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TEMA 1 – FUNDAMENTO TEÓRICO 
TEMA 2 – MANIFESTAÇÃO DO NARCISISMO DAS PEQUENAS DIFERENÇAS NAS 
RELAÇÕES INTERPESSOAIS 
TEMA 3 – IMPACTO SOCIOCULTURAL 
TEMA 4 – NARCISISMO DAS PEQUENAS DIFERENÇAS NA ERA DIGITAL 
TEMA 5 – UMA OUTRA FORMA DE OLHAR O MEIO DIGITAL 
 
Conversa inicial 
Nos conteúdos anteriores, nós trabalhamos questões referentes ao narcisismo 
e ao eu ideal e ao ideal do eu. Nesta abordagem, vamos conversar sobre um 
conceito elaborado por Freud (2020a, 2020b) em Psicologia das massas e análise do 
eu e O mal-estar na civilização: o narcisismo das pequenas diferenças. 
Vamos, portanto, abordar seu fundamento teórico, sua manifestação nas 
relações interpessoais, seu impacto sociocultural, o narcisismo das pequenas 
diferenças na era digital e, finalmente, um outro olhar sobre o meio digital. Trata-se 
de um tema bastante interessante e de fundamental importância nos dias atuais. 
Vamos começar? Está preparado(a)? 
TEMA 1 – FUNDAMENTO TEÓRICO 
É muito comum ouvirmos diversas críticas referentes à psicanálise e, não raro, 
uma delas seria seu enfoque no individualismo. Alguns “estudiosos” afirmam que a 
psicanálise tem um forte foco na mente do indivíduo, no desenvolvimento do eu e 
nos conflitos internos do sujeito. Para eles, esse tipo de abordagem reforçaria uma 
visão individualista da vida humana, uma vez que os problemas psicológicos seriam 
vistos como questões internas, desconsiderando, portanto, o contexto social e 
cultural ao não levar em conta os impactos relacionados com pobreza, racismo, 
desigualdade... Alguns críticos vão afirmar que a psicanálise está intrinsecamente 
relacionada ao narcisismo, reforçando a ideia do individualismo. 
Contudo, Freud (2020b, p. 14), em Psicologia das massas e análise do eu, nos diz 
que: 
A oposição entre psicologia individual e psicologia social ou das massas, que à 
primeira vista pode parecer muito significativa, perde boa parte de sua agudeza se a 
examinarmos mais detidamente. É certo que a psicologia individual se dirige ao ser 
humano particular, investigando os caminhos pelos quais ele busca obter a 
satisfação de seus impulsos instituais, mas ela raramente, apenas em condições 
excepcionais, pode abstrair das relações deste ser particular com os outros 
indivíduos. Na vida psíquica individual, o Outro é via de regra considerado enquanto 
modelo, objeto auxiliador e adversário, e, portanto, a psicologia individual é também, 
desde o início, psicologia social, num sentido ampliado, mas inteiramente 
justificado. 
E não apenas Freud percebeu a importância do contexto social para a 
psicanálise. Podemos citar diversos outros psicanalistas clássicos e 
contemporâneos que também foram além e levaram em consideração as interações 
entre indivíduo e seu contexto social, tais como: Ferenczi, Winnicott, Lacan, Erich 
Fromm, Wilhelm Reich, Franzt Fanon, Nancy Chodorow e Marie Langer. 
Podemos deduzir que a psicanálise incomoda... E, além de incomodar, muitos 
críticos não a estudam, não a conhecem. Assim, é mais fácil desmerecê-la e dizer 
que não é uma ciência, que lhe falta objetividade, que se trata apenas de sexo, que é 
machista, cara, lenta e que não possui eficácia... Além de ser individualista! Sendo 
assim, devemos, mais do que nunca, estudá-la a fundo. Vamos agora, então, 
trabalhar alguns conceitos que Freud nos fornece em dois importantes textos: 
Psicologia das massas e análise do eu e O mal-estar na civilização. 
1.1 Hostilidade das relações 
De acordo com Freud (2020b), em quase todas as relações íntimas e 
prolongadas (casamento, amizade, vínculo entre pais e filhos...), irá conter um nível 
de aversão e hostilidade que, geralmente, é reprimido e, portanto, não será 
percebido. Contudo, no contexto das massas, essas diferenças e/ou aversões 
poderão ser temporariamente suspensas para que os indivíduos próximos se 
comportem de forma homogênea. 
