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Texto 03 TEMA 1 – FUNDAMENTO TEÓRICO TEMA 2 – MANIFESTAÇÃO DO NARCISISMO DAS PEQUENAS DIFERENÇAS NAS RELAÇÕES INTERPESSOAIS TEMA 3 – IMPACTO SOCIOCULTURAL TEMA 4 – NARCISISMO DAS PEQUENAS DIFERENÇAS NA ERA DIGITAL TEMA 5 – UMA OUTRA FORMA DE OLHAR O MEIO DIGITAL Conversa inicial Nos conteúdos anteriores, nós trabalhamos questões referentes ao narcisismo e ao eu ideal e ao ideal do eu. Nesta abordagem, vamos conversar sobre um conceito elaborado por Freud (2020a, 2020b) em Psicologia das massas e análise do eu e O mal-estar na civilização: o narcisismo das pequenas diferenças. Vamos, portanto, abordar seu fundamento teórico, sua manifestação nas relações interpessoais, seu impacto sociocultural, o narcisismo das pequenas diferenças na era digital e, finalmente, um outro olhar sobre o meio digital. Trata-se de um tema bastante interessante e de fundamental importância nos dias atuais. Vamos começar? Está preparado(a)? TEMA 1 – FUNDAMENTO TEÓRICO É muito comum ouvirmos diversas críticas referentes à psicanálise e, não raro, uma delas seria seu enfoque no individualismo. Alguns “estudiosos” afirmam que a psicanálise tem um forte foco na mente do indivíduo, no desenvolvimento do eu e nos conflitos internos do sujeito. Para eles, esse tipo de abordagem reforçaria uma visão individualista da vida humana, uma vez que os problemas psicológicos seriam vistos como questões internas, desconsiderando, portanto, o contexto social e cultural ao não levar em conta os impactos relacionados com pobreza, racismo, desigualdade... Alguns críticos vão afirmar que a psicanálise está intrinsecamente relacionada ao narcisismo, reforçando a ideia do individualismo. Contudo, Freud (2020b, p. 14), em Psicologia das massas e análise do eu, nos diz que: A oposição entre psicologia individual e psicologia social ou das massas, que à primeira vista pode parecer muito significativa, perde boa parte de sua agudeza se a examinarmos mais detidamente. É certo que a psicologia individual se dirige ao ser humano particular, investigando os caminhos pelos quais ele busca obter a satisfação de seus impulsos instituais, mas ela raramente, apenas em condições excepcionais, pode abstrair das relações deste ser particular com os outros indivíduos. Na vida psíquica individual, o Outro é via de regra considerado enquanto modelo, objeto auxiliador e adversário, e, portanto, a psicologia individual é também, desde o início, psicologia social, num sentido ampliado, mas inteiramente justificado. E não apenas Freud percebeu a importância do contexto social para a psicanálise. Podemos citar diversos outros psicanalistas clássicos e contemporâneos que também foram além e levaram em consideração as interações entre indivíduo e seu contexto social, tais como: Ferenczi, Winnicott, Lacan, Erich Fromm, Wilhelm Reich, Franzt Fanon, Nancy Chodorow e Marie Langer. Podemos deduzir que a psicanálise incomoda... E, além de incomodar, muitos críticos não a estudam, não a conhecem. Assim, é mais fácil desmerecê-la e dizer que não é uma ciência, que lhe falta objetividade, que se trata apenas de sexo, que é machista, cara, lenta e que não possui eficácia... Além de ser individualista! Sendo assim, devemos, mais do que nunca, estudá-la a fundo. Vamos agora, então, trabalhar alguns conceitos que Freud nos fornece em dois importantes textos: Psicologia das massas e análise do eu e O mal-estar na civilização. 1.1 Hostilidade das relações De acordo com Freud (2020b), em quase todas as relações íntimas e prolongadas (casamento, amizade, vínculo entre pais e filhos...), irá conter um nível de aversão e hostilidade que, geralmente, é reprimido e, portanto, não será percebido. Contudo, no contexto das massas, essas diferenças e/ou aversões poderão ser temporariamente suspensas para que os indivíduos próximos se comportem de forma homogênea. Ao fazer conexão desse tema com o narcisismo, Freud (2020b) irá sugerir que a hostilidade em relações íntimas e em grupos sociais pode ser uma manifestação do narcisismo, pelo qual o indivíduo ou o grupo sente aversão por pequenas diferenças que parecem ameaçar sua identidade ou desenvolvimento. De certa forma, tais diferenças irão facilitar a coesão de um grupo que irá direcionar sua agressividade para aqueles que são externos ou “diferentes”. 