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LUGAR DA HISTÓRIA 1. A NOVA HISTÓRIA, Jacques Lê Golf, Lê Roy Ladurie, Georges Duby e outros 2. PARA UMA HISTÓRIA ANTROPOLÓGICA, W. G. L, Randles, Nathan Wachtel e outros 3. A CONCEPÇÃO MARXISTA DA HISTÓRIA, Helmut Fleischer 4. SENHORIO E FEUDALIDADE NA IDADE MÉDIA, Guy Fourquin 5. EXPLICAR O FASCISMO, Renzo de Felice 6. A SOCIEDADE FEUDAL, Marc Bloch 7. O FIM DO MUNDO ANTIGO E O PRINCÍPIO DA IDADE MÉDIA, Ferdinand Lot 8. O ANO MIL, Georges Duby 9. ZAPAJA E A REVOLUÇÃO MEXICANA, John Womarck Jr. 10. HISTÓRIA DO CRISTIANISMO, Ambrogio Donini 11. A IGREJA E A EXPANSÃO IBÉRICA, C. R. Boxer 12. HISTÓRIA ECONÔMICA DO OCIDENTE MEDIEVAL, Guy Fourquin 13. GUIA DE HISTÓRIA UNIVERSAL, Jacques Herman 15. INTRODUÇÃO À ARQUEOLOGIA, Carl-Axel Moberg 16. A DECADÊNCIA DO IMPÉRIO DA PIMENTA, A. R. Disney 17. O FEUDALISMO, UM HORIZONTE TEÓRICO, Alain Guerreau 18. A ÍNDIA PORTUGUESA EM MEADOS DO SÉC. XVII, C. R. Boxer 19. REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA, Jacques Lê Goff 20. COMO SE ESCREVE A HISTÓRIA, Paul Veyne 21. HISTÓRIA ECONÔMICA DA EUROPA PRÉ-INDUSTRIAL, Cario Cipolla 22. MONTAILLOU, CÁTAROS E CATÓLICOS NUMA ALDEIA FRANCESA (1294-1324), E. Lê Roy Ladurie 23. OS GREGOS ANTIGOS, M. I. Finley 24. O MARAVILHOSO E O QUOTIDIANO NO OCIDENTE MEDIEVAL, Jaques Lê Goff 25. INSTITUIÇÕES GREGAS, Claude Mossé 26. A REFORMA NA IDADE MÉDIA, Brenda Bolton 27. ECONOMIA E SOCIEDADE NA GRÉCIA ANTIGA, Michel Austin e Pierre Vidal Naquet 28. O TEATRO ANTIGO, Pierre Grimal 29. A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL NA EUROPA DO SÉCULO XIX, Tom Kemp 10. o MUNDO HELENÍSTICO, Pierre Lévêque 11 ACREDITARAM OS GREGOS NOS SEUS MITOS?, Paul Veyne l' l -.('(>N< )MI A RURAL E VIDA NO CAMPO NO OCIDENTE MEDIEVAL, (Vol. I), Georges Duby n oi IT< )NO DA IDADE MÉDIA, OU PRIMAVERA DOS NOVOS TEMPOS?, Philippe Wolff 11 \ C I V I 1 ,1/AÇÃO ROMANA, Pierre Grimal 19 n (>N( )MIA RURAL E VIDA NO CAMPO NO OCIDENTE MEDIEVAL (Vol. II), Georges Duby K. I'1'NSAK A REVOLUÇÃO FRANCESA, François Furet r l c l A ARC 'AICA DE HOMERO A ESQUILO (Séculos VIILVI a. C.), Claude Mossé IH I -NS AH )S l )!•: IXIO-HISTÓRIA, Pierre Nora, Maurice Agulhon, Pierre Chaunu, George Duby, < iii.iulri, J;K-ques Lê Goff, Michelle Perrot, René Remond < l (is l )A ANTIGÜIDADE, Moses I. Finley • l is l ANI )AI )| NO OCIDENTE 1400-1700, John Bossy V, rii IMI IK AS ('IVIMZACÕES - I OS IMPÉRIOS DO BRONZE, Pierre Lévêque ii M.' \S ('IVII.I/.ACÕES - II A MESOPOTÂMIA/OS HITiTAS, Pierre Lévêque •/, ('l VII ,1/AÇÕIiS - I II OS 1NDO-EUROPEUS E OS SEMITAS, Pierre Lévêque • l - l - i U l l l l » ). Mareei liemos. Charles de IaRoncière, Jean Guyon, PhilipeLécrivain l » ) TI<MI'0. Cario M. Cipolla 'Ml IK A (IIIliRRA MUNDIAL 1914-1918, Marc Ferro l K l A ICIM- Kilviro l-crreira HMH In iMANA. r.iul \Vyne i i 11 i|J M AS (1250-1550) - Vol. I, Pierre Chaunu ' i l 'i|)MAS(l250-l550)-Vol. II, Pierre Chaunu "l . 111| >o l >A HISTÓRIA ECONÔMICA, Cario M. Cipolla • Ml INI Ml AN l K K), M. I. Finley POLÍTICA NO MUNDO ANTIGO MOSES L FINLEY POLÍTICA NO MUNDO ANTIGO Título original: Politics in the Ancient World © Cambridge University Press, 1983 Tradução: Gabinete Editorial de Edições 70 Capa de Edições 70 Todos os direitos reservados para língua portuguesa por Edições 70, Lda. Depósito legal n° 108942/97 ISBN: 972-44-0942-2 EDIÇÕES 70, Lda. Ru» Luciano Cordeiro, 123-2° Esq. - 1050 Lisboa - Portugal Telefs.: (01) 315 87 52/315 87 53 Fax: (01)3158429 Külll ohru CNlíi protegida pela Lei. Não pode ser reproduzida Mn liulci nu cm purte, qualquer que seja o modo utilizado, IncIlIlMilii tnltii rtpiu c xcrocópia, sem prévia autorização do Editor. IJllNli|HiH liiiiihjiirssilo à Lei dos Direitos de Autor será passível de procedimento judicial. edições 7O PREFACIO Para JOHNDUNN Este livro foi elaborado à volta de quatro Wiles Lectures que tive a honra de apresentar na «Queen's University», Belfast, em Maio de 1980. Quatro capítulos constituem versões revistas dessas mesmas conferências, enquanto que os capítulos 2 e 6 foram escritos mais tarde e publicados pela primeira vez sob forma mais reduzida como trabalho em memória de J. C. Jacobsen da Real Academia Dinamarquesa de Ciências e Letras (publicados nos começos de 1982 no Meddelelser da Academia). A palavra inglesa 'politics' tem um alcance semântico que difere um pouco do dos seus sinônimos noutras línguas ociden- tais. Por um lado, 'politics' não se emprega normalmente, no sentido em que se utiliza 'policy'; por outro, engloba implica- ções resultantes das maneiras, informais e formais, como a governação é conduzida, como se tomam as decisões governa- mentais e a ideologia atinente. A política (politics) neste sentido é o que constitui, essencialmente o meu tema de estudo. Não tenho conhecimento de que, sob a forma de livro, tenham surgido estudos sobre este assunto, do qual me ocupei e de que publiquei alguns artigos ao longo dos últimos vinte anos. Considerando que não é fácil discutir a Grécia e Roma com- parativamente, não hesitei em recorrer aos conhecimentos e ao pensamento de amigos e colegas. Para todos eles vai o meu caloroso agradecimento, embora só nomeie aqueles que leram e comentaram as provas deste livro: Tony Andrewes, Peter Brunt, PREFACIO John Dunn, Peter Garnsey, Wilfried Nippel e Dick Whittaker. Outros agradecimentos, são devidos aos colegas, na maioria de Belfast, historiadores e estudiosos de política, alguns especialis- tas em história antiga que, como é costume nas Wiles, foram convidados a participar, todas as tardes, na discussão aberta sobre a conferência do dia. E muitos mais colegas aderiram à calorosa hospitalidade que marcou esse acontecimento, condu- zido pelo Vice-Chanceler, Dr. Peter Froggatt, e pelos represen- tantes da Associação Wiles, os Professores Alan Astin e David Harkness. Finalmente, minha esposa deu mostras da sua incansável paciência enquanto eu tinha em mãos outro trabalho. Capítulo um ESTADO, CLASSE E PODER Colégio Darwin, Cambridge Setembro de 1982 10 M. I. F. No terceiro livro da Política (1279b6-40), Aristóteles escreveu: «A tirania é o governo de um só homem em benefício do governante, a oligarquia em benefício do rico, a democracia em benefício do pobre». E prossegue para precisar a definição: «Para a oligarquia e para a democracia, não é essencial que pou- cos ou muitos governem, porque, em toda a parte, os ricos são poucos e os pobres muitos... A verdadeira diferença entre democracia e oligarquia é a pobreza e a prosperidade». Mais tarde, já no séc. XIX, no seu óptimo comentário à Política, W.L. Newman observou que Aristóteles dava aí explí- cito reconhecimento de uma verdade importante, pois que a moderna e prevalecente teoria do contrato social do Estado obscurece a nossa aceitação do facto que Aristóteles havia assi- nalado muito antes: que a constituição de um Estado tem as suas raizes naquilo que os modernos chamam o seu sistema social('). Precisando melhor, Aristóteles deu expressão sistemá- tica a uma noção comum, mas ainda muito indeterminada, que era largamente (ou até universalmente) partilhada pelos Gregos clássicos. Esta noção impregna a literatura, tanto a dos poetas, historiadores e panfletários como a dos filósofos políticos; desde a queixa mordaz de Hesíodo contra os soberanos «devo- radores de presentes» e seus trapaceiros julgamentos, passando pelo alarde do reformador Sólon («mantive-me firme, a ambos [ricos e pobres] protegendo com um forte escudo, a nenhum permitindo que triunfasse, injustamente, sobre o outro»), até à reiterada insistência de Platão em como, mesmo antes desse 11 POLÍTICA NO MUNDO ANTIGO ESTADO, CLASSE E PODER presentedegenerado, os chefes atenienses dos bons velhos tem- pos, Milcíades, Temístocles, Címon e Péricles, já não eram melhores que pasteleiros, empanturrando o povo comum (demos) de bens materiais(2). A ambigüidade da palavra demos é imediatamente rele- vante: por um lado, designava o corpo dos cidadãos como um todo, tal como figurava no termo de abertura dos decretos for- mais da assembléia democrática grega - «o demos decidiu»; por outro lado, indicava o povo comum, a multidão, os pobres, como no Górgias de Platão(3). O vocábulo latino populus tinha a mesma dupla conotação. Contudo, não havia incerteza no seu uso em qualquer contexto determinado: os escritores e oradores gregos e romanos transferiam-se de um sentido para outro com fácil inteligibilidade e, ao tecerem críticas à democracia, joga- vam do mesmo modo claro, e não menos inteligível, com os ter- mos demos ou populus. As duas línguas eram também identica- mente ricas em eufemismos, em especial o grego, eufemismos tão parciais quanto a literatura em que ocorriam. Como substitu- tos para «ricos», os escritores gregos empregavam palavras com significado literal de «úteis (ou merecedores)» (chrestoi), «melhores» (beltistoi), «poderosos» (dynatoi), «notáveis» (gnorimoí), «bem nascidos» (gennaioi); para «pobres», diziam «multidão» (hoi polloí), «inferiores» (cheirones), «malvados» (poneroi), «turba» (ochlos). Em latim, os boni ou optimi opu- nham-se a plebe, à multidão ou aos desonestos(4). Os eufemismos, é claro, também podem ser ambivalentes: em inúmeros textos, o sentido literal sobrepõe-se, excedendo mesmo, ao sentido figurado, como quando Cícero se queixava - o que fez com freqüência e em moldes variados - de que muitos boni não se comportavam como boni. Mas a verdade é que, na maior parte das vezes, «ricos» e «pobres» são termos que têm mais sentido do que uma tradução literal. A linguagem da polí- tica* antiga confirma, assim, a «importante verdade» de Aristóteles: a de que (mas não segundo Newman) o