Ao fazer conexão desse tema com o narcisismo, Freud (2020b) irá sugerir que a 
hostilidade em relações íntimas e em grupos sociais pode ser uma manifestação do 
narcisismo, pelo qual o indivíduo ou o grupo sente aversão por pequenas diferenças 
que parecem ameaçar sua identidade ou desenvolvimento. De certa forma, tais 
diferenças irão facilitar a coesão de um grupo que irá direcionar sua agressividade 
para aqueles que são externos ou “diferentes”. 
1.2 Relação entre identificação e agressividade 
Podemos entender que a identificação, processo psicológico fundamental na 
formação de vínculos, é o mais antigo laço afetivo do ser humano. Sendo assim, não 
estaríamos errados em pressupor que se nos identificamos com alguém ou com 
algum grupo será mais difícil ser agressiva a eles. É nesse sentido que Freud 
(2020b) irá afirmar que a identificação é um dos mecanismos que mantém a 
unidade e diminui a hostilidade interna de um grupo. De acordo com ele, o ato de 
identificação com o outro nos leva a uma diminuição de tendências agressivas, pois 
iremos ver o outro como parte de nós mesmos ou como alguém com quem 
compartilhamos características importantes. Iremos, portanto, desenvolver 
sentimento de solidariedade aos membros do grupo. 
1.3 Relação com o líder 
A massa, de acordo com Freud (2020b), necessita de um líder. Ele justifica essa 
necessidade nos dizendo que os membros do grupo renunciam ao seu próprio ideal 
do eu o substituindo pelo ideal da massa, que é, de alguma forma, incorporado pelo 
líder. Dessa forma, esse líder será investido de um poder que não possui devido à 
crença dos indivíduos sobre suas qualidades. 
Aliado a isso, Freud (2020b) ainda vai nos dizer que o líder é visto como um pai 
primordial que ama todos os indivíduos da massa e é amado incondicionalmente 
por todo o grupo. 
1.4 Civilização e descontentamento 
Ao pensarmos na organização social, não podemos ignorar a instituição Estado 
que se faz presente de diversas formas e visa assegurar a ordem e segurança, a 
garantia dos direitos e liberdades, a provisão de serviços públicos, a regulação 
econômica, a redistribuição de renda e promoção da justiça social, a defesa 
nacional, a gestão das relações internacionais, entre outras tantas funções. 
Podemos, portanto, perceber que o Estado se faz presente de formas variadas e 
garante, de forma geral, condições mínimas de vida à população. Contudo, não 
precisamos pensar em um sistema estatal para vermos tal estrutura. 
Freud (2020a) irá nos dizer que, em qualquer sociedade civilizada, o fenômeno 
da civilização irá fornecer segurança aos seus membros. Contudo, ele ressalta que, 
para vivermos em tal estrutura, precisamos renunciar a certos instintos, trocar um 
tanto de felicidade por um tanto de segurança. De acordo com ele, a própria 
natureza da civilização exige que façamos sacrifícios que irão gerar insatisfação e 
infelicidade em seus membros, ou seja, o descontentamento seria visto como um 
subproduto inevitável do processo civilizatório. 
1.5 Libido 
Partindo da ideia freudiana de que somos insatisfeitos com a civilização devido 
às restrições impostas pela vida social, é possível, de alguma forma, pensar sobre a 
libido relacionando-a com o texto anterior de Freud (2020b), Psicologia das massas e 
análise do eu. As frustrações geradas pela civilização podem levar o retorno da 
libido ao eu (que é central na formação do narcisismo), intensificando um 
sentimento de alienação que, por sua vez, irá amplificar as pequenas diferenças 
entre indivíduos e grupos. 
Dessa forma, podemos entender que a estrutura civilizacional não só impõe 
sacrifícios à satisfação instintual, gerando mal-estar, como também amplifica as 
divisões sociais por meio do narcisismo, que se alimenta dessas pequenas 
diferenças para afirmar e proteger o eu, criando um ciclo de descontentamento e 
antagonismo. 