1.2 Relação entre identificação e agressividade Podemos entender que a identificação, processo psicológico fundamental na formação de vínculos, é o mais antigo laço afetivo do ser humano. Sendo assim, não estaríamos errados em pressupor que se nos identificamos com alguém ou com algum grupo será mais difícil ser agressiva a eles. É nesse sentido que Freud (2020b) irá afirmar que a identificação é um dos mecanismos que mantém a unidade e diminui a hostilidade interna de um grupo. De acordo com ele, o ato de identificação com o outro nos leva a uma diminuição de tendências agressivas, pois iremos ver o outro como parte de nós mesmos ou como alguém com quem compartilhamos características importantes. Iremos, portanto, desenvolver sentimento de solidariedade aos membros do grupo. 1.3 Relação com o líder A massa, de acordo com Freud (2020b), necessita de um líder. Ele justifica essa necessidade nos dizendo que os membros do grupo renunciam ao seu próprio ideal do eu o substituindo pelo ideal da massa, que é, de alguma forma, incorporado pelo líder. Dessa forma, esse líder será investido de um poder que não possui devido à crença dos indivíduos sobre suas qualidades. Aliado a isso, Freud (2020b) ainda vai nos dizer que o líder é visto como um pai primordial que ama todos os indivíduos da massa e é amado incondicionalmente por todo o grupo. 1.4 Civilização e descontentamento Ao pensarmos na organização social, não podemos ignorar a instituição Estado que se faz presente de diversas formas e visa assegurar a ordem e segurança, a garantia dos direitos e liberdades, a provisão de serviços públicos, a regulação econômica, a redistribuição de renda e promoção da justiça social, a defesa nacional, a gestão das relações internacionais, entre outras tantas funções. Podemos, portanto, perceber que o Estado se faz presente de formas variadas e garante, de forma geral, condições mínimas de vida à população. Contudo, não precisamos pensar em um sistema estatal para vermos tal estrutura. Freud (2020a) irá nos dizer que, em qualquer sociedade civilizada, o fenômeno da civilização irá fornecer segurança aos seus membros. Contudo, ele ressalta que, para vivermos em tal estrutura, precisamos renunciar a certos instintos, trocar um tanto de felicidade por um tanto de segurança. De acordo com ele, a própria natureza da civilização exige que façamos sacrifícios que irão gerar insatisfação e infelicidade em seus membros, ou seja, o descontentamento seria visto como um subproduto inevitável do processo civilizatório. 1.5 Libido Partindo da ideia freudiana de que somos insatisfeitos com a civilização devido às restrições impostas pela vida social, é possível, de alguma forma, pensar sobre a libido relacionando-a com o texto anterior de Freud (2020b), Psicologia das massas e análise do eu. As frustrações geradas pela civilização podem levar o retorno da libido ao eu (que é central na formação do narcisismo), intensificando um sentimento de alienação que, por sua vez, irá amplificar as pequenas diferenças entre indivíduos e grupos. Dessa forma, podemos entender que a estrutura civilizacional não só impõe sacrifícios à satisfação instintual, gerando mal-estar, como também amplifica as divisões sociais por meio do narcisismo, que se alimenta dessas pequenas diferenças para afirmar e proteger o eu, criando um ciclo de descontentamento e antagonismo. 