Estado é a arena dos interesses e das classes em conflito. Nenhum Grego ou Romano o poria em causa, não obstante a freqüência com que afirmaram o contrário em debates políticos (não diferindo dos seus homólogos nos nossos dias). Os pensadores políticos gregos procuraram o Estado ideal, onde o conflito fosse ultra- passado no interesse de uma vida agradável para todos, mas 12 insistiram no facto de nenhum Estado real, passado ou presente, ter atingido ou sequer se aproximado dessa meta. Sólon não foi excepção, apesar da metáfora do escudo, que aplicou a si pró- prio e não ao Estado ateniense. E encarregue da tarefa de refor- mar Atenas a fim de reduzir a capacidade de os ricos agirem no seu próprio interesse, declarou tê-lo conseguido sem transferir tanto poder para os pobres que, por seu turno, estes pudessem agir parcialmente no seu interesse. Reconheceu, desta forma, o papel central das classes e do conflito que entre elas existe. Assim, o que pode parecer surpreendente à primeira vista, muitos comentadores e historiadores modernos parecem não ter-se apercebido do que os Gregos e Romanos disseram sobre o assunto. Os actuais estudos clássicos acerca da Política de Aristóteles, incluindo os comentários ao Livro III (entre eles o de Newman), não se referem às implicações do passo funda- mental com que iniciei o presente livro e que se repete como motivo central ao longo daquele trabalho(5). Também os historiadores, mais preocupados com as realida- des do comportamento político na Antigüidade do que com os conceitos e as teorias, não podem alegar a irrelevância da «importante verdade» de Newman; assim, freqüentemente, adoptam outros estratagemas evasivos ou de rejeição do assunto. Primeiramente concedem que, nos maus tempos do período arcaico, na Grécia como em Roma, os aristocratas e os patrícios que monopolizavam o poder eram gananciosos e desonestos - mas que, afinal, se tratava do período de formação, do «pré-- Estado». Em seguida, encaram a história da política do período subsequente, o clássico, como, em grande parte, um período de declínio e degeneração, em especial nos momentos ou períodos em que os interesses das classes surgiram declaradamente acti- vos. «Estes conflitos sociais» - escreve Victor Ehrenberg acerca da Grécia clássica - «que, em muitos locais, acabaram por trans- formar-se em lutas partidárias, ameaçaram a polis na sua própria existência como comunidade de cidadãos»(6). Abundam as rotu- lações pejorativas, algumas derivadas de antigas fontes - dema- gogo, facção, populaça; outras forjadas pelos próprios historia- dores, como democracia moderada e radical. A história de Roma é mais perturbante, em particular o último século da República, durante o qual (e acerca dele) os oradores e escritores romanos mostraram uma consciência de POLÍTICA NO MUNDO ANTIGO ESTADO, CLASSE E PODER classe tão explícita que somente os historiadores modernos menos perspicazes poderão manter silêncio total sobre as suas divisões entre classes. Para apoiar esta afirmação, considerarei assim dois casos ilustrativos. O primeiro é o que os historiadores modernos acabaram por chamar senatus consultum ultimum, uma resolução do Senado onde estava implícito um perigo ameaçador para o Estado (rés publica), alertando os magistrados para a tomada das acções defensivas necessárias. Os elementos «subversivos» eram assim tratados como inimigos do Estado, proscritos (por vezes mesmo, formalmente declarados como tal), a fortiori deixando de ter direito à protecção da lei, em particular ao direito a um julgamento formal. As instâncias, menos de uma dúzia ao todo, documentadas sem ambigüidade, datam de entre 121 e 43 a.C., por outras palavras, do século final da República, quando, como veremos, a violência armada ou a ameaça da intervenção armada haviam distorcido seriamente a essência da política da cidade-estado. Muitos milhares de Romanos foram massacrados ao abrigo dos vários senatus consulta ultima, em declarada vio- lação dos procedimentos de pena capital contra cidadãos, desde há muito instituídos. Caio Graco, com o consentimento geral, ocupara o Aventino em 121 a.C., apoiado por homens armados; Saturnino em 100 a.C. e Catilina em 63 a.C. conduziram tam- bém grupos armados. Caio Graco, contudo, tinha atrás de si a experiência do seu irmão Tibério, de uma década antes: Tibério fora morto à paulada por uma multidão de senadores e seus par- tidários quando o cônsul se recusara a tomar medidas de 'emergência' e o Senado não emitira um 'decreto final'. Não estava fora da lógica que Caio acreditasse que a classe gover- nante, perdida a confiança na sua capacidade de governar segundo os métodos tradicionais, se preparasse para encontrar uma nova fórmula. O que de facto aconteceu com a invenção do senatus consultum ultimum. A grande quantidade de escritos modernos sobre esta maté- ria, preocupados sobretudo com questões da lei constitucional, tende a evitar o problema básico do que pode querer significar-- se com «ameaça à segurança do Estado»(7). Os Gracos visa- vam a tirania - é esta a resposta convencional das fontes antigas hostis e também a freqüentemente repetida pelos historiadores modernos(8). As provas a favor desta acusação são tão débeis, 14 para não dizer inexistentes, que bem depressa seriam postas de lado num contexto com menos peso ideológicof). Uma outra tradição antiga, a que aludem dois autores gregos posteriores, Plutarco e Apiano, é a de que a luta entre os dois irmãos e o Senado foi uma fase do conflito contínuo entre ricos e pobres (exactamente os termos que eles usaram). Trata-se de mera «tagarelice» - comenta Badian - «que alguns estudiosos ainda tomam como prova válida. Não passa de um estereótipo da sta- sis - um artifício puramente literário que pouco aproveita ao historiador».Os ricos não eram assim tão ricos, argumenta ele, e muitos pobres mantinham-se indiferentes - e cada vez mais desencantados - ao programa dos Gracos(10). Sem dúvida que sim, mas o mesmo poderá dizer-se de qualquer confronto decla- rado entre classes ou interesses ao longo da história. Mantém-se o facto de que a reforma agrária ou a pressão da dívida fornece- ram a oportunidade não só para o 'estado de emergência' dos Gracos, mas também para vários senatus consulta ultima mais tardios e de que, ao nível mais simples, as propostas desaprova- das pelo Senado beneficiavam (ou teriam beneficiado) os cida- dãos pobres a expensas dos cidadãos ricos. Subsiste também o facto incontestado de que o Senado se arrogou o direito inqua- lificável de determinar qual a situação de gravidade de um estado de emergência durante o qual se poderia impor a suspen- são dos direitos fundamentais dos cidadãos romanos; isto é, em resumo: o Senado identificava-se com a rés publica. É claro que o Senado, tal como, desde sempre, todos os políticos ou órgãos governamentais, insistiu (e admito que nisso acreditasse) no facto de agir no interesse de todos, não no inte- resse dos ricos ou da oligarquia. «A morte de Tibério Graco» - escreve Cícero (República 1.19.31) - «e, já antes, toda a sua condução do tribunato dividiram um só povo em duas partes». Juízo de extraordinária má fé mesmo para padrões ciceronianos, que o não fez vacilar, porém, quanto às respectivas implicações: Cipão Nasica, como afirmou Cícero por diversas vezes, prestou um grande serviço ao Estado ao matar Tibério Graco, embora agisse por iniciativa pessoal("). Nos círculos governativos, assi- nalam-se ocasionais rebates de consciência, do próprio Cícero uma única vez (Contra Catilina 1.1.3), mas apenas por ser tão notória a ilegalidade da acção de Cipião. Suscitavam-se poucas dúvidas quanto a ameaças pendentes sobre o Estado - e essas 15 POLÍTICA NO MUNDO ANTIGO ESTADO, CLASSE E PODER poucas por razões partidárias óbvias -, quanto à necessidade da repressão armada ou quanto à competência do Senado para tomar tal decisão. As reacções romanas registadas são as esperadas dada a estrutura do governo romano desse período e a natureza das nossas fontes. É talvez mais surpreendente que os historiadores modernos, com poucas excepções, compartilhem tão sem reser- vas o ponto de vista 'oficial' de Roma(12). Lintott conclui que, 'em princípio', o senatus consultum ultimum era uma 'institui- ção salutar', embora, na prática, a 'atitude' dos magistrados que actuavam assim escudados se tivesse tornado 'mais arrogante e extremista, o que, muitas vezes com justificação, conduzia à suspeita fácil de partidarismo' (13)- Forma bizarra esta de dizer que a tal 'instituição salutar' era utilizada regularmente para preservar o poder da classe governante. Um outro historiador conclui o relato citando a defesa de Cícero relativa ao seu pró- prio acto de condenar à morte os partidários de Catilina: «Eu actuei com autoridade (auctoritas) do Senado e com o consenti- mento de todos os boni» (Oração sobre a sua casa 35.94); e a seguir comenta que, embora o uso da palavra boni confira aos 'Optimates, um tom muito forte', ainda assim a 'opinião pública' era uma condição necessária à imposição de um sena- tus consultum ultimum: «Para o Senado e para o povo, bem como para os magistrados, mesmo num estado de emergência (e, na verdade, precisamente durante ele), a linha de conduta decisiva deve ser Salus populi suprema lex esto»(14). A minha preocupação actual não tem que ver com a avalia- ção da gravidade da crise dos Gracos ou de quaisquer outras situações em que uma acção repressiva comparável haja sido tomada, mas sim com a concepção de Estado implícita na abor- dagem exemplificada e, em particular, com a rejeição da 'importante verdade' aristotélica nela inclusa(15). O segundo exemplo ilustrativo, por