1.6 Eros e Thanatos 
Ao lermos a obra de Freud (2020a), podemos ver que ele sugere que a 
civilização é o resultado do conflito entre duas forças fundamentais:Eros e 
Thanatos. Eros busca construir e unir, criando laços sociais e culturais, enquanto 
Thanatos, a pulsão de morte, trabalha para destruir e separar. A tensão entre essas 
forças é o que gera o mal-estar na civilização, pois a cultura exige a repressão das 
tendências destrutivas (Thanatos) e a canalização das energias de Eros para fins 
socialmente aceitos. 
Se formos tentar continuar esse raciocínio, podemos pensar que a canalização 
de energia para fins socialmente aceitos poderá gerar, frequentemente, frustração e 
descontentamento. Nesse ponto, se trouxermos o narcisismo das pequenas 
diferenças para esta análise, tal descontentamento poderá exacerbar a hostilidade 
diante de diferenças mínimas. Seria uma forma de canalizar Thanatos para fora, 
para o outro. 
1.7 Identificação 
Quando redirecionamos nossa libido para o eu e fortalecemos nosso 
narcisismo, deixamos mais visíveis as pequenas diferenças dos outros. Contudo, ao 
fazermos parte de um grupo, criamos um sentimento de identificação e 
homogeneidade entre os membros, e as diferenças individuais serão negligenciadas 
em favor de uma unidade emocional (Freud, 2020b). 
Enquanto a formação da massa perdurar, nos diz Freud (2020b), ou até onde ela 
se estender, seus integrantes irão se conduzir como se fossem homogêneos, 
suportando as especificidades do outro, igualando-se, sem sentimento de repulsa. 
Contudo, de acordo com ele, a supressão de diferenças é instável, podendo 
facilmente se desfazer com o dissolvimento da massa ou quando o vínculo com o 
líder/a causa se enfraquecer. 
1.8 Agressividade 
Como já vimos, a civilização, em troca de nos fornecer segurança, estabelece 
normas de conduta pelas quais nossos impulsos agressivos são reprimidos. 
Contudo, esse processo irá nos causar uma tensão psíquica substancial e, para 
termos alívio, utilizaremos o mecanismo da projeção. 
Abordando esse conhecimento prévio e o integrando com o que Freud (2020a, 
2020b) trabalha em O mal-estar na civilização e Psicologia das massas e análise do 
eu, podemos perceber que a tensão gerada pela repressão civilizatória pode levar os 
indivíduos a projetarem suas agressividades reprimidas para fora, direcionando-as 
contra alvos externos, como outros grupos sociais. Assim, ao intensificarmos as 
diferenças entre os grupos e dirigirmos nossa agressividade para o outro, 
conseguiríamos, de um lado, um alívio temporário da tensão e, de outro lado, 
contribuiríamos com o conflito e a discórdia social. 
TEMA 2 – MANIFESTAÇÃO DO NARCISISMO DAS PEQUENAS DIFERENÇAS NAS 
RELAÇÕES INTERPESSOAIS 
As relações interpessoais desempenham um papel fundamental no 
desenvolvimento e na manutenção do bem-estar psicológico e social dos indivíduos, 
tendo em vista podermos considerá-las a base sobre a qual construímos nossa 
identidade, valores e sentido de pertencimento. No âmbito pessoal, as interações 
com os outros irão nos oferecer espelhos através dos quais poderemos nos ver, nos 
compreender e construir uma autoestima saudável. No contexto social, elas nos 
auxiliarão no desenvolvimento de habilidades como empatia, comunicação e 
resolução de conflitos; além de proporcionarem segurança e conforto em 
momentos de crise. 
Contudo, nós, seres humanos, somos seres curiosos. Embora as semelhanças 
entre nós sejam predominantes, é justamente nas pequenas diferenças que se 
concentra nossa atenção e uma aversão desproporcional, transformando o que 
poderia ser uma base de solidariedade em fonte de conflito e hostilidade. Freud 
(2020b) nos explica que nosso narcisismo (que continuamente busca reafirmação) 
irá enxergar qualquer diferença, por menor que seja, como ameaça e crítica implícita 
a ele e ao nosso desenvolvimento. Diante de tal circunstância, podemos ter 
condutas diversas. De um lado podemos desenvolver um ódio/aversão e sermos 
intolerantes ao diferente; do outro podemos atender ao convite para uma mudança. 
