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FORMAÇÃO SOCIAL, ECONÔMICA E POLÍTICA DO BRASIL sa SOLUÇÕES EDUCACIONAIS INTEGRADASA Constituição Federal de 1988: entre a construção e avanços Caroline Silveira Bauer OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Identificar os elementos que levaram à conquista de liberdades pela Constituinte de 1988. > Analisar os efeitos da liberdade no pensamento social, político e econô- mico no Brasil, após 1988. > Avaliar 0 sentido que a liberdade tomou no Brasil atual. Introdução A Constituição de 1988 representa um marco importante para 0 processo de transição política da ditadura para a democracia, pois significou a reconstrução do Estado de direito. Embora muitos de seus artigos e capítulos possam ser criticados, por reproduzirem práticas históricas de autoritarismo ou concen- tração de poderes, foi 0 texto constitucional que mais assegurou direitos civis, políticos e sociais para os brasileiros. 0 processo de elaboração da Constituição, realizado por meio de uma Assembleia Nacional Constituinte, também contou com a ampla participação da população, que utilizou diferentes canais para ex- pressar as suas expectativas e os seus desejos em relação ao teto constitucional.2 A Constituição Federal de 1988: entre a construção e os avanços Neste capítulo, você conhecerá 0 processo que deu origem à elaboração da Constituição de 1988. Além disso, conhecerá os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte e 0 desenvolvimento destes. Por fim, você verá quais são as liberdades democráticas asseguradas por aquela que ficou conhecida como a Constituição Cidadã. As lutas por uma constituinte e uma constituição Durante processo de transição política da ditadura para a democracia, diferentes atores sociais demandaram a convocação de uma constituinte, a fim de elaborar uma nova Constituição que assegurasse a organização de um Estado democrático, bem como os direitos civis, políticos e sociais da população. Essa reivindicação era apresentada por diferentes movimentos, que se organizaram ou se rearticularam na conjuntura dos anos 1970, após a ditadura anunciar uma abertura lenta, gradual e segura. Nos anos 1980, mais especificamente nos debates para as eleições de 1984, o então candidato Tancredo Neves explicitou o seu compromisso, caso eleito, pela convocação de uma constituinte para dar continuidade ao processo de redemocratização. A proposta estava inserida em uma conjuntura de mobiliza- ção social oriunda do movimento das Diretas Já, e foi muito bem-recebida pela população. Mesmo com a derrota da Emenda Dante de Oliveira e a realização de eleições presidenciais por meio do Colégio Eleitoral, setores da população seguiram mobilizados para participar da elaboração da nova Constituição. Com a doença e a morte de Tancredo Neves, seu vice, José Sarney, assumiu a presidência da República, governando entre os anos de 1985 e 1989. Sarney deu continuidade ao projeto de elaboração de um novo texto constitucional, entretanto, seu governo foi marcado por uma grave crise econômica, que, muitas vezes, gerou descrédito social sobre a conclusão do processo de transição e a aprovação de uma nova Constituição. Do ponto de vista econômico, houve uma sucessão de planos para con- ter a inflação e estimular consumo. primeiro deles, chamado de Plano Cruzado, foi lançado em março de 1986, após primeiro ano de governo de Sarney acumular 220% de inflação. Tratou-se de um plano que envolveu: uma reforma monetária, com a mudança da moeda (do cruzeiro para cruzado); congelamento dos preços e dos salários por um ano, com a existência do gatilho salarial (caso a inflação atingisse 20%, os salários aumentavam na mesma proporção); e criou Índice de Preços ao Consumidor (IPC), comoA Constituição Federal de 1988: entre a construção e os avanços 3 base para as correções monetárias de aplicações financeiras e da poupança (FERREIRA, 2018). Em um primeiro momento, Plano foi um sucesso, pois conteve a in- flação e aumentou poder aquisitivo da população. 