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8
TEXTO 1:
 UMA INTRODUÇÃO À ANTROPOLOGIA CULTURAL
O QUE É ANTROPOLOGIA?
A ciência que estuda as culturas humanas é chamada antropologia.
É uma disciplina que investiga as origens, o desenvolvimento e as semelhanças das sociedades humanas assim como as diferenças entre elas. A palavra antropologia deriva de duas palavras gregas: anthropos, que significa "homem" ou "humano"; e logos, que significa "pensamento" ou "razão". Os antropólogos comumente investigam as formas de desenvolvimento do comportamento humano, objetivando descrever integralmente os fenômenos sócio-culturais.
II) OS CAMPOS DE ESTUDO DA ANTROPOLOGIA:
A ciência antropológica é comumente dividida em duas esferas principais: a antropologia biológica (ou física) e a antropologia cultural (ou social). Cada uma delas atua em campos de estudo mais ou menos independentes, pois especialistas numa área freqüentemente consultam e cooperam com especialistas na outra área.
A antropologia biológica é geralmente classificada como uma ciência natural, enquanto a antropologia cultural é considerada uma ciência social. A antropologia biológica, como o nome já indica, dedica-se aos aspectos biológicos dos seres humanos. Busca conhecer as diferenças ditas raciais e étnicas, a origem e a evolução da humanidade. Os antropólogos desta área de conhecimento estudam fósseis e observam o comportamento de outros primatas. 
A antropologia cultural dedica-se primordialmente ao desenvolvimento das sociedades humanas no mundo. Estuda os comportamentos dos grupos humanos, as origens da religião, os costumes e convenções sociais, o desenvolvimento técnico e os relacionamentos familiares. Um campo muito importante da antropologia cultural é a lingüística, que estuda a história e a estrutura da linguagem. A lingüística é especialmente valorizada porque os antropólogos se apóiam nela para observar os sistemas de comunicação e apreender a visão do mundo das pessoas. Através desta ciência também é possível coletar histórias orais do grupo estudado. História oral é constituída na sociedade a partir da poesia, das canções, dos mitos, prov][‘érbios e lendas populares. 
A antropologia cultural e biológica conectam-se com outros dois campos de estudo: a arqueologia e a antropologia aplicada. Nas escavações, os arqueólogos encontram vestígios de prédios antigos, utensílios, cerâmica e outros artefatos pelos quais o passado de uma cultura pode ser datado e descrito (pesquisar Arqueologia).
A Antropologia cultural consiste no estudo do homem como produtor e transformador da natureza e enquanto membro de uma sociedade e de um dado sistema de valores(conjunto de características morais ) e de representações. Para a Antropologia cultural, o homem é um ser de cultura pois, mais do que um animal que inventa objetos, ele é o único animal capaz de pensar o seu próprio pensamento (reflexão).
Outras duas diferentes esferas da Antropologia são: a) Antropologia Biológica, b) Arqueologia.
Antropologia Biológica = estudo do homem enquanto ser biológico, dotado de um aparato físico e uma carga genética, com um percurso evolutivo definido e relações específicas com outras ordens e espécies de seres vivos;
Arqueologia = estudo do homem no tempo, através dos monumentos, restos de moradas, documentos, armas, obras de arte e realizações técnicas que foi deixando no seu caminho enquanto civilizações davam lugar a outras no curso da história. Os arqueólogos tem como objetivo estudar as sociedades do passado.
Neste estudo nos interessa, particularmente, a Antropologia Cultural e é por isso que, agora, vamos nos deter por um momento em estudar a sua história, seu surgimento e desenvolvimento, investigando seus temas e principais autores.
BREVE HISTÓRICO DA ANTROPOLOGIA CULTURAL:
1) O século XVIII
Até o século XVIII, o saber antropológico esteve presente na contribuição dos cronistas, viajantes, soldados, missionários e comerciantes que discutiam, em relação aos povos que conheciam, a maneira como estes viviam a sua condição humana, cultivavam seus hábitos, normas, características, interpretavam os seus mitos, os seus rituais, a sua linguagem. Só no século XVIII, a Antropologia adquire a categoria de ciência, partindo das classificações de Lineu e tendo como objeto a análise das "raças humanas".
O legado(algo de valor) desta época foram os textos que descreviam as terras, (a Fauna, a Flora, a Topografia) e os povos “descobertos” (Hábitos e Crenças). Algumas obras que falavam dos indígenas brasileiros, por exemplo, foram: a carta de Pero Vaz de Caminha (“Carta do Descobrimento do Brasil”), os relatos de Staden, “Duas Viagens ao Brasil”, os registros de Jean de Léry, a “Viagem a Terra do Brasil”, e a obra de Jean Baptiste Debret, a “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Além destas, outras obras falavam ainda das terras recém descobertas, como a carta de Colombo aos Reis Católicos. Toda esta produção escrita levantou uma grande polêmica acerca dos indígenas. A contribuição dos missionários jesuítas na América (como Bartolomeu de Las Casas e Padre Acosta) ajudaram a desenvolver a denominada “teoria do bom selvagem”,(o homem nasceu bom e livre, a sociedade que o corompe) que via os índios como detentores de uma natureza moral pura, modelo que devia ser assimilado pelos ocidentais. Esta teoria defendia a idéia de que a cultura mais próxima do estado "natural" serviria de remédio aos males da civilização.
2) O século XIX
No Século XIX, por volta de 1840, Boucher de Perthes utiliza o termo homem pré-histórico para discutir como seria sua vida cotidiana, a partir de achados arqueológicos, como utensílios de pedra, cuja idade se estimava bastante remota. Posteriormente, em 1865, John Lubock reavaliou numerosos dados acerca da Cultura da Idade da Pedra e compilou uma classificação em que enumerava as diferenças culturais entre o Paleolítico e Neolítico.
Com a publicação de dois livros, A Origem das Espécies, em 1859 e A descendência do homem, em 1871, Charles Darwin principia a sistematização da teoria evolucionista. Partindo da discussão trazida à tona por estes pesquisadores, nascia a Antropologia Biológica ou Antropologia Física.
 A antropologia evolucionista
Marcada pela discussão evolucionista, a antropologia do Século XIX privilegiou o Darwinismo Social, que considerava a sociedade europeia da época como o apogeu(ponto alto) de um processo evolucionário, em que as sociedades aborígenes(primeiros povos habitantes da Austrália) eram tidas como exemplares "mais primitivos". Esta visão usava o conceito de “civilização” para classificar, julgar e, posteriormente, justificar o domínio de outros povos. Esta maneira de ver o mundo a partir do conceito civilizacional de superior, ignorando as diferenças em relação aos povos tidos como inferiores, recebe o nome de etnocentrismo. É a «Visão Etnocêntrica», o conceito europeu do homem que se atribui o valor de “civilizado”, fazendo crer que os outros povos, como os das Ilhas da Oceania estavam “situados fora da história e da cultura”. Esta afirmação está muito presente nos escritos de Pauw e Hegel.
Teoria
Com fundamento nestas concepções, as primeiras grandes obras da antropologia, consideravam, por exemplo, o indígena das sociedades não européias como o primitivo, o antecessor do homem civilizado: afirmando e qualificando o saber antropológico como disciplina, centrando o debate no modo como as formas mais simples de organização social teriam evoluído, de acordo com essa linha teórica essas sociedades caminhariam para formas mais complexas como as da sociedade européia.
Nesta forma de apreender a experiência humana, todas as sociedades, mesmos as desconhecidas, progrediriam em ritmos diferentes, seguindo uma linha evolutiva. Isso balizou a idéia de que a demanda colonial seria "civilizatória", pois levaria os povos ditos "primitivos" ao "progresso tecnológico-científico" das sociedades tidas como "civilizadas". Há que ver estes equívocos como parte da visão de mundo que pretendiam estabelecer as diretrizes de umalei universal de desenvolvimento.
ESQUEMA DA HISTÓRIA DA ANTROPOLOGIA
I - Século XVI: Início da reflexão antropológica
A gênese da reflexão antropológica é contemporânea à descoberta do Novo Mundo (Renascimento/Grandes Navegações).
A questão que se coloca: “aqueles que acabaram de serem descobertos pertencem à humanidade?” (confronto com a alteridade).
Critérios usados pelos europeus para julgar se convém conferir aos índios um estatuto humano:
critério religioso: eles possuem uma alma?
critério da aparência física: eles estão nus ou vestidos de peles de animais.
critério dos comportamentos alimentares: eles comem carne crua e praticam o canibalismo.
critério da inteligência tal como pode ser apreendida a partir da linguagem: eles falam uma língua ininteligível.
Donde se conclui que este “outro”, este “estranho”, é portanto aquele:
que não acredita em Deus / não tem alma;
que é assustadoramente feio / não é “branco” e não se veste “civilizadamente”;
alimenta-se como um animal;
não tem acesso à linguagem / não possui inteligência.
*Este pensamento faz do SELVAGEM o inverso do CIVILIZADO.
II - Século XIX: a Antropologia Tradicional ou Evolucionista
É no século XIX que a Antropologia se constitui como ciência.
Neste período a Antropologia estava ligada a uma concepção evolucionista (1) de Homem, classificando-o em primitivo ou civilizado de acordo com seu desenvolvimento evolutivo.
Neste período a prática antropológica se interessava em descobrir as curiosidades “culturais” de povos exóticos fisicamente distantes.
O conceito de cultura presente nesse momento histórico era o de um conjunto de produções materiais de um certo grupo. Assim, o grupo que produzisse mais ou melhor objetos seria considerado dotado de mais cultura ou com uma cultura melhor que outro cuja produção fosse considerada mais tosca. A cultura estava, portanto, localizada fora do homem, sendo apenas produto material de sua evolução.
Os critérios para as comparações entre grupos eram extremamente preconceituosos e etnocêntricos (2), baseados em características morais da sociedade ocidental européia do século XIX e refletindo a política colonizadora européia da época.
As principais conseqüências desse pensamento evolucionista na Antropologia do século XIX são:
ao partir do evolucionismo, a Antropologia da época considerava homens com cultura diferente como sendo inferiores;
a intervenção de culturas “civilizadas” tornava-se obrigatória no sentido de fazer aqueles povos atrasados no tocante a desenvolvimento avançarem, para se tornarem também tão evoluídos quanto os europeus;
a Antropologia, em vez de contribuir para a justiça social e respeito às diferenças humanas, acabava constituindo-se em justificativa para a prática da colonização.
O principal representante da Antropologia Evolucionista foi o antropólogo norte-americano Lewis Henry Morgan (1818-1881), autor do livro “A Sociedade Arcaica” (1877).
III - Início do Século XX: a Antropologia Interpretativa
No final do século XIX e início do XX, com alguns pesquisadores interessados em realizar uma prática de campo mais constante e demorada em grupos nativos, os conceitos de Antropologia, de homem e de cultura começaram a se transformar. 
À medida que o antropólogo pesquisa in loco, ele compreende a lógica dos comportamentos dos nativos; qualquer atitude, por mais estranha que pareça inicialmente, começa a ser compreendida em um universo de significados que dá sentido aos comportamentos daquele grupo específico.
Consolidação da Antropologia como trabalho de campo (3): contribuição do antropólogo Bronislaw Malinowiski que mostrou a necessidade de interação entre o pesquisador (antropólogo) e seu objeto de estudo para se entender a dinâmica de uma cultura.
A Antropologia vai deixando de ser aquela ciência que apenas coleta curiosidades de povos exóticos para ser a área que procura compreender os homens nas suas particularidades culturais.
O homem deixa de ser classificado como inferior, primitivo ou selvagem, para ser um homem culturalmente diferente, com os mesmos direitos e possibilidades que qualquer outro ser humano ( Relativização (4) ).
A cultura deixa de ser apenas um critério material e externo ao homem para ser considerada como um processo dinâmico inerente a todos os humanos.
Dois importantes antropólogos deste período são Clifford Geertz e Marcel Mauss.
Clifford Geertz, antropólogo americano, foi o responsável pela criação da chamada Antropologia Interpretativa. Para ele, o papel da Antropologia resume-se a uma interpretação, sempre incompleta uma vez que o antropólogo não realiza observações frias e estáticas, mas interage com uma cultura dinâmica grávida de significados. Segundo Geertz, a Antropologia não é uma ciência experimental em busca de leis, mas uma ciência interpretativa à procura do significado. É nesse sentido que o texto antropológico produzido é uma construção, não que seja falso ou ficcional, mas porque se constitui numa interpretação sempre parcial do fenômeno observado.
Marcel Mauss, importante antropólogo francês, cunhou na década de 1920 o termo fato social total, importante na consideração do homem como totalidade ao mesmo tempo biológica, psicológica e sociológica. Para além do determinismo biológico ou psicológico na explicação do homem, Mauss considerava qualquer ação humana como sendo também um ato social, que ocorre dentro de uma configuração dada pelo meio em que o homem vive. Os três aspectos descritos por ele estariam presentes na unidade do comportamento humano, encarnadas na experiência do homem em seu grupo.
IV - Século XXI: A ampliação dos interesses da Antropologia
Hoje o objeto de pesquisa da Antropologia não está mais ligado a um espaço geográfico, cultural ou histórico particular, mas seu campo de atuação foi ampliado. A Antropologia não é mais “o estudo do que nos é estranho” (como pensa o senso comum), ou uma ciência que estuda tribos longínquas e exóticas. A Antropologia é, como no dizer de François Laplantine, “o estudo do homem em todas as suas práticas e os seus costumes”.
Segundo o antropólogo brasileiro Roberto Damatta, a dupla tarefa do antropólogo consiste em transformar o exótico em familiar (decifrar o que se lhe apresenta como estranho e incompreensível) e transformar o familiar em exótico (estranhar aquilo que à primeira vista é conhecido).
Assim é que, ao longo deste nosso curso, pretendemos lançar um “olhar antropológico” sobre a Educação Física e suas práticas de modo a mostrar as possibilidades de encontro entre ambas e contribuir para uma ampliação da noção de corpo da área da Educação Física.
Alguns conceitos importantes citados no texto:
1- Evolucionismo = doutrina científica desenvolvida pelo naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882) cujo modelo biológico da evolução das espécies foi, posteriormente, aplicado às sociedades humanas, entendendo que sua dinâmica seria dada pela lei da sobrevivência do mais apto na luta pela vida. Aplicada ao campo da Antropologia, a teoria evolucionista considera que toda a cultura de uma sociedade é resultado constante de um processo evolutivo.
2- Etnocentrismo (neologismo formado a partir do grego ethnos raça e do latim centrum centro ) = tendência dos indivíduos a tomar sua própria cultura ou sociedade como centro, modelo de referência e norma e a rejeitar assim a diversidade cultural. Segundo a definição do sociólogo francês Edgar Morin, o etnocentrismo é a tentativa de colocar no centro do universo – e considerar como medida de qualquer valor – seu próprio grupo étnico.
3- Trabalho de Campo = instrumento inaugurado na Antropologia por Malinowiski que consiste na ida em direção ao “outro”, na existência junto dele, para se repensar o próprio “eu” e assim comparar de forma relativizadora.
4- Relativização = atitude que consiste em pensar o “outro” nos seus próprios valores e não nos nossos. Relativizar é não transformar a diferença em hierarquia (superior/inferior, civilizado/primitivo),mas vê-la na sua dimensão de riqueza por ser diferença.(É o contrário do etnocentrismo).
TEXTO 2
A CULTURA
I) Ser Humano – Entre dois mundos
Se compararmos o corpo humano ao de muitos animais, veremos que ele não é tão capacitado quanto o deles para enfrentar uma série de dificuldades. Como ilustra o arqueólogo australiano Gordon Childe (1892-1957), o homem não tem, por exemplo, um couro peludo como o do urso para manter o calor do corpo num ambiente frio. O corpo humano também não é excepcionalmente bem adaptado à fuga, à defesa própria ou à caça. Não tem a capacidade de correr como uma lebre ou um avestruz. Não tem a coloração protetora do tigre ou a armadura defensiva da tartaruga ou da lagosta. Não tem asas para voar e dar-lhe a vantagem de espionar e localizar sua caça. Faltam-lhe o bico, as garras e a acuidade do gavião. No entanto, conclui: 
“O ser humano pode ajustar-se a um número maior de ambientes do que qualquer outra criatura, multiplicar-se infinitamente mais depressa do que qualquer mamífero superior, e derrotar o urso polar, a lebre, o gavião e o tigre, em seus recursos especiais.
Pelo controle do fogo e pela habilidade de fazer roupas e casas, o homem pode viver, e vive e viceja, desde os pólos da Terra até o equador. Nos trens e automóveis que constrói, pode superar a mais rápida lebre ou avestruz. Nos aviões e foguetes pode subir mais alto do que a águia, e, com os telescópios, ver mais longe do que o gavião. Com armas de fogo pode derrubar animais que nenhum tigre ousaria atacar. 
Mas fogo, roupas, casas, trens, automóveis, aviões, telescópios e armas de fogo não são parte do corpo do homem. Eles não são herdados no sentido biológico. O conhecimento necessário para sua produção e uso é parte do nosso legado social. Resulta de uma tradição acumulada por muitas gerações e transmitida, não pelo sangue, mas através da linguagem (fala e escrita). 
A compensação que o homem tem pelos seus dotes corporais relativamente pobres é o cérebro grande e complexo, centro de um extenso e delicado sistema nervoso, que lhe permite desenvolver sua própria cultura.”
