto obsceno para o motorista. Olhou para Pelé, buscando aprovação.
Pelé Problema pôs a mão sobre o peito de Petecão era macio, desossado e empurrou-o para dentro do coletivo.
 Vamos nessa, idiota. Você ouviu o homem.
Pelé ficou na porta enquanto o ônibus dava partida, olhando a mulher que não iria mais perturbá-lo. Passou pela catraca eletrônica e foi até o meio do veículo. Encostou-se num banco e ficou olhando para a frente; as mãos nos bolsos das calças jeans, joelhos flexionados para aparar os solavancos, olhando fixo para as pernas de uma morena com uniforme de enfermeira.
Desde o ponto terminal na Praça da Bíblia até aquela estação na Praça do Bandeirante, o ônibus do Eixo Anhanguera só conseguira pegar poucos passageiros. Eram pessoas fora de sintonia com o resto do mundo: trabalhadores entrando ou saindo de seus turnos; pessoas da noite saindo cedo, madrugadores se arrastando de volta às suas casas. E especialistas: um bêbado que dormia profundamente, embalado pelas ondulações do asfalto que cedera ao tráfego intenso; um pichador de muros que ia saltar próximo ao Setor Rodoviário seu estúdio; lá ele passaria a noite decorando galpões de transportadoras e armazéns de atacadistas. Imaginava pichar mensagens cifradas da torcida organizada do seu clube de futebol, provocações aos adversários..
Os passageiros se sentavam a uma distância de fuga, enrolados num manto de medo, intuindo que qualquer um a não ser a enfermeira , podia ser um assaltante.
Cabeção aumentou o volume do walkman para poder ouvir a música acima do barulho do ônibus.
Petecão deu um último trago no baseado e jogou a ponta, com um peteleco, pela janela aberta. O cigarro desviou-se e caiu no assento ao lado do homem de boné que lia um livro. O homem empurrou a ponta com o livro.
 Ei, babaca, é proibido jogar lixo no chão. Petecão riu enquanto falava; olhou para as costas de Pelé Problema, pedindo-lhe com o olhar que se virasse e observasse. Quando voltou-se, o homem estava encarando-o, percebendo sua dependência. Petecão quis disfarçar: começou a ler um cartaz que estava bem acima da cabeça do homem ou pelo menos tentou; largara a escola no primeiro ano.
Pelé Problema fixou os olhos na enfermeira. Despiu-a mentalmente, bem devagar, arrancando as camadas de tecido cuidadosamente passadas e assépticas até o pequeno corpo aparecer inteiro à sua frente. Fez “psiu” e sorriu quando percebeu que ela não olharia para ele; sabia que a moça escutara. Sentou-se na frente dela com as pernas esticadas, o tênis Nike preto quase tocando os sapatinhos brancos.
Ela puxou os pés para trás.
Ninguém entrou nem saiu do ônibus na estação da Avenida Tocantins.
Pelé Problema ergueu-se num movimento rápido; sentou-se ao lado da enfermeira. Ela cheirava a limpeza. As mãozinhas delicadas, unhas bem feitas, seguravam com força a bolsa sobre o colo. O rosto estava inerte de medo; os olhos arregalados.
Pelé botou o nó do dedo no pescoço da enfermeira, atrás de sua orelha; levantou os cachos de cabelo negro encaracolados que desciam até os ombros.
 E aí linda... a gente podia se divertir pra caralho...
Ela fechou os olhos e prendeu a respiração; Pelé passou a unha no lóbulo da orelha da moça.
 Você não sabe o que está perdendo...
A enfermeira levantou-se e andou
com passos duros na direção da porta do meio do ônibus. Pelé alcançou-a, agarrou seu pulso e virou-a. Puxou-a para perto; inclinou sua cabeça para beijá-la na boca. A moça virou o rosto, enchendo sua boca de cabelos.
Petecão riu; finalmente, vira uma chance de bajular o líder. Deu um passo à frente e parou ao lado de Pelé Problema, levantando o dedo indicador entre os olhos da enfermeira.
 Ô, putinha, você não gostou do meu amigo, é?
Pelé pegou Petecão pela gola da blusa e jogou-o de encontro à catraca.
 Fica na porta e não deixa ninguém entrar.
Petecão seu nome era Roberto levantou e abaixou os braços.
 Como é que eu vou fazer isso?
Sentiu o peso do olhar do homem de boné e não quis olhar para ele.
Pelé Problema curvou-se, desanimado.
 Você tem um canivete, não tem?
Alegre por ser lembrado disso, Petecão tirou o canivete do bolso, acionou um dispositivo no cabo e a lâmina cortou o ar, antes que pulasse a catraca, aproximando-se do motorista.
 Ninguém se mexe.
Sentiu que o homem de boné se movimentara na poltrona.
Cabeção já se posicionara na porta traseira; segurava o canivete com as duas mãos, como um lutador.
Pelé ergueu o canivete na frente do rosto da enfermeira e soltou a lâmina. A moça estremeceu. Ele riu.
 Ih, garota.. Fica fria. A gente vai curtir numa boa...
Os passageiros continuavam sentados, dormentes e surdos, réplicas de seres humanos, rezando para que tudo acabasse. Menos o homem de boné, que estava atento ao que ocorria à sua volta. Antebraços apoiados nas coxas, livro nas mãos abertos feito um missal, assistia à cena sem ler o texto.
O ônibus foi diminuindo de velocidade; aproximara-se da estação do Lago das Rosas. Cabeção vasculhou a plataforma, temendo que alguém estivesse esperando o ônibus e ele fosse obrigado a usar o canivete.
 Ei, Pelé ele estremeceu ao ver o olhar de reprovação que Pelé lhe lançara por ter dito seu nome. Eu... eu só queria saber se a gente ia descer aqui...
Pelé Problema desceu pelo corredor batendo nas pernas da enfermeira com os joelhos para obrigá-la a andar. Parava em frente a cada passageiro para zombar, à medida que desviavam o olhar.
 Covardes fodidos. Não vão ajudar a garota? Filhos da puta. Querem um pouco também, babacas? Querem transar com ela, não é? riu com deboche. Vão se foder. Eu e os meus amigos aqui vamos fazer uma festa. O resto vai ficar onde está. Não vão sair atrás da gente, dar alarme, chamar um cana filho da puta. E continuem pra onde estão indo. Se esqueçam que viram alguma coisa. Ninguém se lembra de nada. A gente não vai machucá-la; vamos fazer um rock legal, falou?
Pelé colocou o cabo do canivete entre os dentes e passou a mão nos seios, no ventre e nas nádegas da enfermeira.
Petecão riu, mas sabia que não ia conseguir ter uma ereção. Ele ia ser o último, como na vez em que a prima do Boca de Pá Mecânica transara com todos eles; a lembrança deixava-o enjoado até agora.
O ônibus estava quase parando na estação.
 Pelé o homem de boné estava em pé no corredor. Fechou o livro e guardou-o num bolso da calça.
Pelé tirou o canivete da boca e apontou-o para o pescoço da enfermeira.