mim prometido, que provém do estudo do procedimento civil em Roma, foi esco- lhido com a mesma preocupação em mente. Em 1966, J. M. Kelly publicou um livro, Roman Litigation, construído, nas palavras de um crítico, «à volta de uma só tese; a de que, apesar do ideal de justiça expresso em fontes que vão desde Cícero até Justiniano, os procedimentos e a acção da lei reflectiam claramente as difíceis realidades da sociedade romana, 16 falhando na tentativa de mitigar a diferença entre ricos e pobres»(16). Sublinhe-se que tivemos de esperar até 1966 pelo primeiro estudo de fundo alguma vez intentado sobre o real fun- cionamento da lei romana de processo civil. Não menos digno de nota é o facto de alguns daqueles que acolheram o livro favo- ravelmente terem feito todos os possíveis para reduzir-lhe o sig- nificado quase que à trivialidade. Não me refiro à exibição dos habituais dispositivos de esvaziamento de conteúdo de que essas pessoas se serviram - por exemplo «o caso possui, sem dúvida, uma grande dimensão de importância crescente», «a tese central está exagerada» ou «contudo, creio» (a marca usual de que «não tenho provas em contrário») - mas sim ao facto de terem centrado a atenção sobre a desonestidade e a corrupção na administração da lei. Numa variante divertida, Max Kaser não se preocupa com a corrupção entre os magistrados, desde que se admita a pureza moral dos jurisconsultos(17). Mas não é sobre- tudo disso que o livro de Kelly trata. Crook e Stone foram até ao âmago da questão quando distinguiram dois problemas: (a) «é a lei ministrada imparcialmente?»; e (b) «é o modelo da lei em si mesmo - a série de leis, incluindo as processuais - um instrumento e um reflexo da desigualdade social?»(18). A resposta à segunda questão parece-me um lugar comum: é claro que o 'modelo' da lei romana, como o de todos os outros sistemas legais examinados pelos historiadores, foi um instru- mento e um reflexo da sociedade e, por conseguinte, da desi- gualdade social. Se directamente confrontados com o caso, é provável que alguns historiadores neguem tal facto, ao contrário dos estudiosos da lei romana que aplaudem os jurisconsultos romanos pelo seu «medo instintivo do sincretismo dos métodos econômicos e jurídicos»(19). Mas parece que poucos historiadores aceitam esse desafio (ou o fazem a si próprios) com bastante freqüência; em geral, satisfá-los considerar apenas a primeira pergunta feita por Crook e Stone, cingindo-se ao campo ilimi- tado da corrupção e da desordem. Assim, tacitamente, contri- buem para a sobrevivência da velha mística sobre a lei como algo que se situa acima e fora da sociedade e das suas realida- des, dotado de essência própria, de lógica autônoma e de exis- tência independente. E outro tanto também com o Estado. «Foi Wilamowitz» - assim se diz no trabalho clássico de Ehrenberg sobre o Estado grego - «quem, com clareza, reconheceu que a 17 POLÍTICA NO MUNDO ANTIGO ESTADO, CLASSE E PODER oligarquia e a democracia não são mais do que variantes do mesmo tipo de Estado, que se caracteriza pela 'soberania' do cidadão com plenos direitos». Isto resume-se a dizer apenas que a 'verdadeira' polis grega não era uma monarquia(20) e eu per- mito-me afirmar que uma taxonomia que reduz todos os estados a dois tipos - um em que a soberania reside num só homem; outro em que esta reside nos cidadãos, seja qual for o modo como eles se definam - não tem pertinência analítica. Pior ainda: a noção de que um Estado pode ser caracterizado - quase pode dizer-se definido - pela soberania do cidadão com plenos direitos situa-se apenas a um passo da absurda afirmação de que 'das rõmische Volk ist der rõmische Staat' («o povo romano é o Estado romano»21). Não é este o lugar para considerações teóricas sobre o Estado. Para os meu propósitos, basta enunciar alguns postula- dos elementares e óbvios. O primeiro é o de que, num estudosobre política, não existe distinção significativa entre Estado e governo. Contudo, os metafísicos políticos, cidadãos (ou súbdi- tos) de qualquer regime, equacionam ambos, mesmo numa situação revolucionária. Como se afirma no livro que, suponho eu, já ninguém lê, da autoria de Harold Laski, The State in Theory and Practice, «o cidadão só pode compreender o Estado através do governo... Ele deduz... a natureza do Estado a partir do caracter das acções governativas; e não pode conhecê-lo de outra forma. Por essa razão, nenhuma teoria do Estado será adequada se não considerar a acção governativa como fulcro da explicação que oferece. Um Estado é o que o governo faz; aquilo que qualquer teoria requer que o governo faça para preencher o objectivo ideal do Estado constitui mero... critério de julgamento e não uma fór- mula da sua verdadeira essência»(22). Isto foi ainda mais verdadeiro na Antigüidade: então, os contactos pessoais do cidadão ocorriam directamente com o governo - os legisladores, o executivo, os tribunais - pois não havia a mediação da burocracia. O governo, o Estado, implica poder tanto interno como externo - é este o meu segundo postulado e, por ora, não me preocupo (ao contrário do que farei adiante) em distinguir o 18 poder no sentido de potestas, do poder no sentido de auctoritas. O poder é mais do que coacção, mas o poder estatal é único, sobrepondo-se a todos os demais poderes dentro da sociedade pelo seu reconhecido direito ao exercício da força, mesmo para matar, sempre que os seus representantes determinem que tal acção é necessária (e legitimem também onde prevalecem os ditames da lei).Uma formulação como esta será sem dúvida desacreditada como simplista pelos cientistas políticos e pelos sociólogos, responsáveis por muito do que se escreve sobre poder, o que, em boa verdade, reduz a pó tal noçãof3). O meu postulado também será rejeitado pelos antropologistas que defendem uma 'visão independente da cultura' que permita organizações políticas onde as decisões políticas não limitem 'a sociedade', possibilitando igualmente 'unidades políticas sem aparelho governamental '(24). Estou convicto de que algumas pessoas terão grande dificuldade em entender ou aceitar o meu segundo postulado, mas é meu propósito ocupar-me das mani- festações do poder do Estado no mundo antigo e não de defini- ções formais. O terceiro postulado simples é o de que a escolha daqueles que governam e a forma como o fazem dependem da estrutura da sociedade específica submetida a análise. Uma característica fulcral das sociedades de que nos ocupamos foi a importante presença de escravos; uma outra, a restrição severa, entre os Gregos, do acesso à cidadania; uma terceira, a exclusão das mulheres de qualquer participação directa na actividade política ou governamental. Com freqüência, emite-se a opinião de que é errado falar de democracia, direitos e liberdade em qualquer altura da história antiga. Em meu parecer, isto altera o conceito da natureza da pesquisa histórica, reduzindo-a a um jogo de atribuição de créditos e de deméritos de acordo com o sistema de valores do historiador. A condenação moral, independente- mente do bom fundamento que possa ter, não substitui a análise histórica ou social. A 'autoridade de poucos' ou a 'autoridade de muitos' constituía uma escolha plena de significado e a liber- dade e os direitos que as facções reclamavam para si eram dig- nos dessa luta, não obstante o facto de mesmo 'os muitos' serem minoria na totalidade da população (25). Até aqui, falei deliberadamente da 'importante verdade' de Aristóteles (ou de Newman), usando a sua terminologia como 19 POLÍTICA NO MUNDO ANTIGO ESTADO, CLASSE E PODER contrapeso ao corrente mau hábito de impor a nomenclatura marxista a toda e qualquer análise política que utilize o conceito de classe(26); hábito que ignora a longa história do procedi- mento, sob uma ou outra forma, na análise política ocidental desde Aristóteles(27). Utilizei também livremente o termo 'classe', como se costuma fazer no discurso quotidiano. Os 'ricos' e os 'pobres' de Aristóteles inseriam-se em classes não definidas, mas ainda assim identificáveis pelos seus contempo- râneos (29). A classe dos pobres englobava todos os homens livres que trabalhavam para sobreviver, os lavradores proprietá- rios de quintas bem como os caseiros, os trabalhadores sem terra, os artífices por conta própria, os comerciantes. Por um lado, distinguiam-se dos 'ricos', que podiam viver confortavel- mente do trabalho dos outros, mas também dos miseráveis, dos mendigos e dos desocupados(29). Como é óbvio, não pode exigir-se que uma simples classificação binaria signifique mais do que significa, em especial para convertê-la numa estrutura de classes sociologicamente aceitável. Por vezes, em contextos específicos, o próprio Aristóteles a decompôs ainda mais, refe- rindo-se a agricultores, a pastores ou a artesãos. Uma vez por outra, também deu mostras de certa inclinação para to meson, o meio termo, mas, neste caso, reflectia apenas a sua bem conhe- cida doutrina, fulcro dos seus trabalhos biológicos e éticos, de que o meio é a posição natural e a preferível, enquanto que o excesso nas duas direcções constitui um distúrbio(30). Na Política, «to meson» apenas aparece em algumas generaliza- ções normativas - «As maiores poleis estão mais livres de per- turbações (stasis) civis porque o to meson é numeroso» - de significado prático diminuto, pois «na maioria dos Estados, o to meson é reduzido» 1926a9-2431). Portanto, devemos restringir-nos às antigas conotações da parceria ricos e pobres e evitar diligentemente o corolário moderno de uma classe média significativa e com interesses definidos. Embora as classes e subclasses da Antigüidade não pensassem nem agissem, com