CHILDE, Gordon. A evolução cultural do homem, p. 40-1. 
Assim, ao contrário dos outros animais, os homens não são apenas seres biológicos produzidos pela natureza. Os homens são seres culturais que modificam o estado da natureza.
1) A síntese humana:
O comportamento de grande parte dos animais é basicamente determinado por reflexos e instintos vinculados a estruturas biológicas hereditárias. Isso faz com que o comportamento de um inseto seja praticamente igual ao de outro de sua espécie, hoje e sempre. Comprova-se isso observando, por exemplo, a atividade das abelhas nas colméias ou das aranhas tecendo as teias. 
Há animais, contudo, mais livres do que outros da dependência dos instintos ou reflexos automáticos. Nesse caso, seu comportamento será mais flexível, mais imprevisível, mais maleável às circunstâncias ambientais. Dependendo do animal, podemos encontrar atos inteligentes e uma capacidade elementar de raciocínio. É o caso, por exemplo, de chimpanzés e gorilas. 
Entretanto, há grande abismo entre o comportamento dos animais e dos seres humanos. Mesmo o chimpanzé mais evoluído apresenta apenas rudimentos do raciocínio que permitiria a construção da linguagem simbólica e de tudo que dela resulta: aprender, reelaborar o conteúdo aprendido e fazer surgir o novo (inventar). A vida de cada animal é, em grande medida, uma repetição do padrão básico vivido pela sua espécie. Já o ser humano, individualmente, é capaz de romper com o passado, questionar o presente e criar a novidade futura. Ele não nasce pronto pelas "mãos da natureza". Sua vida depende do parto de si mesmo, num processo de "nascer sem parar". [1: Linguagem simbólica: sistema de símbolos, isto é, signos que, por convenção, representam alguma coisa. Por exemplo, as línguas portuguesa, inglesa etc.]
Nesse sentido, o comportamento humano é fundamentalmente diferente do dos animais. Graças ao desenvolvimento de seu psiquismo, o homem tornou-se, simultaneamente, um ser biológico e cultural. Nele ocorre uma síntese, isto é, uma integração de características hereditárias e adquiridas, aspectos individuais e sociais, elementos do estado de natureza e de cultura. 
Por isso, O ser humano é contraditório, ambíguo, instável e dinâmico. Um produto da natureza e da cultura e, ao mesmo tempo, um transformador da natureza e da cultura. Criatura e criador do mundo em que vive. Um ser capaz de, em muitos aspectos, dominar a natureza mesmo fazendo parte dela. Capaz não só de criar coisas extraordinárias mas também de destruir de modo devastador. Capaz de acumular um saber imenso e, no entanto, permanecer angustiado por dúvidas profundas que o fazem sempre propor novas perguntas e novos problemas a si próprio. 
Mediante a cultura, o ser humano criou para si um "mundo novo", diferente do cenário natural originalmente encontrado. Em outras palavras, dentro da biosfera (a parte do planeta que reúne condições para o desenvolvimento da vida), os humanos foram construindo a antroposfera (a parte do mundo que resulta do ajustamento da natureza às necessidades humanas). Essa antroposfera, criada pelas diferentes culturas, é a morada do ser humano no mundo. Ela constitui o cosmo humano, um espaço construído pelos conhecimentos e realizações desenvolvidos e compartilhados pelos diferentes grupos sociais. 
2) Natureza e Cultura:
Quando falamos de natureza e cultura, pode surgir uma dupla questão: onde acaba a natureza e começa a cultura? 
O tema é polêmico. Alguns estudiosos afirmam que não há um limite rígido entre natureza e cultura. Outros dizem que um provável indicador desse limite seria a construção de instrumentos de trabalho. Outros ainda, como o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1908-), acreditam que a linha de separação entre natureza e cultura não seria a criação de utensílios ou instrumentos, mas a presença da linguagem simbólica:
 Suponhamos que num planeta desconhecido encontremos seres vivos que fabricam utensílios. Isso não nos dará a certeza de que eles se incluem na ordem humana. Imaginemos, agora, esbarrarmos com seres vivos que possuam uma linguagem que, por mais diferente que seja da nossa, possa ser traduzida para nossa linguagem - seres, portanto, com os quais poderíamos nos comunicar. Estaríamos, então, na ordem da cultura e não mais da natureza. 
LÉVI-STRAUSS, Claude. Culture et langage. Apud CUVILLIER, Amoud. Sociologia da cultura, p. 2. 
Já para Karl Marx, filósofo alemão do século XIX, é o trabalho que possibilita a distinção entre ser humano e animais; portanto, entre cultura e natureza. É a partir do trabalho, e da forma como se dá o processo de produção da vida material dos homens, que todas as outras formas de manifestações humanas se desenvolvem. Ele afirma: "Pode-se considerar a consciência, a religião e tudo o que se quiser como distinção entre os homens e os animais; porém esta distinção só começa a existir quando os homens iniciam a produção dos seus meios da vida". 
Para Marx, portanto, é o modo como os homens constroem sua vida material que dá origem à organização da vida espiritual e das relações sociais, formando um conjunto que constitui a cultura. Assim, não podemos falar de cultura no singular, mas sim de culturas, pois elas são múltiplas e variáveis, de acordo com a diversidade dos modos de ser e viver das coletividades humanas. 
Mas, se o trabalho é o momento inaugural da vida propriamente humana, a linguagem não deixa de ser uma das dimensões mais importantes da cultura, pois é ela que permite o intercâmbio das aquisições culturais.
Num sentido restrito, linguagem é o meio de comunicação humano que utiliza um código sonoro verbal (as palavras) para expressar idéias, sentimentos e desejos, entre outras coisas. Exemplos desses códigos da linguagem verbal são as línguas, como o português, o inglês, o espanhol, o russo, o japonês. Numsentido amplo, o termo linguagem também é empregado para referir-se a outras formas de comunicação não-verbais: são as linguagens dos gestos, da música, da pintura etc. 
Assim, é a produção dos diversos códigos lingüísticos pelo homem que permite aos membros de uma comunidade se comunicarem a respeito dos inúmeros objetos da realidade: do passado, do presente ou do futuro. 
II) Cultura: a resposta do homem ao desafio da existência
Falamos até agora sobre essa distinção entre natureza e cultura. Mas o que queremos dizer exatamente quando usamos a palavra cultura? 
A palavra cultura é utilizada com diferentes significados. Os biólogos, por exemplo, se referem à criação de certos animais falando em cultura de germes, cultura de carpas etc. 
Na linguagem cotidiana dizemos que uma pessoa tem cultura quando freqüentou boas escolas, leu bons livros, adquiriu conhecimentos científicos etc. 
Na Grécia Antiga o termo cultura adquiriu uma significação toda especial, ligada à formação individual do homem. Correspondia à chamada paidéia, processo pelo qual o homem realizava sua verdadeira natureza desenvolvendo a filosofia (conhecimento de si e do mundo) e a consciência da vida em comunidade. 
Em todas essas acepções de cultura podemos perceber uma idéia básica de desenvolvimento, formação e realização. 
Usada por antropólogos, historiadores e sociólogos, a palavra cultura designa o conjunto dos modos de vida criados e transmitidos de uma geração para outra, entre os membros de determinada sociedade. Nesse sentido, abrange conhecimentos, crenças, artes, normas, costumes e muitos outros elementos adquiridos socialmente pelos homens. 
A cultura pode ser considerada, portanto, um amplo conjunto de conceitos, símbolos, valores e atitudes que modelam uma sociedade. Abrange o que pensamos, fazemos e temos como membros de um grupo social. 
Nesse sentido, todas as sociedades humanas, da pré-história aos dias atuais, possuem uma cultura. E cada cultura tem seus próprios valores e sua própria verdade. 
Podemos acrescentar, por fim, e numa abordagem mais filosófica, que cultura é a resposta oferecida pelos grupos humanos ao desafio da existência Uma resposta que se manifesta em termos de conhecimento (logos), paixão (pathos) e comportamento (ethos). Isto é, em termos de razão, sentimento e ação. 
1) Características da cultura:
O arqueólogo norte-americano Robert Braidwood procurou indicar os principais elementos que caracterizam a cultura:
“,A cultura é duradoura embora os indivíduos que compõem um determinado 'grupo desapareçam. No entanto, a cultura também se modifica conforme mudam as normas e entendimentos. 
Quase se pode dizer que a cultura vive nas mentes das pessoas que a possuem. Mas as pessoas não nascem com ela; adquirem-na à medida que crescem. Suponha que um bebê húngaro recém-nascido seja adotado por uma família residente nos Estados Unidos, e que nunca digam a essa criança que ela é húngara. Ela crescerá tão alheia à cultura húngara quanto qualquer outro americano. 
Assim, quando falo da antiga cultura egípcia, refiro-me a todo o conjunto de entendimentos, crenças e conhecimentos pertencentes aos antigos egípcios. Significa, por exemplo, tanto suas crenças sobre o que faz o trigo crescer, quanto sua habilidade para fazer os implementos necessários à colheita. Ou seja, suas crenças a respeito da vida e da morte. 
Quando falo de cultura, estou pensando em algo que perdurou através do tempo. Se qualquer egípcio morresse, mesmo que fosse o faraó, isso não afetaria a cultura egípcia daquele momento determinado.”
BRAIDWOOD, Robert. Homens pré-históricos, p. 41-2. 
Vários estudiosos concordam com os elementos apontados por Braidwood, caracterizando a cultura como:
Adquirida pela aprendizagem, e não herdada pelos instintos;
Transmitida de geração a geração, através da linguagem, nas diferentes sociedades;
Criação exclusiva dos seres humanos, incluindo a produção material e não material;
Múltipla e variável, no tempo e no espaço, de sociedade para sociedade.
TEXTO 3:
 
A RUPTURA NATUREZA/CULTURA NA EDUCAÇÃO FÍSICA
	Passamos a vida utilizando certas palavras e, muitas vezes, não nos damos conta dos significados que elas possuem. Em nossa área, o tradicional termo educação física traz embutido o significado de uma oposição entre natureza e cultura; ou, em outros termos, entre o inato e o adquirido. Essa oposição, na maioria das vezes, ocorre inconscientemente, pelo próprio fato de fazer parte da tradição da área. Pretendemos, neste trabalho, discutir o significado do termo educação física e algumas de suas conseqüências, tanto no nível da atuação profissional escolar como no meio acadêmico. A partir daí, esperamos propor uma abordagem cultural, com raízes na antropologia social, que resolveria a falsa oposição entre natureza e cultura que persiste historicamente na educação física. 
	A distinção entre natureza e cultura na educação física refere-se ao fato de que há um processo educacional (cultura) sobre o físico do homem (natureza). Esta dicotomia pode ser entendida de outra forma: há um patrimônio inato no homem que precisa de alguns ajustes, a fim de que ele adquira determinadas capacidades que o habilitem a uma vida social. Há uma ordem da natureza e uma ordem da cultura, vindo a segunda se sobrepor à primeira. 
	É interessante notar que quando se fala do físico, do aspecto inato ou de sua natureza, quase sempre está-se referindo ao nível biológico. E quando se fala de educação, ou do aspecto adquirido, refere-se ao nível sociocultural. Nesta linha de pensamento entende-se sempre os níveis biológico e cultural como complementares, um vindo em seqüência a partir do ponto em que o outro não dá conta de todas as respostas. Isto porque os dois níveis, embora relacionados e complementares, são vistos como separados. 
	Essas concepções de natureza e cultura estão ancoradas nas idéias de Jean-Jacques Rousseau, que viveu no século XVIII. Para ele, o homem nascia com uma natureza potencialmente boa, cabendo à sociedade, ao "contrato social", - para utilizar um termo do próprio Rousseau - garantir e preservar a natureza original do homem. Em sua obra Emílio, publicada em 1762, Rousseau descrevia o processo de educação de um garoto, a fim de que ele atingisse a plenitude permitida por seu potencial. Nesse processo educacional de um indivíduo originalmente bom, havia espaço para uma educação corporal responsável pelo desenvolvimento harmônico também deste aspecto do ser humano. O interessante desta educação física de Rousseau era sua compreensão, em primeiro lugar, como uma "educação negativa", no sentido de impedir uma infuência social indesejável, já que a natureza do homem era perfeita. A "educação positiva" viria somente quando a criança adquirisse consciência de suas relações com os semelhantes. 
	A educação física brasileira de hoje ainda está presa à desvinculação entre o aspecto natural e o aspecto cultural do homem, como propunha Rousseau no século XVIII. Podemos ver essa infuência nos dias de hoje, tanto na prática escolar de educação física como na discussão acadêmica da área. Nas escolas de primeiro e 2º graus, essa separação está presente quando vemos professores classificando alunos em aptos ou inaptos, como se o critério para estar num ou noutro grupo fosse condição inata. Segundo essa concepção, alguns alunos nascem bons e merecem atenção maior dos professores no sentido de um aperfeiçoamento técnico para o ingresso nas equipes esportivas representativas da escola. Outros, com menor sorte, nascem com maiores dificuldades e serão, no máximo, medianos. 
	Em outro trabalho afirmamos que a educação física escolar possui hoje a tendência à biologização, naturalização e, portanto, universalização do corpo humano, tendência essa que leva à busca da homogeneização do grupo de alunos. As diferenças entre os alunos, quando percebidas, o são em função da natureza do corpo: algunscorpos são naturalmente melhores e outros são naturalmente piores (Daolio, 1993). 
	O aspecto grave deste raciocínio é justamente o de reduzir uma questão que é também pedagógica, social e cultural ao nível natural. Assim, a explicação é mais fácil e podemos nos eximir de qualquer responsabilidade pedagógica ou social. É esse tipo de raciocínio que encontramos, por exemplo, entre alguns professores quando se defrontam com uma classe de adolescentes. Afirmando que os adolescentes são rebeldes por natureza, eles acabam criando uma expectativa negativa em relação ao programa a ser desenvolvido, tendo, inclusive, de antemão, as causas para o provável fracasso do processo. 
	No meio acadêmico, a discussão que ocorre entre os defensores de um ou de outro aspecto, se avançou nos últimos anos, ainda não resolveu a separação entre o natural e o cultural. Fala-se hoje em diferentes níveis de análise, e que um pesquisador, pelo próprio desenvolvimento da ciência, não tem como abarcar todos os níveis. Sendo assim, alguns preocupam-se com o nível microscópico (celular, muscular etc.) e outros trabalham no nível macroscópico (social, cultural etc.). 
	Essa discussão acadêmica já foi menos polida do que é hoje. No início dos anos 80, quando teve início uma proliferação de discursos na educação física, que passou a confrontar a até então concepção hegemônica de aptidão física, respaldada nas ciências biológicas, os embates acadêmicos chegaram próximos às vias de fato. De um lado, os médicos, os defensores do esporte, os biólogos, os estudiosos da aprendizagem motora e do desenvolvimento motor, alguns representantes da psicologia comportamental, da psicologia cognitiva e da psicanálise. De outro lado, os pedagogos, os sociólogos, estudiosos de tendência marxista e psicólogos da linha social. Os primeiros acusavam os segundos de falarem sobre sistema social, pobreza, classe social e não apresentarem uma proposta prática de educação física, perdendo, assim, a especificidade da área. Os segundos acusavam os primeiros de reducionistas e sua prática, de alienada, por desconsiderar o contexto em que ocorria. 
	Tanto no debate acadêmico como na atuação profissional escolar de educação física, a ruptura entre o biológico e o sociocultural ainda está presente. Cabe esclarecer aqui que não estamos atribuindo culpa a ninguém, nem aos professores que atuam nas escolas nem aos pesquisadores de uma ou de outra tendência. Entendemos que a história da educação física brasileira traçou os contornos tradicionais que ainda constatamos hoje. Senão vejamos: o discurso sobre educação física no Brasil teve início em meados do século XIX. Ora, se ainda não havia a formação de profissionais da área, esse discurso foi empreendido por médicos da chamada medicina higienista. Esses médicos foram de terminantes na criação de um conceito biológico para a educação física e influenciaram decisivamente, juntamente com os militares, a formação dos primeiros profissionais em educação física, nas primeiras décadas do século XX (Castellani Filho, 1988). 
	É interessante lembrar que a medicina era detentora de grande poder na segunda metade do século XIX, em função de sua atuação epidemiológica, que proporcionou o controle de algumas graves doenças, com a conseqüente diminuição de óbitos. A intervenção destes profissionais não se restringia somente à atuação higiênica, mas estendia-se ao nível da intervenção política e social (Schwarcz, 1992). 
	Alie-se a isso o fato de a influência das ciências naturais ser decisiva na época, já que as ciências sociais estavam apenas se estruturando no final do século passado. A psicologia realizada na época tinha forte influência das ciências naturais: ou tinha índole fortemente comportamental ou se restringia a uma extensão da medicina, como a incipiente psicanálise de Freud. A antropologia, como discutiremos adiante, era de cunho evolucionista, influenciada pelos escritos de Charles Darwin. 