1.6 Eros e Thanatos Ao lermos a obra de Freud (2020a), podemos ver que ele sugere que a civilização é o resultado do conflito entre duas forças fundamentais:Eros e Thanatos. Eros busca construir e unir, criando laços sociais e culturais, enquanto Thanatos, a pulsão de morte, trabalha para destruir e separar. A tensão entre essas forças é o que gera o mal-estar na civilização, pois a cultura exige a repressão das tendências destrutivas (Thanatos) e a canalização das energias de Eros para fins socialmente aceitos. Se formos tentar continuar esse raciocínio, podemos pensar que a canalização de energia para fins socialmente aceitos poderá gerar, frequentemente, frustração e descontentamento. Nesse ponto, se trouxermos o narcisismo das pequenas diferenças para esta análise, tal descontentamento poderá exacerbar a hostilidade diante de diferenças mínimas. Seria uma forma de canalizar Thanatos para fora, para o outro. 1.7 Identificação Quando redirecionamos nossa libido para o eu e fortalecemos nosso narcisismo, deixamos mais visíveis as pequenas diferenças dos outros. Contudo, ao fazermos parte de um grupo, criamos um sentimento de identificação e homogeneidade entre os membros, e as diferenças individuais serão negligenciadas em favor de uma unidade emocional (Freud, 2020b). Enquanto a formação da massa perdurar, nos diz Freud (2020b), ou até onde ela se estender, seus integrantes irão se conduzir como se fossem homogêneos, suportando as especificidades do outro, igualando-se, sem sentimento de repulsa. Contudo, de acordo com ele, a supressão de diferenças é instável, podendo facilmente se desfazer com o dissolvimento da massa ou quando o vínculo com o líder/a causa se enfraquecer. 1.8 Agressividade Como já vimos, a civilização, em troca de nos fornecer segurança, estabelece normas de conduta pelas quais nossos impulsos agressivos são reprimidos. Contudo, esse processo irá nos causar uma tensão psíquica substancial e, para termos alívio, utilizaremos o mecanismo da projeção. Abordando esse conhecimento prévio e o integrando com o que Freud (2020a, 2020b) trabalha em O mal-estar na civilização e Psicologia das massas e análise do eu, podemos perceber que a tensão gerada pela repressão civilizatória pode levar os indivíduos a projetarem suas agressividades reprimidas para fora, direcionando-as contra alvos externos, como outros grupos sociais. Assim, ao intensificarmos as diferenças entre os grupos e dirigirmos nossa agressividade para o outro, conseguiríamos, de um lado, um alívio temporário da tensão e, de outro lado, contribuiríamos com o conflito e a discórdia social. TEMA 2 – MANIFESTAÇÃO DO NARCISISMO DAS PEQUENAS DIFERENÇAS NAS RELAÇÕES INTERPESSOAIS As relações interpessoais desempenham um papel fundamental no desenvolvimento e na manutenção do bem-estar psicológico e social dos indivíduos, tendo em vista podermos considerá-las a base sobre a qual construímos nossa identidade, valores e sentido de pertencimento. No âmbito pessoal, as interações com os outros irão nos oferecer espelhos através dos quais poderemos nos ver, nos compreender e construir uma autoestima saudável. No contexto social, elas nos auxiliarão no desenvolvimento de habilidades como empatia, comunicação e resolução de conflitos; além de proporcionarem segurança e conforto em momentos de crise. Contudo, nós, seres humanos, somos seres curiosos. Embora as semelhanças entre nós sejam predominantes, é justamente nas pequenas diferenças que se concentra nossa atenção e uma aversão desproporcional, transformando o que poderia ser uma base de solidariedade em fonte de conflito e hostilidade. Freud (2020b) nos explica que nosso narcisismo (que continuamente busca reafirmação) irá enxergar qualquer diferença, por menor que seja, como ameaça e crítica implícita a ele e ao nosso desenvolvimento. Diante de tal circunstância, podemos ter condutas diversas. De um lado podemos desenvolver um ódio/aversão e sermos intolerantes ao diferente; do outro podemos atender ao convite para uma mudança. Fomentar o ódio e a intolerância talvez seja a atitude mais fácil, uma vez que reafirma nossa identidade, nosso modo de ser/estar no mundo como correto e superior, forçando o outro a se retirar. Uma forma de exteriorizarmos a agressividade ao outro e, paradoxalmente, reafirmarmos a identidade e superioridade daqueles com quem identificamos é a estigmatização. Por meio dela, diferenças sutis serão