regularidade, em termos colecti- vos de uma classe em conflito com as outras, e menos ainda estando em causa questões de guerra e do império, houve oca- siões em que muitas delas, ou um seu particular segmento, o fizeram. Então, a formulação esquemática infalível usada pelos escritores antigos foi a de que a polis se dividira em duas clas- 20 sés opostas, não em três. Tal como Aristóteles generalizou reprovadoramente (Política 1310a 3-10), nas democracias «os demagogos estão sempre a dividir a polis em duas partes, fazendo guerra contra os ricos», enquanto que existem Estados oligárquicos cujos oligarcas juram: «Serei inimigo do demos e planearei contra ele todo o mal que puder». Ora isto exemplifica classe, consciência de classe e conflitos de classe que bastem para o que me proponho dizer. Maior consistência e especifici- dade emergirão à medida que a análise for prosseguindo. Mais ou menos ao acaso até aqui, desloquei-me entre a Grécia e Roma. A casualidade desaparecerá, porém, muito embora a possibilidade de incorporar a Grécia e Roma num só discurso já antes tenha sido tentada (refiro-me ao meu Ancient Economy) tendo conhecimento de alguma oposição que encon- trou(32). A matéria agora tratada é a política, mais especifica- mente a política da cidade-estado (33). Por razões que se con- siderarão no início do terceiro capítulo, só me ocuparei da cidade-estado autogovernada ou, por vezes, dos simulacros de cidade-estado (excluindo não só as monarquias mas também as tiranias gregas34). Isto significa o mundo grego desde o período arcaico tardio, ou seja desde os meados do século sétimo até às conquistas de Alexandre Magno ou até um pouco mais tarde; e o mundo romano desde os meados do século V a.C. até ao fim da República. Que não se fique perplexo face ao desvio da periodização convencional da história da Grécia e de Roma, quadro artificial (sobretudo quanto à história da Grécia) não apropriado à análise de vários aspectos importantes da sociedade antiga(35).A própria designação de 'cidade-estado' implica a existên- cia de elementos comuns suficientes para justificar o estudo conjunto da Grécia e de Roma, pelo menos como ponto de par- tida. Mas existiram também diferenças importantes, tão remotas como o tempo em que o primeiro documento histórico emerge da lendária pré-história e, depois disso, uma divergência cres- cente, em especial quando as conquistas e a expansão de Roma começaram a enfraquecer as estruturas da cidade-estado. A sim- ples qualificação de 'antiga' não implica identidade quer entre diferentes regiões ou povos quer entre amplos períodos de tempo. Será suficiente estabelecer o contraste entre Atenas e Esparta ou entre a Atenas de antes de Clístenes e a de depois de 21 POLÍTICA NO MUNDO ANTIGO ESTADO, CLASSE E PODER Péricles, no âmbito do mundo grego. À medida que formos avançando, surgirão diferenças mais importantes a par de seme- lhanças substanciais, sendo ambas mais claramente visíveis e significativas mediante a comparação entre a Grécia e Roma do que cingindo a análise quer a uma quer a outra. Aliás, foi assim que procedeu Dionísio de Halicarnasso nas suas Antigüidades Romanas (5.65.1) quando no século V a.C., compareceu no Senado de Roma para escutar a palavra de Sólon; ou Cícero quando escreveu a República e as Leis segundo o 'modelo' de Platão. Nos começos da nossa história, a estrutura social era nota- velmente semelhante nas cidades-estado gregas e em Roma: tra- tava-se de sociedades agrárias onde os visíveis conflitos de clas- ses, tão centrais na história arcaica da Grécia e de Roma, se limitavam de modo regular e exclusivo a questões entre aristo- cráticos donos de terras credores e campesinos devedores(36). O poder e a autoridade eram monopolizados pelos primeiros, quer formalmente quer de facto. 'Aristocráticos' é, contudo, outra palavra ambígua, mas confrontamo-nos aqui com uma hieraquia ou ordem de sentido restrito, famílias que como tal a si próprias se identificavam e que também assim eram consideradas pelos demais; isto foi mais óbvio em Roma com o aparecimento (cuja pista não é possível reconstituir) de uma ordem patrícia fechada; e mais incerto na Grécia, talvez apenas por causa da natureza das fontes, embora não devêssemos substimar como indicador a freqüente reivindicação de antepassados 'heróicos' ou divinos. Os aristocratas também possuíam grande parte da riqueza; deverá contrariar-se a moderna tendência para denegrir esse factor em termos de escalonamento. A riqueza é sempre um conceito relativo; o que interessa é que os aristocratas da Grécia e de Roma arcaicas detinham suficientes recursos e mão-de-obra (também esta indicativa de riqueza) para adquirir armamento e cavalos para uso próprio, para importar metais e outros bens necessários e, às vezes, para fornecer as embarca- ções requeridas, para construir templos de pedra e outros edifí- cios públicos. A lenda do arrogante aristocrata Cincinato inti- mado a deixar o arado e a sua quinta de dois acres e meio (quatro iugera), em 458 a.C., a fim de socorrer Roma face a uma ameaça militar (Tito Lívio 3.26.7-12), diz-nos algo acerca da ideologia romana mais tardia (tal como a ausência deste tipo 22 de lendas entre os gregos nos informa de uma ideologia dife- rente). Quanto às realidades da Roma do séc. V, a lenda apenas serve para induzir gravemente em erro. Alguns aristocratas acabaram, sem dúvida, por empobrecer. Mas, mais importante do que isso é o facto de certo número de estrangeiros ter adquirido riqueza suficiente para sentir-se com direito à partilha do monopólio do poder. O processo pode ser para nós totalmente misterioso, mas não as suas conseqüências, graças a indicadores vários. Por exemplo, em Atenas em 594 a.C., Sólon, tendo em vista diversos fins, dividiu os cidadãos em quatro categorias de riqueza, tendo em vista diversos objec- tivos, entre os quais a elegibilidade para cargos públicos. Formalmente, tal facto marcou a completa ruptura com os direi- tos exclusivos de uma ordem hereditária, de uma nobreza de nascimento, embora as famílias aristocráticas continuassem a predominar na nova classe governante determinada pela abas- tança, pelo menos durante algum tempo. Vale a pena notar dois pontos: (1) a classificação para cada uma das quatro 'classes' de Sólon era unicamente definida em termos de produção agrícola; (2) três dessas 'classes' conservaram as denominações tradicio- nais de hippeis, zeugitai e thetes, mas os membros da quarta e mais importante categoria eram chamados pentakosiomedimnoi (homens com quinhentos medimnos de renda), sistema de valo- rização gritantemente artificial que simboliza a qualidade timo- crática do esquema. Também em Roma se introduziu o princípio timocrático no sistema governativo (e militar), mais ou menos na mesma época, tornando-se tão firmemente enraizado que, com razão, Nicolet apelidou Roma de cite censitaire(31). Para a primeira fase, a evidência quanto a pormenores, tardios e anacrônicos, parece-me irremediavelmente corrompida(38). Não pode haver dúvidas, contudo, acerca da entrada de não patrícios para altos cargos (começando pelo de 'tribuno militar com poder de côn- sul'), ou acerca da concessão da legitimidade de casamento entre patrícios e plebeus, verificada em 445 a.C. Ambos os casos implicam indubitavelmente a existência de homens mais ricos entre os plebeus (em linguagem técnica, todos os cidadãos que não eram patrícios). O patriciado romano era uma ordem de singular inflexibilidade, apenas acessível a estranhos mediante a adopção formal de um indivíduo do sexo masculino por uma 23 POLÍTICA NO MUNDO ANTIGO ESTADO, CLASSE E PODER família patrícia, acto solene que requeria o consentimento do Estado. Forçosamente, portanto, a elite da plebe também se transformou em ordem, análoga ao popolo medieval italiano (39). Uma dicotomia tão completa não tinha paralelo na Grécia - pelo menos, não há notícia de nada semelhante à ordem dos plebeus - mas, de qualquer forma, a distinção depressa foi mini- mizada no que dizia respeito à prática política. Ao presente con- texto, no ponto em que iniciámos a nossa pesquisa, interessa o facto de que, quer os plebeus romanos quer os seus congêneres gregos, o grosso da população dos cidadãos, maioritariamente rural, se tinha diferenciado pela riqueza e pela situação social. Nos séculos seguintes, não só a brecha existente entre ricos e pobres se alargou enormemente como se verificou também maior diversificação da estrutura social. O ritmo e a amplitude evolutiva foram diferentes de cidade-estado para cidade-estado, entre os Gregos, e mais se acentuaram entre estes em conjunto e os Romanos. A fechada classe romana dos patrícios foi, efectiva- mente, desalojada por uma nova aristocracia (nobilitas), não exlusivamente hereditária e nunca institucionalizada como 'hie- rarquia' ou 'ordem', e que incorporava 'novas' linhagens (gen- tes), das quais uma crescente maioria era contituída por plebeus, no antigo sentido do termo, à medida que as famílias patrícias se extinguiam pouco a pouco(40). A admissão nesta aristocracia resultava usualmente da eleição para o consulado de um 'homem novo', alguém cuja família permanecera até então fora desse cír- culo restrito. O número destes homens novos era, como é natural, suficiente para fornecer os recrutas que a velha ordem patrícia não fora capaz de granjear ao abrigo das antigas regras, nunca alteradas. Provinham do numeroso grupo dos homens de posses, normalmente proprietários rurais que dominavam a política local nos municípios e regiões fora da cidade de Roma e que davam apoio seguro à nobreza no centro político. O aparecimento relati- vapiente tardio de grupos de