	Ora, não foi à toa que a educação física surgiu como ciência biológica, enfoque que reinou no Brasil até os anos 70 do século XX, quando, a partir de um referencial sociológico, começou a sofrer crítica contundente. Entretanto, essa crítica social, ao negar o nível biológico, excluindo-o, considerava, implicitamente, a dicotomia entre os dois níveis. O discurso, em síntese, era: "a educação física não se inclui na área biológica, por fazer parte das ciências sociais. E, se faz parte das ciências sociais, não pode ser incluída na área biológica". Estávamos diante de uma tautologia, que alimentou durante alguns anos a polêmica na área. 	Acreditamos, entretanto, que essa polêmica foi necessária para podermos analisar os níveis biológico e social, ou natural e cultural, como integrados e indissociados. Para isso, vamos lançar mão do referencial da antropologia social e de algumas contribuições da arqueologia. 
A ANTROPOLOGIA SOCIAL E O SURGIMENTO DA CULTURA 
	A antropologia configura-se como ciência a partir de meados do século XIX. Inicialmente, surge para dar conta da compreensão de seres humanos que viviam em regiões longínquas e apresentavam comportamentos exóticos. Essa antropologia ficou conhecida como evolucionista, influenciada que foi pelos trabalhos de Darwin, que afirmavam, em síntese, que todos os seres vivos passavam por uma evolução e que o homem não foi poupado deste processo. Assim, os povos encontrados no mundo eram considerados num estágio de desenvolvimento anterior ao homem europeu do século XIX. Morgan (1946), um dos principais representantes do pensamento evolucionista, chegou a classificar os humanos em três categorias básicas: selvageria, barbárie e civilização. Se o pensamento evolucionista foi fundamental para considerar todos os indivíduos encontrados como humanos, por outro lado, ele foi preconceituoso e etnocêntrico, à medida que considerava as diferenças entre os homens como desigualdades, justificando ainda a prática da colonização. 
	A antropologia surge no bojo desse pensamento evolucionista e numa época em que a discussão proeminente era a racial. O mundo queria saber, na segunda metade do século XIX, qual a origem do ser humano, qual a raça mais evoluída, já que os homens eram diferentes e tinham passado por um longo processo de evolução. Podemos perceber nesta discussão racial a separação entre a ordem da natureza e a ordem social, como já afirmava Rousseau um século antes. A busca da origem do homem era uma tentativa de compreender sua natureza biológica comum, a partir da qual teria havido a diferenciação cultural. 
	Portanto, a questão fundante da antropologia do século XIX foi a oposição entre natureza e cultura. Pensava-se que, tendo o homem uma origem única, o desenvolvimento cultural subseqüente seria o responsável pelas diferenças. A concepção de homem presente nesta época e até há poucas décadas era a chamada por Geertz (1989) de "concepção estratigráfica", que pensava o homem como envolto em várias camadas: a mais interior seria a biológica e, na seqüência, a psicológica, a social e, finalmente, a cultural. Se déssemos conta de "descascar" o homem, retirando uma a uma das camadas, chegaríamos a sua base comum, a sua origem biológica, enfim, a sua essência. 
	Somente com o desenvolvimento do pensamento antropológico e com a contribuição das recentes descobertas da arqueologia é que o conceito de homem pôde ser modificado. Em vez de se pensar no desenvolvimento evolutivo humano como seqüência do biológico para o cultural, passou-se a compreender estes dois processos como simultâneos. Antes, compreendia-se que no processo de evolução que culminou com o homo sapiens teria havido um ponto crítico, por volta de três a quatro milhões de anos atrás, responsável pelo surgimento do primeiro hominídeo. Esse ponto crítico coincidia com a maturação cerebral mínima, a partir da qual seria possível a produção cultural. 
	Entretanto, o desenvolvimento das pesquisas arqueológicas das últimas décadas fornece-nos outros dados que questionam a teoria do ponto crítico. Foram encontrados indíciosde uma protocultura numa época em que viviam seres dotados de um cérebro três vezes menor que o cérebro do homo sapiens. Estes dados, somente possíveis por intermédio de métodos de datação de fósseis muito mais precisos, jogam por terra a idéia de seqüência no desenvolvimento do homem. Na verdade, parece ter havido uma simultaneidade entre o desenvolvimento cerebral e o cultural, um influenciando o outro igualmente (Geertz, 1989). 
	A conseqüência disso é compreender que a cultura não foi resultado de um sistema nervoso estruturado, mas constituiu-se num "ingrediente" - para usar um termo de Geertz - decisivo no processo de maturação cerebral. Se antes pensava-se no cérebro minimamente maduro para produzir cultura, hoje sabe-se que o funcionamento cerebral foi também determinado pela cultura. Assim, podemos falar de um cérebro também cultural, da mesma forma que descartamos a idéia de uma natureza exclusivamente biológica. 
CONSEQÜÊNCIAS PARA A EDUCAÇÃO FíSICA 
	Voltando à educação física, podemos compreender melhor agora a dicotomia entre natureza e cultura. Pensada segundo a teoria do ponto crítico, a dicotomia natureza/cultura é evidente, sendo a primeira vista como exclusivamente biológica e a segunda, como um processo conseqüente e subseqüente ao desenvolvimento cerebral. 
	Porém, se passarmos a aceitar que houve uma superposição de fases entre a maturação cerebral e o desenvolvimento cultural, podemos compreender a natureza e a cultura como partes de um mesmo processo, que fez o ser humano chegar até o estágio em que se encontra hoje. É por isso que podemos dizer que a natureza do homem é ser um ser cultural. Esta natureza cultural não exclui o desenvolvimento biológico, mas o engloba, já que não existe cultura sem um sistema nervoso humano e não existiria sistema nervoso humano sem cultura. Isto porque o homem é o único animal que conseguiu, por intermédio de seu desenvolvimento, produzir cultura. 
	Entendemos que a educação física, embora historicamente fruto de uma visão que separou a natureza da cultura, lida diretamente com o homem em sua integração entre estes dois aspectos. O homem age sempre corporalmente e assim se relaciona com o mundo. Ora, o corpo humano é ao mesmo tempo natureza e cultura. Se, por um lado, existe um patrimônio biológico universal, que faz com que todos os homens sejam membros de uma mesma espécie, por outro há construções corporais diferentes de uma sociedade para outra. 
	Este enfoque cultural parece-nos útil para resolver a falsa oposição que existe na área entre natureza e cultura, permitindo vislumbrar uma nova prática que não privilegie somente um dos aspectos. É com esse referencial que temos tentado "desnaturalizar" a educação física, mostrando que a biologia pode contribuir para a análise do homem, mas que não é a única ciência nesta empreitada. Não pretendemos criar uma oposição entre a biologia e a antropologia. Apenas entendemos que, por possuírem "lentes de aumento" diferentes, elas dão ênfase a certos aspectos do mesmo fenômeno. Assim, podemos dizer que a biologia compreende o homem a partir de suas semelhanças e apesar de suas diferenças, enquanto a antropologia compreende o homem a partir de suas diferenças e apesar de suas semelhanças. 
	Nesse sentido, entendemos a educação física como uma atuação pedagógica que parte do movimento humano, mas que não se esgota nele. Porque não existe um corpo somente biológico, conforme defendido historicamente pela educação física. Há um patrimônio biológico universal que é construído e reconstruído culturalmente, em função das diversas sociedades e dos diversos momentos históricos. O corpo é mais do que um conjunto de músculos, ossos e articulações. Nele está a própria cultura de um povo, escrita por meio de signos sociais. Atuar no corpo implica atuar na sociedade que dá referências a esse corpo. 
	A educação física na escola deve, portanto, dar conta não só da pluralidade de formas da cultura corporal humana (jogos, danças, esportes, formas de ginástica e lutas) como também da expressão diferencial dessa cultura nas aulas. Assim, podemos vislumbrar uma prática escolar despida de preconceitos em relação ao comportamento corporal dos alunos, oferecendo a todos e a cada um o direito de uma educação física significativa (Daolio, 1995). 
Conclusão
	No âmbito acadêmico, acreditamos que o enfoque proposto ao longo deste texto pode contemplar tanto aqueles que estão mais próximos das ciências biológicas como os que utilizam as ciências sociais como referencial para suas pesquisas. Em vez de ficarmos explicitando nossas diferenças, tentando fazer com que elas se tornem hegemônicas, por que não aceitatmos que elas contribuem para o desenvolvimento da nossa área? 
	Pedro Demo (1989), criticando o que ele chamou de "mito do porto seguro" nas ciências, afirma não existir um consenso absoluto entre os pesquisadores. Diz ele que "[ ... ] o possível consenso não se define pela inexistência de pontos de vista diversos e divergentes, mas pela renúncia crítica e autocrítica da absolutização de seu próprio" (p. 57). 
	O antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira (1988), analisando as tendências pelas quais passou a antropologia, afirma que várias linhas operaram, e ainda operam, sob uma certa dose de tensão. Segundo ele, é justamente a tensão entre linhas diferentes que permite o desenvolvimento da área, pela superação ou modificação de determinados conceitos. Acreditamos que o enfoque cultural aqui proposto, por englobar o aspecto biológico, permite uma convivência pacífica entre linhas diferentes. As diferenças, se vistas na ótica de Oliveira (1988), poderão constituir-se em pontos de tensão necessários para o desenvolvimento científico da área. 
Referências Bibliográficas:
CASTELLANI FILHO, L. Educação física no Brasil: a história que não se conta. Campinas: Papirus, 1988. 
DAOLIO, J. "Educação física escolar: uma abordagem cultural", in V. L. N. Picco10 (org.), Educação física escolar: ser ... ou não ter? Campinas: Edirora da UNICAMP, 1993. 
_____ . Da cultura do corpo. Campinas: Papirus, 1995. 
DEMO, P. Metodologia científica em ciências sociais, 2' ed. São Paulo: Atlas, 1989. GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989. MORGAN, L. H. Ia sociedade primitiva. La Plata: Lautaro, 1946. 
OLIVEIRA, R. C. Sobre o pensamento antropológico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1988. 
Rousseau, J. J. Emílio, 1º vaI. Lisboa: Europa-América, 1990. 
SCHWARCZ, L. K. M. Homens de ciência e a raça dos homens: cientistas, instituições e teorias raciais no Brasil de finais do século XIX. Tese de doutorado, Departamento de Antropologia Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 1992.
TEXTO 4: 
OS SIGNIFICADOS DO CORPO NA CULTURA E AS IMPLICAÇÕES PARA A EDUCAÇÃO FÍSICA
	Na área da educação física, fala-se muito atualmente sobre o corpo. Juntamente com esse substantivo, imprime-se uma série de adjetivos. Podemos aqui citar alguns: esbelto, saudável, bonito, sensual, livre, flácido, feio, reprimido, firme, mole, natural, holístico, moderno, consciente, inteiro, repugnante, prazeroso, gordo, magro etc. Os profissionais da educação física trabalham com o ser humano sobre e por meio de seu corpo, e lidam, por extensão, com os adjetivos nele impressos. Por isso, torna-se importante a reflexão sobre o tema. 
Gostaríamos, inicialmente, de colocar algumas questões: como definir um corpo esbelto? Como definir um corpo bonito, um corpo atraente, ou um corpo consciente? Como saber se o corpo já chegou ao estágio de liberdade tão sonhado? O que dizer, então, de um corpo feminino flácido, gordo, considerado deselegante nos dias de hoje, mas que era, há não muito tempo, considerado sensual e inspirava pintores renomados? O que dizer do conceito de saúde, associado antigamente a um corpo robusto, até mesmo gordo, e atualmente relacionado a um corpo magro? Como se magro fosse sempre sinônimo de saudável! E o corpojá não tão jovem, sobre o qual são impostos uma série de "consertos" e "reparos" para parecer (não para ser) novo, tais como plásticas, cremes anti-rugas, dietas rejuvenescedoras, ginásticas, esportes? 
Quem define esses atributos a respeito do corpo? Quem determina os critérios para classificar o corpo como parte de um ou outro grupo? 
Para discutir com mais profundidade estas questões, estamos utilizando um referencial cultural. Não podemos imaginar um ser humano que não seja fruto da cultura e também não podemos imaginar um corpo natural, não cultural. Portanto, qualquer adjetivo que se associe ao corpo é fruto de uma dinâmica cultural particular e só faz sentido num grupo específico. O ser humano só chegou ao seu estágio atual de desenvolvimento devido a um processo cultural, de apropriação de comportamentos e atitudes que foram até mesmo transformando seu componente biológico. Não é possível desvincular o homem da cultura. O que o diferencia de outros animais, principalmente, é sua capacidade de produzir cultura. Cultura essa que não é um ornamento, um algo a mais que se sobrepôs à natureza animal. A cultura foi a própria condição de sobrevivência da espécie. Portanto, pode-se dizer que a natureza do homem é ser um ser cultural (Geertz, 1989). 
Infelizmente, no meio acadêmico e profissional da educação física, essa problemática ainda não é compreendida no âmbito de um conhecimento antropológico. A ênfase na formação profissional em educação física ainda se refere ao homem e a seu corpo como entidades primordialmente biológicas. Temos ouvido comentários sobre o corpo que embutem uma noção que separa a natureza da cultura. Quando se defende a procura por um corpo natural, está-se falando que é possível encontrar um corpo pré-cultural, ou que seja imune à cultura. Quando se fala do corpo livre, parece que se busca um corpo que não seja escravizado ou moldado pelas regras sociais. Ouvimos até certos excessos como "liberar o lado animal do corpo". Como se o corpo e o homem não fossem eminentemente culturais. Como se se quisesse achar um corpo ainda não atingido pela cultura ou anterior a ela. 
O corpo é uma síntese da cultura, porque expressa elementos específicos da sociedade da qual faz parte. O homem, por meio do corpo, vai assimilando e se apropriando de valores, normas e costumes sociais, num processo de inCORPOração (a palavra é significativa). Mais do que um aprendizado intelectual, o indivíduo adquire um conteúdo cultural, que se instala em seu corpo, no conjunto de suas expressões. 
Cada gesto que fazemos, a forma como nos sentamos, a maneira como caminhamos, os costumes com o corpo da gestante (a mensagem hoje é que ela se movimente, ao contrário de poucos anos atrás), os cuidados com o bebê ... tudo é específico de uma determinada cultura, que não é melhor nem pior que qualquer outra. A forma de chutar, os cuidados higiênicos com o corpo, os esportes que se praticam numa determinada época, num determinado local, são influenciados pela cultura. As brincadeiras, os tipos de ginástica, os cuidados estéticos com o corpo ... enfim, tudo é influenciado pela cultura. Numa multidão, podem-se notar certos comportamentos corporais comuns, que caracterizam e padronizam um determinado povo. Aliás, como relata Rodrigues (1987), pode-se reconhecer um brasileiro num outro país pela sua forma de andar e gesticular, sua postura, seus movimentos corporais. Duas seleções de voleibol ou futebol, jogando com as mesmas regras e técnicas e com sistemas táticos similares, possuem estilos diferentes, um jeito característico de praticar o voleibol ou o futebol que reflete tradições culturais distintas. 
Ao se pensar sobre o corpo, pode-se incorrer no erro de encará-lo como puramente biológico, um patrimônio universal, já que homens de nacionalidades diferentes apresentam semelhanças físicas. Entretanto, para além das semelhanças ou diferenças físicas, existe um conjunto de significados que cada sociedade escreve no corpo de seus membros ao longo do tempo, significados esses que definem o que é corpo de maneiras variadas. 
Estamos falando das técnicas corporais, que Marcel Mauss, um antropólogo francês, definiu, já na década de 1930, como as maneiras de se comportar de cada sociedade. Mauss considerou os gestos e os movimentos corporais como técnicas próprias da cultura, passíveis de transmissão através das gerações e imbuídas de significados específicos. Técnicas corporais culturais, porque toda técnica é um hábito tradicional, que passa de pai para filho, de geração para geração. Segundo ele, só é possível falar em técnica por ela ser cultural (Mauss, 1974). 
Kofes (1985), reforçando esse ponto de vista, afirma que o corpo é expressão da cultura, portanto cada cultura vai se expressar através de diferentes corpos, porque se expressa diferentemente enquanto cultura. É nesse contexto que DaMatta (1987) pode afirmar que existem tantos corpos quanto há sociedades. 
O corpo humano não é um dado puramente biológico ao qual a cultura impinge especificidades. O corpo é fruto da interação natureza-cultura. Conceber o corpo como meramente biológico é pensá-lo - explícita ou implicitamente - como natural e, conseqüentemente, entender a natureza do homem como anterior ou como pré-requisito da cultura. Santos (1990) critica os que propõem a volta a um suposto corpo natural não atingido pela cultura. Segundo ele, não se pode esquecer da natureza necessariamente social de uso do corpo, sendo possível somente pensar em novos usos, já que a cultura é passível de reinvenções e recriações. 
Rodrigues afirma que "[ ... ] nenhuma prática se realiza sobre o corpo sem que tenha, a suportá-la, um sentido genérico ou específico" (1986, p. 64). É justamente esse sentido específico que incide sobre toda atividade corporal que impede de analisar o corpo como um dado biológico. O que define corpo é o seu significado, o fato de ele ser produto da cultura, ser construído diferentemente por cada sociedade, e não suas semelhanças biológicas universais. 
Fica evidente, portanto, que o conjunto de posturas e movimentos corporais representam valores e princípios culturais. Conseqüentemente, atuar no corpo implica atuar sobre a sociedade na qual este corpo está inserido. Todas as práticas institucionais que envolvem o corpo humano - e a educação física faz parte delas -, sejam elas educativas, recreativas, reabilitadoras ou expressivas, devem ser pensadas neste contexto, a fim de que não se conceba sua realização de forma reducionista, mas se considere o homem como sujeito da vida social. 