Fomentar o ódio e a intolerância talvez seja a atitude mais fácil, uma vez que 
reafirma nossa identidade, nosso modo de ser/estar no mundo como correto e 
superior, forçando o outro a se retirar. Uma forma de exteriorizarmos a 
agressividade ao outro e, paradoxalmente, reafirmarmos a identidade e 
superioridade daqueles com quem identificamos é a estigmatização. Por meio dela, 
diferenças sutis serão potencializadas, marginalizadas e utilizadas para a exclusão 
do outro. 
Outra forma de nos portarmos em relação à diferença é enxergá-la como um 
convite à mudança. Freud (2020b) observou que o narcisismo tende a ver qualquer 
desvio em relação aos próprios desenvolvimentos individuais como uma crítica, o 
que acaba por gerar uma exortação implícita à mudança. Deve ser ressaltado que tal 
reação configura-se em uma resistência ativa, pela qual somos levados a entrar em 
guerra contra qualquer sombra de divergência; ou seja, para que haja o 
reconhecimento do outro, devemos, necessariamente, provocar uma transformação 
psíquica em nós mesmos. 
É nesse sentido que Ferrari (2006) afirma que a noção de que tudo que de mim 
difere me ameaça encapsula essa dinâmica, em que o reconhecimento da diferença 
do outro exige uma mudança no próprio psiquismo. A aceitação da alteridade não é 
algo que ocorre automaticamente; ela é sempre acompanhada por uma necessidade 
de reconfiguração interna, que desafia a rigidez do narcisismo. Além disso, a ideia 
de que a alteridade, ou seja, o que é diferente, representa uma ameaça à identidade 
narcísica faz com que o convite à mudança seja percebido muitas vezes como uma 
afronta. O narcisismo resiste à mudança porque ela implica uma abertura para o 
outro, uma abertura que pode ser sentida como uma vulnerabilidade ou até mesmo 
como uma diminuição do próprio eu (Ferrari, 2006). 
Não temos dúvidas de que o reconhecimento da diferença, a aceitação da 
alteridade promove um crescimento nosso como sujeitos e, portanto, seria a melhor 
saída quando nos deparamos com o outro. Contudo, sabemos que nem sempre isso 
ocorre, mas percebemos que em algumas circunstâncias a diferença será tolerada. 
Freud (2020b) nos mostra que, em contextos de formação de grupos ou massas, as 
diferenças que geralmente fomentariam aversão e hostilidade são suspensas, 
permitindo que os indivíduos se comportem como homogêneos, suportando a 
especificidade do outro. Outro fator que poderia, temporariamente, apagar as 
diferenças seria com o surgimento de necessidades básicas que se tornem 
imperativas (fome, por exemplo). Nesse quadro, a privação de necessidades poderia 
levar à suspenção temporária das diferenças, suprimindo distinções que 
normalmente seriam fontes de conflito e hostilidade (Freud, 2020b). 
Fica aqui um questionamento: será que, após essa suspensão temporária das 
diferenças, seria mais fácil a aceitação da alteridade? 
TEMA 3 – IMPACTO SOCIOCULTURAL 
Diante de tudo que foi trabalhado até agora e do que já foi percebido por você 
em relação ao narcisismo das pequenas diferenças, não há como negar a existência 
de um impacto sociocultural disso decorrente. Somos seres essencialmente sociais 
e vivemos em uma complexa rede de relações culturais que irão moldar nossas 
identidades e comportamentos. A cultura na qual estamos inseridos nos influencia 
profundamente, definindo não apenas quem somos, mas também como nos 
relacionamos uns com os outros. Ao olharmos para nossa sociedade levando em 
consideração o narcisismo das pequenas diferenças, vamos perceber o impacto 
significativo gerado por ele. Seja em um contexto mais amplo, seja em um contexto 
mais restrito. 
Já sabemos que as diferenças, por menores que sejam, irão contribuir para 
sentimentos de hostilidade entre grupos aparentemente similares. O fenômeno 
psicológico desse narcisismo pode intensificar e perpetuar a marginalização, e a 
consequente exclusão social de certos grupos ou indivíduos, para que nossa 
autoimagem seja protegida das ameaças percebidas pornós mesmos. Essa 
necessidade de autoafirmação leva à criação de barreiras, muitas vezes invisíveis, 
mas extremamente poderosas, que irão segregar aqueles que são vistos como 
diferentes (Freud, 2020b). 