potencializadas, marginalizadas e utilizadas para a exclusão do outro. Outra forma de nos portarmos em relação à diferença é enxergá-la como um convite à mudança. Freud (2020b) observou que o narcisismo tende a ver qualquer desvio em relação aos próprios desenvolvimentos individuais como uma crítica, o que acaba por gerar uma exortação implícita à mudança. Deve ser ressaltado que tal reação configura-se em uma resistência ativa, pela qual somos levados a entrar em guerra contra qualquer sombra de divergência; ou seja, para que haja o reconhecimento do outro, devemos, necessariamente, provocar uma transformação psíquica em nós mesmos. É nesse sentido que Ferrari (2006) afirma que a noção de que tudo que de mim difere me ameaça encapsula essa dinâmica, em que o reconhecimento da diferença do outro exige uma mudança no próprio psiquismo. A aceitação da alteridade não é algo que ocorre automaticamente; ela é sempre acompanhada por uma necessidade de reconfiguração interna, que desafia a rigidez do narcisismo. Além disso, a ideia de que a alteridade, ou seja, o que é diferente, representa uma ameaça à identidade narcísica faz com que o convite à mudança seja percebido muitas vezes como uma afronta. O narcisismo resiste à mudança porque ela implica uma abertura para o outro, uma abertura que pode ser sentida como uma vulnerabilidade ou até mesmo como uma diminuição do próprio eu (Ferrari, 2006). Não temos dúvidas de que o reconhecimento da diferença, a aceitação da alteridade promove um crescimento nosso como sujeitos e, portanto, seria a melhor saída quando nos deparamos com o outro. Contudo, sabemos que nem sempre isso ocorre, mas percebemos que em algumas circunstâncias a diferença será tolerada. Freud (2020b) nos mostra que, em contextos de formação de grupos ou massas, as diferenças que geralmente fomentariam aversão e hostilidade são suspensas, permitindo que os indivíduos se comportem como homogêneos, suportando a especificidade do outro. Outro fator que poderia, temporariamente, apagar as diferenças seria com o surgimento de necessidades básicas que se tornem imperativas (fome, por exemplo). Nesse quadro, a privação de necessidades poderia levar à suspenção temporária das diferenças, suprimindo distinções que normalmente seriam fontes de conflito e hostilidade (Freud, 2020b). Fica aqui um questionamento: será que, após essa suspensão temporária das diferenças, seria mais fácil a aceitação da alteridade? TEMA 3 – IMPACTO SOCIOCULTURAL Diante de tudo que foi trabalhado até agora e do que já foi percebido por você em relação ao narcisismo das pequenas diferenças, não há como negar a existência de um impacto sociocultural disso decorrente. Somos seres essencialmente sociais e vivemos em uma complexa rede de relações culturais que irão moldar nossas identidades e comportamentos. A cultura na qual estamos inseridos nos influencia profundamente, definindo não apenas quem somos, mas também como nos relacionamos uns com os outros. Ao olharmos para nossa sociedade levando em consideração o narcisismo das pequenas diferenças, vamos perceber o impacto significativo gerado por ele. Seja em um contexto mais amplo, seja em um contexto mais restrito. Já sabemos que as diferenças, por menores que sejam, irão contribuir para sentimentos de hostilidade entre grupos aparentemente similares. O fenômeno psicológico desse narcisismo pode intensificar e perpetuar a marginalização, e a consequente exclusão social de certos grupos ou indivíduos, para que nossa autoimagem seja protegida das ameaças percebidas pornós mesmos. Essa necessidade de autoafirmação leva à criação de barreiras, muitas vezes invisíveis, mas extremamente poderosas, que irão segregar aqueles que são vistos como diferentes (Freud, 2020b). Essa forma de narcisismo irá se manifestar em atitudes diversas de preconceito e discriminação, em que grupos que compartilham importantes aspectos em comum (cultura, etnicidade, religião, entre outros) irão se separar tendo em vista características ínfimas, tais como: dialetos, orientação sexual, estilos