0 clima de euforia e otimismo fez muitas pessoas passarem a se reivindicar como "fiscais do Sarney", monitorando o aumento de preços e denunciando as remarcações realizadas. Como reação, os fornecedores empreenderam ações de boicote e desabastecimento, o que fez a inflação retornar, prejudicando a execução do plano (FERREIRA, 2018). Após as eleições de novembro de 1986, governo editou 0 Plano Cruzado II, que liberou preço dos produtos e dos serviços e alterou cálculo da inflação, que passou a ser medida a partir dos gastos de famílias com renda de até cinco salários mínimos. Bebidas alcóolicas e cigarros tiveram seus impostos aumentados. Com isso, houve um aumento das importações e uma diminuição das exportações, que levou ao esgotamento das reservas cambiais (FERREIRA, 2018). Menos de três meses depois, Governo Federal decretou moratória, suspendendo o pagamento da dívida externa. Com isso, houve um aumento dos preços de produtos e serviços, e a inflação disparou. Em virtude das críticas e do descontentamento da população, então ministro Dílson Furtado foi substituído por Luiz Carlos Bresser Pereira, em abril de 1987, qual implementou Plano Bresser, que também fracassou. No final de 1987, a inflação acumulada do ano havia atingido a marca de 366%. Em janeiro de 1988, Bresser deu lugar a Maílson da Nóbrega (FERREIRA, 2018). Para além dos sucessivos fracassos dos planos econômicos, governo de José Sarney foi marcado por escândalos de corrupção. Uma Comissão Parla- mentar de Inquérito (CPI) foi montada no Senado e, em suas investigações, denunciou presidente da República, ministros de Estado e outras pessoas de utilizar critérios escusos na liberação de recursos públicos. Contudo, a denúncia não foi levada adiante, e as acusações não foram apuradas. De acordo com José Murilo de Carvalho: [...] houve frustração com os governantes posteriores à democratização. A partir do terceiro ano do governo Sarney, desencanto começou a crescer, pois ficara claro que a democratização não resolveria automaticamente os problemas do dia a dia que mais afligiam grosso da população. As velhas práticas políticas, incluindo a corrupção, estavam todas de volta. Os políticos, os partidos, 0 Legislativo vol- taram a transmitir a imagem de incapazes, quando não de corruptos e voltados unicamente para seus próprios interesses (CARVALHO, 2003, 203).4 A Constituição Federal de 1988: entre a construção e os avanços A elaboração da Constituição de 1988 No dia 28 de junho de 1985, então presidente, José Sarney, encaminhou ao Congresso Nacional a proposta de convocação de uma constituinte. Após longos debates sobre a composição da constituinte e sua metodologia de trabalho, em de fevereiro de 1987, iniciaram-se os trabalhos, com 559 deputados e senadores (destes, apenas 26 deputadas mulheres), divididos em 9 comissões temáticas, cada uma com 63 membros e igual número de suplentes, que se subdividiram em 24 subcomissões, a saber: 1. Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher: 1a. Nacionalidade, Soberania e Relações Internacionais; 1b. Diretos Políticos, Direitos Coletivos e Garantias; 1c. Direitos e Garantias Individuais. 2. Comissão da Organização do Estado: 2a. União, Distrito Federal e Territórios; 2b. Estados; 2c. Municípios e Regiões. 3. Comissão de Organização dos Poderes e Sistema de Governo: 3a. Poder Legislativo; 3b. Poder Executivo; 3c. Poder Judiciário e do Ministério Público. 4. Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia da Instituições: 4a. Sistema Eleitoral e Partidos Políticos; 4b. Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança; 4c. Garantia da Constituição, Reformas e Emendas. 5. Comissão do Sistema Tributário, Orçamento e Finança: 5a. Tributos, Participação e Distribuição das Receitas; 5b. Orçamento e Fiscalização Financeira; 5c. Sistema Financeiro. 6. Comissão da Ordem Econômica (não concluiu os trabalhos): 6a. Princípios Gerais, Intervenção do Estado, Regime da Propriedade do Subsolo e da Atividade Econômica; 6b. Questão Urbana e Transportes; 6c. Política Agrícola e Fundiária e Reforma Agrária. 7. Comissão da Ordem Social: 7a. Direitos dos Trabalhadores e Servidores Públicos; 7b. Saúde, Seguridade e do Meio Ambiente; 7c. Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias.A Constituição Federal de 1988: entre a construção e os avanços 5 8. Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação: 8a. Educação, Cultura e Esportes; 8b. Ciência e Tecnologia e da Comunicação; 8c. Família, do Menor e do Idoso. 9. Comissão de Sistematização (49 membros, com igual número de suplentes). Saiba mais As presidências de comissões foram tomadas por delegados dos grupos majori- tários de viés conservador. Além da Comissão de Sistematização, presidida pelo senador Afonso Arinos, o Partido da Frente Liberal (PFL) ficou com a presidência de outras sete. Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) ficou com a relatoria de todas as comissões e com a presidência de 15 subcomissões, deixando PFL com cinco, e Partido Democrático Social (PDS) e Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) com uma cada. Aos partidos de viés progressista, restou a presidência de duas subcomissões, que ficaram com delegados do Partido Democrático Trabalhista (PDT) do Rio de Janeiro (da Nacionalidade, da Soberania e das Relações Internacionais, presidida pelo deputado Roberto D'Ávila, e do Poder Legislativo, presidida pelo deputado Bocayuva Cunha). A relatoria das subcomissões que ficaram com os partidos não conservadores foi para dois juristas: Lysâneas Maciel, do PDT-RJ, na Subcomissão de Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e Garantias, e Plínio de Arruda Sampaio, do Partido dos Trabalhadores (PT-SP), na Subcomissão do Poder Judiciário e do Ministério Público (VENTURINI, 2014, p. 155-156). Os deputados e senadores, unicameralmente, elegeram como presidente dos trabalhos da constituinte o deputado Ulysses Guimarães, do PMDB de São Paulo, presidente do partido de maior bancada. Segundo Venturini (2014, p. 155): Até dia 19 de março, os trabalhos se voltaram à elaboração do Regimento Interno, quando se decidiu que os senadores eleitos em 1982, cujo mandato terminaria apenas em 1990, também seriam delegados constituintes. Foi acordado que a ANC seria distribuída em oito comissões temáticas, divididas em três subcomissões cada, responsáveis por debates, audiências públicas e elaboração de relatórios a serem encaminhados para a Comissão de Sistematização, a quem cabia consolidar texto submetido ao plenário para votações em dois turnos. Mas qual era a composição da Assembleia Nacional Constituinte? Quadro 1, a seguir, apresenta uma distribuição dos constituintes entre os partidos políticos no início dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte.6 A Constituição Federal de 1988: entre a construção e os avanços Quadro 1. Composição das bancadas partidárias na instalação da Assembleia Nacional Constituinte Partido Bancada Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) 303 Partido da Frente Liberal (PFL) 135 Partido Democrático Social (PDS) 38 Partido Democrático Trabalhista (PDT) 26 Partido Trabalhista Brasileiro 18 Partido dos Trabalhadores (PT) 16 Partido Liberal (PL) 7 Partido Democrata Cristão (PDC) 6 Partido Comunista Brasileiro (PCB) 3 Partido Comunista do Brasil (PCdoB) 3 Partido Socialista Brasileiro (PSB) 2 Partido Social Cristão (PSC) 1 Partido Municipalista Brasileiro (PMB) 1 Total 559 Fonte: Adaptado de Venturini (2014). De acordo com Venturini (2014), esses partidos formavam dois blocos distintos: um que defendida a alteração das bases estabelecidas na ditadura, formado por partidos autodeclarados de esquerda (PT, PSB, PCdoB e PDT); e outro que pretendia conservar as estruturas herdadas da ditadura, composto por PFL, PDS, PTB, PL, PDC, PSC e PMB. "O PMDB, herdeiro do MDB, tinha um perfil bastante heterogêneo" (VENTURINI, 2014, p. 155). Contudo, é importante destacar que, por vezes, mais que a filiação partidária, havia outros interesses em jogo nas votações, configurando arranjos supraparti- dários, como a existência do chamado centrão.A Constituição Federal de 1988: entre a construção e os avanços 7 centrão configurou-se como uma reação de grupos conservadores à atuação de políticos do campo progressis- tas e de esquerda, a fim de controlar a elaboração do texto constitucional. De acordo com Fábio Venturini: [...] em novembro de 1987 um grupo de 50 delegados leais ao presidente da república e apoiados por Ulysses Guimarães formou 0 "Centro Democrático do PMDB", qual se expandiu para os demais partidos governistas, formando 0 bloco supraparti- dário denominado "Centrão". Tal grupo de reação teve como finalidade reduzir a influência progressista, tendo 203 delegados constituintes entre seus signatários (VENTURINI, 2014, 157). Com esse número de deputados e senadores, era possível facilmente aprovar ou rejeitar determinadas matérias com votos combinados em bloco. Além de garantir as demandas encaminhadas pelo governo e, dessa forma, manter sob controle processo de transição política, 0 centrão também foi beneficiado pelas classes empresariais e industriais brasileiras, a fim de garantir certos benefícios para esses setores. Conforme Venturini (2014, p. 157): [...] para atender a demandas das burguesias, Centrão foi alimentado por