 Senta aí, cara.
 Solte a moça disse o homem, levantando a voz apenas o suficiente para ser ouvido acima do barulho do ônibus. Salta aqui, como você disse; mas sem ela! Salta aqui... numa boa. Sem polícia, sem nada. Agora solte-a.
O homem tinha o corpo atlético, músculos bem delineados sob a ampla camiseta de malha. Usava um sapato de couro macio de solado baixo, sem salto. Podia ser um estudante um pouco fora de época ou um professor jovem.
 Solte-a repetiu.
Era uma ordem não uma sugestão, ou um pedido.
Pelé Problema sentiu a autoridade do homem; percebeu sua força e rapidez, mas já estava muito excitado com o perigo tarde demais para voltar atrás...
 Pega descendo e fica na sua rosnou Pelé.
 Pelé Petecão pulou a catraca, pronto para a fuga. A gente tá parando.
O homem deu um passo adiante.
 Solta ela... Pelé. O homem sorriu com a vantagem, embora pequena, que o conhecimento do nome do adversário lhe dava.
Pelé pressionou a ponta do canivete contra a pele da enfermeira, ameaçador
 Fica aí, filho da mãe.
O homem continuava a avançar; lento, ágil. A enfermeira abriu os olhos.
 Não, por favor. Ele vai me matar.
O homem parou. Virou-se abruptamente e levantou a mão na direção de Cabeção, que se aproximava cauteloso.
 Fique aí, moleque.
Cabeção sorriu e passou o canivete de uma mão para a outra.
O homem tirou o revólver de um bolso na parte de dentro do casaco e apontou para o rosto do Cabeção, dobrando ligeiramente os joelhos, os pés afastados, ambas as mãos segurando a arma. O Cabeção amoleceu.
Nesse momento, o ônibus parou; as portas se abriram.
 Petecão! Fica de olho no motorista. Deixe as portas abertas. Pelé começou a andar, de costas, até a porta situada no meio do veículo, arrastando a enfermeira com ele.
Petecão rosnou pela perda do anonimato.
 Pelé!
Num gesto louco, Pelé tirou o rosto de trás de seu escudo, compelido pelo grito do homem. Os dois eram mais que adversários; eram bailarinos numa mesma dança. Ele tinha que responder. A bala acertou sua testa bem entre os olhos.
O peso de Pelé derrubou a enfermeira em cima do braço de um banco, tirando-lhe o fôlego. Quando conseguiu respirar de novo, ela gritou.
Os passageiros se jogavam no chão, encolhiam e gritavam. Petecão e Cabeção fugiram, quase atropelando-se na corrida pela plataforma. O motorista colocou o ônibus em movimento por puro instinto, atabalhoadamente.
O homem puxou o corpo de Pelé Problema de cima da moça; jogou-o no piso como se não pesasse nada. Guardou a arma; tocou no ombro da enfermeira e esperou até que olhasse para ele. Então sorriu, pôs a mão na cabeça dela, foi até porta no fundo do coletivo e pulou na plataforma, os braços estendidos. Caiu e rolou; levantou-se puxando a arma e parou, pés afastados, segurando o revólver com ambas as mãos.
A estação estava vazia. O homem guardou a arma, bateu as mãos nas calças para tirar a poeira, molhou a ponta do dedo na boca e esfregou um arranhão na palma da mão esquerda. Tirou o boné, passou a mão pelo cabelo e foi andando até a saída.
* * *
A noite cobria a cidade com um manto de sombras. Estavam numa área cheia de prédios abandonados; obras inacabadas de um conjunto residencial. A construtora falira e os esqueletos das construções estavam entregues aos viciados. Ali estava instalado o reino do crack. Os sons da avenida chegavam como vindos através de uma espessa neblina. De vez em quando, ouvia-se os guinchos agudos de ratos, através das paredes carcomidas e vigas podres dos edifícios.
Era grande a escuridão. Maurício não morria de amores pelo local, mas a pessoa que queriam encontrar insistira naquele lugar.
 Você conhece bem esse homem? perguntou-lhe Paula.
Maurício fitou-a.
 Estive trabalhando com ele nos últimos seis meses. Notou-lhe o tom de voz. Confio o suficiente.
Paula tremeu um pouco.
 Não gosto deste lugar disse ela, como que repetindo os pensamentos de Maurício.
 Ele deve ter uma razão para nos encontrar aqui opinou Maurício.
Paula olhou em volta.
 É fácil ficar encurralado aqui.
 Não se preocupe observou Maurício. O cara conhece esta área.
A moça dirigiu-lhe um pequeno sorriso.
 Estou nervosa.
Maurício acompanhou com os olhos a longa e graciosa curva do belo pescoço da moça. 
 Podia ter ficado; lhe disse para ficar e casa.
 Não. Ele se moveu e o corredor encheu-se de sombras. Não iria ficar só.
 Nesse momento, Maurício observava a entrada do corredor. Notara algum movimento ali. Sombra e luz, movendo-se.
Paula virou a cabeça. Maurício sentiu a tensão que se formava no corpo da moça.
 É ele? 
Maurício olhou para o homem musculoso, de boné. Era muito velho para estar ali; aquele lugar era freqüentado por adolescentes, garotos que viviam pelas ruas.
 Não respondeu Maurício,
vigiando o homem. Nesse momento ele conversava com alguns garotos na entrada de um prédio. Quando começaram a rir alto, Maurício desviou a atenção da cena.
 Está atrasado disse Paula.
 Ele virá.
Olhava nesse momento para um ponto além dos garotos que fumavam crack.
Aproximava-se outro homem; parou antes de entrar no beco e passou a ponta do dedo no bigode. Começou a dirigir-se para a frente.
 Chegou.
Maurício estava sob a luz e o homem corpulento de bigode viu-o. Com um movimento disse a Maurício que ficasse onde estava. 
O traficante deu a volta em torno dos garotos. Ouviu-se um estampido: de repente o homem de bigode pareceu tropeçar. Com um grito, caiu à frente; os garotos resmungaram, expulsos de seus lugares.
Nesse momento Maurício viu o homem musculoso de boné, correndo de volta pela rua estreita pela qual acabara de chegar o traficante.
Maurício saltou na direção do grupo de viciados. Paula passou rápida ao seu lado, abaixando-se enquanto ele se curvava sobre o homem corpulento e o virava. Havia sangue por toda parte. Atingiu o coração!, pensou; é um profissional e dos bons.
Nada havia no rosto do homem caído: nenhum sinal de reconhecimento, nenhuma inteligência. A fagulha fora extinta em questão de segundos. Da vida para a morte, sem aviso.
Ignorando os gritos dos garotos, Maurício pegou a mão de Paula e afastou-se. Devia saber o perigo que corria, pensou. Aquele mundo era isso mesmo: drogas e morte andavam sempre juntas.
* * *
Todos os homens no bar estavam vendo a TV, um pouco acima de suas cabeças, como devotos perante um altar.