de vida, sexo... A exclusão ocorrerá porque qualquer desvio será percebido como ameaçador à identidade do grupo dominante e, consequentemente, aqueles que não se adequarem completamente às normas previamente estabelecidas serão marginalizados. Teremos, assim, uma fragmentação da sociedade pela qual uma divisão rígida entre nós e eles irá perpetuar ciclos de hostilidade, desconfiança mútua e violência. Se trouxermos para essa análise o que Freud (2020a) nos ensinou sobre civilização, Eros, Thanatos e pulsão, tudo fica ainda mais preocupante, uma vez que a repressão da pulsão de morte (imposta pela civilização) pode levar a uma explosão de violência direcionada àqueles que são vistos como diferentes, servindo como uma válvula de escape para a agressividade acumulada. O impacto social desse fenômeno é devastador, uma vez que o convívio social se torna um campo minado de hostilidades potenciais. Trata-se de uma força corrosiva que não só danifica as relações interpessoais, mas também desestabiliza a sociedade como um todo, alimentando ciclos de destrutividade e violência que são difíceis de romper. Nesse contexto, é possível falarmos na existência de um fenômeno denominado miséria psicológica, que é marcado por uma rigidez narcísica que impede o indivíduo de aceitar e integrar o outro em sua vida de maneira saudável e harmoniosa, levando a um isolamento psíquico que empobrece a experiência relacional, despertando no indivíduo um sentimento de vulnerabilidade e insegurança (Freud, 2020b). A constante comparação e necessidade de reafirmação traz consigo um profundo desgaste emocional. O indivíduo que não consegue aceitar as pequenas diferenças nos outros vive em um estado de alerta permanente, sempre pronto para defender sua posição e identidade. Talvez isso possa justificar a assertiva de Bourdieu (citado por Reino; Endo, 2011, grifo do original) de que “a identidade social está na diferença, e a diferença é afirmada em relação àquilo que é mais próximo, que representa a maior ameaça”. Esse processo, de acordo com Reino e Endo (2011), pode resultar em uma sociedade fragmentada, em que as identidades sociais são construídas em torno de divisões artificiais e muitas vezes arbitrárias. Grupos que poderiam cooperar e se enriquecer mutuamente acabam se vendo como rivais ou inimigos, baseando sua identidade em uma oposição mútua que impede o desenvolvimento de laços sociais mais amplos e inclusivos. Isso irá gerar um impacto substancial na estruturação da sociedade pois promoverá divisões, hierarquias e conflitos que enfraquecerão a coesão social e impedirão o progresso coletivo, tendo em vista sua organização fragmentada e hostil. A superação desses desafios requer um esforço consciente para reconhecer e valorizar a diversidade, promovendo uma estrutura social que seja mais inclusiva e capaz de integrar as diferenças de maneira positiva e construtiva. TEMA 4 – NARCISISMO DAS PEQUENAS DIFERENÇAS NA ERA DIGITAL Freud desenvolveu a maior parte de suas teorias no início do séc. XX e nos deixou em 1939, ou seja, muito antes da era digital. Infelizmente, ele não vivenciou o fenômeno da internet e das complexas relações sociais viabilizadas por essa tecnologia. No entanto, seus textos continuam (ainda bem!) a ser estudados e, quando nos deparamos com questões como ciberbullying, utilização de algoritmos, alienação, entre outras, percebemos como suas teorias sobre civilização e narcisismo podem ser úteis. Elas fornecem uma base teórica sólida para analisarmos como as novas ferramentas digitais podem amplificar os efeitos da intolerância decorrente das diferenças, uma vez que, apesar das mudanças tecnológicas, as questões fundamentais da psique humana permanecem inalteradas. Vejamos: ● Amplificação. A produção massiva de dados e o uso de algoritmos para coletar e analisar informações sobre o comportamento e as interações dos usuários têm implicações profundas na sociedade contemporânea. Esses mecanismos, inicialmente desenvolvidos para otimizar a experiência do usuário e personalizar