Entretanto, os profissionais de educação física, cotidianamente, utilizam o termo "técnica" não no mesmo sentido conferido por Marcel Mauss, de um ato cultural, mas como um conjunto de movimentos considerados sempre corretos, precisos, melhores do que outros. Nas aulas, o aluno melhor é aquele que chega mais próximo da técnica considerada certa pelo professor. Falamos de um andar correto, de um correr adequado, de uma postura melhor, de um corpo perfeito, desconsiderando, muitas vezes, que os movimentos são também culturais. A especificidade da raça humana é se apresentar e se dispor de maneira bastante distinta. Embora se apresentando diferentemente, os homens não perdem a condição de membros da espécie humana. 
Acreditamos já ser possível pensar no duplo sentido do termo "cultura corporal". No primeiro, que rebatemos, pressupõe-se uma única técnica sobre o corpo; a palavra cultura acaba sendo usada como sinônimo de treinamento, adestramento do corpo. É nesse sentido que termos como culturismo e fisioculturismo são utilizados, constituindo-se em mais um discurso sobre o corpo, apenas uma das técnicas sobre ele colocadas. Não a única, nem a melhor. 
O sentido de "cultura corporal" que utilizamos parte da definição ampla de cultura e diz respeito ao conjunto de movimentos e hábitos corporais de um grupo específico. É nessa concepção que se pode afirmar que não existe um discurso puro do corpo. O corpo não fala sozinho, de forma natural. Toda práticaou técnica sobre o corporal será apenas mais um discurso a respeito do corpo. Em uma dada época, num determinado contexto, um discurso prevalece sobre o outro. Em outros termos, não há corpo livre, mas discursos sobre corpo livre; não há corpo consciente, mas discursos sobre corpo consciente. Kofes (1985) discutiu de forma pertinente essa questão do discurso do corpo versus discurso sobre o corpo, afirmando que é necessário manter as seguintes indagações quando se aborda esse tema: "[ ... ] o que a sociedade está afirmando através dos corpos? que corpos? que individualidades? que sociedades?" (p. 57). 
Na educação física brasileira, atualmente, começa a ser utilizado o termo "cultura corporal" em sentidos próximos daquele por nós defendido. No livro Metodologia do ensino de educação física (Coletivo de Autores, 1992, p. 39) encontramos a seguinte referência: "[ ... ] a materialidade corpórea foi historicamente construída e, portanto, existe uma cultura corporal, resultado de conhecimentos socialmente produzidos e historicamente acumulados pela humanidade [ ... ]". Pereira (1988) fala de uma cultura física como "[ ... ] toda a parcela da cultura universal que envolve o exercício físico, como a educação física, a ginástica, o treinamento desportivo, a recreação físico-ativa, a dança etc." (p. 20). Betti (1992) lembra que Noronha Feio (s. d.) já se referiu a uma cultura física como parte de uma cultura geral, que contempla as conquistas materiais e espirituais relacionadas com os interesses físico-culturais da sociedade. 
A pesquisa antropológica, embora incipiente na área, pode ser útil na medida em que se preocupar com os discursos sobre o corpo, ou, melhor dizendo, com as representações sociais que suportam as várias concepções de corpo, concepções essas que justificam e orientam determinadas práticas profissionais num grupo específico e numa dada época. Qual é a representação de corpo expressa pelos professores de educação física? Que conjunto de significados a respeito do corpo possuem os freqüentadores de academias de ginástica? Qual é o universo simbólico a respeito do corpo que técnicos esportivos possuem? Essas perguntas somente agora começam a ser formuladas, ainda não sendo possível respondê-Ias de forma mais profunda. 
A intenção destas reflexões foi somente alertar os profissionais de educação física de que, por trabalharem com o ser humano por meio de seu corpo, estão trabalhando com a cultura impressa nesse corpo e expressa por ele. Portanto, mexer no corpo é mexer na sociedade da qual esse corpo faz parte. O profissional pode fazer isso de forma explícita, atento às conseqüências do seu trabalho, ou de forma implícita e inconseqüente. Parece-nos evidente tentarmos estar atentos e conscientes em relação ao papel do corpo na cultura. 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 
BETT!, M. "Ensino de primeiro e segundo graus: educação física para quê?", Revista Brasileira de Ciência do Esporte, vol. 13, n" 2, 1992, pp. 282-87. 
COLETIVO DE AUTORES. Metodologia do ensino de educação fisica. São Paulo: Correz, 1992. 
DAMATTA, R. "O corpo brasileiro", in I. Srrozenberg (org.), De corpo e alma. Rio de Janeiro: Comunicação Conremporânea, 1987. 
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989.
 
KOFES, S. "E sobre o corpo, não é o próprio corpo que fala? Ou o discurso desse corpo sobre o qual se fala", in H. T. Bruhns (org.), Conversando sobre o corpo. Campinas: Papirus, 1985. 
MAUSS, M. Sociologia e antropologia, 2" vol. São Paulo: EPU-EDUSP, 1974. 
NORONHA FEIO. Desporto e política: ensaios para sua compreensão. Lisboa: Compendium, s. d. 
PEREIRA, F. M. Dialética da cultura fisica: introdução à crítica da educação fisica, do esporte e da recreação. São Paulo: Ícone, 1988.
 
RODRIGUES, J. c. Tabu do corpo, 4' ed. Rio de Janeiro: Dois Ponros, 1986. 
___________ . "O corpo liberado?", in I. Strozenberg (org.), De corpo e alma. Rio de Janeiro: Comunicação Contemporânea, 1987. 
SANTOS, F. J. A. dos. "Considerações sobre a 'corpolatria''', Motrivivência, vol. 2, nº 3, 1990, pp. 53-54. 
TEXTO 5: 
A CONSTRUÇÃO CULTURAL DO CORPO FEMININO, OU O RISCO DE TRANSFORMAR MENINAS EM “ANTAS”
	Eu era professor de educação física de uma escola pública na periferia de São Paulo. Trabalhava, entre outras turmas, com uma mista, composta por alunos de 8ª série, que tinham em torno de 15, 16 anos de idade. A atividade proposta naquele dia foi um jogo de voleibol. Os times, mistos, foram divididos, e os jogos começaram, com os alunos revezando-se na única quadra da escola. 
	A aula daquele dia teria sido igual a tantas outras, não fosse pela reação de uma aluna ao errar uma bola fácil. Ao se ver incapaz de inclinar o corpo para o lado e receber um saque, ela disse, com um misto de desânimo e raiva: "Por que eu sou uma anta?". Esta reação apareceu de forma contundente neste dia, mas existia de forma velada em outras aulas, na medida em que as meninas percebiam que os meninos eram mais habilidosos do que elas em praticamente todas as atividades realizadas. Por trás da frase de uma menina, havia a reação de todas elas contra sua inferioridade matara em comparação aos meninos. Era como se todas clamassem: "Por que nós meninas somos antas e os meninos não são?". [2: Desconheço se a utilização do termo "anta" referindo-se a pessoas (principalmente mulheres) lentas, pesadas e descoordenadas é de uso nacional. Em São Paulo, o uso é freqüente em aulas de educação física e em quaisquer atividades físicas, sempre com um tom pejorativo e preconceimoso. A associação, provavelmente, deve-se ao peso do animal, que pode chegar a 180 quilos, e a sua conseqüente lentidão.]
Evidentemente, estamos diante de uma questão muito maior do que uma mera ocorrência em aula de educação física. As meninas não se sentem "antas" somente nas aulas, mas também quando realizam atividades físicas em suas horas de lazer. Estamos diante de um fato social, pontuado por uma história cultural que delegou às meninas brasileiras a condição de "antas" quando realizam atividades que exigem força, velocidade e destreza. [3: Mesmo correndo o risco de uma generalização imprecisa, não pretendo neste trabalho diferenciar os vários tipos de meninas brasileiras. Reconheço que estas diferenças existem e podem ser grandes, mas entendo que o chamado "machismo" brasileiro delegou a todas as mulheres um papel inferior no que se refere às habilidades físicas, principalmente as esportivas.]
Sejamos justos: nem todas as meninas são inábeis e nem todos os meninos são hábeis. Existe uma enorme gradação entre o mais hábil e o menos hábil, tanto para as meninas quanto para os meninos. Além disso, essa gradação pode se modificar dependendo da atividade realizada. Ora, se a prática proposta na aula citada fosse uma coreografia de dança, talvez os meninos se sentissem "antas" (ou um outro animal qualquer), já que teriam provavelmente grande dificuldade em requebrar os quadris. Acredito, entretanto, que, na média, os homens são mais atirados fisicamente, arriscam mais, ousam mais que as meninas, o que os torna, também na média, menos propensos que elas a se tornarem “antas”.
	Antes que os leitores não machistas e todas as leitoras me abandonem, devo esclarecer meu referencial de análise, esboçado linhas acima. Estou considerando que há uma construção cultural do corpo, definida e colocada em prática em função das especificidades culturais de cada sociedade. O conjunto de hábitos, costumes, crenças e tradições que caracterizam uma cultura também se refere ao corpo, como já afirmava Marcel Mauss em seu clássico texto sobre as técnicas corporais. Este antropólogo foi o primeiro a considerar o corpo como passível de análise cultural, já que cada sociedade faz um uso específico do corpo. Assim, há a valorização de certos comportamentos em detrimento de outros, fazendo com que haja um conjunto de gestos típicos de determinada sociedade.[4: No meu livro Da culturado corpo há um aprofundamento da discussão do corpo como construção cultural. Há também um desenvolvimento das idéias de Marcel Mauss.]
Esta característica diferencial do corpo de uma sociedade para outra pode ser comprovada facilmente quando se observam pessoas de procedências diferentes. Há um conjunto de hábitos que caracterizam um brasileiro, diferentes dos de um francês ou de um japonês. Pode-se detalhar ainda mais essa caracterização notando peculiaridades gestuais de um paulista, que podem ser diferentes das de um carioca ou de um mineiro, e assim por diante. 
Pode ainda acontecer que um mesmo ato realizado identicamente por dois grupos tenha significados distintos. Olhar fixamente nos olhos do interlocutor pode significar respeito ou desrespeito, dependendo de onde este comportamento é realizado. O característico gesto americano de OK onde o polegar e o indicador se tocam formando um círculo e os outros dedos se estendem para cima, tem em nossa cultura uma conotação bem diferente. [5: Para uma discussão mais aprofundada sobre a conotação e a denotação, processos que dizem respeito à lógica dos significados, sugiro o livro Filosofia em nova chave, de Suzanne Langer, sobretudo o capítulo 3, "A lógica dos signos e símbolos". Sugiro também o texto "O corpo liberado?", de José Carlos Rodrigues. As referências bibliográficas estão no final do texto.]
É nesse sentido que se pode afirmar que há uma construção cultural do corpo feminino diferente da construção do corpo masculino. Aliás, Marcel Mauss, no texto citado, já esboçava uma classificação das técnicas corporais, que incluía o sexo como um dos critérios dessa divisão. 
Parece óbvio afirmar que o corpo feminino é construído diferentemente do corpo masculino. Não pretendo aqui propor que haja uma construção idêntica dos corpos de homens e mulheres. As diferenças sempre existiram em qualquer sociedade do mundo. Outra questão: essas diferenças dizem respeito também ao aspecto biológico, chegando até as motivações e os interesses de um e de outro sexo para atividades específicas. Além disso, quando a discussão se refere à cultura, deve-se considerar que o processo não é sempre consciente e uma mudança, embora possível e desejada, é lenta e gradual, sem linearidade e seqüenciação previsíveis. 
Não se trata de igualar homens e mulheres no que se refere ao uso do corpo. Trata-se - e este é o objetivo deste trabalho - de, inicialmente, compreender que as diferenças motoras entre meninos e meninas são, em grande parte, construídas culturalmente e, portanto, não são naturais, no sentido de serem determinadas biologicamente e conseqüenremente irreversíveis. Em segundo lugar, pretendo discutir o papel da educação física escolar neste processo. Em vez de desconsiderar o tema, os professores deveriam proporcionar oportunidades a todos os alunos de praticarem atividades físicas de acordo com seus interesses e compreendendo seu significado. Parece que as aulas têm feito isso somente em relação aos meninos, relegando as meninas ao papel de "antas". [6: Essa é justamente a crítica mais contundente que o chamado "feminismo" tem recebido. Ao se rebelar contra o poder do "machismo", algumas militantes do "feminismo" passaram a reivindicar os mesmos direitos para as mulheres, acreditando na falsa premissa de que fazer as mesmas coisas é condição para a igualdade entre homens e mulheres.]
Mas ainda é precoce discutir as aulas de educação física. Quero esclarecer as diferenças entre homens e mulheres no que se refere às habilidades motoras, utilizando exemplos de nossa vida diária que certamente todos vivenciaram. 
Sobre um menino, mesmo antes de nascer, já recai toda uma expectativa de segurança e altivez de um macho que vai dar seqüência à linhagem. Na porta do quarto da maternidade, os pais penduram uma chuteirinha e uma camisa da equipe de futebol para a qual torcem. Pouco tempo depois, dão-lhe uma bola e o estimulam aos primeiros chutes. Um pouco mais tarde, esse menino começa a brincar na rua (futebol, pipa, subir em árvores, carrinho de rolimã, skate, bolinha de gude, bicicleta, taco etc.), porque, segundo as mães, se ficar em casa vai atrapalhar. 
	Em torno de uma menina, quando nasce, paira toda uma névoa de delicadeza e cuidados. Basta observar as formas diferenciais de se carregar meninos e meninas, e as maneiras de os pais vestirem uns e outros. As meninas ganham de presente, em vez de bola, bonecas e utensílios de casa em miniatura. Além disso, são estimuladas o tempo todo a agir com delicadeza e bons modos, a não se sujarem, não suarem. Portanto, devem ficar em casa, a fim de serem preservadas das brincadeiras "de menino" e ajudarem as mães nos trabalhos domésticos, que lhes serão úteis futuramente, quando se tornarem esposas e mães. 
Estes hábitos corporais masculinos e femininos vão, ao longo do tempo e dependendo da sociedade, tornando um sexo mais hábil do que outro em termos motores. No caso brasileiro, os meninos tornaram-se mais habilidosos e as meninas, "antas". O mais interessante, entretanto, é que as diferenças entre homens e mulheres estão tão arraigadas na dinâmica cultural de nossa sociedade que não bastam a conscientização do processo e o desejo de mudança para a efetiva transformação da realidade. O processo de transmissão de hábitos e valores culturais é realizado por meio de um processo de imitação prestigiosa (Mauss, 1974). Em outras palavras, a criança imita procedimentos que obtiveram êxito em pessoas que lhe são importantes. O prestígio social da pessoa que realiza um ato qualquer provoca uma imitação na criança. Em termos práticos, isto significa que a atitude dos pais é dotada de alta eficácia simbólica perante seu filho, que tenderá a imitá-Ia. Esse processo, obviamente, ocorre de forma mais contundente em crianças menores. 
Por meio desse processo de imitação prestigiosa é possível perceber a força da tradição de um determinado valor ou costume cultural. Para uma menina, assumir determinados comportamentos historicamente vistos como masculinos, como ser mais agressiva ou jogar futebol, pressupõe ir contra uma tradição. Implica ser chamada de "machona" pelos meninos ou ser repreendida pelos pais. Da mesma forma, para um menino, assumir uma postura delicada, mais afetiva, e brincar de maneira mais contida implica ser chamado de "bicha" ou "efeminado". Tanto para o menino como para a menina que contrariam a expectativa que deles se tem, há o peso de uma sociedade que os marginaliza. São tidos como rebeldes. Não resta dúvidas de que é mais cômodo cumprir os ditames sociais e, assim, ser valorizado como pessoa bem-sucedida. 
	Não quero transmitir a idéia de que a cultura nos molda e de que nada há para fazer senão cumprir as regras sociais passivamente. Na verdade, o termo "cultura" vem se mostrando árido na medida em que dá idéia de um "superpoder sobre nossas cabeças". Há tendência hoje em se usar o termo "dinâmica cultural" (Durham, 1977), cuja vantagem reside no fato de apresentar um processo mais vivo e de mão dupla. De fato, se a cultura influencia o comportamento humano, quem produz e transforma a cultura cotidianamente são os homens. 
Falando da tradição cultural, eu pretendo rechaçar uma idéia tão precipitada quanto ingênua de que basta a conscientização a respeito dos nossos erros para a transformação de nossos atos. No caso da discussão sobre a construção cultural do corpo feminino, bastaria somente conscientizar nossas alunas e seus pais para deixarmos de ter "antas" em nossas aulas. Entendo que a conscientização a respeito desse processo de construção cultural do corpo é uma condição necessária mas não suficiente para a transformação do quadro atual. É preciso mais que isso. É preciso compreensão das representações associadas ao corpo da mulher. 
Eu diria que muitos pais ainda preferem ter uma filha "anta" em vez de uma filha que jogue futebol ou suba em árvores. Arriscaria dizer também que muitas "antas" não manifestam revolta contra sua condição ao longo de toda vida, como fez minha aluna, citadano exemplo no início do texto. Diria ainda que muitos professores inclusive de educação física - consideram natural as meninas serem “antas” . 