entidades empresariais. A União Brasileira de Empresários (UBE) alugou três andares de um hotel de luxo em Brasília para servir de centro estratégico e deliberações entre as lideranças do bloco e representantes de mais de 600 entidades de comércio, serviços, da Confederação Nacional da Indústria (CNI), da União Democrática Ruralista (UDR) e da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban). Dentro do Con- gresso, barrou a jornada de trabalho de 40 horas semanais (foi estabelecida em 44 h/semana), inseriu a reforma agrária no texto final de forma superficial e sem regulamentação e barrou a regulamentação da comunicação social. Conforme a análise de Venturini (2014), pode-se resumir as consequências da atuação desse bloco de poder da seguinte forma: Esse bloco suprapartidário de reação conseguiu obstruir praticamente todas as propostas progressistas. Em atendimento a demandas diretas do Palácio do Planalto, conquistou para então presidente da república mandato de cinco anos e postergou debate sobre parlamentarismo para um plebiscito marcado para ano de 1993, em que se escolheria entre presidencialismo ou parlamenta- rismo, república ou monarquia (vencido pelo presidencialismo e pela república). [...] Adicionalmente, Centrão conseguiu manter no art. 142 exatamente mesmo papel constitucional das Forças Armadas (garantia dos poderes constitucionais), deixando brechas para uma intervenção militar, se necessária à garantia da lei e da ordem. A sua atuação, usando a mudança bruta de regras quando jogo não estava favorável às classes burguesas, foi decisiva na manutenção do estado autocrático herdado da ditadura (VENTURINI, 2014, 157).8 A Constituição Federal de 1988: entre a construção e os avanços Fique atento De acordo com Venturini (2014), a articulação de setores conservado- res e a formação do centrão remete a práticas como a constituição da Ação Democrática Parlamentar (ADP), que articulou políticos, empresários e militares de oposição ao governo João Goulart e atuou no Congresso Nacional, formando blocos conservadores e reacionários. Durante a Assembleia Nacional Constituinte (1987-1888), 0 centrão, composto por políticos vinculados à ditadura, defendeu interesses do Palácio do Planalto e interesses de classes, restringindo direito dos trabalhadores, em busca de um resultado conservador e reacionário. De acordo com o autor, "aqui se pretende mostrar como na ANC uma maioria conservadora atuou para manter os pilares estabelecidos na ditadura para consolidação da autocracia burguesa, ação ocultada pela ênfase em dispositivos jurídicos" (VENTURINI, 2014, p. 153). Durante os trabalhos da ANC, estiveram em disputa diversos projetos de futuro, evidenciados na forma de organização do Estado, na ampliação de direitos e na busca por uma maior equidade social e de gênero. Entretanto, como aponta Souza (2001 apud MADEIRA, 2011, p. 191), "a ANC foi marcada por confrontos em algumas matérias, coalizões na maioria dos casos e por adiamentos quando consenso não podia ser alcançado. Coalizões eram feitas e refeitas constantemente. Praticamente, para cada questão específica, um bloco extrapartidário era constituído, qual logo se desfazia". Dessa forma, ao se analisar os debates e as votações ocorridas durante o funcionamento da ANC, deve-se ter cuidado para não partidarizar os posi- cionamentos, pois a maioria das votações se organizou a partir de coalizões temporárias a cada pleito (MADEIRA, 2011). De acordo com Wohnrath (2017, p. 252): Associado às experiências parlamentares e às composições dos espaços, grau de adesão às temáticas debatidas nas subcomissões permitiu conciliações ou resultou em disputas. Se, por um lado, a organização da família atraiu os interessados pelos assuntos morais, a estrutura econômica do País estava em jogo quando debatida a propriedade privada. É possível estabelecer clivagens a partir dos interesses dos parlamentares e, principalmente, de suas experiências pregressas: evangélicos (a maioria pastores), ruralistas (ou seus apoiadores) ou favoráveis à reforma agrária (comunistas; Pastoral da Terra) constituíam grupos bastante uniformes quanto à luta política desempenhada na Assembleia, embora apresentassem defesas próprias fora do Congresso, por vezes até mesmo entrando em conflito.A Constituição Federal de 1988: entre a construção e os avanços 9 A participação popular foi intensa, com o encaminhamento de milhares de sugestões via emendas populares eram necessárias 