A mulher no vídeo tinha o cabelo castanho; a pele clara e os lábios vermelhíssimos. Os olhos também eram castanhos. Usava uma blusa azul piscina cujo último botão, aberto, revelava uma faixa de renda branca.
 Boa noite. Eu sou Raquel Azevedo, com o último noticiário da noite no seu Canal 33, de olho na cidade... As primeiras notícias desta noite: o secretário da Segurança Pública e o Chefe do Policiamento da Capital garantiram em entrevista coletiva hoje à tarde que a guerra contra os assaltos nos ônibus do transporte coletivo urbano da Capital já foi vencida. Daqui a pouco, Afonso Borges comentará as medidas anunciadas, mas antes disso...
Seguiu-se um anúncio de cerveja.
 Sim? Quem atendia no bar era uma loura despenteada, rosto assimétrico.
 Uma cerveja disse o homem de boné.
 Bavária? ela voltou o rosto para a televisão. Está na hora de uma Bavária.
 Schinkariol disse o homem. Esfregou a palma da mão, onde havia uma marca vermelha.
Ela pôs as mãos nos quadris.
 Skol, Antárctica, Bhrama, Budweiser, Heineken...Todas, menos essa!
 Skol.
 Uma Skol. Por que será que sempre que eu digo o nome das cervejas que a gente tem, as pessoas acabam pedindo Skol? 
O homem olhou para a tela da TV. Raquel Azevedo estava sentada numa espreguiçadeira, pernas cruzadas, coxas à mostra através da fenda na sua saia cinza. O roteiro estava no seu colo; o braço direito estava pendurado nas costas da cadeira num gesto que fazia o tecido da blusa ajustar-se, moldando o formato dos seus seios.
 Gosta dela? perguntou a balconista. Muitos caras gostam. Ela colocou a lata de cerveja. Nunca conheci alguém que não gostasse.
O homem começou a bebericar a cerveja. Suas mãos estavam tremendo. Da última vez em que bebera uma cerveja, suas mãos tremiam: acabara de matar um homem, para proteger uma mulher. Mas não conseguira protegê-la. Chegara tarde demais. Tudo o que pudera fazer fora matar seu atacante e proteger outros inocentes.
A moça do bar veio se aproximando dele, limpando o balcão com uma toalha.
 Você machucou a mão? ela pegou a mão dele; tocou com delicadeza a pele esfolada. Um arranhão e tanto. Você tem que lavar isso. Vou pegar um pouco de água quente.
Quando voltou com a água quente e mercúrio, o homem fora embora, largando a cerveja por terminar e uma nota de dez reais sobre o balcão.
 É, Gabriela, você realmente tem o toque mágico. E ganhou uma boa gorjeta também falou consigo a balconista, guardando a nota no caixa da lanchonete.
* * *
Raquel Azevedo tirou os sapatos. Esse gesto era sua marca registrada: sinal de que o programa acabara e um convite aos colegas nas plataformas acima do vão onde Raquel estava sentada para que descessem de seus palanques e esperassem, em volta de sua cadeira branca de couro, enquanto os créditos iam passando. Para o público em casa, os outros eram apenas silhuetas; o único foco de luz iluminava Raquel Azevedo.
Esticou o corpo longilíneo, pôs as mãos atrás do pescoço comprido e branco, balançou os cabelos castanhos e sorriu. Sua voz de gelo contrastava com o sorriso.
 Eu não quero ser feita de idiota outra vez.
Para a audiência, dava a impressão de estar conversando amenidades, aproveitando a satisfação de um trabalho bem-feito.
Luiz Valadares, o meteorologista, tomou a iniciativa.
 Não tinha como evitar aquela previsão, Raquel.
Raquel Azevedo parecia acreditar que os telespectadores achavam que eram os meteorologistas que controlavam o clima de que outra maneira poderiam saber o que ia acontecer? e que previsões sinistras como as de Valadares anunciando chuva no fim de semana levava-os a mudar de canal.
Raquel estendeu sua mão, convidando Valadares, com um sorriso, a pegá-la.
 Luiz, meu querido, não seja bobo. O período das chuvas já acabou. As pessoas gostam de ter uma desculpa para passar um fim de semana tranqüilo.
Em casa as pessoas se perguntavam se eles tinham um caso. Estavam sempre se tocando, sorrindo um para o outro.
Kleber Araújo, o comentarista esportivo, limpou a garganta.
 É... eu espero que você não tenha se importado com a piadinha.
Na reportagem sobre uma investigação policial, com base em denúncias de que muitos jogadores de futebol da Capital estavam usando cocaína, ele se referira ao principal clube do Estado afirmando que fora convidado para disputar a primeira divisão do Campeonato Nacional da Bolívia, com patrocínio da Coca. Raquel gostava de fazer as piadas ou, pelo menos de saber quando elas viriam de outras fontes, para que pudesse comprovar com sua gargalhada extravagante o quanto eram engraçadas.
Raquel puxou a mão e deu um apertãozinho na mão de Araújo.
 Kleber... aquilo foi bem engraçado.
Os lábios de Ione Faria tremeram; comprometera sua reportagem exclusiva sobre a iminência de um acordo na greve dos trabalhadores na rede pública de saúde, ao afirmar, “esperançosamente”, que o atendimento retomaria a normalidade na segunda- feira. Lembrava-se bem: quando assumiu a editoria-geral, Raquel deixou bem claro que não queria advérbios no seu programa.
Entretanto, Raquel não estava olhando para Ione, nem para o comentarista de variedades Baltazar Andrade; olhava para Afonso Borges, com um sorriso que o público julgava cheio de veneração. Borges era um notável do jornalismo televisivo local. Coordenador geral dos noticiários do Canal 33 durante 15 anos, Afonso Borges fora transferido para o banco de reservas quando a direção da estação, ávida por uma fatia maior de audiência, eliminou 80% dos noticiários, substituindo-os por programas de fofocas e de “baixaria explícita”. As últimas notícias passaram para o horário das 23 horas; Raquel Azevedo foi trazida das colunas de amenidades sociais para estreá-lo.
 Você ferrou com tudo, Afonso disse Raquel, substituindo um de seus verbos preferidos por outro mais difícil de ser adivinhado pelos telespectadores, através da leitura labial. Aquela matéria dos assaltos no transporte coletivo estava uma boa merda. Deu um sorriso bem grande, especialmente ao pronunciar o palavrão, de modo a disfarçá-lo. Não vou admitir reportagens como essa no meu programa. A cidade inteira sabe que é uma mentira, e não quero que me achem também uma mentirosa, por associação.
Afonso meteu a mão no bolso do paletó e apalpou a pequeno canudo de prata que usara ao cheirar cocaína pouco tempo antes do programa, enquanto Raquel
e os outros estudavam seus roteiros.
 Só estou contando os fatos, chefe.
As luzes das câmaras se apagaram e as do estúdio se acenderam. Acabara o desfile dos créditos; o programa saiu do ar. As pessoas em casa assistiam à publicidade da rede de concessionárias Chevrolet, anunciando promoções incríveis a partir da próxima semana.