Vê-se que a questão é muito profunda e sua resolução, difícil. Na verdade, parece haver na nossa sociedade um processo de "antalização" sobre as meninas, da mesma forma que parece haver um processo que transforma os meninos em verdadeiros "trogloditas". Esses processos complementares, como vimos, são dotados de prestígio social, já que são empreendidos pelos pais e professores e usufruídos pelas crianças. 
A EDUCAÇÃO FíSICA E A CRIAÇÃO DE "ANTAS" 
	Se o leitor me permite, começo esta seção com um outro relato de minha experiência docente, na tentativa de ilustrar os temas que estou desenvolvendo. 
Após uma aula para uma turma feminina de 6ª. série, uma menina, até então feliz por sua atuação, percebeu que estava suada e começou a sentir nojo do próprio corpo, dizendo algumas frases que minha memória perdeu ao longo do tempo. Lembro-me bem da transfiguração do seu rosto. Quando ela "esqueceu" de sua condição de mulher (limpa e cheirosa), ela pôde brincar e sentir-se feliz. Quando "lembrou" do papel sexual cultural, ela repeliu seu corpo sujo e suado. 
Com esse exemplo, pretendo discutir as aulas de educação física e sua tendência histórica em contribuir com a transformação de meninas em "antas". Se a sociedade tem determinado um papel inferior às mulheres no que se refere às habilidades motoras, por outro lado, esse papel, por ser fruto de construção cultural, é passível de alterações. Se os pais reforçam a condição de "antas" de suas filhas, cabe aos professores de educação física começar a discutir este tema em suas aulas. Se há uma tradição social que reproduz a inabilidade motora das mulheres, os professores também possuem prestígio social para iniciar um processo de revisão desses conceitos. 
Entretanto, temos todos um longo trabalho pela frente. Cardoso (1994) afirma acertadamente que a ação do professor de educação física, por mais progressista que seja, ainda não se liberou da dicotomia criada culturalmente entre o masculino e o feminino, "[ ... ] prosseguindo a atual ação pedagógica a limitar o pleno desenvolvimento motor dos indivíduos [ ... ]" (p. 267). 
Romero (1990 e 1994) desenvolveu pesquisa com professores de educação física buscando observar se os mesmos apresentavam estereótipos masculinos e femininos quando se reportavam a seus alunos. Apresentou a eles uma lista de adjetivos, pedindo que manifestassem concordância ou discordância em relação ao sexo. Os resultados foram interessantes e confirmaram o estereótipo sexual dos professores. Os alunos do sexo masculino tiveram os seguintes adjetivos considerados pelos professores como adequados a seu sexo: agressivo, ativo, autoritário, capaz, dedicado ao lar, delicado, esportivo, forte (fisicamente), independente, líder e machista. Às meninas foram associados os seguintes adjetivos: atraente, decidida, elegante, meiga, responsável, sensível, vaidosa. 
Vê-se que os professores de educação física sentem dificuldade em se libertar de determinados preconceitos e propor uma prática que propicie as mesmas oportunidades a todos os alunos, meninos e meninas, respeitando as diferenças e os interesses de cada um. 
O que parece mascarar essa dificuldade dos professores de educação física é sua concepção biológica tanto sobre o corpo como sobre a própria área em que atuam. Essa concepção freqüentemente apresenta-se de forma implícita na ação profissional, porque trata-se de representações sociais que dão suporte e orientam a prática desses professores, muitas vezes inconscientes para eles (Daolio, 1994 e 1995). 
Nesse sentido, a tendência do professor, quando uma aluna pergunta por que ela é "anta" ou quando outra sente nojo de seu corpo por estar suada, é de considerar esses fenômenos naturais. Sendo biologicamente determinados, nada há a fazer senão conformar-se com o destino. Nessa concepção, a atitude das alunas seria apenas uma reação contra um processo natural. 
Entretanto, a postura dos professores de educação física pode ser outra. Se começarem a compreender que o corpo não é apenas determinado biologicamente, mas construído culturalmente em função de valores sociais, poderão concluir que ele (corpo) não está pronto e talvez nunca esteja. Se, por um lado, há um patrimônio biológico que sempre apresentou diferenças entre homens e mulheres, por outro, há contínua transformação no uso social desses corpos, uso esse que não precisa necessariamente gerar diferenças tão gritantes. Em outras palavras, o professor de educação física está continuamente influenciando a construção cultural do corpo de seus alunos. Resta saber se ele está atento a essa importante tarefa. 
Pierre Furter (1975) pode ajudar nessas reflexões afirmando que a dinâmica corporal dos adolescentes não é apenas fruto de um processo biológico. Diz ele: "Se a dinâmica corporal não pode nascer apenas do desenvolvimento fisiológico, então as inabilidades dos adolescentes não representam uma infelicidade; são o sinal de uma aprendizagem mal sucedida (p. 25)". 
O autor não está falando das diferenças motoras entre meninos e meninas, mas dos adolescentes em geral. Entretanto, sua contribuição é pertinente porque desfoca a ênfase que a educação física sempre deu aos determinantes biológicos para justificar o comportamento motor dos alunos. Quantas vezes ouvimos professores explicando uma performance matara de um aluno somente por meio de processos biológicos naturais, desconsiderando toda a gama de influências culturais, políticas e econômicas! Como se os alunos fossem dotados geneticamente de todos os atributos que se referem a seu comportamento. Nesta linha de pensamento, os meninos seriam mais dotados do que as meninas. 
Com um enfoque semelhante, Cardoso (1994) sugere que a educação física busque ações que venham a desconstruir o que ele chamou de "naturalização extremada" em relação à questão dos papéis sexuais, em que cada um seria igual a todos, embora respeitando-se as diferentes potencialidades e interesses individuais. 
Aí está, em minha opinião, a difícil tarefa para os professores de educação física: respeitar as diferenças entre meninos e meninas e, ao mesmo tempo, propiciar a todos os alunos as mesmas oportunidades de prática e desenvolvimento de suas capacidades motoras. Pender para um extremo seria respeitar as diferenças entre os sexos, achando que elas são naturais e, portanto, não devem ser contrariadas. Estaria-se reforçando a falsa idéia de que os meninos são mais dotados e as meninas são "antas". Pender para outro extremo seria propiciar a todos as mesmas oportunidades em termos motores, querendo que os resultados de meninos e meninas sejam idênticos. Estaria-se impondo uma igualdade inexistente. 
Nem igualdade forçada nem desigualdade justificada por processos naturais. Na verdade, seria prudente abandonar o binômio igualdade/desigualdade como critério para analisar a questão das diferenças sexuais nas aulas de educação física, sob o risco de considerar meninas menos iguais aos meninos ou, em outras palavras, inferiores a eles. Soares e Goellner (1994) afirmam que homens e mulheres, embora apresentem caracteres comuns ao gênero humano, apresentam também singularidades, que demarcam a distinção entre os indivíduos e deveriam afirmar uma relação de alteridade, e não de desigualdade. 
Foi a antropologia a ciência que se debateu com a questão da diferença entre os seres humanos. Se há uma unidade humana que faz com que todos os indivíduos do mundo façam parte da mesma espécie, há também a constatação de que os homens se expressam culturalmente de maneiras absolutamente diversas. Houve época em que a antropologia considerava homens diferentes como desiguais, chamando de primitivo quem não possuísse as características ditas "civilizadas" da Europa do século XIX. Era a antropologia evolucionista, que, pautada no etnocentrismo, achava que todos os homens eram iguais, apresentando apenas ritmos de desenvolvimentodiferentes (Laplantine, 1988). 
Se a biologia diz que os homens são semelhantes apesar de suas diferenças, a antropologia afirma que os homens são diferentes apesar de suas semelhanças. A educação física poderia se valer de alguns conceitos da antropologia para resolver sua dificuldade histórica em lidar com as diferenças em suas aulas. 
Unidade e pluralidade - dois lados da mesma moeda humana. 
Há que se buscar as diferenças sem, no entanto, esquecer que elas não são tão diferentes assim que não permitam comparações e atuações conjuntas. E sem esquecer também que elas não são tão homogêneas assim que permitam uma comparação rápida e precipitada. A regra é diferenciar para comparar; ou, se quiserem, comparar para diferenciar. 
Voltando à questão das "antas", devo afirmar que vislumbro uma educação física escolar sem preconceitos, que propicie a todos e a cada um o pleno desenvolvimento de suas potencialidades. Se as habilidades motoras foram historicamente delegadas preferencialmente a um sexo, que haja espaço nas aulas para a discussão desses privilégios e, se for o caso, que se inicie a transformação desses valores a partir das aulas. Vislumbro uma prática escolar de educação física que faça da diferença entre os alunos condição de sua igualdade, em vez de ser critério para justificar a subjugação de uns sobre outros. Desta forma, meninos e meninas poderão fazer aulas conjuntamente sem nenhum tipo de constrangimento, e a educação física não estará mais contribuindo para a criação de "antas" ... nem de "trogloditas". 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 
CARDOSO, F. L. "O gênero e o movimento humano", Revista Brasileira de Ciências do Esporte, voI. 15, nº 3, 1994, pp. 265-68. 
DAOLIO, J. "A representação do trabalho do professor de educação física na escola: do corpo matéria-prima ao corpo cidadão", Revista Brasileira de Ciências do Esporte, voI. 15, nº 2, 1994, pp. 181-86. 
_____ . Da cultura do corpo. Campinas: Papirus, 1995. 
DURHAM, E. R. "A dinâmica cultural na sociedade moderna", Ensaios de Opinião, nº 4, 1977, pp. 32-35. 
FURTER, P. Juventude e tempo presente: fundamentos de uma pedagogia. Petrópolis: 
Vozes, 1975. 
LANGER, S. Filosofia em nova chave, 2' ed. São Paulo: Perspectiva, 1989. 
LAPLANTINE, F. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 1988. 
MAUSS, M. Sociologia e antropologia, voI. 2. São Paulo: EPU-EDUSP, 1974. 
RODRIGUES, J. C. "O corpo liberado?", in r. Strozenberg (org.), De corpo e alma. Rio de Janeiro: Comunicação Contemporânea, 1987. 
ROMERO, E. Estereótipos femininos e masculinos em professores de educação física. Tese de doutorado, Instituto de Psicologia da USP. São Paulo, 1990. _____ . "A educação física a serviço da ideologia sexista", Revista Brasileira de Ciências do Esporte, voI. 15, nº 3, 1994, pp. 226-34. 
SOARES, C. L. e GOELLNER, S. V. "O elogio à diferença: o avesso da segregação", Revista Brasileira de Ciências do Esporte, voI. 15, nº 3, 1994, pp. 263-64. 
TEXTO 6: 
O DRAMA DO FUTEBOL BRASILEIRO:
UMA ANÁLISE SOCIOANTROPOLÓGICA
	É inegável a influência que o futebol teve na vida nacional a partir do início do século XX. Apesar de caracterizar-se, no início, como um esporte de elite, a partir de meados da década de 1920, ele se popularizou de tal forma que atinge hoje, direta ou indiretamente, toda a população brasileira. O país mobiliza-se em dias de jogos importantes ou quando a seleção nacional vai participar de uma Copa do Mundo. Enormes multidões dirigem-se semanalmente aos estádios para torcer por seu time. Grupos de torcedores acompanham regularmente sua equipe em jogos em outras cidades. Em relação a isso, é interessante lembrar, como ilustração, a verdadeira peregrinação de torcedores que ocorreu em 1976, ocasião em que o Corinthians - time até então em jejum de títulos durante mais de vinte anos - fez uma campanha memorável durante o Campeonato Brasileiro, chegando à final, quando perdeu para o Internacional, em Porto Alegre. Ocorreu que uma enorme massa humana acompanhou o time à medida que ele foi derrotando seus adversários e rumando em direção à partida final, numa verdadeira e desmedida euforia. Tornaram-se públicos vários casos de torcedores que abandonaram suas famílias, seus empregos e passaram a viajar com o time durante vários dias. 
	A rivalidade entre torcidas é uma constante, sendo que, em momentos extremos, ela transforma-se em verdadeiras batalhas campais, resultando, até mesmo, em ferimentos graves e mortes. 
As discussões sobre futebol são freqüentes em qualquer bar de esquina nos dias que antecedem uma grande peleja e nos dias subseqüentes a ela, quando se rememoram os grandes lances ou se lamentam os gols perdidos. Nas tardes de domingo, podem-se ouvir "no ar" irradiações do mesmo jogo. Aliás, é interessante perceber a quantidade de emissoras de rádio e televisão que transmitem a mesma partida, e todas elas com significativa audiência. 
Outro fato que vale destacar é a quantidade de obras artísticas que, direta ou indiretamente, retrataram o futebol - incluindo-se músicas, quadros, filmes, peças de teatro, fotografias, livros, poesias -, embora alguns autores considerem esse número ainda pequeno, levando-se em conta a influência do futebol na vida nacional, como ressalta Wolf (1978) em relação ao cinema. 
O que estamos querendo dizer com esse relatar de fatos é que o futebol faz parte da sociedade brasileira de uma maneira mais efetiva do que podemos supor à primeira vista. A sociedade brasileira - não é exagero dizer - está impregnada de futebol, e o maior exemplo disso pode ser visto no nascimento de uma criança – homem, de preferência –, quando ela recebe um nome, uma religião e um time de futebol. Time esse que ela vai aprender a gostar, compartilhando com ele momentos de glória e sofrendo com ele períodos ruins, sem jamais pensar em substituí-Io por outro. 
Pretendemos neste trabalho considerar o futebol algo além de um mero esporte com um conjunto de regras e objetivando o lazer de quem o pratica ou de quem o assiste. Pretendemos aqui considerar o futebol uma prática social que, como tal, expressa a sociedade brasileira, com todas as suas aspirações mais antigas, seus desejos mais profundos e suas contradições mais camufladas. Byington (1982), numa interessante discussão sobre os símbolos do futebol, afirma ser ele o "[ ... ] nosso maior exercício psicológico simbólico de desenvolvimento" (p. 21). 
Nesse sentido, o futebol, como o carnaval e os rituais religiosos, além de outras práticas típicas do Brasil, pode ser visto como um veículo para uma série de dramatizações da sociedade brasileira. Dessa forma, a compreensão sociológica do futebol praticado em nosso país permitirá melhor interpretação da sociedade brasileira. O futebol praticado no Brasil é apenas um modo, entre outros existentes, da sociedade brasileira apresentar-se, deixando-se, assim, descobrir (DaMatta et aI., 1982). 
Para uma compreensão do futebol sob este ângulo, é necessário, segundo DaMatta (1982), deixarmos de lado uma visão utilitarista da sociologia, que prega que o "futebol é o ópio do povo". Essa visão foi difundida por militantes de esquerda, com algum sucesso na época da campanha da seleção brasileira de futebol em busca do tricampeonato mundial no México, em 1970. Como todos se lembram, o Brasil passava na época por um período de ditadura, repressão e censura; e consideravam algumas facções políticas que uma vitória brasileira seria utilizada pelos militares para divulgar o sistema político vigente, ocultando da grande massa os reais problemas existentes no país. Este fato pode, em alguma medida, ter acontecido, mas não é possível concluir daí que o "futebol é o ópio do povo". DaMatta (1982) adverte que esse ponto de vista contribui para a compreensão do futebol como desvinculado da sociedade, ou seja, futebol e sociedade encontrar-se-iam em oposição, como se o primeiro fosse prejudicial ao segundo. 
Na verdade, o que estápor trás destas considerações é a concepção de futebol - ou, para ser mais abrangente, de esporte - que impera na nossa sociedade. O esporte, ao contrário do trabalho, da economia ou, ainda, da guerra, seria uma atividade menos séria - como o carnaval, a arte, a religião -, que estaria associada a valores como o amor, o divertimento, a recreação. Seria uma atividade menor, que teria o único objetivo de enganar ou distrair a população dos problemas realmente sérios, atribuições da classe dominante. 
Em oposição a estas idéias, DaMatta (1982) propõem o enfoque de estudo do futebol como atividade da sociedade: 
Enquanto uma atividade da sociedade, o esporte é a própria sociedade exprimindo-se por meio de uma certa perspectiva, regras, relações, objetos, gestos, ideologias etc., permitindo, assim, abrir um espaço social determinado: o espaço do esporte e do jogo (p. 24). 
Considerando o futebol membro legítimo da nossa sociedade e reconhecendo a penetração que ele tem na vida não só da população brasileira, mas no espírito de cada cidadão do país, somos impelidos a formular a seguinte pergunta: por que o futebol, sendo uma prática oriunda da Inglaterra, teve e tem tanta repercussão no Brasil? Como é possível um esporte que não nasceu aqui, ter se adaptado tão bem ao nosso povo e ter se transformado no principal esporte nacional? 
DaMatta (1982) justifica a popularidade do futebol no Brasil "[ ... ] porque ele permite expressar uma série de problemas nacionais, alternando percepção e elaboração intelectual com emoções e sentimentos concretamente sentidos e vividos" (p. 40). Byington (1982) explica que "[ ... ] um fenômeno só faz vibrar a alma individual e cultural de um povo na medida em que contém os símbolos que expressam e nutrem a vida psíquica deste povo" (p. 21). Vogel (1982), tentando também responder à questão, levanta a suspeita de que "[ ... ] existe uma relação entre o espetáculo do jogo de futebol e determinados comportamentos rituais da sociedade brasileira" (p. 101). 
