Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Capftu lo 23 0 COLAPSO DA DOMINA~AO EUROPEIA 0 st:<.:ulo XX exige tratamento difercnte do dispensado a sistemas passados que estivemos examinando. Este e nosso seculo. Muito dele c conla:<.:ido de n6s por m~io da experiencia direta e da mem6ria viva, e a sequencia de fatos e demnsiado bern conhccida para exigir recap it ula<;fio. No entanto, e muito recente, e o seu rcsultado e suas conseqiiend:ts sao imprevisiveis deruais para que n6s ja possamos examina-lo a partir da perspe<.:tiva adcquada. ;\s iirvores nos impcdem de vcr a florc.sta. SorntlS ioteledual e emodonalmente filhos de nossa t:ra, com comprometimentos c lealdades que se originam em nosso envolvimento c em nossas lutas da epoca. Uma vez que nlio podc- mos cxaminar u no.sso seculo com u mesmo distanciamento com que examinamos n Imperio Mauriano ou as guerras religinsas da Europa, necessitamos fa;r.er urn esfor\r(l mental especial para a ele aplicar a mesma analise que apli<.:amos ao passado: mantendo nos- sas convic<;iics, mas reconheccndo que outras gcra<;oes, especia !- mente as futuras, hlio d~ 4uestiona-las e de fiL-dT perplexas diante da importiinda que lhes atribuimos. Niio existcm golfo ahrupto ou linha divisiiria revolucionat'i a entre o sistema europeu de Estad\~~ e o alual sistema global. 0 sis- tema europcu uunca se limitou a cristamlade latina on ao conti- nente t:uropeu. Desdc seu come<;u, no seculo XVI, tanto as A.tn~ri· cas quantn o Imperio Otomano fib'11raram de forma iniludfvel nos calculos ccouomicos e t:strategicos de seus m~:~mbros; assim como. ~Xb Alhun Watson - ----- c.m meclida menor, os Estados russos, como a Moscbvia. Mais para leste e para o sui, os europeus cstiveram, desdc o comec;:o dt: seu sistema, em contato com comunidades altamente civilizadas na Asia c com comunidades primitivas na Afric.a. Eles acabavam de expandir seu sistema para cobrir n murH.lo inteiro 4uaudo, no se- culo XX, dele perderam o coutrole. Uma vez 4ue o sistema global se crnancipou do controle dos europeus, clc se tomou visivelmente novo e difcrcnte. As pressoes CI.'Onomicas e estrategicas que mantem l.'oeso o atual sistema siio bastantc: difercntcs daquelas da era da dominancia eurnpeia. A lcgitimidade, contudo, como s6i ocorrer, fica pam tnis das rcaJi- dadcs da mudan~;a . A maioria dos membros de nossa sociedade interuacional mundial e nao curopeia; mas as regras c as institui- c;:6cs de nossa sm:iedade ainda siio t:m grande medida as bcrdadas da Europa, e ela foi percebida, de maneira geml, ate rcl.'entemente, meramcnte como a sociedadc curopeia em escala maior. 0 slkulo X X comc<;Ou com urn sistema internadonalmundial. Este ainda era dominado por potcncias europeias; mas fora da Eu- ropa, e cspccialmente em torn(> do Oceano l'acifico, os europeus ja compartilbavam sua domin1incia com os Estados Unidos eo Japao. Passados calorze anos da intcrven~;iio conjunta para restaurar a ordcm na China, os curopeus mergulharam numa guerra extrema- mente dcvastadora -que, depois de um intervalo de vinte anos de paz desordenada, n:come~ou de uma forma difcrente de 1939 a 1945. Naquele murnento era muito claro que a Europa ja nao do- minava os assuntos mundiais ~ 4ue os iuteresses e as prcssoes do sistema cram verdadeiramente globais. Essa mudan~a scm dtivida teria ocurrido de qualquer modo no curso do seculo; mas a ;tulo- destrui~,;ao do poder europeu cru muito acclerou o processo. Os curopeus pcrderam o controle do sistema mundial, e surgiu uma nova sociedade internacional, nao de uma st'1 vcz, mas gradual e constantemente, ao Iongo de urn pt:riodo de meio scculo. Pode- mos distinguir quatro fases principais. A primcira foi a destru i~,;;lo da sociedadc europeia de Estados como cuuseqiicncia da l'rimeira Guerra Mundial. A scgunda foi o periodo de vin te anos de vigencia do t\cordo de Versalhes e da Liga das Na~,;oes, que se desintegrou na Segunda Guerra Mundlal. Essas llu<t~ fases :;fio discutitlns no presente capitulo. Em terct:iro Iugar, veio a reorganiza~ao do sis- A P.volu('Jin d:1 sociedade intemacional 38? lema global e da nova sociedade interuacional 4ue se seguiu ll Se- gunda Guerra Mundial. Finnlmente, e mescJada com as outras, deu- se a importante