Essa forma de narcisismo irá se manifestar em atitudes diversas de preconceito 
e discriminação, em que grupos que compartilham importantes aspectos em 
comum (cultura, etnicidade, religião, entre outros) irão se separar tendo em vista 
características ínfimas, tais como: dialetos, orientação sexual, estilos de vida, sexo... 
A exclusão ocorrerá porque qualquer desvio será percebido como ameaçador à 
identidade do grupo dominante e, consequentemente, aqueles que não se 
adequarem completamente às normas previamente estabelecidas serão 
marginalizados. Teremos, assim, uma fragmentação da sociedade pela qual uma 
divisão rígida entre nós e eles irá perpetuar ciclos de hostilidade, desconfiança 
mútua e violência. 
Se trouxermos para essa análise o que Freud (2020a) nos ensinou sobre 
civilização, Eros, Thanatos e pulsão, tudo fica ainda mais preocupante, uma vez que 
a repressão da pulsão de morte (imposta pela civilização) pode levar a uma 
explosão de violência direcionada àqueles que são vistos como diferentes, servindo 
como uma válvula de escape para a agressividade acumulada. O impacto social 
desse fenômeno é devastador, uma vez que o convívio social se torna um campo 
minado de hostilidades potenciais. Trata-se de uma força corrosiva que não só 
danifica as relações interpessoais, mas também desestabiliza a sociedade como 
um todo, alimentando ciclos de destrutividade e violência que são difíceis de 
romper. Nesse contexto, é possível falarmos na existência de um fenômeno 
denominado miséria psicológica, que é marcado por uma rigidez narcísica que 
impede o indivíduo de aceitar e integrar o outro em sua vida de maneira saudável e 
harmoniosa, levando a um isolamento psíquico que empobrece a experiência 
relacional, despertando no indivíduo um sentimento de vulnerabilidade e 
insegurança (Freud, 2020b). 
A constante comparação e necessidade de reafirmação traz consigo um 
profundo desgaste emocional. O indivíduo que não consegue aceitar as pequenas 
diferenças nos outros vive em um estado de alerta permanente, sempre pronto para 
defender sua posição e identidade. Talvez isso possa justificar a assertiva de 
Bourdieu (citado por Reino; Endo, 2011, grifo do original) de que “a identidade social 
está na diferença, e a diferença é afirmada em relação àquilo que é mais próximo, 
que representa a maior ameaça”. 
Esse processo, de acordo com Reino e Endo (2011), pode resultar em uma 
sociedade fragmentada, em que as identidades sociais são construídas em torno de 
divisões artificiais e muitas vezes arbitrárias. Grupos que poderiam cooperar e se 
enriquecer mutuamente acabam se vendo como rivais ou inimigos, baseando sua 
identidade em uma oposição mútua que impede o desenvolvimento de laços sociais 
mais amplos e inclusivos. Isso irá gerar um impacto substancial na estruturação da 
sociedade pois promoverá divisões, hierarquias e conflitos que enfraquecerão a 
coesão social e impedirão o progresso coletivo, tendo em vista sua organização 
fragmentada e hostil. A superação desses desafios requer um esforço consciente 
para reconhecer e valorizar a diversidade, promovendo uma estrutura social que seja 
mais inclusiva e capaz de integrar as diferenças de maneira positiva e construtiva. 
TEMA 4 – NARCISISMO DAS PEQUENAS DIFERENÇAS NA ERA DIGITAL 
Freud desenvolveu a maior parte de suas teorias no início do séc. XX e nos 
deixou em 1939, ou seja, muito antes da era digital. Infelizmente, ele não vivenciou o 
fenômeno da internet e das complexas relações sociais viabilizadas por essa 
tecnologia. No entanto, seus textos continuam (ainda bem!) a ser estudados e, 
quando nos deparamos com questões como ciberbullying, utilização de algoritmos, 
alienação, entre outras, percebemos como suas teorias sobre civilização e 
narcisismo podem ser úteis. Elas fornecem uma base teórica sólida para 
analisarmos como as novas ferramentas digitais podem amplificar os efeitos da 
intolerância decorrente das diferenças, uma vez que, apesar das mudanças 
tecnológicas, as questões fundamentais da psique humana permanecem 
inalteradas. Vejamos: 
● Amplificação. A produção massiva de dados e o uso de algoritmos para 
coletar e analisar informações sobre o comportamento e as interações dos 
usuários têm implicações profundas na sociedade contemporânea. Esses 
mecanismos, inicialmente desenvolvidos para otimizar a experiência do 
usuário e personalizar conteúdos, podem inadvertidamente reforçar 
estereótipos e amplificar diferenças sociais, resultando em polarização e 
conflitos crescentes. De acordo com Paz, Carvalho e Dib (2023), nas redes 
sociais os algoritmos frequentemente priorizam conteúdos que geram mais 
engajamento, o que pode incluir postagens polarizadoras ou controversas. 