Não pretendemos encerrar esta discussão, mas a direção da resposta, ao que nos parece, está na similaridade e na combinação de algumas características originais do futebol com determinados hábitos, atributos ou estilo do povo brasileiro. Explicando melhor, parece haver uma certa relação entre as exigências do esporte e as características socioculturais do povo brasileiro. Não estamos falando aqui de características físicas como força, resistência ou velocidade, que obviamente seriam difíceis de ser encontradas na maioria da população de um país subdesenvolvido como é o Brasil. Estamos falando de uma condição sociocultural do povo brasileiro, que se adapta mais ou menos a uma determinada prática. 
Na tentativa de nos aproximarmos da resposta à questão colocada, mas reconhecendo que não conseguiremos neste trabalho a resposta completa, levantaremos quatro aspectos do futebol que se relacionam com as características do povo brasileiro. 
O primeiro ponto refere-se à busca da igualdade existente no futebol. Mesmo reconhecendo que existem diferenças econômicas entre as equipes de futebol e que estas diferenças levam a resultados até certo ponto previsíveis nos confrontos, o futebol em si é um exercício de igualdade. Em outras palavras, os dois times têm as mesmas condições durante uma partida. O campo de jogo é dividido em duas metades iguais, sendo que cada equipe ocupa uma metade durante um tempo. Cada equipe inicia o jogo num tempo, sendo que a primeira a fazer isso é escolhida por sorteio. O time que sofre um gol tem o direito a reiniciar a partida. O time que comete falta sobre um jogador adversário é punido com um tiro livre, sendo que será penalidade se essa falta tiver sido cometida dentro da área. Quando a bola sai do campo, deve ser reposta em jogo pelo time contrário ao que tocou na bola pela última vez. E todas estas decisões devem ser tomadas por um árbitro teoricamente imparcial, auxiliado por dois bandeirinhas que não trocam de lado durante o jogo a fim de acompanharem o ataque das duas equipes. 
Não estamos afirmando que o futebol sempre ocorre num clima de igualdade, mas sim que as regras foram elaboradas visando essa igualdade, que a massa torcedora sabe não ter em seu trabalho, em sua cidade, em seu lazer, enfim, em sua vida fora dos estádios. No futebol, essa possibilidade de igualdade, por mais remota que possa ser na vida cotidiana, estaria sendo dramatizada, exercitada, enfim, atualizada pela população. 
Essa questão da igualdade reflete-se também na composição das torcidas. Para se fazer parte de uma torcida, não é necessário nenhum tipo de atributo, além da vontade pessoal e, logicamente, das influências familiares. O indivíduo torce para o time que ele quiser, enquanto fora do futebol ele não tem essa liberdade. Há regras explícitas para se pertencer a uma classe social, ao grupo de universitários ou ao grupo de turistas etc. 
Um segundo ponto a ser ressaltado no futebol é que se trata de um esporte jogado basicamente com os pés, com a exceção do goleiro que pode, além dos pés, usar as mãos dentro da área e com a exceção da reposição da bola em jogo quando esta sai pela linha lateral. Byington (1982) considera o futebol revolucionário justamente por ser praticado, basicamente, com a parte inferior do corpo. É interessante comparar essa prática com os pés que é o futebol com a da capoeira, do samba e de certas danças rituais indígenas. Todas essas práticas têm nos pés um papel preponderante. A capoeira é uma prática na qual só é permitido tocar o oponente com os pés. O bom sambista é aquele que tem o "samba no pé". É possível que o indivíduo brasileiro, sendo uma mistura das raças negra, indígena e branca, tenha maior facilidade histórica e cultural com os pés para a prática do futebol do que indivíduos de outros países. 
Essa habilidade com os pés seria, segundo Mauss (1974), uma técnica corporal, característica motora de uma sociedade, passível de transmissão para seus descendentes. Esta noção explicaria o fato de os meninos no Brasil nascerem, praticamente, "sabendo jogar futebol". 
Um terceiro aspecto do futebol que se relaciona com a cultura brasileira é a necessidade e a importância, em uma partida, do drible. É por meio do drible que o atacante burla a defesa adversária e alcança o objetivo máximo, que é o gol. O drible nada mais é do que um ato de esperteza do atacante, que ameaça ir para um lado e vai para o outro, ou ameaça tocar a bola de lado e toca-a entre as pernas do atônito defensor. Basta lembrarmos de Garrincha, que, com suas fintas inesquecíveis, muitas vezes passava por mais de um defensor deixando-os caídos ao chão. Impossível pensar num drible de Garrincha e não associá-Io ao malandro brasileiro, com seu andar gingado, seu jeito maroto e sua atitude esperta para conseguir sobreviver. Como num drible no futebol, o malandro é aquele que tem que dar um jeito para conseguir dinheiro, para levar alguma vantagem, para conseguir, enfim, marcar seus gols. 
Dois outros autores discutiram a "malandragem" do homem brasileiro relacionando-a com o futebol. DaMatta (1979) considera a "malandragem" um modo de defesa autenticamente brasileiro. Castellani Filho (1985), substituindo o termo por "molecagem", coloca a seguinte questão: "seria a molecagem expressão da arte popular, e o futebol, através dela, o palco que melhor possibilita a encenação da tragédia popular?" (p. 7). 
Um quarto e último aspecto do futebol que queremos considerar é a permissão para a livre expressão individual. Apesar de ser um esporte coletivo, o futebol permite e até incentiva as jogadas individuais. Podemos dizer que é por intermédio delas que uma equipe consegue desestruturar o sistema coletivo da equipe adversária. É um chute inesperado, um drible desconcertante, uma arrancada veloz de um jogador, que faz com que uma equipe leve vantagem sobre outra e concretize essa vantagem em gols. 
Vogel (1982) explica melhor esta questão, afirmando que: 
[...'] o futebol ilustra o conflito potencial entre a criatividadeindividual, que floresce nas jogadas de efeito, nas bicicletas, nos lençóis e nos dribles, e a entidade coletiva do conjunto, para o qual se deve, em princípio, jogar (p. 112). 
Da mesma forma, na vida cotidiana, todos os indivíduos devem cumprir regras sociais, mas há necessidade de, ao se fazer o que todos fazem, perceber-se como um indivíduo único, diferente de todos os outros. Este exercício é perfeitamente possível num esporte como o futebol. 
Em relação à questão da livre expressão individual, é interessante considerar o estilo de jogo brasileiro em comparação com o estilo de jogo de outros países, principalmente europeus. Por mais que se tente copiar o estilo de jogo de algumas seleções européias, o jogador brasileiro parece não se adaptar a esse modelo. Ele prefere o drible, a jogada de efeito, o gol "de placa", a "bicicleta", a "chaleira", a jogada mais difícil, em vez do toque de primeira, da jogada rápida, do futebol solidário, dos esquemas predeterminados pelo técnico. Parece-nos que os técnicos de futebol que estão se saindo bem atualmente no Brasil são os que utilizam alguns conceitos de futebol de outros países, mas não reprimem a individualidade do jogador brasileiro. 
Obviamente, não pretendemos esgotar o assunto com esses quatro pontos que levantamos. Acreditamos que existem outros aspectos no futebol e na sociedade brasileira que fazem com que o futebol se adeqüe perfeitamente ao povo brasileiro e vice-versa. Ressaltamos ainda a necessidade e a importância de mais estudos nessa área, porque, mais do que um conjunto de regras, técnicas e táticas, o futebol é a expressão da cultura brasileira, com todas as suas características. 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 
BYINGTON, C. "A riqueza simbólica do futebol", Psicologia Atual, 5,25,1982, pp.20-32. 
CASTELLANI FILHO, L. "O fenômeno cultural chamado 'futebol' - Uma proposta de estudo", Artus, 8, 15, 1985, pp. 6-9. 
DAMATTA, R. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. 
DAMATTA, R. et aI. Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982. 
MAUSS, M. Sociologia e antropologia, 2Q vol. São Paulo: EPU-EDusP, 1974. VOGEL, A. "O momento feliz - Reflexões sobre o futebol e o éthos nacional", in R. DaMatta et aI., Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982, capo IV. 
WOLF, J. "No cinema, o futebol ficou na reserva", Vozes, n" 8, 1978, pp. 591-603. 
TEXTOS COMPLEMENTARES
TEXTO COMPLEMENTAR I
VOCÊ TEM CULTURA?*[7: * * Artigo publicado no Jornal da Embratel, Rio de Janeiro, 1981.]
Roberto DaMatta**[8: ** Roberto Da Matta, pesquisador e professor de Antropologia Social do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista. É autor dos livros: Ensaios de Antropologia Estrutural (Editora Vozes), Um Mundo Dividido (Editora Vozes) , O Inverso do Carnaval (Edições Pinakotheke), Carnavais, Malandros e Heróis (ZaharEditores) eRelativizando: Uma introdução à Antropologia Social (Editora Vozes). É autor de inúmeros artigospublicados em revistas especializadas nacionais e estrangeiras. Foi professor visitante na Universidade deWinsconsin, Madison (Estados Unidos) e na Universidade de Cambridge (Inglaterra). Tem realizado cursos econferências na maioria das universidades brasileiras, americanas e européias.]
Outro dia ouvi uma pessoa dizer que “Maria não tinha cultura”, era “ignorante dos fatos básicos da política, economia e literatura”. Uma semana depois, no Museu onde trabalho, conversava com alunos sobre “a cultura dos índios Apinayé de Goiás”, que havia estudado de 1962 até 1976, quando publiquei um livro sobre eles (Um mundo dividido). Refletindo sobre os dois usos de uma mesma palavra, decidi que esta seria a melhor forma de discutir a idéia ou o conceito de cultura tal como nós, estudantes da sociedade a concebemos. Ou, melhor ainda, apresentar algumas noções sobre a cultura e o que ela quer dizer, não como uma simples palavra, mas como uma categoria intelectual um conceito que pode nos ajudar a compreender melhor o que acontece no mundo em nossa volta.
Retomemos os exemplos mencionados porque eles encerram os dois sentidos mais comuns da palavra. No primeiro, usa-se cultura como sinônimo de sofisticação, de sabedoria, de educação no sentido restrito do termo. Quer dizer, quando falamos que “Maria não tem cultura”, e que “João é culto”, estamos nos referindo a um certo estado educacional destas pessoas, querendo indicar com isto sua capacidade de compreender ou organizar certos dados e situações. Cultura aqui é equivalente a volume de leituras, a controle de informações, a títulos universitários e chega até mesmo a ser confundido com inteligência, como se a habilidade para realizar certas operações mentais e lógicas (que definem de fato a inteligência), fosse algo a ser medido ou arbitrado pelo número de livros que uma pessoa leu, as línguas que pode falar, ou ao quadros e pintores que pode, de
memória, enumerar. Como uma espécie de prova desta associação, temos o velho ditado informando que “cultura não traz discernimento”... ou inteligência, como estou discutindo aqui. Neste sentido, cultura é uma palavra usada para classificaras pessoas e, às vezes, grupos sociais, servindo como uma arma discriminatória contra algum sexo, idade (“as gerações mais novas são incultas”), etnia (“os pretos não tem cultura”) ou mesmo sociedades inteiras, quando se diz que “os franceses são cultos e civilizados” em oposição aos americanos que são “ignorantes e grosseiros”. Do mesmo modo é comum ouvir-se referências à humanidade, cujos valores seguem tradições diferentes e desconhecidas, como a dos índios, como sendo sociedades que estão “na Idade da Pedra” e se encontram em “estágio cultural muito atrasado”. 
A palavra cultura, enquanto categoria do senso-comum, ocupa como vemos um importante lugar no nosso acervo conceitual, ficando lado-a-lado de outras, cujo uso na vida cotidiana é também muito comum. Estou me lembrando da palavra “personalidade” que, tal como ocorre com a palavra “cultura”, penetra o nosso vocabulário com dois sentidos bem diferenciados. No campo da Psicologia, personalidade define o conjunto dos traços que caracterizam todos os seres humanos. É aquilo que singulariza todos e cada um de nós como uma pessoa diferente, com interesses, capacidades e emoções particulares. Mas na vida diária, personalidade é usada como um marco para algo desejável e invejável de uma pessoa. Assim, certas pessoas teriam “personalidade" outras não! É comum se dizer que "João tem personalidade” quando de fato se quer indicar que "João tem magnetismo", sendo uma pessoa de "presença". Do mesmo modo, dizer que "João não tem personalidade", quer apenas dizer que ele não é uma pessoa atraente ou inteligente.
Mas no fundo, todos temos personalidade, embora nem todos possamos ser pessoas belas ou magnetizadoras como um artista da Novela das Oito. Mesmo uma pessoa "sem personalidade" tem, paradoxalmente, personalidade na medida em que ocupa um espaço social e físico e tem desejos e necessidades. Pode ser uma pessoa sumamente apagada, mas ser assim é precisamente o traço marcante de sua personalidade.
No caso do conceito de cultura ocorre o .mesmo, embora nem todos saibam disso. De fato, quando um antropólogo social fala em "cultura", ele usa a palavra como um conceito chave para a interpretação da vida social. Porque para nós ''cultura" não é simplesmente um referente que marca uma hierarquia de "civilização" mas a maneira de viver total de um grupo, sociedade, país ou pessoa. Cultura é, em Antropologia Social e Sociologia, um mapa, um receituário, um código através do qual as pessoas de um dado grupo pensam, classificam, estudam e modificam o mundo e a si mesmas. É justamente porque compartilham de parcelas importantes deste código (a cultura) que um conjunto de indivíduos com interesses e capacidades distintas e até mesmo opostas, transformam-se num grupo e podem viver juntos sentindo-se partede uma mesma totalidade.
Podem, assim, desenvolver relações entre si porque a cultura lhes forneceu normas que dizem respeito aos modos, mais (ou menos) apropriados de comportamento diante de certas situações. Por outro lado, a cultura não é um código que se escolhe simplesmente. É algo que está dentro e fora de cada um de nós, como as regras de um jogo de futebol, que permitem o entendimento do jogo e, também, a ação de cada jogador, juiz, bandeirinha e torcida. Quer dizer, as regras que formam a cultura (ou a cultura como regra) é algo que permite relacionar indivíduos entre si e o próprio grupo com o ambiente onde vivem. Em geral, pensamos a cultura como algo individual que as pessoas inventam, modificam e acrescentam na medida de sua criatividade e poder. Daí falarmos que Fulano é mais culto que Sicrano e distinguirmos formas de "cultura" supostamente mais avançadas ou preferidas que outras. Falamos então em "alta cultura'' e "baixa cultura" ou “cultura popular", preferindo naturalmente as formas sofisticadas que se confundem com a própria idéia de cultura. Assim, teríamos a cultura e culturas particulares e adjetivadas.(popular, indígena, nordestina, de classe baixa, etc.) como formas secundárias, incompletas e inferiores de vida social.
Mas a verdade é que todas as formas culturais ou todas as "sub-culturas” de uma sociedade são equivalentes e, em geral, aprofundam algum aspecto importante que não pode ser esgotado completamente por uma outra "sub-cultura". Quer dizer, existem gêneros de cultura que são equivalentes a diferentes modos de sentir, celebrar, pensar e atuar sobre o mundo e esses gêneros podem estar associados a certos segmentos sociais. 0 problema é que sempre que nos aproximamos de alguma forma de comportamento e de pensamento diferente, tendemos a classificar a diferença hierarquicamente, que é uma forma de excluí-la.
Um outro modo de perceber e enfrentar a diferença cultural é tomar a diferença como um desvio, deixando de buscar seu papel numa totalidade. Desta forma, podemos ver o carnaval como algo desviante de uma festa religiosa, sem nos darmos conta de que as festas religiosas e o carnaval guardam uma profunda relação de complementaridade. Realmente, se no terreno da festa religiosa somos
marcados pelo mais profundo comedimento e respeito pelo foco no "outro mundo” é porque no carnaval podemos nos apresentar realizando o justo oposto.
Assim, o carnavalesco e o religioso não podem ser classificados em termos de superior ou inferior ou como articulados a uma "cultura autêntica" e superior, mas devem ser vistos nas suas relações que são complementares. O que significa dizer que tanto há cultura no carnaval quanto na procissão e nas festas cívicas, pois que cada uma delas é um código capaz de permitir um julgamento e uma atuação sobre o mundo social no Brasil. Como disse uma vez, essas festas nos revelam leituras da sociedade brasileira por nós mesmos e é nesta direção que devemos discutir o conteúdo e a forma de cada cultura ou sub-cultura em uma sociedade (veja-se o meu livro, Carnavais; Malandros e Heróis).
No sentido antropológico, portanto, a cultura é um conjunto de regras que nos diz como o mundo pode e deve ser classificado. Ela, como os textos teatrais, não pode prever completamente como iremos nos sentir em cada papel que devemos ou temos necessariamente que desempenhar, mas indica maneiras gerais e exemplos de como pessoas que viveram antes de nós os desempenharam. Mas isso não impede, conforme sabemos, emoções. Do mesmo modo que um jogo de futebol com suas regras fixas não impede renovadas emoções em cada jogo.
É que as regras apenas indicam os limites e apontam os elementos e suas combinações explícitas. O seu funcionamento e, sobretudo, o modo pelo qual elas engendram novas combinações em situações concretas é algo que só a realidade pode dizer. Porque embora cada cultura contenha um conjunto finito de regras, suas possibilidades de atualização, expressão e reação em situações concretas, são infinitas.