interesses especiais, sobretudo os publicani (cobradores de impostos e possuidores de contratospúblicos), introduziu, por vezes, complicações menores no qua- dro político, mas a idéia de serem responsáveis pela injecção de conflitos no seio das classes superiores é uma falácia moderna(41). Ao longo da nossa exposição e quando necessário, conside- raremos um ou outro destes casos. Por agora bastará enumerar as principais variáveis entre as cidades-estados: dimensão populacional e territorial; recursos naturais, sobretudo cereais, metais, madeiras; grau de urbanização, mais no sentido da sua função e interesse do que no de residência; a infraestrutura eco- nômica dos escravos e dos não-cidadãos livres; tamanho e fon- tes de riqueza. Não obstante, todas as cidades-estado tinham um traço em comum ou seja a incorporação na comunidade política, como membros e como cidadãos, dos lavradores, dos artesãos e dos comerciantes; mesmo daqueles que, importa salientar, não tinham a obrigação nem o privilégio do uso das armas. De iní- cio, tais elementos não eram (e, em algumas comunidades, nunca chegaram a ser) membros de pleno direito, cidadãos na íntegra, no sentido que o termo adquiriu na Grécia clássica e em Roma. Mas até este reconhecimento limitado não tinha prece- dentes na história; simboliza-o a bastante engenhosa subdivisão política do Estado em unidades territoriais mais pequenas, 'demos' em Atenas e noutras polis gregas, 'tribos' em Roma, na sua maioria rurais(42). Qualquer análise sobre política grega ou romana deve ter em conta esta radical inovação sociopolítica. Requer atenção uma outra variante: alguns Estados passa- ram a dominar território estrangeiro, relativamente extenso, quer incorporando-o por completo quer dominando-o e explo- rando-o sem, formalmente (ou mesmo substancialmente), lhe retirarem toda a independência, quer ainda, de lugar para lugar, variando a extensão e natureza desse domínio. Com a informa- ção de que dispomos, a análise só é possível em três casos - Esparta, Atenas e Roma - mas há razões para crer que esta variante crítica esteja ausente nos demais (salvo, talvez, em Rodes e, de forma incompleta, em Tebas e na Tessália). E, nes- tes três, os efeitos econômicos, sociais e políticos foram radical- mente diferentes. As origens da Idade das Trevas e o desenvolvimento do sis- tema espartano na Lacónia são difíceis de identificar. Antes de 700 a.C., Esparta deu o passo decisivo da conquista da Messénia, reduzindo à escravatura a população. Este facto con- duziu à transformação da cidadania espartana numa classe fechada de soldados a tempo inteiro, sustentados pelo trabalho forçado dos ilotas, processo que se completaria por volta de 600 a.C., a seguir à repressão de uma obstinada revolta em larga escala na Messénia. O sistema teve as suas falhas e anomalias 24 25 POLÍTICA NO MUNDO ANTIGO ESTADO, CLASSE E PODER - a sobrevivência de uma aristocracia dentro do escol espartano e o surgimento de categorias tão curiosas corno os chamados Inferiores, os mothakes e os neodamodeis - assunto que não nos deterá, porém. Em certos aspectos importantes, o início da história de Atenas também não é menos misterioso. Não sabemos, por exemplo, quando e como a totalidade da Ática (cerca de 2500 km2) foi incorporada numa só polis, onde não havia distinção de estatuto entre o povo de Atenas e os habitantes de Maratona, de Elêusis e das restantes povoações e comunidades existentes dentro da Ática. Nenhuma outra cidade-estado grega teve uma extensão territorial e uma base demográfica comparáveis (excluindo o conquistado território de Esparta). Nem nenhuma outra, excepto a pequena ilha de Sifinos nas Cíclades, teve a inestimável vantagem de possuir minas de prata importantes dentro dos próprios domínios (em Láurion no sudeste da Ática). As autoridades da época tinham noção de quanto as minas eram a chave da expansão naval que deu a Atenas o papel decisivo nas guerras médicas(43) e, logo a seguir, o impulso para o esta- belecimento de um império marítimo. Algumas movimentações expansionistas haviam sido tentadas mais cedo, sob a tirania de Pisístrato, quando se fundaram colônias quase militares na região de Dardanelos, mas é o império do século V que justifica que Atenas seja considerada entre os Estados conquistadores. Em sentido restrito, não foi muito o território anexado, à parte os enclaves confiscados a Estados súbditos para fixação de Atenienses e onde os submetidos mantinham considerável inde- pendência. Não obstante isso, o império mais do que duplicou os rendimentos públicos de Atenas, dotando o Estado de capaci- dade para levar em frente um largo programa de construção naval e de outras obras públicas, custeadas, em grande parte, pelas rendas imperiais e também pelos cidadãos mais ricos; e forneceu emprego, pelo menos parcial, a muitos cidadãos mais pobres, sobretudo na marinha de guerra. O desenvolvimento da Roma foi de uma categoria dife- rente, qualitativa e quantitativamente. Desde o início que a República romana integrou por completo, sempre que possível, algumas comunidades vizinhas. Isso significou incluir os seus territórios no ager Romanus e a população no corpo dos cidadãos romanos (embora, com o andar do tempo, houvesse 26 algumas diferenciações subtis no respeitante a direitos). Portanto na altura em que Roma conquistara já toda a Itália a sul do rio Pó, isto é, por volta do início do século III a.C., o corpo dos cidadãos romanos ultrapassava enormemente o de Atenas no seu ponto mais alto e este era, de longe, o maior de qualquer outra cidade-estado grega. E Roma não parou de cres- cer, embora já possuísse o maior império de terras de sempre no mundo das cidades-estado. Nos últimos trezentos anos da República, foi escassíssimo o tempo em que o exército romano se não ocupou em campanhas militares externas. Calcula-se que, nos dois últimos séculos, a média anual de cidadãos adul- tos do sexo masculino envolvidos na actividade militar fosse de treze por cento, subindo a trinta e cinco por cento em alguns anos (44). São números aproximados, sem dúvida, mas nenhuma possível margem de erro razoável enfraquecerá as implicações destes números estonteantes, provavelmente sem paralelo na história. Mudanças fundamentais na sociedade foram a conseqüên- cia inevitável. As propriedades agrícolas atingiram extensões nunca antes sonhadas, apoiando-se numa força de trabalho escravo de novo sem precedentes. A contínua e maciça conces- são do direito de cidadania a latinos, a 'aliados' itálicos e a alguns outros grupos, e a quase automática concessão do mesmo direito aos escravos libertos elevou o total de 'Romanos' muito para além do que já fora um número incom- patível com o ideal aristotélico de cidade-estado (e com o real funcionamento das respectivas instituições45). Os escravos libertos tinham direitos restringidos apenas na primeira geração; uma parte cada vez maior dos restantes residia a tão grande dis- tância de Roma que isso lhe limitava consideravelmente a parti- cipação política directa, excepção feita aos ricos e respectivos servidores. Ao mesmo tempo, uma substancial parte do campe- sinato era compelida a abandonar as terras arrendadas, devido a um processo mais complexo do que com freqüência se supõe: a migração contínua para as cidades, sobretudo para a de Roma. Os cálculos sobre a população de Roma não são melhores do que conjecturas, mas este indicador é aparentemente mais rigo- roso: a lista dos cidadãos da cidade de Roma (e só dela) com direito a receber cereal gratuito atingia o número de 320.000 quando César se tornou dictator (Suetónio, César 41.5). 27 POLÍTICA NO MUNDO ANTIGO ESTADO, CLASSE E PODER Toda a actividade militar representava poder, no sentido restrito de força, exercido no exterior. No entanto, o nosso inte- resse centra-se, sobretudo, no funcionamento internodo Estado. Qual o poder de que dispunha para impor as suas decisões nas muitas áreas de acção cujas regras estabelecera? Como corpo policial, a antiga cidade-estado dispunha apenas de um número relativamente pequeno de escravos públicos ao serviço dos dife- rentes magistrados, desde o arconte e o cônsul até aos inspecto- res de mercados (46) e, em Roma, os lictores, normalmente cida- dãos das classes mais baixas adstritos aos magistrados mais importantes. Este facto não é surpresa - a força policial organi- zada é uma criação do século XIX. Mas - o que é decisivo e excepcional - não se disponibilizou o exército para cumpri- mento de deveres policiais de larga escala até a cidade-estado ser substituída por uma monarquia. A este respeito, é notável o contraste com as cidades-estado italianas da baixa Idade Média (47)- O exército das antigas cidades-estado era uma milícia de cidadãos, que se constituía como exército apenas quando chamada a agir contra o mundo externo. O que Nicolet disse a respeito de Roma é igualmente verdade para a polis grega; «Em qualquer altura em que o Estado estivesse em paz com os seus vizinhos, Roma não dispunha de exército algum» (48). Era, outrossim, uma milícia socialmente seleccionada: em princípio, tanto a infantaria como a cavalaria eram obrigadas a equipar-se a si próprias, o que, automaticamente, reduzia a 'metade' mais pobre dos cidadãos a um serviço marginal, na armada ou como auxiliar da tropa ligeira, ou à total isenção, excepto em casos de emergência. E fácil elaborar a lista das excepções ao tipo ideal de antigo exército de cidadãos agora apresentado. Esparta foi sempre excepção. Alguns Estados possuíam pequenos exércitos perma- nentes de tropas de elite, como o «Sagrado Bando» dos trezen- tos em Tebas. A marinha de guerra ateniense (e talvez também