 Os fatos! gritou Raquel. Que fatos? A merda do secretário de Segurança deu uma entrevista coletiva. E daí? Este é um ano de eleição; pelo amor de Deus! O que ele iria dizer? Que está perdendo a guerra contra o crime, em todas as frentes? Droga.
A equipe, que costumava ir embora rapidamente, continuou em pé nas sombras, observando o que já estava se tornando um desfecho habitual do programa.
Afonso tirou a mão do bolso e tocou o nó de sua gravata Armani.
 Você não está se esquecendo de alguma coisa? Tudo isso começou com a nossa matéria exclusiva. Minha, aliás. O Diário da Manhã afirmou que as recentes prisões tinham diminuído o índice de assaltos. O secretário foi surpreendido por uma pergunta durante o anúncio do novo grupo de motociclistas da PM e admitiu que essa afirmação era verdadeira. E ninguém noticiou o fato. Eu consegui o relatório inteiro, do qual o Diário só publicou uma parte; inclusive com dados estatísticos: número de prisões de assaltantes, o aumento do efetivo que fazia o policiamento ostensivo, a criação das patrulhas nos ônibus, os motociclistas do GIRO, mais cachorros...
 Cachorros disse Raquel com desprezo.
 A entrevista coletiva de hoje confirmou nossa exclusiva disse Afonso. É uma boa notícia, sob qualquer aspecto: a imprensa desconhecia o fato e a situação realmente está melhorando. Mas, enfim, você já sabe disso tudo.
Raquel Azevedo pôs a mão no peito, fingindo inocência.
 Você está dizendo que nenhum ônibus foi assaltado hoje, Afonso?
Afonso pôs a mão no bolso e alisou a superfície do canudo de prata.
Raquel Azevedo riu.
 Você conseguiria olhar para a cara de uma vítima de assalto e dizer a ela que a guerra contra o crime foi vencida?
Afonso deu-lhe as costas.
Raquel Azevedo riu outra vez.
 O que a gente devia ter feito, ou melhor, vamos fazer da próxima vez que o secretário Xavier tentar nos impressionar com números é mandar uma equipe ao centro da cidade exatamente na hora em que ele estiver dando sua entrevista. E vamos encontrar pessoas que acabaram de ser assaltadas, ter suas bolsas roubadas. Não vai ser difícil. Os delitos leves podem estar diminuindo, mas não acabaram. Perguntaremos a essas vítimas quem está ganhando a guerra contra o crime. Vamos colocar o Dr. Xavier frente a frente com essas vítimas. Era isso que devíamos ter feito concluiu.
Raquel voltou-se para um assistente de produção: Diga ao Humberto que venha até aqui.
 Ele já foi para casa respondeu o assistente.
 Pra casa? Como é que o produtor pode ir pra casa no meio do programa? Ligue no celular dele.
 Não está atendendo disse o assistente. A ligação cai na secretária eletrônica.
Raquel Azevedo revirou os olhos. E lentamente, com um volume de voz suficientemente alto para que todos ouvissem, disse: De hoje em diante, ninguém vai pra casa sem que eu mande. Ninguém da equipe de produção, nenhum redator, nenhum técnico, ninguém! Olhou propositadamente para os colegas a fim de que soubesse que estava se referindo a eles. A hora de falar sobre o que há de errado nesses programas é assim que eles acabam, e não na tarde seguinte. Aí nós devemos estar nos concentrando no próximo programa. Se ficarmos o tempo suficiente, com freqüência, talvez não tenhamos tantas coisas dando errado; nem que ficar até tão tarde, tantas vezes. Até que isso aconteça todo mundo fica... Está claro? e começou a subir a rampa na direção da porta.
Afonso Borges sabia que era uma causa sem futuro, mas ainda assim era uma causa; foi atrás dela.
 E se não acharmos nenhuma vítima?
Raquel Azevedo parou e voltou-se lentamente, encarando-o.
 O que você disse?
 E se não encontrarmos ninguém que tenha sido assaltado na mesma hora em que o prefeito estiver dizendo que a criminalidade está diminuindo?
Raquel Azevedo riu, com indisfarçável superioridade.
 Ah, meu Deus, Afonso. Você é tão chato. Tão... educado. Não era à toa que o seu programa tinha uma audiência tão ruim... algumas pessoas com insônia esperando que você os embalasse com notícias sobre taxas de juros.
Voltou pela rampa até sua cadeira, onde ficou dando voltas e voltas, com uma das mãos no encosto, enquanto falava.
 Nunca houve um programa de notícias local em nenhum horário, em nenhum mercado, com índices de audiência tão altos quanto este. Você sabe disso. O que não tenho certeza é se você sabe por quê. Este programa tem índices de audiência superiores ao de qualquer outro, porque eu não digo às pessoas o que elas não querem ouvir. Eu digo a elas que esta cidade é uma selva, que as ruas estão cheias de delinqüentes, o asfalto desmancha com as primeiras chuvas e a população é tratada com indiferença pelas autoridades a maior parte do tempo. Eu digo a elas a verdade. Chame a isso de más notícias; eu chamo de verdade. A única boa notícia que eu permito nesse programa é a previsão do tempo. O clima é a única coisa em que as pessoas ainda têm alguma esperança; eu odeio negar isso a elas. A ironia brincava nos olhos de Raquel. 
Respirou fundo e abaixou o tom de voz, antes de prosseguir, ferina; 
 Você conta os fatos às pessoas, mas não conta a verdade que existe apesar dos fatos. Afonso, você nunca diz que o índice de desemprego diminuiu, mas as pessoas estão sem emprego; os crimes estão diminuindo, mas ninguém está seguro nas ruas.
Afonso suspirou, resignado. Raquel acompanhava atentamente as reações visíveis através do seu semblante. E não estava disposta a deixar passar essa oportunidade de esmagá-lo, literalmente. E continuou, enfática:
 Sexo e violência: é essa a fórmula, não? Isso vende filmes, entretenimento no horário nobre. Mas não é só a violência física que vende; é a violência emocional, política, econômica, ambiental. Você nunca contaria isso às pessoas, Afonso, e por isso elas não te assistiam. Você acha que só porque falava sobre taxas de juros, estava falando sobre violência econômica, Violência econômica não é falar das taxas de juros; é o sofrimento de um pobre coitado que recebe a pressão de agiotas e não tem a quem apelar. Esse é o tipo de matéria que eu faria. Encontre esse homem pra mim, Afonso, e você terá uma boa matéria. Raquel fez uma pausa.
 Afonso queria esquivar-se do monólogo áspero mas Raquel não lhe deu oportunidade. E continuou a repreendê-lo, indiferente ao seu constrangimento.