Algoritmos tendenciosos, por exemplo, podem exacerbar o racismo ao 
recomendar conteúdos que reforçam preconceitos existentes, criando um 
ciclo de retroalimentação negativa que promove a exclusão e a 
marginalização de grupos minoritários . Além disso, o ambiente virtual 
amplifica as agressões, uma vez que sua disseminação é mais rápida e a 
permanência mais duradoura. Não se pode duvidar que o dano gerado 
também será muito maior. 
● Homogeneização e estereotipização. A facilidade de acesso à informação no 
meio digital, aliada à percepção de se estar em um território livre, facilita a 
formação de grupos homogêneos nas redes sociais, nos quais diferenças 
sutis são exacerbadas para se criar uma sensação de identidade distinta, em 
oposição ao outro. Essa dinâmica promove a homogeneização dentro dos 
grupos, ao mesmo tempo que estereotipiza e marginaliza os demais grupos. 
Souza, Simão e Caetano (2014) afirmam que o uso dos algoritmos pelas 
plataformas digitais favorece a criação de bolhas de informação pois os 
usuários são constantemente expostos a conteúdos que reforçam suas 
crenças preexistentes. Assim, o contato com informações divergentes se 
torna cada vez mais raro e as representações de grupos externos são 
frequentemente reduzidas a caricaturas simplificadas e negativas. 
● Ciberbullying. Trata-se de uma forma de assédio ou agressão que ocorre por 
meio de plataformas digitais para propagação dos atos de violência 
psicológica, emocional ou social contra uma pessoa ou grupo. Suas 
principais características consistem na repetição, intenção de causar dano, 
anonimato, ampla difusão e inescapabilidade. Souza, Simão e Caetano (2014) 
afirmam que os algoritmos que privilegiam conteúdos que geram alto 
engajamento, mesmo que negativos, amplificam a extensão da agressividade 
do ciberbullying, uma vez que a vítima será atacada repetidamente (a cada 
visualização). Outro ponto salientado pelos autores é a possibilidade de que 
as agressões sejam perpetuadas indefinidamente, dado que os conteúdos na 
internet podem ser replicados e disseminados sem controle. Isso cria um 
ciclo contínuo de violência, em que a vítima não encontra escape fácil, 
exacerbando sentimentos de impotência e isolamento (Souza; Simão; 
Caetano, 2014). 
● Caricaturização do outro. Quando traços distintivos entre grupos/pessoas 
são exagerados, eles se transformam em estereótipos que reduzem a 
complexidade do outro a uma caricatura simplificada e frequentemente 
negativa. Tal processo não apenas reforça preconceitos e discriminações já 
existentes, mas, também, desumaniza o outro, tornando-o alvo fácil de 
ridicularização. Fuks e Farias (2007) afirmam que a caricatura, por ser uma 
representação simplificada e distorcida, facilita a manutenção de 
preconceitos, pois reduz o outro a um conjunto de características negativas 
que podem ser facilmente desqualificadas ou ridicularizadas. Essa dinâmica 
é particularmente visível nas interações on-line,em que a velocidade de 
compartilhamento e a falta de nuances nos diálogos contribuem para a 
propagação de estereótipos e a intensificação dos conflitos. O impacto 
psíquico desse processo sobre os indivíduos marginalizados é significativo. A 
constante exposição a representações caricaturais pode levar a sentimentos 
de inferioridade, isolamento e sofrimento psicológico. A internalização 
desses estereótipos pode reforçar a alienação dos indivíduos, que, já 
marginalizados, se veem ainda mais afastados da possibilidade de 
reconhecimento e aceitação social, de acordo com Fuks e Farias (2007). 