outras) oferecia aos cidadãos pobres a oportunidade de servirem como remadores pagos. No séc. IV a.C., as cidades gregas empregavam cada vez mais soldados mercenários nas suas guerras; era este um sintoma importante de uma situação social e política em mudança, mas nem os mercenários nem os seus comandantes profissionais intervinham na política interna (a não ser sob o controlo de tiranos49). A amplitude da 28 conquista romana levou a repetidas reduções dos requisitos financeiros mínimos para prestação de serviço militar e ao pagamento de uma pensão de subsistência aos soldados no activo. Nos finais do séc. II a.C., de facto, já se abandonara a própria noção de uma milícia auto-equipada. É esta uma das razões, como veremos, porque o último século da República romana apresentava, na melhor das hipóteses, uma versão dis- torcida da política da cidade-estado. Nada do que se disse falseia a formulação geral da cidade-- estado e dos seus exércitos (50), mas impõe que se qualifique uma distinção importante entre a Grécia e Roma. É lugar -- comum o rigor da disciplina militar romana (sobretudo em Políbio 6.37-8); as principais penalidades incluíam a pena de morte por ordem do comandante (e até a dizimação, execu- tando-se um soldado de dez em dez num destacamento). A dis- ciplina do exército grego parece ter sido muito mais frouxa e são raros os casos de punição séria sem julgamento prévio (51). Estreitamente ligado a essa diferença estava o conceito romano do imperium de um magistrado (a examinar no terceiro capí- tulo), que lhe permitia, se estava num grau hierárquico suficien- temente elevado, exercer coercitio contra qualquer cidadão civil (e, é claro, contra as mulheres e os não-cidadãos) que tivesse desobedecido a uma ordem; isso poderia significar multa, con- fiscação de parte dos bens, prisão ou possível desterro, mas não pena capital sem processo jurídico ou sem direito de apelo. O imperium era um poder indefinido; abarcava tudo o que esti- vesse dentro da esfera de competência do magistrado e que a lei não excluísse. Por isso, como observou Mommsen, a coercitio de um magistrado, se dentro dos limites reconhecidos (amplos, aliás), «podia ser injusta (unbillig), mas nunca ser ilegal (rechtswidrig)» (52). Quanto ao magistrado grego podia, por exemplo, multar um comerciante delinqüente, não podendo, porém exercer coercitio nesta ou em qualquer outra situação a menos que estivesse especificamente autorizado a fazê-lo por um acto legislativo e tal acto nunca lhe permitia enviar alguém para a prisão ou para o desterro. Assim, contra os particulares, os Romanos dispunham de uma pequena e rudimentar máquina policial, sobretudo na área do direito penal. Quando envolvia um número elevado de parti- culares, mais ou menos organizados, possivelmente a máquina 29 POLÍTICA NO MUNDO ANTIGO ESTADO, CLASSE E PODER não funcionava. Que fazer então? A documentação disponível, respeitante quer à Grécia quer a Roma, é demasiado escassa para fornecer uma resposta clara, mas é suficientemente suges- tiva. Em 186 a.C., a elite romana atemorizou-se face à grande adopção generalizada dos ritos báquicos em Roma e em grande parte de Itália, especialmente entre as classes mais baixas. A nossa fonte, uma narrativa de doze páginas de Tito Lívio (38.8-19), escrita quase dois séculos depois do acontecimento, toda ela partidária, melodramática e fictícia em vários pontos, insiste numa conspiração em massa suprimida com êxito. Alguns historiadores concluíram que este caso mostra a existên- cia «de uma organização policial eficiente em tempo de crise» (53), mas não é dessa forma que interpreto o relato de Tito Lívio. Os usuais assistentes ao dispor dos magistrados recebiam o apoio dos seus escravos pessoais e ajudantes e também de guardas e de vigilantes nocturnos especialmente nomeados, mas, só por si, estes não podiam ter interrogado, aprisionado e, por fim, executado milhares de pessoas. Nem tão-pouco actua- ram sozinhos, diz Tito Lívio, referindo-se à denúncia generali- zada de indivíduos e à acção 'policial' levada a cabo por cida- dãos normais que se ofereceram como voluntários em resposta ao apelo do cônsul num confio, uma reunião pública informal (54). Os termos desse apelo como os registou Tito Lívio (39.16.13) são vagos: cumpre o teu dever «onde quer que este- jas e seja o que for que te ordenem». Mas não era assim que se recrutava o exército romano: um dilectus - a palavra técnica designativa de mobilização, perfeitamente familiar a Tito Lívio - tinha de ser votado pelo Senado, sendo depois posto em prá- tica por um cônsul segundo os procedimentos autorizados. Faltam na narrativa a palavra dilectus, a necessária decisão senatorial e o procedimento consular. Também não constam do Delato de Apiano sobre a destruição de Caio Graco, quando, escreve o historiador, o cônsul tinha 'homens armados' à sua disposição (Guerra Civil 1.113, 116). Um caso paralelo ateniense proporcionará mais esclareci- mentos. Em 415 a.C., ocorreu um duplo sacrilégio: a mutilação dos bustos de Ceres e a 'profanação' dos mistérios eleusinos. Coincidindo com o início da expedição contra a Sicília, o acon- tecimento gerou algo parecido com o pânico. Tal como em 30 Roma, em 186 e 121, todos os órgãos de governo se envolve- ram na investigação e nos castigos e os cidadãos comuns foram mobilizados para denunciarem e para vigiarem. Neste caso, a prova textual é específica: o Conselho, notícia Andócides (1.45), pediu aos strategoi que convocassem os cidadãos mora- dores na cidade e os reunissem armados, num certo número de lugares designados(55). Os dois incidentes tiveram implicações políticas significati- vamente diferentes: o Senado romano viu nas Bacanais uma ameaça subversiva vinda de baixo, enquanto que em Atenas, em 415, se receou uma conspiração visando a expedição à Sicília e as instituições democráticas (é irrelevante que tais receios tives- sem ou não bons fundamentos56). Tiveram em comum o facto deuma boa parte dos cidadãos possuir armas militares por uma questão de obrigação e ter prática do seu manuseamento. Um sistema militar como este não tinha precedentes (havendo escas- sos exemplos posteriores) e criou uma relação única entre as forças armadas, os seus comandantes e o Estado (57). Numa crise interna, ou no que se tornou como tal, o próprio exército não intervinha como força coerciva, mas homens armados podiam ser convocados como voluntários. Um estudioso antigo, para- fraseando uma passagem das Histórias perdidas de Salústio, explicou que esses voluntários não eram soldados, mas sim substitutos de soldados (non sunt milites sedpro milite™). A dis- tinção não é meramente verbal, é básica para o pensamento e para a psicologia políticos. Não se podia obrigar alguém a fazer-se voluntário; a resposta não era previsível nem em número nem em rapidez; os voluntários não se sujeitavam à dis- ciplina militar nem proferiam o juramento de lealdade ao seu respectivo general exigido ao soldado romano todas as vezes que fosse convocado (59). Por outro lado, em situações deste gênero, os voluntários sempre foram mais 'seguros' do que os recrutados. Os cidadãos com acesso imediato às armas eram, principal- mente, homens que já tinham servido na milícia. Portanto, será tentador tirarem-se conclusões acerca do inegável caracter timo- crático do exército de cidadãos. Mas as coisas nem sempre eram assim tão simples, como a experiência ateniense de 415 indica (60). Numa situação de guerra civil aberta, em que exércitos mais ou menos organizados, «oficiais» e «não oficiais», par- 31 POLÍTICA NO MUNDO ANTIGO ESTADO, CLASSE E PODER ticipam defacto, o caracter de classe do exército pode tornar-se, sem dúvida, o factor decisivo, mas a guerra civil marca o falhanço das soluções políticas e só exige a nossa atenção quando chegamos a esse ponto. No final do capítulo cinco, veremos que a totalidade do último século da República romana terá de considerar-se um período de guerra civil (6I). NOTAS (') W. L. Newman, The Politics ofAristotle (4 vols., Oxford 1887-1902), I, 223. (2) Hesíodo, Trabalhos e Dias, 248-64; Sólon como é ci tado por Aristóteles, Constituição de Atenas 12.1; Platão, Górgias 502E-519D, respec tivamente. (3) Para os testimonia, ver S. Cagnazzi in Quaderni di Storia II (1980) 297-314. (") A lista está incompleta. Para o grego, veja-se resumidamente Loenen (1953) 7-10; para o latim, consultar na íntegra J. Hellegouarch, Lê vocabulaire latin dês relations et dês partis politiques sous Ia Republique (Paris 1963) pt. IV. (5) Cf. Política 1281al2-19, 1289b29-32, 1290a30-b20, 1291b2-13, 1296a22-32, 1296b24-34, 1315a31-33, 1317b2-10, 1318a31-32. (") Ehrenberg (1976) 154; Cf. Spahn (1977) 25-6. Ver adiante cap. 5. (7) Para uma análise excessivamente longa e convencional ver Ungern-- Sternberg (1970). Tanto o senatus consultum como a moderna bibliografia sobre o assunto foram devidamente resumidos por A. Guarino, «Senatus consultum ultimum», in Sein und Werden im Recht. Festgabe für Ulrich von Lübtow..., org. W. G. Becker e L. Schnorr von Carolsfeld (Berlim 1970), pp. 281-94. (8)E.g. Badian(1972). (') Note-se o esforço de Badian (1972) 722-6 para contornar esta fra- queza do seu caso. (10) Badian (1972) 707, 716-20. (") De officiis 1.22.76; Disputas Tusculanas 4.23.51; Oração sobre a sua casa 34.91. C2) Uma notável excepção é a de A. Guarino na crítica a Ungern-- Sternberg (1970) in Labeo 18 (1972) 95-100: «II 'Notstandsrecht dês Senat' non è U 'Notstandsrecht' delia repubblica» (p. 96). Ver também R. E. Smjth, «The Anatomy of Force in Late Republican Politics» in Badian (1966) 257-73. (13)Lintott(1968) 173. ('") Ungern-Sternberg (1970) 131. A citação é de Cícero, Leis 3.3.8; «Que a segurança do povo seja a lei mais importante». 