 Você me perguntou o que fazer se não achasse ninguém assaltado enquanto o secretário de Segurança dava a entrevista alardeando a vitória contra o crime. Pois bem: eu inventava uma vítima. Era isso que eu faria. Encontrava um cara, punha na frente da câmara e fazia ele contar como fora roubado enquanto o Dr. Xavier estava sendo entrevistado. E o cara ia fazer isso. Não ia achar que estava contando uma mentira; e eu não iria pensar que o fizera mentir. Ele ia estar contando a verdade a verdade do ponto de vista dele. Porque a verdade é que as pessoas estão amedrontadas, independente dos fatos proclamados pela polícia; e pessoas com medo são vítimas.
Raquel Azevedo parou de dar voltas na cadeira e andou na direção de Afonso Borges, parando com o rosto a pouco centímetros do dele. Sentiu o cheiro de uísque.
 Andou bebendo de novo, Afonso? Você sabe o que eu acho disso.
Afonso apertou o bolso com força, pressionando o canudo, com vontade de cravá-lo no pescoço de Raquel Azevedo.
 Essa é mais uma razão, Afonso... disse Raquel, subindo pela rampa outra vez ...essa e todas as outras que mencionei, para pedir ao Bezerra que tire você do programa, de uma vez por todas. Os meus espectadores querem a verdade; não vou ser feita de palhaça por pessoas na minha equipe que não querem contar a verdade a eles. 
 Afonso
acompanhou-a com o olhar, silenciosamente. Raquel empurrou a porta à prova de som com o ombro e saiu.
* * *
Meio atordoada, Raquel sentiu que estava sendo arrastada. 
Sentiu-lhe a presença como um calor acima do corpo. Sabia que a mataria se reagisse. Caída embaixo dele, teve certeza do que teria que fazer. Aquele homem não era diferente do resto; ia utilizar esse fato contra ele.
Ouviu-lhe a respiração ofegante. Ergueu a mão, passou-a pelo pescoço dele e puxou-o de encontro a seu rosto. Notou faixas de luz amarela refletindo-se nos olhos do homem. Sentiu o cheiro da excitação dele. Matar faz isso com certas pessoas, ouvira dizer.
Precisava de tempo para recuperar-se, escolher uma estratégia. Abriu as pernas e projetou os seios para a frente. Durante todo o tempo, a mão que colocara atrás da cabeça movia-se lentidão. Empinou os seios sob as mãos do homem. Nesse momento, o seu polegar estava justamente sobre o lado direito do pescoço dele. Sentiu a virilidade do homem de encontro à sua pele macia e isto foi demais. Queria só uma oportunidade.
A bala certeira cortou sua esperança. O efeito sobre a mulher foi espantoso. Ele saltou, como peixe no anzol. Os olhos se esbugalharam, ela viu escleróticas por toda parte, que começaram a saltar enquanto a cor desaparecia-lhe do rosto. Lágrimas de dor inundaram-lhe os olhos; cuspiu sangue e bile ao morrer.
 O homem levantou-se e olhou o corpo que acabara de abraçar; a expressão do rosto era de total indiferença.
* * *
Uma hora depois, o assistente de produção Enzo Felipe ouviu o telefone tocando na sala de Afonso Borges e entrou para atendê-lo. Havia uma garrafa de uísque vazia na beira da escrivaninha.
Do outro lado da linha, a mulher de Afonso estava preocupada com a demora do marido; Enzo disse a ela que houvera uma reunião de trabalho. Costumava ligar a essa hora; e ele sempre lhe dizia que Afonso acabara de sair, apesar do jornalista sair ainda mais cedo do que alguns membros da equipe.
Enzo Felipe jogou a garrafa de uísque na cesta de lixo debaixo da mesa de Afonso. Ia deixar a sala quando resolveu pegar a garrafa. Ao fazer isso descobriu uma pequena caixa de papelão que antes contivera 12 balas calibre 38. A caixa estava vazia. Levou a garrafa e a caixa até uma cesta de lixo no corredor e jogou-as ali, cobrindo tudo com folhas de fax usadas. Começou a descer o corredor, mas voltou; pegou a caixa e achatou-a, guardando-a no bolso. Entrou na sala da redação.
A única pessoa na sala era a nova assistente da produção: uma moça bonita que estava prendendo o cabelo liso com uma liga colorida. Ela disse que morava no Jardim América e que torcia para não ter que esperar pelo coletivo por muito tempo. Ele respondeu que estava de carro e iria na mesma direção.
 Quer uma carona?
 Claro.
Enzo Felipe jogou a caixa de papelão numa lata de lixo, à entrada do estacionamento.
* * *
Túlio Martins observou o cartaz de Raquel Azevedo e enfiou a camisa para dentro da calça. Mesmo sem rosto, ela fazia com que se sentisse desarrumado.
Manoel Cabral estava de pé ao seu lado.
 Meu Deus.
 Acho que alguém não gosta do programa dessa moça disse Martins.
 Fui lá uma vez, lembra-se? Não ao programa dela; um debate que ela coordenou: “Assassinos, Policiais e a Justiça” – falou Cabral.
 Não vi; devia estar assistindo algum jogo disse Martins. Esses cortes são recentes falou, observando o cartaz.
Lúcio Castro esgueirou-se à frente dele e passou os dedos pelo cartaz, como um especialista.
 Não foi uma navalha; foi uma lâmina fina. Um canivete, talvez.
Itamar Mendonça riu.
 Talvez, Sherlock?
 Um canivete igual ao do cara que chegou morto ao hospital disse Castro.
Mendonça rodeou o banco e sentou-se. Acendeu um cigarro. O comissário Martins espreguiçou-se, tentando expulsar do corpo os últimos vestígios de sono.
 Já vi o bastante. Vamos embora daqui.
“Aqui” era a estação de embarque dos ônibus do Eixo Anhanguera, na Praça do Bandeirante, onde o motorista dissera aos policiais militares que Pelé Problema e dois outros jovens negros entraram no coletivo na direção oeste, às 23:26 se é que o ônibus estava no horário na noite anterior. Os detetives vinham atravessando a cidade, desde o Lago das Rosas, onde o motorista avisara a PM sobre os tiros e era o ponto onde os amigos de Pelé e também o assassino haviam desembarcado.
Tinham poucas provas materiais não tão poucas quanto em alguns outros homicídios, mas bem menos que na maioria dos casos. O veículo coletivo fornecera poucas informações: o corpo de Pelé com uma bala na cabeça; o sangue do morto; um canivete com as suas impressões, que já estavam registradas na memória do computador do Centro de Informações Criminais e em dúzias de documentos nos arquivos do Instituto de Criminalística, nas instituições de recuperação do Estado; o último centímetro de um cigarro de maconha, com uma impressão parcial no papel Colomy; em suma: alguns rastros da vítima e de seus companheiros, mas nenhum vestígio do assassino, com a exceção, talvez, de impressões parciais na porta de onde ele pulara do ônibus.
Os policiais sabiam que o assassino pulara graças a Osmar Pincel, o pichador de muros, que era até o momento a melhor testemunha. Trabalhador noturno “Eu vou para as ruas umas seis, sete noites por semanas” Pincel não se importara em continuar por ali para falar com os PMs até bem depois dos outros passageiros os que não escapuliram quando o ônibus parou na estação do Lago , alegando exaustão, irem para casa, alguns deixando telefone e outros os endereços onde poderiam ser contatados para prestar outros esclarecimentos. Ele havia prontamente aberto mão de sua arte em prol de uma noite de experiências num novo veículo cultural. Quando os detetives da Delegacia de Homicídios começaram a escutá-lo, ele já havia tecido uma história lapidar.