30 mil assinaturas para que as propostas fossem apreciadas pela constituinte por meio das audiências públicas promovidas pelas subcomissões temáticas, além da mobilização nas ruas. Esse engajamento era fomentado por slogans como "Constituinte sem povo não cria nada de novo" (BAUER, 2019, p. 95). Essa pressão fez os setores progressistas se articularem nas subcomissões e conseguirem inserir no projeto constitucional as seguintes medidas enca- minhadas pelos movimentos populares: [...] propostas de reforma agrária; redução da jornada de trabalho semanal; re- visão do papel das Forças Armadas; sistema de saúde 100% público e universal; demarcação de terras indígenas e quilombolas; garantia de direitos das crianças; educação pública, gratuita e universal; monopólio estatal sobre a exploração e distribuição do petróleo; monopólio nacional do subsolo; e regulamentação dos meios de comunicação social (VENTURINI, 2014, 156). Algumas dessas propostas foram aprovadas e estão garantidas hoje no texto da Constituição de 1988. Saiba mais No Brasil, das sete constituições, três foram cartas outorgadas (imperial de 1824, do "Estado Novo", de 1937, e a ditatorial de 1967/EC 1 de 1969). Das quatro elaboradas em assembleias nacionais (1890, 1934, 1947 e 1988), apenas a de 1988 não foi invalidada por um golpe de estado e ainda está em vigor. As demais fo- ram objeto de ações ilegais de golpistas para adequá-las a interesses de classes dominantes. Por exemplo: período inconstitucional de Vargas, entre 1930-1934, 0 período de combate anticomunista após 1935, as tentativas de impedir posses presidenciais em 1955 e 1961 e a imposição do parlamentarismo para limitar João Goulart (VENTURINI, 2014, p. 154). A aprovação do texto constitucional ocorreu no dia 22 de setembro de 1988, e sua promulgação, em 5 de outubro de 1988. reconhecimento e o exercício pleno de direitos de todas as ordens, garantidos pela Constituição, fez ela receber nome de Constituição Cidadã (BOTELHO; SCHWARCZ, 2013, 21).10 A Constituição Federal de 1988: entre a construção e os avanços A Constituição e as liberdades democráticas Como visto, a campanha por uma constituinte inseriu-se em demandas mais amplas, articuladas no processo de transição política, principalmente pelas chamadas "liberdades democráticas", que somente poderiam ser garantidas por um texto constitucional comprometido com a democracia, e não elaborado por uma ditadura civil-militar. Dessa forma, a Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988) e a promul- gação da Constituição de 1988 representaram não somente um novo marco jurídico, mas também um marco cronológico para o fim da ditadura instaurada com golpe de 31 de março de 1964. De acordo com Fernando Rocha, "a atual Carta da República não só institui um regime político democrático, como promove um inegável avanço no campo dos direitos e garantias fundamentais. Os direitos humanos assumem extraordinário relevo na nova ordem constitu- cional, sem precedentes na história do constitucionalismo brasileiro" (ROCHA, 1998, p. 111). Em outras palavras, essas proposições somente fazem sentido se confrontadas com os fatores aos quais se opunham naquele momento: as graves violações de direitos humanos cometidas pela ditadura civil-militar. Entre as principais medidas instituídas pela Constituição de 1988, desta- cam-se (CARVALHO, 2003): garantia da universalidade ao voto, tornando-o facultativo para os analfabetos (à época, Brasil possuía um número expressivo de pes- soas maiores de 16 anos de idade analfabetas); voto facultativo a partir dos 16 anos e obrigatório após os 18 anos; ampliação dos direitos sociais, fixando em um salário mínimo o valor mínimo para as aposentadorias, com pagamento de uma pensão de um salário mínimo para todas as pessoas com deficiência e maiores de 65 anos; criação da licença paternidade, de cinco dias; garantia ao direito de habeas data, em que qualquer pessoa pode exigir do governo acesso às informações existentes sobre ela nos registros públicos, mesmo as de caráter confidencial; instituição do racismo como crime inafiançável e imprescritível e da tortura como crime inafiançável e não anistiável; proteção do Estado ao consumidor, dispositivo que foi regulamentado na Lei de Defesa do Consumidor, de 1990.A Constituição Federal de 1988: entre a construção e os avanços 11 Esses direitos, entre muitos outros, são reflexos do compromisso doutrinário e ideológico assumido no preâmbulo