32 (l5) Eventuais privilégios não considerados nesta análise, não alteram a qualidade desta reflexão sobre a rejeição; e.g., Badian (1972) 716: « Era ver- dade, naturalmente, que a assembléia das centúrias pesava a favor dos mais prósperos». ('") M. W. Frederiksen, in Journal ofRoman Studies 57 (1967) 254. (l7) M. Kaser, in Zeitschrift dês Savigny-Stiftung für Rechtsgeschichte, Romanistische Abteilung 84 (1967) 521. C8) Na sua crítica a Kelly (1966), in Classical Review, 17 (1967) 83-6; cf. a crítica de G. I. Luzzatto in Studia et documenta historiae et iuris 32 (1966) 377-84, e R. Villers, «Lê droit romain, droit d'inégalité», Revue dês études Mines 47 (1969) 462-81. (") Lübtow (1948) 475. Este extenso ensaio de um reputado romanista é uma reductio ad absurdum do que continua a ser um ponto de vista prevale- cente. Assim, F. Schulz, Principies of Roman Law, (Oxford 1936), p. 24, escreve (citado por Lübtow): «Os escritos legais [romanos] ignoram a ligação genética entre a lei e os assuntos extra-lei... Nenhuma consideração de caracter econômico intervém na lei». É evidente o desvio ilegítimo do que os juristas dizem do próprio modelo da lei. (20) Ehrenberg (1976) 97 e 87, respectivamente. H Lübtow (1948) 481. (22) Laski (1935) 57-8. (") Ver, e .g. , as referências em S. Lukes, Power: A Radical View (Londres 1974). (24) W. W. Tiffany, in Political Anthropology, org. S. L. Seaton e H. J. M. Claessen (Haia 1975), pp. 70 e 65, e M. Gluckman, Polit ics, Law and Ritual in Tribal Society (Oxford 1965), p. 84, respectivamente. (Seleccionei deliberadamente outros exemplos diferentes dos criticados em Finley (1975) 113-15). Para uma refutação efectiva feita por um antropologista, ver as pági nas de abertura de M. G. Webb, «The Flag Fol lows Trade. . .» , in Ancient C iv i l i zat i on and Trade , org. J . A . Sab lof f e C. C . Lamberg-Kar lovsky (Albuquerque 1975), pp. 155-209; cf. W. G. Runciman, «Origins of States: The Case of Archaic Greece», Comparative Studies in Society and History 24 (1982)351-77. (25) É absurdo, mas necessár io, que o histor iador da Antigüidade não renegue explici tamente palavras tão úteis como «facção» e «cliente». Constitui pedantismo objectar só porque factio e cliens são termos técnicos latinos com matizes diferentes dos que têm modernamente. (26) Será suficiente citar a afirmação de R. Sealy de que as «considera ções marxistas sobre os conflitos políticos atenienses» foram «apresentados de forma clássica» por Beloch e de Ste Croix: «The Entry of Per ic les into History», Hermes 84 (1956) 234-47, na p. 242. Este últ imo transformou Ai islóteles em marxista: The Class Struggle in the Ancient Greek World (Londres 1981), pp. 69-80. (27) Ver Hintze (1962) 425-6, num ensaio publicado originalmente em 1913 por um óptimo historiador político alemão, que, contra a prática do seu icinpo, se ocupou em profundidade do significado dos pontos de vista marxistas. (2") Ver Nippel (1980) 103-5. (N) Ver Finley (1973a) 40-2 e bibliografia. Neste livro, argumento que 33 POLÍTICA NO MUNDO ANTIGO ESTADO, CLASSE E PODER «estatuto» e «ordem» são prefer íveis a «classe» ao analisar a economia da Antigüidade. O meu regresso, no presente trabalho, a «classe» (no sentido que lhe é atribuído no discurso quotidiano, não num sentido técnico, marxista ou outro) não implica uma mudança de ponto de vista. Apenas acho a terminologia convencional mais adequada e inofensiva, na análise da política da Antigüidade. O Ver S. R. L. Clark, Arístotle 's Man (Oxford 1975), pp. 84-97. O Em Polít ica (1289b28-32), lê-se que existem três classes: dos ricos, dos pobres e a média, possuindo os ricos equipamento de hoplita e os pobres não. Uma tal inconsequência, sem lugar para a condição qualificante (o equi- pamento de hoplita) da classe média, é notável em Aristóteles e ajuda a confir- mar o meu juízo de que, ocasionalmente, terá injectadode modo mecânico a doutrina do meio termo neste trabalho, bem depressa pondo de lado as suas próprias considerações. Sublinho este ponto sobretudo porque Christian Meier (1980) baseou a sua análise do desenvolvimento político grego à volta de tal classe média, quanto a mim fictícia (ver mais à frente a nota 48 do cap. 2), análise essa alargada pelo seu aluno Spahn (1977). (32) E .g . J . Andreau , «M. I . F in ley , I a banque an t ique e t 1 'économie moderne», Annali.. . Pisa, terceira série, 7 (1977) 1129-52. (33) «Cidade-estado» não consti tui a tradução correcta do grego polis , mas é a convencionada, sendo também a conveniente ao permitir a inclusão de Roma, à qual polis não se adapta. (34) A razão para excluir as monarquias tornar-se-á c lara no cap. 3. Os tiranos são excluídos porque não fizeram qualquer esforço para institucionali zar a sua pos ição , pe rmanecendo «fora do ed if íc io da pol is»: D. Lanza, / / tiranno e il suo pubblico (Turim 1977), pp. 163-4. (35) Ver Finley (1975) 64-6, sobre a necessidade de sincronização entre a história legal de Roma e os períodos convencionais. (") Weber (1972) I, 797-8 sublinha o contraste, a respeito disto, com as comunas medievais. (37)Nicolet(1976). (38) O debate centra-se nos comitia centuriata. Para uma análise concisa dos comitia (convencional, excepto no que se refere a uma par te aberrante baseada numa suposta e mal sucedida revolução industrial em fins do séc. IV a.C.) ver Staveley (1972) cap. 6; mais discursivo, de alcance mais lato e tam- bém mais céptico rela tivamente às fontes romanas tardias, é Nicolet (1976) cap. 7; ambos fornecem bibliografia suficiente. Ver, ainda, Nicolet, «L'idéolo- gie du système centuriate et 1'influence de Ia philosophie politique grecque», Quaderno 22 da Accademia dei Lincei (1976), pp. 113-37. Segundo creio, mesmo Nicolet acaba por aceitar demasiado. (3") Ver Weber (1972) 779-81. (40) De qualquer maneira, nos f inais da República, as famílias patr íc ias foram impedidas de ocupar os cargos de tribuno da plebe; dá disso testemunho a carreira do patrício Júlio César. (41) Ver, e.g;, C. Nicolet, Uordre eqüestre à Vépoque républicaine I (Bibliothèque dês Écoles françaises d'Athènes e de Rome 207,1966), pp. 255-69. (42) Ver Weber (1972) 800-1. Apesar da etimologia óbvia, o latim tribus, des ti tu ído de e lemento de parentesco, nada t inha em comum com a palavra «tribo» no sentido antropológico do termo; ver cap. 2, notas 42 e 49. 34 ( 4 3) As fontes são apresentadas por J . Labarbe, La lo i nava le de Thémistocle (Bibl. de Ia Fac. de Philos. et Lettres de 1 'Univ. de Liège 143, 1957), pp. 10-17, e discutidas até à saciedade no cap. 1. («) Harr is (1979) 9-10, 256-7; Hopkins (1978) 31-5. A análise pormeno- ; rizada de Brunt (1971£>) é fundamental para o período de 225 a.C. a 14 d.C. (45) Simplif ico em demasia; ver Gauthier (1974) e bibliograf ia, e a dis cussão sobre cidadania, no cap. 4 deste livro. (46) Os testemunhos acerca dos escravos públicos são esporádicos; para Atenas , ve r O. Jacob, Lês e sc laves publ ic s à A thènes (B ib l . de Ia Fac. de Philos. e t Lettres de 1 'Univ. de Liège 35, 1928; re impr., Nova Iorque 1979); para Roma, W. Eder , Servitus publica (Wiesbaden 1980) , Mommsen (1989) livro II, cap. 12. (47) Neste contexto é irrelevante a discussão ideológica usual dos huma nistas, sobretudo de Maquiavel, acerca dos méritos ou deméritos relativos dos mercenários e das milícias de cidadãos. Ver C. C. Bayley, War and Society in Renaissance Florence (Toronto, 1961) , que, nos raros momentos em que se lembra da ocorrência de problemas de ordem in terna, toma como ce r to que tanto os mercenários como as milícias estavam sempre disponíveis para supri m i r a a g i t a ç ã o c i v i l ; c f . W . M . B owsky , «The Med ie v a l C ommune a nd In terna i Vio lence : Pol ice Power and Publ ic Sa fe ty in S iena, 1287-1355», American Historical Review 73 (1967) 2-17. O Nicolet (l976) 134. (49) Acerca das relações entre as cidades gregas e os comandos e exérci tos mercenários por elas contratados, ver Pritchett (1971-9) II, cap. 2-4. (50) Ver Nicolet (1976) 125-6. Os capítulos 3-4 apresentam o relato mais e qu i l i br ado ( com b ib l i og ra f ia ) sob re o s a spe c to s da h i s tór i a do exé rc i t o romano relevantes para a presente análise. (51) A respe i to de Roma, ve r e . g . , G . R . Wat son , The Roman So ld ie r (Londres 1969), pp. 117-26; sobre a Grécia, Pritchett (1971-9) II, cap. 12. (H) Mommsen (1899) 39 (o cap. 4 do livro I é dedicado à coercitio); cf. Mommsen (1887-8) I 134-61. Não nos interessam os paliativos proporciona- dos pela intervenção tribunícia ou pela insti tuição daprovocatio. (53)Lintott(1968)106. (54) Uma cont io e ra uma reunião em massa d i r ig ida por um ou mais magistrados ou senadores que se disso lvia sem se tomarem acções formais. ^Relativamente à diferença fundamental entre uma contio e uma assembléia , Ver Taylor (1966), cap. 2. (55) Andócides é notoriamente pouco fiável, mas este ponto é confirmado ar uma frase em Tucídides (6.61.2) noticiando que cidadãos armados tinham jlormido no templo de Teseu, um dos locais mencionados por Andócides. (") Paradoxalmente, o caso ateniense está muito melhor documentado do • o romano e é também mais obscuro. A melhor análise continua a ser a de .