● Alienação e vazio existencial. O individualismo narcisista que caracteriza a 
cultura contemporânea é frequentemente apontado como uma das causas 
do aumento dos sentimentos de vazio existencial e alienação. Esse tipo de 
individualismo, centrado em si mesmo e na busca incessante por 
reconhecimento e validação externa, contribui para a fragmentação social e o 
isolamento, ao mesmo tempo que exacerba sintomas de depressão e 
ansiedade. A ênfase nas pequenas diferenças, intensificada pelo narcisismo, 
leva a uma fragmentação ainda maior das relações sociais. Em vez de 
construir pontes, as mínimas distinções são exageradas, o que enfraquece o 
senso de comunidade e pertencimento. Esse processo de fragmentação não 
só promove o isolamento dos indivíduos, mas também alimenta a alienação, 
uma vez que as conexões autênticas com os outros se tornam cada vez mais 
difíceis de alcançar. (Fuks e Farias, 2007). Todo esse contexto ainda irá gerar 
um sentimento de vazio existencial, uma vez que os indivíduos irão perceber 
que a busca por autoafirmação mediante comparações sociais e 
diferenciação do outro não lhes traz o sentido ou a satisfação esperados. 
Esse vazio é frequentemente acompanhado por sentimentos de inutilidade, 
perda de propósito e desesperança, sintomas comuns em quadros de 
depressão e ansiedade , de acordo com Fuks e Farias (2007). 
TEMA 5 – UMA OUTRA FORMA DE OLHAR O MEIO DIGITAL 
Simone Weil (1996), em seu livro A condição operária e outros estudos sobre a 
opressão, vai nos dizer que a violência se apresenta banalizada e naturalizada, 
acarretando uma cultura que adota a indiferença perante o sofrimento do outro 
como tônica para relações desumanizadas e destrutivas de subjetividades. Essas 
conexões humanas balizadas pelos valores capitalistas da concorrência, do 
individualismo, da dominação e da exploração destroem a essência humana e 
transformam os sujeitos em coisas. 
A violência pode ser medida por diversas formas: números de homicídios, 
estupros, roubos, furtos, sequestros, prisões... Contudo, existem diferentes 
indicadores de violência que são tão ou mais importantes que esses, tais como: 
expectativa de vida, taxa de analfabetismo, desigualdade social, entre tantos outros. 
Por trás dessas modalidades de violência que podem ser mensuradas existe uma 
outra: a violência cultural. Ela refere-se aos aspectos da cultura simbólica da 
existência humana que são contidos na linguagem, nas artes, na religião, na 
educação, nos meios de comunicação e em tantos outros lugares. Esse conceito foi 
desenvolvido por Johan Galtung (1990) e, segundo ele, tal violência pode ser um 
meio para justificar e/ou legitimar as demais formas. 
Ao estudar o narcisismo das pequenas diferenças, uma questão surge em 
nossas mentes: ele poderia ser utilizado ou ser a origem para essa violência cultural 
e, consequentemente, para todas as demais? Vimos o quanto o meio digital é eficaz 
para a manutenção da segregação e da exclusão. Contudo, ele é apenas um 
instrumento... A decisão de como usá-lo compete a nós! As plataformas digitais 
alcançam milhões de pessoas em tempo real e, quando utilizadas de forma 
consciente, têm o potencial de educar e sensibilizar sobre as dinâmicas de exclusão 
e hostilidade que podem surgir da amplificação de pequenas diferenças. As 
campanhas de sensibilização e programas educacionais podem ajudar a desmontar 
estereótipos e transformar a mentalidade de um público vasto, promovendo uma 
cultura de respeito, inclusão e solidariedade. 
Instituições educacionais, organizações não governamentais e outras entidades 
podem desempenhar um papel vital na criação e disseminação de materiais 
educativos e de sensibilização. Ao trabalhar em conjunto com plataformas digitais, 
essas instituições podem criar programas de aprendizado que não apenas 
informem, mas também envolvam os usuários de forma interativa e prática. 
O meio digital também facilita o diálogo intercultural, que é uma ferramenta 
essencial para reduzir tensões entre diferentes grupos sociais e culturais. O meio 
digital, com sua capacidade de conectar pessoas de todas as partes do mundo 
instantaneamente, oferece um espaço único para o florescimento desse diálogo, 
permitindo que pessoas de diversas origens compartilhem suas perspectivas, 
tradições e valores. Essas interações proporcionam oportunidades e perspectivas 
que desafiam seus (pre)conceitos. 