conteúdos, podem inadvertidamente reforçar estereótipos e amplificar diferenças sociais, resultando em polarização e conflitos crescentes. De acordo com Paz, Carvalho e Dib (2023), nas redes sociais os algoritmos frequentemente priorizam conteúdos que geram mais engajamento, o que pode incluir postagens polarizadoras ou controversas. Algoritmos tendenciosos, por exemplo, podem exacerbar o racismo ao recomendar conteúdos que reforçam preconceitos existentes, criando um ciclo de retroalimentação negativa que promove a exclusão e a marginalização de grupos minoritários . Além disso, o ambiente virtual amplifica as agressões, uma vez que sua disseminação é mais rápida e a permanência mais duradoura. Não se pode duvidar que o dano gerado também será muito maior. ● Homogeneização e estereotipização. A facilidade de acesso à informação no meio digital, aliada à percepção de se estar em um território livre, facilita a formação de grupos homogêneos nas redes sociais, nos quais diferenças sutis são exacerbadas para se criar uma sensação de identidade distinta, em oposição ao outro. Essa dinâmica promove a homogeneização dentro dos grupos, ao mesmo tempo que estereotipiza e marginaliza os demais grupos. Souza, Simão e Caetano (2014) afirmam que o uso dos algoritmos pelas plataformas digitais favorece a criação de bolhas de informação pois os usuários são constantemente expostos a conteúdos que reforçam suas crenças preexistentes. Assim, o contato com informações divergentes se torna cada vez mais raro e as representações de grupos externos são frequentemente reduzidas a caricaturas simplificadas e negativas. ● Ciberbullying. Trata-se de uma forma de assédio ou agressão que ocorre por meio de plataformas digitais para propagação dos atos de violência psicológica, emocional ou social contra uma pessoa ou grupo. Suas principais características consistem na repetição, intenção de causar dano, anonimato, ampla difusão e inescapabilidade. Souza, Simão e Caetano (2014) afirmam que os algoritmos que privilegiam conteúdos que geram alto engajamento, mesmo que negativos, amplificam a extensão da agressividade do ciberbullying, uma vez que a vítima será atacada repetidamente (a cada visualização). Outro ponto salientado pelos autores é a possibilidade de que as agressões sejam perpetuadas indefinidamente, dado que os conteúdos na internet podem ser replicados e disseminados sem controle. Isso cria um ciclo contínuo de violência, em que a vítima não encontra escape fácil, exacerbando sentimentos de impotência e isolamento (Souza; Simão; Caetano, 2014). ● Caricaturização do outro. Quando traços distintivos entre grupos/pessoas são exagerados, eles se transformam em estereótipos que reduzem a complexidade do outro a uma caricatura simplificada e frequentemente negativa. Tal processo não apenas reforça preconceitos e discriminações já existentes, mas, também, desumaniza o outro, tornando-o alvo fácil de ridicularização. Fuks e Farias (2007) afirmam que a caricatura, por ser uma representação simplificada e distorcida, facilita a manutenção de preconceitos, pois reduz o outro a um conjunto de características negativas que podem ser facilmente desqualificadas ou ridicularizadas. Essa dinâmica é particularmente visível nas interações on-line,em que a velocidade de compartilhamento e a falta de nuances nos diálogos contribuem para a propagação de estereótipos e a intensificação dos conflitos. O impacto psíquico desse processo sobre os indivíduos marginalizados é significativo. A constante exposição a representações caricaturais pode levar a sentimentos de inferioridade, isolamento e sofrimento psicológico. A internalização desses estereótipos pode reforçar a alienação dos indivíduos, que, já marginalizados, se veem ainda mais afastados da possibilidade de reconhecimento e aceitação social, de acordo com Fuks e Farias (2007). ● Alienação e vazio existencial. O individualismo narcisista que caracteriza a cultura contemporânea é frequentemente apontado como uma das causas do aumento dos sentimentos de vazio existencial