 Estou bem ali sentado, cara, visualizando na minha cabeça o que eu vou fazer nessa noite; e de repente aparece esse negrão com a faca; aí ele pega a enfermeira pelo pescoço e começa a dizer que vai sair do trem e transar com ela, cara, ele e os amigos dele; aí um cara levanta e diz: “O que foi, seu babaca? O que você vai fazer? Você não vai fazer merda nenhuma, vai é sair dessa porra desse ônibus, você e esses babacas seus amigos, mas sem levar enfermeira nenhuma, falou?...”
 Foi isso que ele disse, Osmar interrompeu-o Martins ou essa é a sua interpretação artística?
 Ahn? Ah. Droga, não, não foi isso que ele disse; eu não lembro o que ele disse, não me lembro direito. Ele disse... droga, eu não me lembro. Mas é, quer dizer, é... foi mais ou menos isso que ele disse, entende?
 Continue disse Martins.
 Onde é que eu tava?... Tá bom. Pois é. O neguinho do walkman, que tá do outro lado do ônibus, vem andando por trás do cara do boné; cara, e o homem puxou o berro, cara, e aponta ele pra cabeça do neguinho e o neguinho desaparece, cara; quer dizer, ele tava ali e de repente tinha fugido. E o ...
 Você entende de armas, Osmar? interrompeu Cabral.
 Ahn? Não. Eu? Eu sou um artista, cara; não saco nada de armas.
 Então você não sabe se era um revólver ou uma pistola automática, nem o calibre, ou o tamanho, ou a cor...
 Cor? Claro, eu sei que cor era. Era preta, cara, mais preta do que o negrão. E era um revólver. Não era muito grande, não; mas também não era pequena. Mas que saco, vocês não tão com a bala?
 Continue disse Martins.
 Onde é que eu tava?... Tá bom. Pois é. O negrão agarrado com a enfermeira, cara, começou a andar de costas pra porta, porque o baú tava parado agora, sacou? E o cara do boné gritou “Ei, Pelé”, que ele sabe ser o nome do negrão porque o outro, o negro que tá perto da porta da frente falou o nome dele; chamou o cara pelo nome, pode? O merdinha. Cara, só tem uma coisa mais burra que um negro: dois negros; e a única coisa mais burra que...
 A minha mulher é negra.
 O quê? Ah, puxa, comissário, eu não falei por mal, desculpe. Eu só tava dizendo
que era uma coisa meio burra pra se fazer...
 Continue disse Martins.
 Onde é que eu tava? Tá bom. Pois é. “Ei, Pelé”, o do boné grita, e o Pelé olha assim de trás da enfermeira que ele tá segurando na frente dele e leva um, cara... quer dizer, um tiro fodido bem no meio da testa, cara. Pô, você devia ver o presunto, você sabe o que eu quero dizer. E os outros dois negros, cara... desculpa, comissário... os outros dois caras, quer dizer, eles foram embora. E as portas fecham, o ônibus começa a andar; o cara do boné pega o tal Pelé, sabe, o Pelé caiu em cima da enfermeira, cara, depois de levar o tiro; pega o cara e joga ele no chão, cara, como se ele fosse feito de ar, cara...
 No chão do ônibus, Osmar? perguntou Cabral. Ou na plataforma?
 Ahn? É no chão, cara; quer dizer, no chão do trem.
 Continue disse Martins.
 Onde é que eu tava? Tá bom. Pois é. O cara do boné vai andando até a enfermeira; cara, dá um sorriso pra ela, cara, e aí ele vai até o ...
 Que tipo de sorriso? pergunta Martins. Você acha que ele a conhecia?
 Ahn? Não. Quer dizer, porra, não sei. Conhecia ela. Não, acho que ele não conhecia ela. Pelo menos eu acho que não. Eu não sei.
 Continue.
 Onde é que eu tava? Pois é...
 Osmar? disse Cabral.
 O quê?
 Será que você podia parar de dizer “onde é que eu tava?” toda vez que vai responder a uma pergunta?
 Cara, eu só tou...
 Detetive Cabral.
 Detetive Cabral. Eu só tô tentando não me esquecer de nada, sabe. Quer dizer, às vezes quando eu tô desenhando nos prédios eu me distraio, sabe, os guardas vêm, um desses seguranças, e quando eu volto a pensar eu tenho que me perguntar: “Osmar, onde é que você tava, cara?”
 Então o indivíduo de boné sorriu pra enfermeira, Osmar disse Martins. E a enfermeira sorriu pra ele?
 Ahn? Não. Quer dizer, droga, eu acho que não.
 E aí, o que aconteceu?
 Aí, o cara do boné vai pra frente do ônibus, cara, e sai pela porta; e quando eu olho, cara, ele tá rolando pela plataforma, cara. Quer dizer, o cara pulou do ônibus, cara, um pouco antes da gente deixar a estação. Ele rolou e ficou em pé, cara; parecia até que ele já tinha feito isso uma mil vezes antes...
 Continue disse Martins.
 Foi isso aí, cara. Foi tudo o que aconteceu. A gente saiu da estação e todo mundo tava gritando e berrando...
 Como era o assassino? perguntou Martins.
 Ahn? Porra, cara, ele era alto, branco. Não vejo diferença entre uma cara e outra, sabe?.
 Osmar Pincel... disse Martins ...você sabia que tem uma coisa nova por aí, para as pessoas que picham muros, paredes, monumentos públicos? Você não vai preso, mas também não leva só uma palmadinha. No seu caso, você ia ter que passar todos os fins de semana durante um mês limpando pichações pela cidade.
 Ei, comissário, até que é uma boa idéia, porque não tem mais espaço pra gente trabalhar. Você devia dar uma olhada no meu trabalho de vez em quando, cara.
 A única coisa, Osmar disse Martins é que agora nós não estamos falando de danos contra a propriedade. Estamos falando em dificultar uma investigação de assassinato, e aí você vai ter umas lindas paredes vazias onde trabalhar, só que não vai ser por toda a cidade; vai ser na cadeia.
 Ele era alto disse Osmar. Talvez 1,85m. Cabelo castanho, nem curto nem comprido. Boné Hang Loose marrom na cabeça, . Tava de blusa marrom-clara e jeans. Era velho; quer dizer, bastante acabado, o jeans. Não reparei no sapato dele; devia ser um sapato qualquer. Ele tava usando uma camiseta de malha branca. Mas, porra, meu irmão, por que você tá perdendo seu tempo? O negrão tava merecendo, cara... desculpe, comissário... o cidadão de cor tava merecendo; o do boné só deu o que ele tava pedindo! O camarada era mau, cara, com um canhão na mão!
 Você disse que a arma não era grande, Osmar disse Cabral.