í. Hatzfeld, Alcibiade (Paris 1951), pp. 158-205. (") Max Weber, analisou este aspecto de forma sucinta e lapidar: Weber (1972) 756-7; c f . S . Andresk i , Müi ta ry Organi za t ion and Soc i e ty ( 2 a ed . , l .ondres 1968), pp. 34-5, 98-9. As implicações ou, pelo menos, os cambiantes conseqüentes , pe recem-me te r s ido negl igenc iados no deba te in ic iado por A. M. Snodgrass , «The Hopl i te Reform and His tory» , Journal o f He l len ic 35 POLÍTICA NO MUNDO ANTIGO Studies 85 (1965) 110-22; ver, mais recentemente, P. Cartledge e J. Salmon, ibid. 97 (1977) 11-27 e 84-101; Spahn (1977) 70-83. ( 5 8) Sérvio, Comentário à Eneida de Virgí l io 2.157; cf . Isidoro de Sevilha, Etym. 9.3.54. A convocação era chamada evocatio, não dilectus. (5q) Acerca do juramento, ver cap. 6, nota 24. Um outro tipo de medida de emergência era quando o Senado declarava o tumultus, exigindo a mobili- zação imediata de um exército para combater o inimigo às portas da c idade cuja viz inhança não permitia o luxo do dilectus adequado. São confusas as respectivas provas, sobretudo porque tumultus signif icava actualmente um alvoroço de qualquer espécie. Quando, por exemplo, Tito Lívio uti l izou a palavra com referência ao caso dos Bacanais (39.16.13), creio que o fez no sentido geral do termo e não no seu sentido técnico particular. A razão que aponto é a de que os procedimentos adoptados de acordo com o seu próprio relato, não foram os de um tumultum «formal». Se assim for, dir-se-à que o prolongamento da declaração de tumultus do inimigo estrangeiro ao inimigo interno não ocorreu antes do séc. I a.C. (60) Parece haver um caso análogo no relato de Eneias Táctico (11.7-10) da supressão de um golpe dos aristocratas em Argos, nos inícios do séc. IV a.C. (61) Como corolário, todos os escritos deste período acerca do passado de Roma estão seriamente falseados por interesses e juízos contemporâneos, não constituindo material prioritário salvo havendo a certeza de realmente reflecti- rem escr itos anter iores. É pena, mas não desculpa para a prática comum de fingir-se (ou esperar) que o melhor que temos é suficientemente bom. Bastar-nos-à observar quanto Nicolet (1976), num livro esclarecedor, possui de facto sobre «lê métier ducitoyen» durante o período de guerra civil. 36 Capítulo dois AUTORIDADE E PATROCÍNIO Nem a acção policial contra os maus elementos, nem as medidas de crise contra a 'subversão' em larga escala, nos informam sobre a usual capacidade da cidade-estado grega ou ile Roma para fazer cumprir as decisões governamentais, que iam da política externa à aplicação de impostos e ao direito civil, quando é evidente que lhes faltavam os meios para, tal como diz Laski na sua linguagem vigorosa, 'coagir os oposito- res do governo, dobrar-lhes as vontades, levá-los á siibmissão'(')- E consideramos Estados que eram politicamente estáveis há séculos. Nem todos o seriam, é certo, mas o facto essencial é que os três aos quais teremos de cingir-nos devido à documentação disponível - Atenas, Esparta e Roma - se carac- terizavam pela permanente aceitação das instituições políticas e dos homens e classe que os dirigiam. Ocorreram muitas modifi- cações políticas, durante o período de tempo em causa, muitos conflitos graves, houve muitos cidadãos insatisfeitos e descon- tentes, mas os Estados permaneceram politicamente estáveis. No caso de Atenas, basta recordar o rápido restabelecimento do sistema depois da frustrante derrota na guerra do Peloponeso e após os dois breves golpes oligárquicos que a guerra engendrou; quanto a Roma, é prova suficiente a fornecida pela continuada prontidão dos seus cidadãos para se alistarem em massa durante séculos de guerras incessantes. A conclusão inevitável é a de que, pelo menos nos Estados estáveis, a aceitação das instituições e do sistema como um todo era natural: a legitimidade assentava na sua contínua e bem 37 POLÍTICA NO MUNDO ANTIGO A UTORIDADE E PA TROC1NIO sucedida existência^). Dificilmente nos surpreenderá tal facto, que constitui um lugar-comum: o mesmo poderá dizer-se de muitos outros Estados do passado e do presente, embora poucos (ou talvez nenhuns) com tão pequeno poder coercivo pronto a actuar. Na Política, Aristóteles definiu o homem como um zoõn politikon (1252b9-53a59), e o significado de tal designação só é compreensível à luz da sua metafísica; daqui resulta que a cor- recta tradução exija uma incômoda paráfrase: o homem é um ser cuja meta mais elevada, cujo telos (fim) é, por natureza, viver na polis. Suponho que a maior parte dos gregos se tives- sem ouvido falar Aristóteles e compreendido o que ele dizia, estaria de acordo com isto. A mais conhecida forma de abordar o passado, histórico ou fictício, é divagar sobre ele e isso, naturalmente, é outro lugar-comum socio-político(3). Mas interessam-nos menos os argumentos acerca da diversidade dos 'bons velhos tempos' do que a necessidade psicológica de identidade através de um sen- timento de continuidade e do concomitante sentimento de que a estrutura básica da experiência social e sistema de valores her- dado do passado são, fundamentalmente, os únicos válidos para tal sociedade. Utilizo a palavra 'sentimento' para assinalar o habitual caracter irreflectido da reacção: apelos à pátrios poli- teia (constituição ancestral) em Atenas ou à rés publica em Roma despertaram um quente ardor emocional de justiça e não o exame analítico ou histórico do sentido exacto ou da validade do uso destes termos no contexto específico. Assim, no decurso dos conflitos da última parte do século V, em Atenas, tanto os oligarcas como os democratas garantiam estar a restabelecer a constituição ancestral; quatrocentos anos mais tarde, em 28-27 a.C., Augusto afirmou bem claro:«Tranferi a rés publica do meu poder (potestas) para o domínio (arbitrium) do Senado e do povo de Roma» (Rés gestae 34.1). Que na maior parte das vezes eram falsas tais declarações é fácil de demonstrar, mas não constitui tarefa lá muito interes- sante. A questão pertinente não é: Augusto alterou a rés publicai, mas sim: ter-se-á o número suficiente de romanos e de itálicos persuadido a si próprio de que ele o fez? O importante foi a capacidade das sociedades estáveis de manterem, sem petrificação, o seu forte sentido de continuidade através da mudança, da sua decidida aceitação daquilo a que os Gregos 38 chamaram nomos e os Romanos mos - a prática habitual, os usos, os costumes. Em 92 a.C., os censores romanos fecharam as escolas de «retórica latina» por serem um indesejável desvio do mos maiomm.«Os nossos antepassados» (citados como pro- mulgadores de leis) «estabeleceram o que desejavam que os seus filhos aprendessem e as escolas que devem freqüentar. Estas inovações, contrárias à tradição e aos costumes dos nossos antepassados, não nos agradam nem nos parecem correctas»(4). Duas gerações mais tarde, as mesmas escolas privadas de retó- rica floresciam em Roma, atraindo alunos entre a juventude das classes mais elevadas. Este tipo de afirmações e de atitudes contraditórias está presente em qualquer situação em que o passado seja árbitro: o passado oferece exemplos quer de ruptura quer de continuidade consoante o que se pretenda. Não há situação mais gritante do que o longo processo por meio do qual o Estado romano intro- duziu formalmente um exército de divindades estrangeiras no culto oficial, embora nada se assemelhe a um afastamento tão notório do mos maiorum(5). Contudo, Cícero negligenciou todo este processo, de que possuía um conhecimento considerável, e atribuiu a grandeza de Roma ao favor divino em troca da rigo- rosa observância dos ritos e dos cultos criados por Rómulo e pelo rei Numa (Sobre a natureza dos deuses 3.5). Sobre este assunto, não pretendo abarcar os seus processos mentais, nem os dos Gregos e Romanos em geral. No calendário, multiplica- vam-se os dias sagrados e os festivais, todos eles com os seus ritos próprios meticulosamente observados, muitas vezes com o conseqüente atraso e até prejuízo dos serviços públicos e priva- dos. Não se tomavam iniciativas públicas e poucas privadas eram empreendidas sem que, primeiro se suplicasse aos deuses por meio de preces e de sacrifícios e sem que depois se lhes agradecesse o êxito com dádivas e consagrações. Com bastante freqüência, e sempre entre os Romanos, eram os deuses consul- lados previamente de acordo com ritos específicos sobre as perspectivas de sucesso em assuntos públicos. A religiosidade romana levou observadores gregos a comentá-la(6) com respeito e temor, sobretudo em contextos comparativos como face aos Cartagineses e outros povos por eles submetidos. A prova da justeza dos procedimentos rituais era simples e pragmática: o sucesso demonstrava que Zeus ou Júpiter 39 POLÍTICA NO MUNDO ANTIGO (ou quem quer que fosse) fora favorável. Em tempos mais remotos, antes da criação da cidade-estado centralizada, os mai- ores beneficiários era as famílias aristocráticas que dominavam os centros de culto locais. Com o aparecimento do Estado e dos cultos estatais, a religião tornou-se um factor que garantia legiti- midade ao sistema como um todo: o efeito psicológico de uma permanente, maciça e solene participação nos ritos do Estado passou o exame pragmático durante longos períodos. Contudo, não há nem provas documentais nem razão para pensar-se que o curso político fosse alguma vez determinado ou desviado devido à vontade ou a preceitos divinos. Como veremos no capí- tulo 4, a condução de uma batalha ou de uma guerra era ocasio- nalmente interrompida por uma festividade ou por um presságio desfavorável; o escol romano manipulava os ritos de consulta a fim de atrasar a acção; mas isso parece ter sido tudo. A religião não proporcionava qualquer justificativo doutrinário - ou ético, no sentido mais exacto - tanto à estrutura do sistema como à política governativa seguida ou proposta. Por conseguinte, embora não substime o impacto da religião, não a considero o factor decisivo e único do processo pelo qual o sistema adquiriu
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