e alienação. Esse tipo de individualismo, centrado em si mesmo e na busca incessante por reconhecimento e validação externa, contribui para a fragmentação social e o isolamento, ao mesmo tempo que exacerba sintomas de depressão e ansiedade. A ênfase nas pequenas diferenças, intensificada pelo narcisismo, leva a uma fragmentação ainda maior das relações sociais. Em vez de construir pontes, as mínimas distinções são exageradas, o que enfraquece o senso de comunidade e pertencimento. Esse processo de fragmentação não só promove o isolamento dos indivíduos, mas também alimenta a alienação, uma vez que as conexões autênticas com os outros se tornam cada vez mais difíceis de alcançar. (Fuks e Farias, 2007). Todo esse contexto ainda irá gerar um sentimento de vazio existencial, uma vez que os indivíduos irão perceber que a busca por autoafirmação mediante comparações sociais e diferenciação do outro não lhes traz o sentido ou a satisfação esperados. Esse vazio é frequentemente acompanhado por sentimentos de inutilidade, perda de propósito e desesperança, sintomas comuns em quadros de depressão e ansiedade , de acordo com Fuks e Farias (2007). TEMA 5 – UMA OUTRA FORMA DE OLHAR O MEIO DIGITAL Simone Weil (1996), em seu livro A condição operária e outros estudos sobre a opressão, vai nos dizer que a violência se apresenta banalizada e naturalizada, acarretando uma cultura que adota a indiferença perante o sofrimento do outro como tônica para relações desumanizadas e destrutivas de subjetividades. Essas conexões humanas balizadas pelos valores capitalistas da concorrência, do individualismo, da dominação e da exploração destroem a essência humana e transformam os sujeitos em coisas. A violência pode ser medida por diversas formas: números de homicídios, estupros, roubos, furtos, sequestros, prisões... Contudo, existem diferentes indicadores de violência que são tão ou mais importantes que esses, tais como: expectativa de vida, taxa de analfabetismo, desigualdade social, entre tantos outros. Por trás dessas modalidades de violência que podem ser mensuradas existe uma outra: a violência cultural. Ela refere-se aos aspectos da cultura simbólica da existência humana que são contidos na linguagem, nas artes, na religião, na educação, nos meios de comunicação e em tantos outros lugares. Esse conceito foi desenvolvido por Johan Galtung (1990) e, segundo ele, tal violência pode ser um meio para justificar e/ou legitimar as demais formas. Ao estudar o narcisismo das pequenas diferenças, uma questão surge em nossas mentes: ele poderia ser utilizado ou ser a origem para essa violência cultural e, consequentemente, para todas as demais? Vimos o quanto o meio digital é eficaz para a manutenção da segregação e da exclusão. Contudo, ele é apenas um instrumento... A decisão de como usá-lo compete a nós! As plataformas digitais alcançam milhões de pessoas em tempo real e, quando utilizadas de forma consciente, têm o potencial de educar e sensibilizar sobre as dinâmicas de exclusão e hostilidade que podem surgir da amplificação de pequenas diferenças. As campanhas de sensibilização e programas educacionais podem ajudar a desmontar estereótipos e transformar a mentalidade de um público vasto, promovendo uma cultura de respeito, inclusão e solidariedade. Instituições educacionais, organizações não governamentais e outras entidades podem desempenhar um papel vital na criação e disseminação de materiais educativos e de sensibilização. Ao trabalhar em conjunto com plataformas digitais, essas instituições podem criar programas de aprendizado que não apenas informem, mas também envolvam os usuários de forma interativa e prática. O meio digital também facilita o diálogo intercultural, que é uma ferramenta essencial para reduzir tensões entre diferentes grupos sociais e culturais. O meio digital, com sua capacidade de conectar pessoas de todas as partes do mundo instantaneamente, oferece um espaço único para o florescimento desse diálogo, permitindo que pessoas de diversas origens compartilhem suas