do texto constitucional, em que se afirma que Estado democrático de direito se destina "a assegurar exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, bem- -estar, desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos" (ROCHA, 1998, p. 111). Saiba mais No seu artigo a Carta de 1988 anuncia como princípios fundamentais do Estado democrático de direito da República Federativa do Brasil, dentre outros, a cidadania e a dignidade da pessoa humana (incisos e III). Esses dois princípios irmanados relevam que não há Estado democrático de direito sem direitos fundamentais, assim como não existem direitos fundamentais sem democracia; em que sejam assegurados não só os direitos civis e políticos guiados pelo princípio básico da liberdade, mas também os chamados direitos sociais, fundados no postulado da igualdade, sem os quais a dignidade da pessoa humana não passaria de mera retórica. [...] A Constituição de 1988, igualmente, em seu art. pela vez primeira, consigna os objetivos do Estado brasileiro, consistentes na construção de uma sociedade livre, justa e solidária; na garantia do desenvolvimento nacional; na erradicação da pobreza e da marginalização e na redução das desigualdades sociais e regionais; e na promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (ROCHA, 1998, p. 111-112). Apesar de esses direitos civis, políticos e sociais estarem garantidos no texto constitucional e serem apresentados como valores instituintes do Es- tado democrático no Brasil, sabe-se que, na prática, muitos brasileiros ainda não têm assegurados recursos para uma vida com dignidade. Nesse sentido, deve-se problematizar a memória construída em relação à Constituição de 1988 como uma Constituição Cidadã. Conforme Venturini (2014, p. 153): A Constituição da República Federativa do Brasil foi promulgada em 5 de outubro de 1988, recebendo do presidente da Assembleia Nacional Constituinte (ANC), deputado Ulysses Guimarães, título de "Constituição Desde então foi iniciada uma construção ideológica de que documento de 1988 foi uma conquista democrática, como oposto de um estado ditatorial que durou 21 anos, entre 1964 e 1985. Nas últimas semanas dos trabalhos da ANC, Ulysses Guimarães procurou um nome de impacto propagandístico. Debateu com pares três opções: "Constituição Serenata", comparando "texto à letra e som do plenário à música", porém de difícil compreensão à maioria da população; "Constituição Primavera", represen- tando a estação em que entraria em vigor e também um novo começo, mas um nome associável à música Pra não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré; e "Constituição um nome de consenso por representar "avanços na defesa do explícitos por conta de conter os direitos e deveres do cidadão no começo do documento.12 A Constituição Federal de 1988: entre a construção e os avanços 0 autor procura problematizar, dessa forma, duas interpretações bastante correntes em relação ao texto constitucional: primeiro, que ele foi elaborado por um compromisso progressista dos constituintes, irmanados com os anseios de setores mobilizados da sociedade civil, que vimos que não é verdade; segundo, que apenas asseguramento de direitos na Constituição é suficiente para que esses benefícios sejam usufruídos pelos cidadãos, que também sabemos que não corresponde à realidade. 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Acesso em: 20 nov. 2020.A Constituição Federal de 1988: entre a construção e os avanços 13 Leituras recomendadas MICHILES, et al. Cidadão constituinte: a saga das emendas populares. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. 414 p. MONCLAIRE, S. (coord.). A constituição desejada: SAIC: as 72.719 sugestões enviadas pelos cidadãos brasileiros à Assembleia Nacional Constituinte. Brasília: Senado Federal, 1991. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/512414. Acesso em: 20 nov. 2020. PILATTI, A constituinte de 1987-1988: progressistas, conservadores, ordem econômica e regras do jogo. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. 334 p. QUADRAT, S. V. (org.). Não foi tempo perdido: os anos 80 em debate. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015. 420 p. QUADRAT, S. V.; ROLLEMBERG, D. História e memória das ditaduras do século Rio de Janeiro: FGV, 2015. V. 1. 444 p. SANTOS, TELES, E.; TELES, J.A. (org.). Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2009. V. 2. 272 p. 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