mudan<;a produzida pela descolooiz.a~,;ao. A~ duas ultimns fases siio discutidas no capitulo seguinte. A destrui<;i:lo da sociedade europeia de Estadu.v, 4ue havia se desenvolvido de forma unica e cum sucesso ao Iongo de quatro seculos, teve muitas e complexas causas. Estamos especialmente ioteressados na incapacidade daquela sociedade de ajustar-se sem catastrofe as press6es instaladas no sistema pelo cresdmento do poder alemao. No comec,;o do seculo XX, as grandes potcncias da Europa pao;saram de urn concerto elastico, que lhes havia permitido posicionar-se de maneiras difereotes com rela~tiio a diferentes quest6es, a uma confronta~,;ao rigida de dois blocos rivais. A trfpli- ce alianc;:a da Alemanha, da Austria-Huugria e da llalia uniu a anti- ga metade oriental da cristandade latina. onde Estados-na~oes ain- da cram uma novidade. Colocaram-se em oposi~ao a eJa a Franc;:a e a Russia, duas grandes potencias insatisfeitas. No entanto, em um nfvel mais proftrndo do que o dessas aliao~a~ formais, quase todas as potencias da Europa se viram cada vez mais pcrturbadas pelo rnpido crescimento da capacidade industrial c: militar do novo Reich alemao. A popula<;iio do novo Reich era a maior da Europa, excetuando-se a Russia, e superior em materia de educa~o e de babilidades. No sistema de Estados europeus, o crescimcnto do poder rela- tivo de urn Estado iodividuallevava a ajus!es a seu favor. 0 Est.ado mais forte oormalmente era capaz de concentrar de maneira bege- monica grande: parte da Europa em toroo de si. Esses ajustes cram equilibrados por muitos outros Estados movendo-:se politicamente para Ionge da potcncia mais forte e aproximando-se uns dos outros. Embora a Grli-Bretanha e a Russia tamMm fosscm potcncias asia- ticas de importiincia, e a Fran~yca e a Austria-Hungria tivessem areas de expansao imperial a mao, a Alemanha estava prcsa no centro da Europa. Poder-se-iam atingir os deslocamcntos necessari {lS para cstabelecer um equilibrio entre a Alemaoha e seus vi- zinhos por meio de meio-tcrmo padiico? Ou a for~-a da Alemarlha, como a rran!(a de Napoleiio e de Lufs XIV, colocava para a4ueles quo se opunham ii hegemonia o mesm<) tipo de problema insoh'ivel, exceto por mcio de uma guerra de grandes propor¢es? Os alemaes 388 Adam Watson naquela epoca niio reivindicavam terril6rios adicionais na Europa, mas se viam limitados do ponto de vista espadal, ein Volk olme Raum - urn puvo scm espa~o. Agora, que o escopo do sistema se loroara mundial , muitos alemaes sustenlavarn yue certamente as outras polem.:ias podiam criar espa!;O para absorver as cnergias irrequictas no novo Reich. Outros li">lados curopeus nau estavam preparados para scr Hio ~.:uopcrat i vos. Depois da queda do cauteloso Bismarck, os alemiies baviam adquirido uma posi!;iio dominante no de~.:<tdente Imperio Olumauo que era prejudicial aos interesses russos e hrit§nicos; scu colou iali~mo ullramarino competia com a Gri\-Bretanha e com a Frano;a; e elcs julgavam necessaria protegee seu impulso de com~r cio mundial eminenlemente lcgftimo com uma marinha JXldernsa. Paralelameule a esses dcsafios especificos ocorria o que parecia, nos reccios dos vizinhos da 1\lemanha, ser urn tom hegemonico sohn: a pr6pria Europa. Realmentc, o governo alemao nos anos antct'iorcs a Primcira Guerra Mundial era marcadamente mt:nos hegemi)nico, nas suas ac;6es e nas suas inten<(6es, do que os Habs-hurgos, Lufs XIV ou Napoleao; mas ~ icleia da hegemonia na Eu- ropa era ainda menos aceitavel do que o fora no passado, eo poder da AJemanha estava crescendo. Todos esses fatorcs tiveram n efcito conhecido suhre o que restava do m6vel curopeu: uutrns cstados senliram-se empurrados uns contra os outros pelo novo desafio. A cmtente 1 entre a Franr;a, a Russia c a Gra-Brelanha via-sc como uma geuufna coali7.ao anli-hegemonica, com a Fran9a de- sempenhando o papt:l de potencia animadora. lnfelizmcnte, o con- certo ja nfio fundonava de maneira eficaz na Europa, pois nau se podiam negociar com freqiiencia meios-termos mutua mente tolcra- veis. Nem estavam os estadistas ou seus publicos seriamente per- turhados com a altemativa: a possibilidade de guerra havia perdido seus terrorcs. Entiio, a cena estava pronta para uma solu<;iio para as tenstles