Apresentada assim, a cultura parece ser um bom instrumento para compreender as diferenças entre os homens e as sociedades. Elas não seriam dadas, de uma vez por todas, por meio de um meio geográfico ou de uma raça, como diziam os estudiosos do passado, mas em diferentes configurações ou relações que cada sociedade estabelece no decorrer de sua evolução.
Mas é importante acentuar que a base destas configurações é sempre um repertório comum de potencialidades. Algumas sociedades desenvolveram algumas dessas potencialidades mais e melhor do que outras, mas isso não significa que elas sejam mais pervertidas ou mais adiantadas. 0 que isso parece indicar é, antes de mais nada, o enorme potencial que cada cultura encerra, como elemento plástico, capaz de receber as variações e motivações dos seus membros, bem como os desafios externos. Nosso sistema caminhou na direção de um poderoso controle sobre a natureza, mas isso é apenas um traço entre muitos outros. Há sociedades na Amazônia onde o controle da natureza é muito pobre, mas onde existe uma enorme sabedoria relativa ao equilíbrio entre os homens e os grupos cujos interesses são divergentes. 0 respeito pela vida que todas as sociedades indígenas nos apresentam, de modo tão vivo, pois que os animais são seres incluídos na formação e discussão de sua moralidade e sistema político, parece se constituir não em exemplo de ignorância e indigência lógica, mas em verdadeira lição, pois respeitar a vida deve certamente incluir toda a vida e não apenas a vida humana.
Hoje estamos mais conscientes do preço que pagamos pela exploração desenfreada do mundo natural sem a necessária moralidade que nos liga inevitavelmente às plantas, aos animais, aos rios e aos mares. Realmente, pela escala destas sociedades tribais, somos uma sociedade de bárbaros, incapazes de compreender .o significado profundo dos elos que nos ligam com todo o mundo em escala global. Pois é assim que pensam os índios e por isso que as suas histórias são povoadas de animais que falam e homens que se transformam em animais. Conosco, são as máquinas que tomam esse lugar...
O conceito de cultura, ou, a cultura como conceito, então, permite uma perspectiva mais consciente de nós mesmos. Precisamente porque diz que não há
homens sem cultura e permite comparar culturas e configurações culturais como entidades iguais, deixando de estabelecer hierarquias em que inevitavelmente existiriam sociedades superiores e inferiores. Mesmo diante de formas culturais aparentemente irracionais, cruéis ou pervertidas, existe o homem a entendê-las – ainda que seja para evitá-las, como fazemos com o crime - é uma tarefa inevitável
que faz parte da condição de ser humano e viver num universo marcado e demarcado pela cultura. Em outras palavras, a cultura permite traduzir melhor a diferença entre nós e os outros e, assim fazendo, resgatar a nossa humanidade no
outro e a do outro em nós mesmos. Num mundo como o nosso, tão pequeno pela comunicação em escala planetária, isso me parece muito importante. Porque já não se trata somente de fabricar mais e mais automóveis, conforme pensávamos em 1950, mas desenvolver nossa capacidade, para enxergar melhores caminho para os pobres, os marginais e os oprimidos. E isso só se faz com uma atitude aberta para as formas e configurações sociais que, como revela o conceito de cultura, estão dentro e fora de nós.
Num país como o nosso, onde as formas hierarquizantes de classificação cultural sempre foram dominantes, onde a elite sempre esteve disposta a autoflagelar-se dizendo que não temos uma cultura, nada mais saudável do que esse exercício antropológico de descobrir que a fórmula negativa - esse dizer que não temos cultura - é, paradoxalmente, um modo de agir cultural que deve ser visto, pesado e talvez substituído por uma fórmula mais confiante no nosso futuro e nas nossas potencialidades.
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A Polissemia do conceito de culturaDiversos sentidos da palavra variam consoante a aplicação em determinado ramo do conhecimento humano.
Agricultura - é sinônimo de cultivo. 
Ciências sociais - (latu sensu) é o aspecto da vida social que se relaciona com a produção do saber, arte, folclore, mitologia, costumes, etc., bem como à sua perpetuação pela transmissão de uma geração à outra. 
Sociologia - o conceito de cultura tem um sentido diferente do senso comum. Sintetizando simboliza tudo o que é aprendido e partilhado pelos indivíduos de um determinado grupo e que confere uma identidade dentro do seu grupo de pertença. Na sociologia não existem culturas superiores, nem culturas inferiores pois a cultura é relativa, designando-se em sociologia por relativismo cultural, isto é a cultura do Brasil não é igual à cultura portuguesa, por exemplo: diferem na maneira de se vestirem, na maneira de agirem, têm crenças, valores e normas diferentes... isto é têm padrões culturais distintos. 
Filosofia - cultura é o conjunto de manifestações humanas que contrastam com a natureza ou comportamento natural. Por seu turno, em biologia uma cultura é normalmente uma criação especial de organismos (em geral microscópicos) para fins determinados (por exemplo: estudo de modos de vida bacterianos, estudos microecológicos, etc.). No dia-a-dia das sociedades civilizadas (especialmente a sociedade ocidental) e no vulgo costuma ser associada à aquisição de conhecimentos e práticas de vida reconhecidas como melhores, superiores, ou seja, erudição; este sentido normalmente se associa ao que é também descrito como “alta cultura”, e é empregado apenas no singular (não existem culturas, apenas uma cultura ideal, à qual os homens indistintamente devem se enquadrar). Dentro do contexto da filosofia, a cultura é um conjunto de respostas para melhor satisfazer as necessidades e os desejos humanos. Cultura é informação, isto é, um conjunto de conhecimentos teóricos e práticos que se aprende e transmite aos contemporâneos e aos vindouros. A cultura é o resultado dos modos como os diversos grupos humanos foram resolvendo os seus problemas ao longo da história. Cultura é criação. O homem não só recebe a cultura dos seus antepassados como também cria elementos que a renovam. A cultura é um fator de humanização. O homem só se torna homem porque vive no seio de um grupo cultural. A cultura é um sistema de símbolos compartilhados com que se interpreta a realidade e que conferem sentido à vida dos seres humanos. 
Antropologia - esta ciência entende a cultura como o totalidade de padrões aprendidos e desenvolvidos pelo ser humano. Segundo a definição pioneira de Edward Burnett Tylor, sob a etnologia (ciência relativa especificamente do estudo da cultura) a cultura seria “o complexo que inclui conhecimento, crenças, arte, morais, leis, costumes e outras aptidões e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade”. Portanto corresponde, neste último sentido, às formas de organização de um povo, seus costumes e tradições transmitidas de geração para geração que, a partir de uma vivência e tradição comum, se apresentam como a identidade desse povo. 
O uso de abstração é uma característica do que é cultura: os elementos culturais só existem na mente das pessoas, em seus símbolos tais como padrões artísticos e mitos. Entretanto fala-se também em cultura material (por analogia a cultura simbólica) quando do estudo de produtos culturais concretos (obras de arte, escritos, ferramentas, etc.). Essa forma de cultura (material) é preservada no tempo com mais facilidade, uma vez que a cultura simbólica é extremamente frágil.
A principal característica da cultura é o chamado mecanismo adaptativo: a capacidade de responder ao meio de acordo com mudança de hábitos, mais rápida do que uma possível evolução biológica. O homem não precisou, por exemplo, desenvolver longa pelagem e grossas camadas de gordura sob a pele para viver em ambientes mais frios – ele simplesmente adaptou-se com o uso de roupas, do fogo e de habitações. A evolução cultural é mais rápida do que a biológica. No entanto, ao rejeitar a evolução biológica, o homem torna-se dependente da cultura, pois esta age em substituição a elementos que constituiriam o ser humano; a falta de um destes elementos (por exemplo, a supressão de um aspecto da cultura) causaria o mesmo efeito de uma amputação ou defeito físico, talvez ainda pior.
Além disso a cultura é também um mecanismo cumulativo. As modificações trazidas por uma geração passam à geração seguinte, de modo que a cultura transforma-se perdendo e incorporando aspectos mais adequados à sobrevivência, reduzindo o esforço das novas gerações.
TEXTO COMPLEMENTAR II
O ritual do corpo entre os Sonacirema
	Neste artigo, Horace Minner demonstra que as “atitudes quanto ao corpo” têm uma influência generalizada em muitas instituições da sociedade dos Sonacirema.
	O antropólogo tornou-se tão familiarizado com a diversidade de modos com que diferentes povos reagem diante de situações similares, que ele não consegue se surpreender com os costumes mais exóticos possíveis. Com efeito, se quaisquer entre todas as combinações logicamente possíveis de comportamento não tiverem sido encontradas em alguma parte do mundo, ele tem o direito de suspeitar que elas devem estar presentes em alguma tribo ainda não estudada. (...) Neste sentido, as crenças e práticas mágicas dos Sonacirema apresentam aspectos tão pouco usuais, que nos perece importante descrevê-las como exemplo dos extremos a que o comportamento humano pode chegar.
	O Professor Linton foi o primeiro a chamar a atenção dos antropólogos para o complexo ritual dos Sonacirema, há 20 anos atrás, mas a cultura deste povo é ainda pouco compreendida. Os Sonacirema são um grupo norte-americano que vive no território que se estende desde os Cree, do Canadá, aos Yaqui e Tarahuma do México, e ao Caribe e Aruaque das Antilhas. Pouco se sabe quanto à sua origem, embora a tradição mítica afirme que eles vieram do leste...
	A cultura Sonacirema se caracteriza por uma economia de mercado altamente desenvolvida, que se beneficiou de um habitat cultural muito rico. Embora a maior parte do tempo das pessoas, nesta sociedade, seja devotada à ocupação econômica, uma grande porção de frutos destes trabalhos e uma considerável parte do dia são despendidas em atividades rituais. O foco destes rituais é o corpo humano, cuja aparência e saúde constituem a preocupação dominante dentro do ethos deste povo. Embora tal tipo de preocupação não seja realmente incomum, seus aspectos cerimoniais e a filosofia aí implícitas são únicos.
	A crença fundamental a todo o sistema parece ser a de que o corpo humano é feio e que a sua tendência natural é a debilidade e a doença. Encarcerado em tal corpo, a única esperança do homem é evitar estas características através do uso de poderosas influências do ritual e da cerimônia. Todo grupo doméstico possui um ou mais santuários dedicados a tal propósito. Os indivíduos mais poderosos desta sociedade têm vários santuários em sua casa e, de fato, a opulência de uma casa é freqüentemente avaliada em termos da quantidade dos centros rituais que abrigam. A maioria das casas é de taipa, mas o santuário dos mais ricos tem as paredes cobertas de pedra. As famílias mais pobres imitam os mais ricos, aplicando placas de cerâmica nas paredes de seus santuários.
	Embora cada família possua ao menos um destes santuários, os rituais a eles associados não são cerimônias familiares, mas sim privadas e secretas. Os ritos normalmente só são discutidos com as crianças e isto apenas durante a fase em que elas estão sendo iniciadas nestes mistérios. Eu pude, entretanto, estabelecer com os nativos uma relação que me permitiu examinar este santuário e obter uma descrição destes rituais.
	O ponto focal do santuário é uma caixa ou arca embutida na parede. Nesta arca são guardados os inúmeros feitiços e porções mágicas, sem as quais nenhum nativo acredita que poderia viver. Tais feitiços e porçõessão obtidos de vários profissionais especializados. Dentre estes, os mais poderosos são os curandeiros, cujos serviços devem ser retribuídos por meio de presentes substanciais. No entanto, o curandeiro não fornece as porções curativas para os seus clientes, decidindo apenas os ingredientes que nelas devem entrar, escrevendo-os em seguida em uma linguagem antiga e secreta. Tal escrita só pode ser decifrada pelo curandeiro e pelos herbanários que, mediante outros presentes, fornecem o feitiço desejado.
O feitiço não é descartado depois de ter servido ao seu propósito, mas é colocado na caixa mágica do santuário doméstico. Como estes materiais mágicos são específicos para certas doenças, e considerando-se que as doenças reais ou imaginárias deste povo são muitas, a caixa de mágicas costuma estar transbordando. Os pacotes mágicos são tão numerosos que as pessoas esquecem sua serventia original, e temem usá-los de novo. Embora os nativos tenham-se mostrado vagos em relação a esta questão, só podemos concluir que a idéia subjacente ao costume de se guardar todos os velhos materiais mágicos, é a de que sua presença na caixa de mágica, diante da qual os rituais do corpo são encenados, protegerá de alguma forma o fiel.
Embaixo da caixa de mágicas existe uma pequena fonte. Todo dia cada membro da família, em sucessão, entra no quarto do santuário, curva a cabeça diante da caixa mágica, mistura diferentes tipos de água sagrada na fonte e realiza um breve rito de ablução. As águas sagradas são obtidas do Templo da Água da comunidade, onde os sacerdotes conduzem elaboradas cerimônias para manter o líquido ritualmente puro.
Na hierarquia dos profissionais da magia, abaixo do curandeiro, em termos de prestígio, estão os especialistas cuja designação é melhor traduzida por “homens-da-boca-sagrada”. Os Sonacirema têm um horror pela boca, e uma fascinação por ela, que chega às raias da patologia. Acredita-se que a condição da boca possui uma influência sobrenatural nas relações sociais. Não fosse pelos rituais da boca, os Sonacirema acham que seus dentes cairiam, suas gengivas sangrariam, suas mandíbulas murchariam, seus amigos os abandonariam, seus amantes os rejeitariam. Eles também acreditam na existência de uma forte relação entre características orais e morais. Assim, por exemplo, existe uma ablução ritual da boca das crianças que se considera como forma de desenvolver sua fibra moral.
O ritual do corpo cotidianamente realizado por todos inclui um rito bucal. Apesar de sabermos que este povo é tão meticuloso no que diz respeito ao cuidado com a boca, este rito envolve uma prática que o estrangeiro não-iniciado não consegue deixar de achar repugnante. Conforme me foi descrito, o rito consiste na inserção de um pequeno feixe de cerdas na boca, juntamente com certos pós mágicos, e em seguida na movimentação deste feixe segundo uma série de gestos altamente formalizados.
Além deste rito bucal privado, as pessoas procuram um homem-da-boca-sagrada uma ou duas vezes por ano. Estes profissionais possuem uma impressionante parafernália, consistindo em uma variedade de perfuratrizes, furadores, sondas e agulhas. O uso destes objetos no exorcismo dos perigos da boca implica uma quase inacreditável tortura ritual do cliente. O homem-da-boca-sagrada abre a boca do cliente e, usando as ferramentas citadas, alarga quaisquer buracos que o uso tenha feito nos dentes. Materiais mágicos são então depositados nestes buracos. Se não encontram buracos naturais nos dentes, grandes seções de um ou mais dentes são serrados para que a substância sobrenatural possa ser aplicada. Na imaginação do cliente, o objetivo destas aplicações é deter o apodrecimento dos dentes e atrair amigos. O caráter extremamente sagrado e tradicional do mito fica evidente no fato de que os nativos voltam todo ano ao homem-da-boca-sagrada, embora seus dentes continuem a deteriorar.
Esperamos que, quando um estudo intensivo dos Sonacirema for levado a cabo, seja realizada uma pesquisa cuidadosa sobre a estrutura de personalidade destes nativos. Basta observar o brilho nos olhos de um homem-da-boca-sagrada, quando ele enfia uma agulha em um nervo exposto, para que suspeitemos de que uma certa dose de sadismo está presente. Se isto puder ser verificado, uma configuração muito interessante emergirá, posto que a maioria da população mostra tendências masoquistas bem definidas. Era a tais tendências que o Professor Linton se referia, ao discutir uma parte especial do ritual cotidiano do corpo, que é realizado apenas pelos homens. Esta parte do rito envolve uma escarnificação e laceração da superfície do rosto por meio de instrumento cortante. Há ritos femininos especiais que ocorrem somente quatro vezes por mês lunar, mas que o que lhes falta em freqüência, lhes sobra em barbárie. Como parte desta cerimônia, as mulheres assam suas cabeças em pequenos fornos durante mais ou menos uma hora. O ponto teoricamente interessante é que um povo dominantemente masoquista desenvolve especialistas sádicos.
Os curandeiros possuem um templo imponente, o latipsoh, em cada grupo local de bom tamanho. As cerimônias mais elaboradas, necessárias para o tratamento de indivíduos muito doentes, só podem ser realizadas neste templo. Tais cerimônias envolvem não só o taumaturgo, como também um grupo permanente de vestais que se movimentam em câmaras do templo com uma roupa e um penteado distintivos.
As cerimônias em latipsoh são tão violentas que chega a ser fenomenal o fato de que uma razoável proporção dos nativos realmente doentes que entram no templo consiga curar-se. Crianças pequenas, cuja doutrinação é ainda incompleta, costumam resistir às tentativas de levá-las ao templo, alegando que “é onde a gente vai para morrer”. Apesar disto, os doentes adultos não apenas desejam, como ficam ansiosos para submeter-se à prolongada purificação ritual, se possuem meios materiais para tanto. Os guardiões de muitos templos, não importa quão doente o suplicante ou quão grave é a emergência, não admitem o cliente se ele não puder dar um rico presente ao zelador. Mesmo depois que se conseguiu a admissão e se sobreviveu às cerimônias, os guardiões não permitem a saída do neófito até que este dê mais outro presente.