Ao utilizar diferentes plataformas digitais para campanhas de sensibilização e 
projetos educacionais, para promoção de um diálogo intercultural, estamos 
transformando um local que antes ampliava barreiras a um que promove inclusão e 
diversidade. Ao criar e compartilhar conteúdos que destacam as histórias, 
experiências e contribuições de diferentes grupos, a internet pode ajudar a 
sensibilizar e educar o público sobre a importância da diversidade. Além disso, pode 
fornecer visibilidade a grupos que historicamente foram marginalizados, 
oferecendo-lhes um local para expressar suas vozes e perspectivas. Essa 
visibilidade é fundamental para a desconstrução de estereótipos, permitindo que o 
público em geral veja além das generalizações simplificadas e compreenda a 
complexidade e a riqueza das identidades humanas. 
Dessa forma, conseguiríamos combater a miséria psicológica, uma vez que não 
precisaríamos mais nos proteger de ameaças imaginárias e, assim, estaríamos 
libertos para o estabelecimento de vínculos mais genuínos, baseados na confiança, 
respeito e empatia. A desintegração dos laços sociais e a fragmentação da 
sociedade não seriam mais uma realidade. Um sonho? Talvez... Talvez fosse melhor 
encarar tudo isso como um projeto, pois assim seríamos desafiados a encontrar 
formas de viabilizar tais mudanças. 
Podemos começar a pensar seriamente na implementação de sistemas de 
monitoramento e moderação de conteúdos em ambientes digitais para combater a 
exclusão e a hostilidade que podem surgir nessas plataformas. A criação de 
ambientes digitais mais seguros e inclusivos depende diretamente da capacidade 
de identificar e remover tais conteúdos de maneira eficaz e rápida. A combinação de 
ferramentas de inteligência artificial (que podem analisar grandes volumes de dados 
em tempo real e identificar padrões de linguagem e comportamento que indiquem 
conteúdos problemáticos) com o conhecimento especializado de profissionais de 
saúde mental pode criar sistemas robustos que não apenas protejam os indivíduos, 
mas também promovam uma cultura de respeito e cooperação on-line. 
Podemos, portanto, afirmar que a promoção de uma cultura de respeito, 
inclusão e solidariedade no meio digital depende de ações conjuntas e coordenadas 
entre as plataformas digitais, as instituições educacionais, o Estado e a sociedade 
como um todo. Pode parecer, sem dúvida, algo difícil de ser alcançado, mas, se 
encararmos a construção de uma sociedade mais justa e equitativa como um 
projeto coletivo, daremos os primeiros passos rumo a um futuro em que a 
diversidade seja celebrada e a exclusão seja combatida de forma eficaz. 
NA PRÁTICA 
Veremos, agora, um recorte clínico de como o bullying pode afetar um 
adolescente. Ressaltamos que todos os dados e nomes foram alterados para que a 
privacidade e a confidencialidade das informações fossem preservadas. 
Em conversa comJoão, ele disse que estava em um colégio novo e que não havia 
se adaptado bem. Durante as sessões seguintes, João disse que estava sofrendo 
bullying por ser o mais inteligente da sala e que seus colegas haviam descoberto que 
ele era homossexual. 
FINALIZANDO 
A psicanálise é realmente muito bonita, não é mesmo? Ela nos oferece 
ferramentas valiosas para entender como nossas dinâmicas internas estão 
diretamente ligadas às relações sociais e às estruturas culturais nas quais estamos 
inseridos. Freud (2020a, 2020b) nos mostrou como o narcisismo pode reforçar 
divisões e ampliar conflitos, tanto no nível das relações interpessoais quanto na 
sociedade como um todo. Essa compreensão nos permite reconhecer que as 
pequenas diferenças, muitas vezes vistas como ameaças, têm um impacto 
significativo na coesão social, levando à exclusão, à discriminação e à perpetuação 
de ciclos de hostilidade. 
É impressionante, não é mesmo? Esperamos que tenha gostado desta 
abordagem e se sentido provocado(a) a ampliar os estudos e a refletir mais sobre o 
tema. Vamos adiante?

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