na Europa por meiu de uma guerra de grandt:s propor~(les ent re as grandcs putc~ncias, tal como nao havia ocorrido durante um seculo.2 1 Em fn111ccs no original em ingtes - entcmlimento. (N. doT.) 2 Georg.: Kennan, ao ler c:;scs capilulos, sugeriu que as tJ<lix<'les nacionnli stas. especialmente o chauvinismo irresponsavel em cil'culos in tluentes franccscs e russus. ucvcl'iam receher maior peso do que aquete que eu thes atrihu i. A evolu~iio da sociedade inlernacional 389 Problema muito semelhante era culocado na Asia Oriental pelo Japao. A mmlerni7.a<;ao e a ocidentaliza<;ao do Japao libcraram urn dinamismo expansiouista comparavel ao da AJemanha na Eu- ropa. 03 japoneses tam hem se vi am como um povo sem espa9V; c o imperial ismo estava na moda ent re os demais membros do dube das grandes pcteucia<; que eles usavam '-'Omo modelos. Fortificados pur uma alian~ com a Gra-Bretanha, cles expulsaram os rus.'ill'i da ManchUria c depois pa'>saram a estahelecer uma posi~'io especial para si prilprios hi e na China setentrional, companivel aos imperios europeus alhures na Asia. A autoridade do governo chines c a poli- tica britanica lradicional cia "porta aberta" para 0 comercio baviam desmoronado; e os complexos arranjos coletivos para a prolt:'liiu de estrangeiros e de seu comerdu na China parecia provlivel fossem ser substituidos por uma divisflo daquele imt:nso pafs em proteto- rados de pot.encias imperiais individuais. No entanto, a expansiio japonesa recehia a oposi~lio dos Estados Unidos. Os norte- americanos, cnvolvidos na area por suas pr6prias anexal(<>es re- centes, tardiamente defendiam a porta aberta e a integridade da China. A~ possessoes imperiais e as esferas de influencia adquiri- das ante-s de 1900 eram legitimas, os norte-americanos c outros pareciam aos japoneses estar dizendo: "mas agora o jogo deve parar, deixando as "potencias que tem" com seus ganhos e as "po- tcncias que nii1> t€m" sem nada. Os japoncses nao queriam levantar a questao global, como queriam os alemiies; eles contavam com a alian~a anglo-japonesa para protege-Ins contra a dificilmente ad- ministravel oposi1,-"iio dos Estados Unidos e da Russia a seus pianos relativos a China. Assim, a expansao mundial da sociedadc europeia de Eslados niio proporcionou escopo adequado para duas das quatro comuni- dades mais poderosas e capazes de nosso st!culo, a AJemanha e o Japao. A guerra de 1914-1918, agora norrnalmcntc chamada de Pri- meira Guerra Mundial, foi ua realidade uma guerra europeia, luta- da pur raz6es europeias e alimentada por paixoes europeia-;. 1\ medida da for\;a alemli , e portanto a natureza genuinamellle anti- begemonica da guerra na Europa, foi demonstrada pelo fato de que il Alemanha pode perfcitamente enfrentar a coalizao que se formou :x>ntra cia, embora seus principais aliados, a Austria-llungria e os 390 Adam Watson otomanos, fossem Estados fracos a be ira de se dissolve rem em suas comunidades nacionais componentes. Nao foi seniio quando os ret:ursos de ultramar dos Estados Unidos foram tamMm tra7.idns para a lula que o poder hegemfinico da Alemanha f<1i temporaria- mentc quebrado. A Primeira Guerra Mundial pem1anece, como disse Gibbon. a respcito do estahele::dmento por Constantino da cristandade, urn lema que podc ser examinado c.;om imparcialidade, mas que nao pode ser visto t:om indiferem;a. Muitissimo tern sido escrito sohre as divc:rsas causas contribuidora~ e sobre os efeitos brulais daqucle grande conflito que nao decidiu as coisas de forma definitiva, que net:essi lamos recapitular aqui. Sua importancia capital para nos c a de que cfctivamente a guerra destruiu o sistema europeu de Estados al6m da JX>Ssibil idade de reparos. George Kennan descreve geogra- fit:amtnle o dano, como ele aparecia ao fim da guerra: 0 equilibria da Europa havia sido sacudido. II. Austria-Hungria nao existia mais. Nau havia nada de cfetivo par.a tomar seu Iu- gar. A Alcmanha, erguendo-se da furnac;a da derrota c mergu· lhmla em profunda agita<;ao social pcla ruptura de suas institui- ,.Ocs tradicionais, foi dt:i.xada, no entanto, como o uni~:o grande Estado unido da Europa Central. A Russia ja nao cstava hi como urn possfvel aliadu confiavel para ajudar a oontcr o poder ale- mao. Da