 Ahn? Não, não era. Mas eu tô falando é do estilo dele. Tava pronto pra uma guerra.
 Então ele não acertou só por sorte disse Martins.
Osmar encarou-o.
 Sorte? Puta que o pariu!
 Como é que ele ficava em pé? Com os pés separados? Segurando a arma com as duas mãos?
 Pior que é; é isso aí.
Martins olhou para Cabral, que sacudiu a cabeça. Isso significava que não queria fazer mais nenhuma pergunta.
 Mais alguma coisa, Osmar?
 Ahn? Não. Bom, é. O neguinho menor, desculpe comissário, o cara menor, sabe...
 O que tem ele?
 O Pelé, cara; chamou ele de Petecão.
 Petecão?
 É isso aí.
 E o outro? O que estava com o walkman. Alguém disse o nome dele?
 Não.
 Onde é que você pegou o ônibus? perguntou Martins.
 Eu já falei, cara. Na Praça do Botafogo.
 Não, você não disse. E ficou bastante tempo no ônibus antes dos rapazes entrarem. E o assassino? Onde foi que ele entrou?
 Não sei, meu irmão. Eu te disse: tava distraído.
 Imaginando o que ia fazer?
 Certo.
 Mas você reparou quando os rapazes entraram.
 Eu senti o cheiro do bagulho. O Petecão tava fumando um. Ele quase tacou o bagulho no cara do boné, quando acabou de dar o tapa e foi dispensar a ponta.
 Ele quase tacou, ou jogou mesmo?
 Ah, cara, ele tacou. A ponta caiu perto do cara. Ele empurrou ela pro chão com o livro.
 Livro?
 É, um livro de capa mole.
 Você reparou no título?
 O que você acha que eu sou, cara? Um intelectual? Tava pensando no meu trabalho, cara. Não tava reparando em livro nenhum.
 Deve ser por isso que você é o rei disse Martins. Toda essa concentração...
 É por isso... Ei, comissário, me desculpe ter falado aquilo, sabe: que a única coisa mais burra do que um negro é dois negros. Eu não sabia da sua patroa, sabe? Bem, eu não falei por mal.
 Pode ir pra casa agora, Osmar disse Martins. Nós entramos em contato com você se precisarmos de mais alguma coisa. Você já deve ter dado o seu telefone a um dos policiais, mas dê também ao detetive Cabral, só para garantir.
* * *
O comissário Túlio Martins e o detetive Manoel Cabral eram conhecidos na delegacia como a equipe que cuidava dos casos mais difíceis. Normalmente não se envolviam com homicídios insignificantes. Mas o assassinato de Pelé Problema dentro do coletivo, apesar de todas as suas características de homicídio sem maior importância, estava sendo transformado em algo muito maior pelos jornais e estações de rádio e seria ainda maior no noticiário da TV daquela noite.
O Diário da Manhã fizera uma manchete batizando o assassino de Justiceiro. O Popular, outro jornal, comparava-o a um anjo da guarda. Além disso, a Gazeta de Notícias, em carta aberta na primeira página, convidava o assassino palavra que o jornal, aliás, não empregou para usar suas páginas como uma tribuna onde pudesse contar o seu lado da história. Teria sofrido alguma tragédia que o deixara amargurado com a falta de segurança que assolava a cidade? Ou teria agido espontaneamente, levado pelo apelo da enfermeira indefesa a falar a única língua que um canalha como Pelé Problema poderia entender? A carta também evocava a imagem de defensores fictícios dos oprimidos.
As emissoras de rádio, por seu lado, estavam procurando brechas. A história era matéria de destaque em todos os noticiários, e equipes de telejornalismo esquadrinhavam os locais do acontecimento em busca de alguém que tivesse visto alguma coisa ou simplesmente tivesse opinião a respeito.
Era uma matéria excelente do tipo homem morde cachorro, a vítima mata o assaltante. E ficava ainda melhor diante da recente declaração do secretário da Segurança Pública proclamando a vitória na guerra contra o crime. “O que parecia disse a Gazeta em seu editorial , era que não só a guerra contra o crime não fora ganha, como também a defesa contra os criminosos dependia ainda mais dos próprios cidadãos.”
O governador do Estado, compreensivelmente, queria acabara com aquele rebuliço de opiniões e desmanchar a atmosfera circense criada pelos meios de comunicação de massa especializados na exploração da miséria humana. Queria uma captura, e que fosse rápida. Foi
o que ele avisou ao secretário Xavier; que, por sua vez, avisou ao titular da delegacia de homicídios, Doutor Ibrahim Morelli que avisou ao seu principal auxiliar, o comissário Túlio Martins, tirando-o de um sono profundo às sete horas da manhã do sábado.
 Túlio, eu sei que hoje é sua folga começou Ibrahim.
 É minha folga disse Martins, sonolento, tentando puxar o braço direito de baixo do tronco de Maria sem acordá-la.
 E eu sei que lhe prometi um descanso a mais pelo seu trabalho no caso do casal de médicos disse Ibrahim.
 Você me prometeu um descanso a mais pelo meu trabalho no caso do casal de médicos disse Martins, soltando o braço e sorrindo ao ver, na parte de dentro do braço, a marca deixada pelo batom.
 Mas... disse Ibrahim.
 Eu ligo daqui a pouco, Morelli disse Martins. Vou fazer um pouco de café e pegar o meu caderninho. E não quero acordar a patroa.
 Mande lembranças a Maria, Túlio disse Morelli. E diga-lhe que eu sinto ter que lhe arrancar de casa. Pode ligar para o escritório. Vou ficar esperando.
 Deve ser importante disse Martins pra você estar no escritório num sábado...
 É uma questão política disse Ibrahim.
 Então, está bem concordou Martins.
Quando o café ficou pronto os pães de queijo descongelados, o copo de suco de laranja sobre a mesa , Martins ligou de volta para Ibrahim; ouviu as poucas informações de que este dispunha, tomando nota na agenda. Quando Ibrahim acabou, e depois de tomar o seu café, Martins telefonou para Cabral: pensava em chamá-lo para este trabalho.
A secretária eletrônica estava ativada; Túlio Martins deixou um breve recado, pedindo a Cabral que retornasse a ligação. Martins não se preocupou em telefonar para a casa de Cabral; sabia que não havia possibilidade dele estar em casa não num sábado de manhã, depois de uma folga na sexta-feira à noite. Mas também não havia chance de saber onde estava: raramente saía com a mesma mulher mais de umas poucas vezes. Cabral dizia a Martins sempre que este perguntava o porquê dele parecer tão determinado a dormir com todas as mulheres razoavelmente jovens e atraentes da cidade que estava compensando o período da juventude: nessa época se dedicara apenas ao trabalho duro. Quando se sentisse satisfeito da diversão, estaria disposto a constituir família. Martins não dizia a Cabral que há 8 anos ouvia esta mesma história e ele nunca parecia saciado; afinal, esse assunto não era mesmo da sua conta.