perspectivas, tradições e valores. Essas interações proporcionam oportunidades e perspectivas que desafiam seus (pre)conceitos. Ao utilizar diferentes plataformas digitais para campanhas de sensibilização e projetos educacionais, para promoção de um diálogo intercultural, estamos transformando um local que antes ampliava barreiras a um que promove inclusão e diversidade. Ao criar e compartilhar conteúdos que destacam as histórias, experiências e contribuições de diferentes grupos, a internet pode ajudar a sensibilizar e educar o público sobre a importância da diversidade. Além disso, pode fornecer visibilidade a grupos que historicamente foram marginalizados, oferecendo-lhes um local para expressar suas vozes e perspectivas. Essa visibilidade é fundamental para a desconstrução de estereótipos, permitindo que o público em geral veja além das generalizações simplificadas e compreenda a complexidade e a riqueza das identidades humanas. Dessa forma, conseguiríamos combater a miséria psicológica, uma vez que não precisaríamos mais nos proteger de ameaças imaginárias e, assim, estaríamos libertos para o estabelecimento de vínculos mais genuínos, baseados na confiança, respeito e empatia. A desintegração dos laços sociais e a fragmentação da sociedade não seriam mais uma realidade. Um sonho? Talvez... Talvez fosse melhor encarar tudo isso como um projeto, pois assim seríamos desafiados a encontrar formas de viabilizar tais mudanças. Podemos começar a pensar seriamente na implementação de sistemas de monitoramento e moderação de conteúdos em ambientes digitais para combater a exclusão e a hostilidade que podem surgir nessas plataformas. A criação de ambientes digitais mais seguros e inclusivos depende diretamente da capacidade de identificar e remover tais conteúdos de maneira eficaz e rápida. A combinação de ferramentas de inteligência artificial (que podem analisar grandes volumes de dados em tempo real e identificar padrões de linguagem e comportamento que indiquem conteúdos problemáticos) com o conhecimento especializado de profissionais de saúde mental pode criar sistemas robustos que não apenas protejam os indivíduos, mas também promovam uma cultura de respeito e cooperação on-line. Podemos, portanto, afirmar que a promoção de uma cultura de respeito, inclusão e solidariedade no meio digital depende de ações conjuntas e coordenadas entre as plataformas digitais, as instituições educacionais, o Estado e a sociedade como um todo. Pode parecer, sem dúvida, algo difícil de ser alcançado, mas, se encararmos a construção de uma sociedade mais justa e equitativa como um projeto coletivo, daremos os primeiros passos rumo a um futuro em que a diversidade seja celebrada e a exclusão seja combatida de forma eficaz. NA PRÁTICA Veremos, agora, um recorte clínico de como o bullying pode afetar um adolescente. Ressaltamos que todos os dados e nomes foram alterados para que a privacidade e a confidencialidade das informações fossem preservadas. Em conversa comJoão, ele disse que estava em um colégio novo e que não havia se adaptado bem. Durante as sessões seguintes, João disse que estava sofrendo bullying por ser o mais inteligente da sala e que seus colegas haviam descoberto que ele era homossexual. FINALIZANDO A psicanálise é realmente muito bonita, não é mesmo? Ela nos oferece ferramentas valiosas para entender como nossas dinâmicas internas estão diretamente ligadas às relações sociais e às estruturas culturais nas quais estamos inseridos. Freud (2020a, 2020b) nos mostrou como o narcisismo pode reforçar divisões e ampliar conflitos, tanto no nível das relações interpessoais quanto na sociedade como um todo. Essa compreensão nos permite reconhecer que as pequenas diferenças, muitas vezes vistas como ameaças, têm um impacto significativo na coesão social, levando à exclusão, à discriminação e à perpetuação de ciclos de hostilidade. É impressionante, não é mesmo? Esperamos que tenha gostado desta abordagem e se sentido provocado(a) a ampliar os estudos e a refletir mais sobre o tema. Vamos adiante?