plankic russa espiava urn unico olho hostil, cetico dos valon.:s da Europa, regozijando com todos os infmtunios da Eu- ropa, pronto a colaborar somcnte para a destrui<;ao final de seu espfrito t: de scu orgulhtl. Entre a Russia c a Alemanha s6 havia os patcticos novos Estados da Europa Oriental c Central, scm estahi lidade domestica e sem tradi~s de estadistas - seus ro· vos pcrplcxos, incertos, vacilando entre a ousadia e a timidez no cxcrcfcio de responsabi lidades de independencia a que: nau cs- tavam acostumados. E, do outro lado da Alemanha, csta\•am a fran~:a c a lnglaterra, curando-se das vicissitudes d:• guerra, fe· ridas muito mais profundamc.nte do que elas pr6prias se davam conta, desaparecidu o pcnacho de sua viril idade.3 3 G. F. Kennan, Anwricatt Diplomacy 1900 - 1950 - [DiplomnciA no,·te- americana 1900 - 1959), Londrcs, Seeker & Warburg. 1952, p. 68-69. A evolu~iio da sociedade internacional 391 A Primeira Guerra Mundial prccipitou a Revolw;ao Russa. Aquclc complexo de fatns tern s idn saudado por marxistas e as vezes por nan marxistas como o evento mais importantc do seculo XX. Embora poucos sejam t:apazes de fazer essa a lirmac:riio extra- vagante hoje em dia, a influencia da Revolu~o Russa foi c perma- nece consideravcl. Seu impat:to sohre a sot:iedade de Estados foi em grande medida negativo. 0s aJemiies negociaram o T ratado de Brest-Litovsk com os bolcheviques; mas as grandes potencias alia- das, inclusive:: os Estados Unidos e o Japao, cstavam menos em contato com as realidades russas. Elas reciprocaram 1l hostilidadc de U:nin e tentaram uma intcrvcn~ao militar coletiva para restaurar uma ordem inte::rnacionalmente aceitiivel, como haviam feito com sucesso na China vinte anos antes; mas, na Russia, os seus esfor<;os tibios falharam. A Russia permaneceu como urn rnembro forrnador importante do sistema de Estados, mas ret.irou-se para dentro de si mesma. 0 govemo sovietico permancccu bastante de fora da sode- dadc internacional de Estados, com a qual manlinha rcla<;6es se- melhantes i\quelas dos olomanos com a xrande republique euro- peia. A~sim wmo a mudan9a de Pedro, o Grande, de Moscou para Petersburgo simbolizara a abertura de uma janela sobre o oesle e a entrada da Russia na grande republique como uma grande: pot€nt:ia (Capflulo 19), da mesma forma, a mudan\;a de Lenin, de volta para Moscou, simbolizou o fel:hamento daquela janela. Os povos amargurados que haviam sofrido as prova96es da Primeira Guerra Mundial deJa sairam numa disposiyao de: ftbril re.•;senli menlo, pskologicamente avessosa rcstaurar o sistema ao qual alrihufam o de.<;a$lre. Haviam se tornado essenciais uma que- bra decisiva com o passado e uma ordem internacional fundamen- talmente nova. 0 Ac:ordo de Versa/he.~ (inclusive os tratados acess6rios e o estabelecimento da Liga das Na~f>es) e freqiientemente contado como o primeiro ato constituinle de auto-regulac;ao global pur parte de uma sociedade que se tornara mundial. Olhando para Wis. con- tudo, de parece cada vez mais urn arranjo transi l6rio. Com a au- sencia da Russia e da Alemanha, o acordo foi elaborado pelas grandes poleucias ocidentais. Seu objetivo era produ?.ir tanto urn acerto para a Europa que pudcsse funcionar, quanto a planta das rcgra~ e das institui~;6es para uma sociedade mundial capaz de Rodrigo Highlight 392 Adam Watson manter a ordem c de evitar a guerra. Em contraste com scus gran- des antecessores, Vestfalia, Utrecht e Viena, o Acordo de Versa- lltcs teve Lantos defei tos, e foi tao menus congruente com as reali- dades da situa~o, que nao conseguiu atingir nenbum dos dois objetivos. Diz-se as vezes que o sofrimento toma us bomens sa- bios. lsso nao acunteccu na Primeira Guerra MundiaJ. Os elementos de conlinuidade com o passado europeu ainda cram muito fortes, talvez os principais, nas mentes dos estadistas reunidos tau Vetsolhcs. Os pr6prios tratados de paz eram clm.:u- mentos juridicamente geradores de obriga!;lies de acordu com a tradi ~ao europ~ia, cmbora os termos ten ham sido rna is abertamente ditados pelos vcncedores. Os vencedores redesenharam frontciras, aboliram Estados (~ndo os exemplos mais notaveis os lmperios Austro-H(111gam e Otomano) l-Tiaram novos Estados c impuseram indenizal(ot:s