 Decidiu ligar para a delegacia, onde Cabral iria checar a razão de ter sido chamado; pediu à policial da mesa telefônica que dissesse ao detetive para telefonar à sua casa. Feito isto, entrou no banheiro e começou a barbear; sabia que Cabral não ia simplesmente pular da cama ele daria à moça um adeus carinhoso.
Já estava vestido e barbeado quando o telefone tocou. Antes de poder dizer qualquer coisa, Cabral exclamou:
 Mas que merda, Túlio.
 Desculpe, colega mas é assim mesmo; somos os melhores...
* * *
Túlio Martins pesava cem quilos (Maria regulava a balança na marca dos oitenta e quando faziam amor deslizavam um contra o outro, como baleias alegres); o cabelo escuro e encaracolado, independente do quanto estivesse comprido ou curto, sempre parecia estar do mesmo comprimento e nunca penteado, não importava o quanto gastasse num corte. As roupas que usava brigavam entre si, mais do que combinavam.
Manoel Cabral era baixo e moreno; cabelo cuidadosamente penteado, roupas alinhadas. Tinha uma maneira cuidadosa de nunca deixar que seu rosto revelasse o que estava sentido até ter certeza de que era o sentimento certo para a situação. Se Martins era, às vezes, desengonçado em sua maneira de fazer uma investigação, Cabral era exageradamente cuidadoso. Embora não fosse exatamente algo que as Academias de Polícia ensinassem, aquela era uma mistura perfeita de estilos, e os resultados eram impressionantes: mais captura e crimes solucionados. Isso, além do número elevado de condenações a partir das suas investigações, prendendo suspeitos de atos que marcaram a memória dos seus contemporâneos. Muitos seqüestros e homicídios foram resolvidos por meio das suas ações. 
 Eram tão eficientes que tinham sido dispensados da maioria dos procedimentos habituais. Faziam seus próprios horários, montavam suas semanas de trabalho e, embora operassem numa Delegacia com atuação específica, não ficavam restritos aos seus limites. Como consultores, atuavam em diversos outros casos em andamento, envolvendo investigações aparentemente insolúveis. Isso, diziam, ajudava a ampliar a prática dedutiva, embasando com consistência os seus argumentos para chegar à uma conclusão nos casos mais difíceis. Eles iam onde eram necessários. Esse fato poderia ter despertado rivalidades entre as outras equipes, mas Martins e Cabral nunca abusavam; não passavam por cima dos outros nem interferiam nos procedimentos tradicionais. Não tentavam funcionar como chefes, mas como profissionais com habilidades especiais.
A presença deles numa investigação era o suficiente para incentivar outros detetives principalmente os mais jovens a tentar agir com mais determinação. Por exemplo: mesmo depois de Martins dizer que já vira o bastante na plataforma da estação do transporte coletivo da Praça do Bandeirante, Lúcio Castro, cheio de adrenalina por ter sido escolhido para trabalhar com Martins e Cabral, mergulhou repentinamente sob um banco no qual Itamar Mendonça estava sentado, fumando e emergiu segurando uma caixa de fósforos de papelão,
 Isso é seu, Itamar? perguntou Lúcio.
Mendonça, um policial gordo e preguiçoso, incapaz de ser estimulado por qualquer coisa a não ser a proximidade de sua hora de almoço ou o final de seu turno, abanou a cabeça.
 Ficou maluco, Lúcio? Eu não fumo... e mostrou a binga.
 Suponhamos, comissário ele segurou a caixa de fósforo com o rótulo exposto, bem visível a propaganda de quem oferecia o brinde que o garoto que estava fumando o baseado... Petecão, foi o nome que o tal pichador disse que ouviu... suponhamos que ele tenha acendido o baseado aqui... interrompeu, abaixando-se para catar inúmeros palitos de fósforo de papelão já riscados, do solo e esta caixa...
Martins sorriu.
 Nós já sabemos que eles pegaram o coletivo aqui, Lúcio. O motorista tem certeza disso, e um monte de passageiros também, incluindo o pichador, Osmar Pincel.
 O que não é nenhuma grande surpresa disse Itamar Mendonça. Esse é o ponto mais próximo do salão de bilhar que o morto freqüentava diariamente com os seus amigos.
 Mas o morto não pode nos dizer nada sobre o assassino; os caras que estavam com ele podem. Essa caixa de fósforos tem o endereço de um armazém, “Empório”, no Setor Marista, e é lá que iremos procurar esse tal de Petecão.
Túlio Martins sentiu que Lúcio estava tenso, e pensou em como poderia lhe explicar a importância relativa daquela evidência. Ele também já se sentira entusiasmado assim, procurando por cada pecinha de um quebra cabeças quando apenas a parte central era importante.
 Nós vamos encontrar os amigos do Pelé, Lúcio. Já sabemos o apelido de um deles; sabemos o nome e o endereço do Pelé. Vamos falar com a família dele, perguntar na vizinhança. Vamos pegar eles. Se isso vai ou não nos ajudar a pegar o assassino eu não sei; mas vamos pegar eles... Isso que você está fazendo é um bom trabalho, só que fora do alvo. Estaria certo se nós não soubéssemos de nada: nenhum apelido, nenhum endereço, nada. Aí o Armazém Empório ia ser um ótimo lugar para investigarmos.
Martins observou o olhar atento de Lúcio e concluiu:
 Itamar vai pegar no seu pé por causa disso durante um mês. Não ligue. Isso só quer dizer que você está concentrado no seu trabalho, se esforçando; e é preferível ser assim, a agir como ele faz: apenas pegar o pagamento no final do mês. O Cabral também vai pegar no seu pé, mas por outra razão. Vai pegar porque quer que você seja esforçado, mas onde interessa e quando interessa. Se ele não lhe dissesse nada seria por
você estar deixando de ver as coisas bem debaixo do nariz; então ele o trataria como imbecil. Por isso, não ligue quando o Itamar falar qualquer coisa, e se alegre com o interesse de Cabral.
 Entendi, comissário. Obrigado.
Martins aproximou-se de Cabral, que estava examinando o cartaz cortado de Raquel Azevedo.
 Você acha que isso quer dizer alguma coisa, Túlio?
Martins começou a dizer não, mas logo disse “talvez...” e pareceu olhar à distância por uns instantes, tentando imaginar o que poderia ter acontecido.
 Suponhamos que o Pelé tenha cortado esse cartaz. Talvez fosse um dos outros; mas é provável que tenha sido o Pelé. Ele estava esperando o ônibus, viu o cartaz, ficou motivado com ele. É um cartaz provocante, não é? E deixou o cara maluco. Ela não é uma mulher que ele pudesse ter; mas é o tipo de mulher que um cara como ele sonha em ter. Então ele corta o cartaz; depois pega o ônibus e vê uma enfermeira nova, bonitinha. Fica excitado, passa dos limites...
¾	E leva um tiro disse Cabral.

Teste o Premium para desbloquear

Aproveite todos os benefícios por 3 dias sem pagar! 😉
Já tem cadastro?

Outros materiais