O(a) suplicante, ao entrar no templo, é primeiramente despido(a) de todas as suas roupas. Na vida cotidiana, os Sonacirema evitam a exposição de seu corpo e das suas funções naturais. O banho e a excreção são realizados somente na intimidade do santuário doméstico, onde são formalizados, fazendo os ritos corporais. A súbita perda da privacidade corporal, ao se entrar no latipsoh, costuma causar um choque psicológico. Um homem, cuja mulher jamais viu quando ele realiza um ato excretório, de repente, encontra-se nu, assistido por uma vestal enquanto executa suas funções naturais dentro de um vaso sagrado. Este tipo de tratamento cerimonial é necessário porque as excreções são usadas por um adivinho, para diagnosticar o curso e a natureza da doença do paciente. Os clientes femininos, por seu lado, vêem seus corpos nus submetidos ao escrutínio, manipulação e espetadelas dos curandeiros.
Poucos suplicantes no templo têm forças suficientes para fazer qualquer coisa que não seja ficar deitados em suas camas duras. As cerimônias, como os já citados ritos do homem-da-boca-sagrada, implicam desconforto e tortura. Com precisão ritual, os vestais acordam a cada madrugada seus miseráveis pacientes, rolam-nos em seus leitos de dor enquanto realizam abluções, cujos movimentos formalizados são objeto de treinamento intensivo das vestais. Em outros momentos, eles inserem varas mágicas na boca do paciente, ou obrigam-no a comer substâncias que são consideradas curativas. De tempos em tempos os curandeiros vêm a seus pacientes e atiram agulhas magicamente tratadas em sua carne. O fato de que estas cerimônias do templo possam não curar, ou possam mesmo matar o neófito, não diminui de modo algum a fé do povo nos curandeiros.
Ainda resta outro tipo de especialista, conhecido como um “escutador”. Estefeiticeiro tem o poder de exorcizar os demônios que se alojam nas cabeças das pessoas que foram enfeitiçadas. Os Sonacirema acreditam que os pais fazem feitiçaria contra seus próprios filhos. As mães são especialmente suspeitas de colocarem uma maldição nas crianças, enquanto ensinam a elas os ritos corporais secretos. A contra-magia do feiticeiro “escutador” é singular por sua relativa ausência de ritual. O paciente simplesmente conta ao “escutador” todos os seus problemas e medos, começando com as primeiras dificuldades de que pode se lembrar. A memória exibida pelos Sonacirema nestas sessões de exorcismo é verdadeiramente notável. Não é incomum que o paciente lamente a rejeição que sentiu ao ser desmamado, e alguns indivíduos chegam a localizar seus problemas nos efeitos traumáticos de seu próprio nascimento.
Para concluirmos, deve mencionar-se certas práticas que estão baseadas na estética nativa, mas que dependem da aversão generalizada ao corpo e às funções naturais. Há jejuns rituais para fazer pessoas gordas ficarem magras, e banquetes cerimoniais para fazer pessoas magras ficarem gordas. Outros ritos ainda são usados para fazer os seios das mulheres maiores, se eles são pequenos, e menores se eles são grandes. Uma insatisfação geral com a forma dos seis é simbolizada pelo fato de que a forma ideal está virtualmente fora do espectro da variação humana. Umas poucas mulheres que sofrem de um quase inumano desenvolvimento hipermamário são tão idolatradas que podem viver muito bem através de simples viagens de aldeia em aldeia, permitindo aos nativos admirá-las mediante uma taxa. 
Já fizemos referências ao fato de que as funções excretórias são ritualizadas, rotinizadas, e relegadas ao domínio secreto. As funções reprodutivas naturais são igualmente distorcidas. O intercurso sexual é tabu como tópico de conversa, e programado e planejado enquanto ato. Grandes esforços são feitos para evitar a gravidez por meio de uso de materiais mágicos, ou pela limitação do intercurso a certas fases da lua. A concepção é realmente muito pouco freqüente. Quando grávidas, as mulheres se vestem de forma a ocultar seu estado. O parto se realiza em segredo, sem amigos ou parentes assistindo, e a maioria das mulheres não amamentam nem cuidam dos seus bebês.
Nossa descrição da vida ritual dos Sonacirema certamente mostrou que eles são um povo obcecado pela magia. É difícil compreender como eles conseguiram sobreviver por tanto tempo, sob os mais pesados fardos que eles mesmos se impuseram. Mas mesmo costumes tão exóticos quanto estes ganham seu verdadeiro sentido quando encarados a partir do esclarecimento feito por Malinowski, que escreveu:
“Olhando de cima e de longe, dos lugares seguros e elevados da civilização desenvolvida, é fácil ver toda a rudeza e a irrelevância da magia. Mas sem este poder e este guia, o homem primitivo não poderia ter dominado as dificuldades práticas como o fez, nem poderia o homem ter avançado até os mais altos estágios da civilização”.
TEXTO COMPLEMENTAR III
Marcel Mauss e a noção de técnica corporal
MarceI Mauss nasceu na França em 1872 e morreu no mesmo país em 1950. Seu mestre foi o tio, o célebre Émile Durkheim, com quem trabalhou até a morte deste, ocorrida em 1917. Entre as inúmeras obras que deixou, uma das mais famosas foi o Ensaio sobre a dádiva, escrita em 1925, na qual criou e desenvolveu o conceito de "fato social total", que se constituiria na sua grande contribuição às ciências sociais (Mauss 1974, v. 2). Daí decorre o reconhecimento de pensadores franceses ulteriores do porte de Lévi-Strauss e MerleauPonty, que consideraram o pensamento de MarceI Mauss atual e suscitador de importantes desenvolvimentos posteriores, como será discutido adiante. 
A tentativa de estabelecer conexões e limites entre os campos sociológico, psicológico e fisiológico constitui-se em um de seus maiores esforços e pode ser presenciada em várias obras de Marcel Mauss. No seu texto "A expressão obrigatória de sentimentos" esse fato é bem ilustrado: 
Não só o choro, mas toda uma série de expressões orais de sentimentos não são fenômenos exclusivamente psicológicos ou fisiológicos, mas sim fenômenos sociais, marcados por manifestações não-espontâneas e da mais perfeita obrigação. (Mauss 1979, p. 147) 
Numa comunicação apresentada em 1924 a psicólogos, intitulada "Relações reais e práticas entre a psicologia e a sociologia", Mauss discute de forma interessante as relações entre a psicologia e a sociologia, tentando delimitar o campo de cada uma. Nesse trabalho, Mauss estabelece que tanto a sociologia como a psicologia humana fazem parte da antropologia, que seria" ... O total das ciências que consideram o homem como ser vivo, consciente e sociável" (Mauss 1974, v. 1, p. 181). Deixa claro, entretanto, que apenas a sociologia trabalha exclusivamente com fatos humanos, já que a psicologia, como a fisiologia, não se limitam ao estudo do homem. Mesmo considerando a parte da psicologia que trata dos fenômenos humanos chamada por Mauss de "Psicologia Humana" - e mesmo quando esta fosse pensada em termos de psicologia coletiva, tendo por campo de investigação as representações coletivas nas consciências individuais, assim mesmo ela se diferenciaria da sociologia porque, além dessas representações coletivas, existem outras coisas de que a psicologia não daria conta. Na mesma obra, Mauss escreve: 
( ... ) na França há algo além da idéia de pátria: há um solo, há o seu capital, há a sua adaptação; há sobretudo os franceses, suas divisões, sua história. Atrás do espírito de grupo, numa só expressão, está o grupo que merece ser estudado (u.). (1974, v. 1, p. 183) 
	Segundo Mauss, a sociologia se diferencia da psicologia por três razões. Em primeiro lugar, pelos fenômenos chamados morfológicos, que constituiriam as especificidades de cada povo ou de cada região. Seriam as variações entre homens e mulheres, entre adultos e crianças, relações entre os sexos, entre as idades, características de natalidade, mortalidade, enfim, as pequenas variações morfológicas de cada povo em cada região. Uma segunda razão diferencial entre a psicologia e a sociologia seria o aspecto estatístico dessa última. Seria, por exemplo, a moeda utilizada, as medidas econômicas, o índice de criminalidade, enfim medidas estatísticas que estariam contribuindo para um entendimento mais profundo de uma sociedade específica. E, finalmente, a terceira razão seria o aspecto histórico da tradição de determinada sociedade. Cada fato social, mesmo parecendo novo, faz parte de uma história e deve ser analisado em conexão com fatos ocorridos anteriormente. 
Para a competência da psicologia, Mauss deixaria ainda uma enorme gama de possibilidades referentes ao aspecto da consciência individual. Mesmo quando o homem empreende trabalhos coletivos, tomado por uma representação ou por uma emoção coletiva, o indivíduo possui uma consciência própria. Esse ponto de vista é relevante na compreensão da obra de Mauss, pois dá ao indivíduo uma importância particular. O homem não é somente fruto e representante de uma sociedade, agindo como uma máquina comandada por suas instituições. Ele é também um ser particular dotado de uma consciência que permite uma mediação entre o nível social e o nível pessoal (Mauss 1974, v. 1). 
É nesse sentido que Mauss afirma nesse mesmo trabalho a importância de se considerar a totalidade do ser humano. Segundo ele, o homem nunca é encontrado dividido em faculdades .. 
No fundo, corpo, alma, sociedade, tudo se mistura. Os fatos que nos interessam não são fatos especiais de tal ou qual parte da mentalidade; são fatos de uma ordem muito complexa, a mais complexa que se possa imaginar. São aqueles para os quais proponho a denominação de fenômenos de totalidade, em que não apenas o grupo toma parte, como ainda, pelo grupo, todas as personalidades, todos os indivíduos na sua integridade moral, social, mental e, sobretudo, corporal ou material.(1974, v. 1, p. 198) 
	É impressionante a atualidade dessa citação - escrita em 1924 - para a Educação Física, que ainda tende a considerar o corpo como primordialmente biológico. No discurso da área, o corpo que se movimenta não é o mesmo corpo que representa aspectos da sociedade, como se ele não fosse, ao mesmo tempo e indissociavelmente, biológico e cultural. É exatamente nesse ponto que o trabalho de Marcel Mauss intitulado "As técnicas corporais" é esclarecedor. Proferido como palestra em 1935, esse trabalho é até hoje útil para a compreensão cultural do corpo humano, compreensão esta que na Educação Física brasileira ainda é nascente. 
Nesse trabalho, Mauss coloca o corpo humano, os movimentos corporais, cada pequeno gesto como tradutores de elementos de uma dada sociedade ou cultura. Equipara assim o corpo humano a outros temas da Antropologia, como a religião, as trocas econômicas, os sistemas jurídicos, os rituais de passagem, que sempre mereceram maiores estudos dos etnógrafos. ,Apesar desse destaque dado por Mauss ao corpo humano e às técnicas corporais, os estudos a esse respeito ainda são insuficientes. Claude Lévi-Strauss lamentou que ainda ninguém tivesse feito o que havia sido iniciado por Mauss, ou seja, um inventário de todos os usos que os homens fazem de seus corpos em todos os cantos do mundo e nos vários momentos históricos. Para ele, esse trabalho teria importância particular numa época em que os homens, devido ao desenvolvimento tecnológico, tendem a se utilizar menos dos meios corporais, correndo o risco de abandonar num passado inexplorado certas práticas cujo conhecimento e análise poderiam ser úteis para a compreensão da sociedade atual. Esse trabalho contribuiria também para uma contraposição aos preconceitos raciais, mostrando que a variação existente entre os homens em várias localidades não é devida a diferenças biológicas hierárquicas inscritas nos seus corpos, mas a diferenças culturais expressas por meio deles (Lévi-Strauss 1974). Em outras palavras, não existe corpo melhor ou pior; existem corpos que se expressam diferentemente, de acordo com a história de cada povo em cada região, de acordo com a utilização que cada povo foi fazendo dos seus corpos ao longo da história. 
	Em seu trabalho, Mauss define técnica corporal como sendo as maneiras como os homens, sociedade por sociedade e de maneira tradicional, sabem servir-se de seus corpos. A partir dessa definição, cita uma série de exemplos, com a finalidade de mostrar a diversidade de hábitos motores existentes na humanidade. Cita a aprendizagem de natação pela qual ele passou quando criança e a diferencia da época em que escreve seu trabalho. Anteriormente, ensinava-se primeiro a criança a nadar para depois ensiná-Ia a mergulhar. Posteriormente, passou-se a ensinar primeiro o mergulho, a fim de familiarizar a criança com a água, para depois ensinar-lhe as técnicas de natação propriamente ditas. Mauss também fala da sua experiência na Primeira Guerra Mundial quando, servindo na Inglaterra, observou a substituição de oito mil pás francesas, porque elas exigiam um tipo de movimento manual que os soldados ingleses não dominavam e não conseguiam aprender em pouco tempo. Observou também a dificuldade da tropa inglesa em marchar com marcação rítmica francesa. Relata ainda diferenças no andar, no correr, na posição das mãos ao sentar à mesa em vários povos. Descrevendo o andar da mulher Maori (Nova Zelândia), Mauss afirma que talvez não exista uma maneira "natural" de andar, já que cada sociedade vai andar de uma maneira particular. O próprio uso de sapatos transforma a posição dos pés no andar, fato que pode ser comprovado quando se anda descalço (Mauss 1974, v. 2). 
Entretanto, mais importante do que constatar, relacionar e classificar as diferentes manifestações corporais é entender o significado desses componentes num contexto social. O primeiro passo, obviamente, é partir das diferenças corporais entre povos ou entre épocas de um mesmo povo, mas o passo seguinte proposto por Mauss é entender os movimentos corporais como parte de um todo social. Em seu trabalho intitulado “Fenômenos gerais da vida intra-social”, Mauss propõe que os comportamentos corporais sejam compreendidos como parte de uma tradição social, da mesma forma que os rituais religiosos, as obras de arte, as construções, a linguagem (Mauss 1979). Como toda tradição, esses gestos são transmitidos de uma geração para outra, dos pais para os filhos, enfim, de pessoas para pessoas, num processo de educação. As pessoas, principalmente as crianças, imitam atos que obtiveram êxito e que foram bem-sucedidos em pessoas que detêm prestígio e autoridade no grupo social. 
É precisamente nesta noção de prestígio da pessoa que torna o ato ordenado, autorizado e provado, em relação ao indivíduo imitador, que se encontra todo o elemento social. (Mauss 1974, v. 2, p. 215) 
	Na pessoa que aprende o gesto tradicional e no seu ato imitador, podem-se encontrar, respectivamente, os componentes psicológico e fisiológico. Vê-se assim o fato social manifesto como um todo: um elemento tradicional valorizado numa sociedade sendo transmitido a um indivíduo dotado de uma unidade psíquica por meio da utilização de seu componente fisiológico.
O termo "técnica corporal", criado por Mauss, não significa apenas o emprego técnico do corpo para realizar determinadas funções. Apesar de o autor ter escrito que o corpo é o principal e mais natural instrumento do ser humano, seu mais natural objeto técnico, pode-se depreender da sua obra que o sentido de técnica corporal é mais abrangente. Mauss, ao definir técnica como um ato que é ao mesmo tempo tradicional e eficaz e ao falar do corpo humano em termos de técnicas corporais, elevou-o ao nível de fato social, podendo, portanto, ser pensado em termos de tradição a ser transmitida através de gerações (Mauss 1974, v. 2). 
Quando uma geração passa à outra geração a ciência de seus gestos e de seus atos manuais, há tanta autoridade e tradição social quanto quando a transmissão se faz pela linguagem. (Mauss 1979, p. 199) 
	Mas o que é mais interessante nesse enfoque é que ele permite o estudo do corpo e do movimento humanos como expressões simbólicas, já que toda prática social tem uma tradição que é passada às gerações por meio de símbolos. A tradição oral, a mais conhecida e muitas vezes mais valorizada, é apenas uma dentre as tradições simbólicas. Qualquer técnica corporal pode ser transmitida por meio do recurso oral. Pode ser contada, descrita, relatada. Mas pode também ser transmitida pelo movimento em si, como expressão simbólica de valores aceitos na sociedade. Quem transmite acredita e pratica aquele gesto. Quem recebe a transmissão aceita, aprende e passa a imitar aquele movimento. Enfim, é um gesto eficaz. É justamente devido à eficácia das técnicas corporais que se pode, segundo Mauss, conceber que os símbolos do andar, da postura, das técnicas esportivas são do mesmo gênero que os símbolos religiosos, rituais, morais etc. É por meio dos símbolos que a tradição vai sendo transmitida às gerações seguintes. 
É oportuno alertar, como fez Mauss, que o termo tradição pode ser entendido precipitadamente como inércia, resistência ao esforço, imutabilidade e conformismo social. De fato, as sociedades tribais apresentam uma adaptabilidade tão grande aos seus meios interno e externo que não sentem necessidade de modificar sua rotina. Sua coesão grupal é extremamente forte. Já nas sociedades contemporâneas, não se dá o mesmo, embora esteja sempre presente o que Mauss chamou de "memória coletiva". É precisamente o conteúdo dessa memória - em algumas sociedades maior, em outras, menor - que se pode chamar de tradição. É o que vai resistindo aos avanços tecnológicos e ao desenvolvimento científico, mas é também o resultado desses avanços que vai se incorporando às tradições sociais, num processo dinâmico. 
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