financeiras, menos sabiamente que seus predecesso- res, mas visivelmt:nle da mesma mancira. A wncep~o da nova socicdade gloha!, a Liga das Na<;oes, pcrpetuou a priitica de cinco grandt:s poti!ncias, 4ue, cxceto em casos de desacordo claro, ti- nbam a finalidade de ronstjtuir uma especie de concerto do mundo, por dominarem o Conselho da Liga. A concep\ao da nova socieda- de global tambem inL'Xlrporava 4uase todas as regras e as pr;lticas que haviam !)t: descnvolvido na grande repuhlique europeia, inclu- sive scu dircito intemacional e sua diplomacia, assim como seus pressupostos basicos sobre a soberania e a igualdadc juridica dos r.<;tados reconhecidos como membros independentes da suciedade. Ao lado dt:sses conceito::; europeus nao discriminat6rios, a nova coocep<jaO deixava virtualmente intactas as capitulat,:Oes c outras pnit icas que os europcus baviam institufdo coletivamcnte em paises que iam do Marrocos ii China, bern como as grandes estruturas imperiais de Estados depcndentes conlroladas pelos venccdores e por alguns paises neutros. Tanto o publico nos paiscs democraticos ocidentais quanto os es tadistas que elegiam ficaram dt:sapontados e horrorizados diante da carnificina e da rufna da guerra c pelo que vieram a perceber ter sido a destrui~;ao do sistema europeu. Eles conclufram que as gran- des guerras ja nao eram tolen1veis e que sua tarefa mais importante era evitar outro Armagcdon criando um sistema de segurans;a. Em outras palavras, cles queriam desviar-sc dos riscos das independen- A evolu~iio da sociedade internacional 393 cias miilliplas nao contmladas na dires;lio de urn sistema mais es- trito, e especiaJmente declarar a guerra "fora da lei". 0 presidente norte-americano, Woodrow Wilson, falou em nome dos norte- americaoos interessados em qucst6es internacionais c no de mui tos curopeus que considerdvam a sociedade de antes da guerra uma anarquia de Estados soberanos. Para eles, confiar someute na capa- cidade e no coutrole dos estadista'i e no equilibrio do poder parecia uma receita para o desastre. A ordem intemacional dcvia ser man- tida por meio de urn~ m~!psina superinr " " controle. A maquinaria olio deveria ser um govemo mundial, mas urn a liga dt P..\itados que desejassem e pudessem evitar perturbac;oes da paz. Na pni tica isso significava que a'i grande.-; pott:ncias do momenta deveriam ditar as regras e as institui(;6es adicionais de uma sodt:dade interuaciaual nova e mais firmemente estruturada e, quando necess:irio, deveriam promover o cumprimenta dessas regras e a obediencia a essas ins- titui96es. 0 Acordo da Liga das Na9oes foi redigido segundu o principia da !egitimidade anti-begemonica, como a base de uma sociedade de Estados soheranos qne concordavam voluntariamente com dis- posic;oes relativas a scguranc;a coletiva. Na realidade, o acurdo foi imposlo pelas prindpais potencias ocidentais vencedoras, e s6 se poderia esperar que funcionasse de forma eficaz se aquelas fXllen- cia-; concordassem em agir como uma autoridadc hcgcmouica co- letiva para regulamenlar e, quando necessario, fazer cumprir as normas da nova sociedade intemacional. A Jiga era um compacta permanente compromctido a manter a paz segundo ;Js linhas de Kant e tambem uma santa alians:a de potcncias vitoriosas e vi rtuo- sas determinadas a tomar o mundo seguro para a dcmocracia. Nes- se sentidu gerdl , pode ser dito que os Acordos de Versalhes sc as- sernelbam ao Acordo de Viena; rna<; eles se revt:laram muito menos eficazes do que o concerto da Europa que rcsultou de Viena, por duas raz6es de extrema importancia. A primeira foi uma falta de elasticidadc. Os ali ados ocidentais, em vez de restaurar a mobilidade do equi!Jbria do poder, renuncia- ram a totaJidade do conceito de equilibrio, que elcs considcravam em grande medida respansavcl pela catastrofe, a favor da id~ia ma.is rigida da seguran~ coletiva. Em vez da integra98o austro- biingara da area danubiana e da integra~an otomana da Anat61ia e 'j'J4 Adiun Watson do Crescente Fertil, eles optaram pela balcaniza<;iio de t()(la a area entre a Suf93 e a Persia. Ao faz~-Jo, realizaram umn tentativa tibia de aplicar o princfpio nacionalista da "autodetermina<(lio"; e deda- raram que, uma vez que as fnmteiras fossem "permanentemente" acertadas, scja assim, seja atravcs do fiat dos vencedores, urn Esta- do que recorresse a fort;a para alieni-las ou para estabelccer con- trnle sobrc areas a ele nao atribufdas deveria ser considemdo Esta- do agressor. Seria obriga~iio dos membros da Jiga amantcs da paz wnter tal Est ado pelo uso da forr;a. 0 problema da liga na husca de uma mam:ira de administrar a mudanr;a e de ajustar o sistema a allera~cs no poder dos Estados e que isso praticameote excluia a mudaoc;a. 1\ liga represcntava as potencias satisfeitas, aquelas que queriam - niio nccessariarnente em todos os detalhcs, mas em grande medida - manter ll s/aii/S quo territorial. A segunda e que a liga proclamava uma nova legit.imidade, mas era demusiado fraca para po-la em vigor. Os gtJvemos das quatro comnnid~de~ mais poderosas e expressivas do seculo XX, os nurte-americanos, os russos, os alemfies e os japoncses, niio estavam comprometidos com as disposic,:\Jes da liga para a manu- ten~'io da ordem internncional. A Alemanha e o .Japan permanece- ram pot~ocias insatisfeitas. cuja forc,;a rt:lativa no sistema era maior do que sua voz ativa na administra~o. Vimos que, depois das guerras de Napoleao, a Russia c a Grii-llretanha tinham agido como urn par de suporte de livros, opondo-se uma ~ outra de mui- tos modos, mas juntas no resgate e na restaura<(lio do sistema euro- peu de Estados de uma forma modificada. Agora, entrctanto, nao havia nenhum suporte de Jivros disponivel: os Estad<lS Unidos e a Uniiio Sovietica cstavam dissociados da liga, por ra7.tlt:S difercntes, mas us li~tados Unidos em especial pennaneciam como mcmbros plenos da sociedade internacionalmais ampla e ucla desempenha- vam urn papel ativo. 0 <ltldinio do poder da Grii-13n:tanhn c da Franc;a, pcrceptfvel ja em 1919 e crescentemente 6bvio desde en- tao, foi obscureddo por seus ainda extensos imperios coluniais c por suas redes de alian<;as de dientela. Etas nlio eram fortes o sufi- ciente, contudo, para manter o acerto de maneira hegcmonica sozi- nhas, com n tipo de ajuda que membros menores da liga lhes podc- riam prestar. 0 resulmdo foi uma lliwtomia pcrturbadora entre o aparato complexo e formal de uma sociedade mundial de Estados A evolu~o da sociedade int e rnacional 3!15 colctivamente garantida, que existia somente como uma ideia, c a realidade de uma luta de poder e de polftica niio administrada e desordcnada ligada aos iniludivcis problemas da mudanc,;a. E im- purtante niio confundir os dois. /\s pott!ncias compromctidas com a liga compunham snmente uma parte, e nao a parte mais forte, da comunidade internacional. Ver as dua.~ entre as seis grandes pot~n cias que apoiavam a liga e o status quo comn lentando operar as regras da sociedadc intemacional e ver os demais Estados impor- tantes como que saindo daquela sociedadc ou tentando ativamente suhverte-la e entender mal a.-; crescentes pressoes c a maquinaria regulat6ria inefkaz do sistema mundial de Estados entre as duas guerras mundiais. Nfio obstante, a liga com suas falhas na pratica, foi a primeira tentativa de constituiyao para a nova sociedade global de Estados. Ela incorporava Ires principios de importancia para Estado~ meno- res e para aqueles que aspiravam a uma nova ordem mundial. Em primeiro Iugar, a presun~ao da universalidade. A l.iga estava aberta a todos os Estados reconhec.id(ls como iodependentcs. A metade de sua composi~iio flutuante de cerca de sessenta Estados membros estava gcograficamente fora da Europa. Em segundo, ela pmporcio- nava urn forum permanente, em que Estados menores podiam fazer conhcccr suas opiniUt:s e desempenbar urn papel na decisiio de quest6cs intcrnaciona.is, especialmente na defini~o da nova legi- limidade. Em tcrceiro, a liga representava o princfpio da seguran~ra coletiva, a proter;iio do fraco contra o forte e a responsahilidade especial das grandes polendas de oferecer protc9iio coletiva. Uma justifica<(lio padrao do equilibrio do poder era sua pretensfio de protegcr os fracos contra os fortes; a liga tinba o prop6sito de faz~ lo de maneira mais eficaz. Todos esses tr8s princfpios, com novas fonnas, pcrmanecem como componentes da lcgitimidade de hoje em dia. Se a mobilidade do sistema houvesse sido restaurada, os ter- mos do Acordo de Versalhes, que rcflet.iram a superioridade mo- ment§nea dos veucedores oddentais, poderiam talvez ter sido ajustados posteriormente. Essa era a esperanc,;a dos arquitetos da paz mcnos envolvidos no processo. 0 general Smuts escreveu em sua declarac;ao ao assinar o Tratado: 396 Adam Watson Jtu acertos tcrritoriais que necessitanio de revisao ( ... ) Hii runi- c;ocs prcnunciadas, sohre a maioria das quais uma atitudc gcral mais ~alma podc ainda achar melhor paSSllr a esponja do esque- cimento ( ... ) Nos anos vinte, o processo de ajustc na Europa foi iniciado t.le forma tentativa: estrategicamt:ntc pelo J\cordo de Rapallo, da Alc- manha com a Russia, e pclo Acordo de Locarno, com seus vizinl10s ocidcntais, e economicamente com os Pianos Dawes e Young, patrodnados pelos Estados Unidos. A esponja do csqueciment\J, todavia, niio apagou suficientemcnte a Jousa; os ajustes que as po- tendas ocidentais e seus clientes estavam aptos a fazer parcciam bastante inadequados aos alemiies e japoneses. As vezes parecia que a espon.ia havia passado por c.ima da memoria dos estadistas oci- dentais de modo que csquecessem as li<;<)es da experiencia, t:omo por exemplo a memoria da necessidade de prescrvar governos lc- gitimistas e cooperativos em Estados importantes mas insatisfeitos. A ma V() lltade dos franceses e de scus aliados d icntes quanlo a implementar a promessa de Locarno ajudou a causar a queda da Repllblka de Weimar e a ascensao do nazismo na Alemanha. Os esfor!;OS nortc-americanos para blotjuear as aspir;u;oes japonesas na Cl1ina continuaram; c a Grii-Bretanha, soh a pressiio de seus "domhtios" indcpendentes e dos Estados Unidos, rompeu o ele- menlo mais estabilizador do sistema da Asia Oriental, a alian~ anglo-japonesa. A frustra~ao resultante entre as comunidades "que nao tiuham" e que eram demasiado poderosas contrihuiu, junW com outras causas, para o surgimento de regimes totalitarios mili- tantcs dispostos a conseguir pela for~ o que nao podia ser obtido por meio de negocia~o. Ao mesmo tempo, uma reces.c;iio cconO- mica, que a integr.u;iio economica do sistema tornou mundial, re- velou-sc estar alem da capacidade de controle dos estadistas. 0 processo de ajuste tornou-se cada vez mais esgar~ado e perigoso. A fra4ueza das democracias satisfeitas c amantes da paz da Europa Ocidental diante dessa amea~a foi clarissimamcnte percc- bida pelo lfder frances realista Laval, que colocava os interesses materiais franceses acima dos prindpios. Ele quase conscguiu tra- zer a R\1ssia comunista e a ltalia fascista para dentro de uma alian- ¥a anti-begcmonica tradicional com a Fran,.a c a Gra-Brctanha A evolu~ao da sociedade internacio nal 397 democ.niticas. A conquisla pela ltalia de um impt:rio na Africa, embora como aqueles das democracias oeidentais, galvanizou de tal forma a opiniiio publica no Ocidentc c na liga, que uma aJian~ anli-hegemonica tomou-se impossfvel. I Awal , portanto, decidiu aceitar a hcgcmouia alema na Europa c proteger os interesses da Fran~S<l tornando-se urn associado cliente de Hitler, comparavel A rcla~ao de muitos Estados alemiies com Napoleiio. No entantu, u tempo desses calculos ciuicos de auto-interesse ja havia passado. A maior parte da opiniiio publica no Ocidente estava revollada pelos excessos das ditaduras totalitarias e se opunha a alian<;as ideologicameute inaceitaveis: a opiniao publica preferia a lei ao equilibrio. Logo nan restava mais equilfbrio efetivo algum. Stalin, obri- gado a escolbcr entre uma barganba com Hitler a maneira do lralo de Alexandre I com Napoleiio e a participa<;iio em uma coalizao anti-hcgemonica contra Hitler, optou, wmo Alexandre I, por um tratado com a potencia hegemonica que colocou o peso da Alema- nha contra o Ocidente. J\ tentativa de Hitler de dominar a Europa, voluntariosa e quase napole(mica, e o at.aque japones contra os Estados Unidos lcvaram a uma retomada maci<;a da guerra, na 4ual as quatro comunidades mais poderosas do sistema surgiram como prolagonislas. Tres dessas - a Alemanha, o Japiio e a Russia - ti- nbaru regime.s totalitarios, e somente os Estados Unidos tin ham urn regime democratico. Cada uma dessas potencias lutou por seus pr6prios interesse.-; e prindpios, ligadas por uma alianca frouxa de conveniencia mais ou menos como aqucla entre os otomanos e a Fr.m~a no sistema europeu. A area de ocupa<,'iio de Hitler na Eumpa e a "esfera de prospe- ridadc compartilbada" do Japiio na A~ia Oriental foram tenli1tivas efemeras de controlc imperial. As duas cram reg.ionais dentru do sistema global, duraram apenas cerca de quatro anos cada uma e eram em grande medida provisi1rias, dominadas pelas exigencia~ da guerra total. A.mbas mostraram sinais de sc organizarcm, como outros sistemas imperiais, em circulos concentricos de governo direto, dominic e hegemonia. Um imperio europeu nazista parecia considerar a ltalia, a Franc:;a e alguns outros Estados niio como pro- vfncias anexadas, mas permanecendo como aliados dientes numa rela<;ao hegemonica com o Reich. Os japoncscs nlio pensavam em390 Adam W~t.<on anexar forma I mente a CiJina. A despeilo da opressiio do governo totalitiiriu, especialmente dos horrorcs do radsmo e do genoddio, que cstiveram prc.scntes, e que n6s destc seculo nao podemos es- quecer, mcsmo aqueles cxperimentos imperiais transitorios produ- ziram, ou indicaram, aJgumas das vantagcns ligadas a extremidade imperial do espectro. Na Europa, a visfio da unidade polftica e da coordena«iio economica num iinico mercado at raiu tanto a muitos dos que lutaram contra Hitler que, depois de sua queda, elcs nao queriam mais voltar aos feudos e as l>arreiras dos anos entre as duas gm:rras c trabalharam em pro! de uma autoridade supranacio- nal difusa sob a forma de uma uniiio europeia de E~tados indepen- dcntes ou aut6nomos. Como a Europa imperial de Napoleao wn- duzira a hegemonia difusa do concerto, assim tambem a coordena~iio imperial hilleriana da Europa conduziu a integra~;,ie:; politicas e ccouomi<:as rcgionais mais estreitas. A integrat,:ao da Europa Ocidental csta semlo rcalizada por meio da.o; decisoes vo- luntaria!) dos Estados membros. Na Europa Oriental, a Unilio Sovie- tica imp& urn dominio que integrou a area ~retivamente, mas nao permanentemente. A ocupac;ao japonesa tornou impralic11vel res- taurar os govcrnos coloniais europeus, ou a autoridade moral dos europeus, na Asia Oriental. A "esfera de prospcridade comparti- lhada" nao evoluiu pam um sistema integrado, emhora o grupo ASE.i\N, composto de Estados do Sudcste da A~ia, esteja cami- nhando no sentido de uma uniiio mais estreita. A area que foi ocu- pada pelt>:; japoneses niio foi c nao se tornou uma grande rtfpubli- que companlvel a Europa. 0 sistema de Estados oa primeira metade do scculo XX (mais ou mcnos de 1900 a 1945) era mundial, mas ainda centrado na Europa. Tanto antes quanto depois da J>rimcira Guerra Mundial, o sistema tornou-se crc.scentemente constrito pelas prcssoes do descn- vo)v;mento e pelo poder crescente de seus principais E.o;tados com- binados com arranjus inadequadus para a administrat;ao das rcferi- das prcss6es. Em outras palavras, a sociedade internacional nos dois periodo:; estava tao r~laxada e tao pr(>xima da extremidadc do espectro onde se situam as indep~ndencias miiltiplas que era real- mente uma reccita para o desastre, como o presidente Wilson e aquelcs que o apo.invam perceberam. No infcio cln scculo, uma autoridade difusa administrada pelas grandes poteucias impf>s com A cvolu~o da socledacle internacional ----------------- 399 sucesso a sun ordem na China. Uma llcxihilidade apenas adequada nas rclas;ocs entre a:; potencias poderia tcr sido pres;:rvada com o projeto de uma alianya anglo-germanica ou urn lra tado de resscgu- ro, que feria cvitadu a divisao das grandes potencias em uui:; hlocos rigidos; mas 11s convcrsat;ocs fracassawm. Nos vinte anos entre as duns guerras, a n<x;iio da impossibilidade de administrar aumentou; e embora a maquinaria da liga para a manuten9iio da ordem niio tenha sido ncgociada entre as grandes potencias, mas sim concehi- da pelos aliados ocidentais, ela podcria ter-:;e revelado eficaz, sc a mais poderosa daquelas potem:ias, os Eslados Unidos, tives.o.;e pcr- manecido como urn membro ativo, e sea liga livesse conservado a coopera!;llo plena uo govcrno democratico do Japao; mas prova- velmcnte algum arranjo de lrahalho, l<!nto com a Alemanha quanto com a Unifto Sovietica, tambcm teria sido neccssi\rio.
Compartilhar