Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
441 (em A Educacdo Sentimental de Flaubert); ( 3) enfim, ele pode autolimitar-se e "aprender a viver" com madura virilidade no mundo dificil aonde foi lancado ("romances de aprendizado", como o Wilhelm Meister de Goethe). Se da parte do her6i sao varias as maneiras de atuar a diale- tica de vinculo e oposicao ao meio, no romancista a consciencia que projeta as personagens toma a forma da ironia, modo arnbi- guo de propor e, ao mesmo tempo, transcender o ponto de vista do heroi, Temos prova dessa assercao. Se fizermos uma sondagem no romance brasileiro, reconheceremos uma consciencia ir6nica mais aguda precisamente nos autores maiores: o Alencar urbano (de Lucjgla,-s.obretudo), Machado de Assis, Aluisio Azevedo nO Cortir;o;~veira Pa~Raul Pompeia, Lima Barreto. Ha momen- tos de quase idennficacao entre o autor e o protagonista nas pa- ginas americanas e sertanejas de Alencar, mantendo-se porem, e em pleno vigor, o dissidio do her6i com o grupo, provindo, no caso, da oposicao entre o "hornem natural" e a sociedade, pe- culiar ao Romantismo. Quando nao ha nenhuma oposicao, quando nem sequer aflora a consciencia critica, o nivel e o de sublitera- tura (Teixeira. e Sousa, o pior Macedo, o Aluisio folhetinesco ... ). 0 esquema de Goldmann, como todo esquema, esta sujeito a revisoes , mas tern a vantagem de atentar para um dado exis- tencial primario ( tensiio), que se apresenta como relacionamen- to do autor com o mundo objetivo, de que depende, e com o mundo estetico, que lhe e dado construir. Alem disso, a media- c;:ao entre o psico-social e o artistico nao se faz sempre do mesrno modo, mas dentro de um dinamismo espiritual capaz de conquis- tar um grau de liberdade superior ao da massa 'dos atos humanos nao-esteticos. 0 reconhecimento dessa faixa "gratuita" da inven- c;:ao Iiteraria permite uma ampla margem de aproxirnacoes espe- dficas aos textos: o que resgata o determinismo do primeiro passo. Seja como for, nao ha ciencia sem um minimo de rela- c;:oes necessarias: e o que Goldmann propoe, em iiltima analise, e uma hip6tese explicativa do romance moderno, na sua relacao com a totalidade social. Nessa perspectiva, poderiamos distribuir o romance brasi- leiro moderno, de 30 para ca, em, pelo menos, quatro tenden- cias, segundo o grau crescente de tensao entre o "her6i" e o seu mundo: a) romance de iensdo minima. Ha conflito, mas este con- figura-se em termos de oposicao verbal, sentimental quando mui- 440 As trilhas do romance: uma hip6tese de trabalho A costu_meira. triagem por tendencias em torno dos tipos romance s?czal_-regzon~l/ r,or;zance psicol6gico ajuda s6 ate certo ponto ~ historiador Iiterario; passado esse limite didatico ve-se q~e, al_:m de ser precaria em si mesma (pois regionais e psicolo- gicas sao obras-primas como Sao Bernardo e Fogo Mor_t_o) ' b - d d d di , aca- _a ~ao an o. conta. as iferencas internas que separam os prin- cipars romancistas situados em uma mesma faixa. . , Para apanhar essas diferencas talvez de melhor fruto como hipotese ?e trabalho, a forrnulacao que Lucien Goldmann ~rop6s para a genese da. obra narrativa no seu Pour une sociologie du ron:an ( 316). Apoiando-se em distincoes de Gyorgy Lukacs (Die Theo~ze fes Romans) e de Rene Girard ( Mensonge romantiquc et uerite ,r?manesque), o pensador frances tentou uma aborda- g~m ,geneticc::estrutural do romance moderno. O seu dado ini- cial e a tensao entre o escritor e a sociedade. Pressupoe Gold- mann .- e com ele toda a critica dialetica - a existencia de ho- rnologias entre a estrutura da obra literaria e a estrutura social e, mesmo, grupal, em que se insere o seu autor. ' . Em face da _sociedade burguesa, fundo cornum da literatura oc1denta~ nos ultimos dois seculos, 0 romancista tende a engen- drar ~Jigura do ·:~ei;oi prob~ematico", em tensao com as estru- turas degradadas vigentes, isto e, estrututas incapazes de atuar os valores que a mesma sociedade prega: liberdade justica amor:., . . Sempre conforme Goldmann, a tensao dos protagonis- t~s nao transpoe o limiar da ruptura absoluta: caso 0 fizesse 0 g,e~ero ro,mance deixaria de existir, dando lugar a tragedia o~ a }mca. Ha, portanto, uma oposicao ego/ sociedade que funda a orma romanesca ( 317) e a mantem enquanto tal. Toda um~. tipologia do romance deriva da forrnulacao aci- ma: ( 1_) o hero~ pode ~1:1-preender a busca de valores pessoais que subordinem a si a hostilidade do meio (Dom Quixote; Julien So- rel, de 0 Vermel?~ e o Negro de Stendhal); (2) o her6i pode fechar-se na memona ou na analise dos pr6prios estados de alma ( 31~) L. s;oldmani;i, Pour une sociologie d;t roman, Paris, Gallimard 1964. ~~ traducao brasileira, Sociologia do Romance, Rio, Paz e Terra, 1967. ' I ( ) Goldmann trabalha dentro dos limites do genero epico-narrativo ta como se _tern apresentado na ldade Moderna; as suas analises devem portanto p~essupor distincoes historicamente atuadas e validas dentro de um deterrninado espaco de tempo. Elas nao devem assumir-se corno dog- tllas, tern como profecias, o que impediria a cornpreensao de formas litera- 1 ras uturas mdependentes dos modelos narrativos que se conhecem hoje. 443 Assim, nos romances de tensao minima, ha um aberto ape- Io as coordenadas espaciais e hist6ricas e, nao raro, um alto con- sumo de cor-Iocal e de fatos de crcnica; as acoes sao situadas e datadas, coma na reportagem ou no documentario, generos que lhe estao mais pr6ximos; quanta ao entrecho, o cuidado com o verossimil leva a escnipulos neo-realistas que se percebem tam- bem na reproducao freqiiente da linguagem coloquial de mistu- ra com a Iiteraria. Nos romances em que a tensao atingiu ao nlvel da critica, os fatos assumem significacao rnenos "ingenua" e servem para revelar as graves lesces que a vida em sociedade produz no teci- do da pessoa humana: logram par isso alcancar uma densidade moral e uma verdade hist6rica muito mais profunda. Ha menor proliferacao de tipos secundarios e pitorescos: as figuras sao tra- tadas em seu nexo dinamico com a paisagem e a realidade s6cio- -economica (Vidas Secas, Sao Bernardo, de Graciliano Ramos), e e dessa relacao que nasce o enredo. Passa-se do "tipo" a ex- pressao: e, embora sem intimismo, talha-se o cardter do pro tagonista. Outra ainda e a constelacao que se da na prosa subjetivi- zante. Subindo ao primeiro piano os conteiidos da consciencia nos seus varies momentos de mernoria, fantasia ou reflexao, es- batem-se os contornos do ambicnte, que passa a atmosfera; e des- loca-se o eixo da trama do tempo "objetivo" ou cronol6gico para a dura('ao psiquica do sujeito. E sob as sugestoes de Proust, de Faulkner, de Katherfoe Mansfield, de Mauriac, de Julien Gr~en, de Virginia Woolf, os romancistas e contistas que trabalham a sua pr6pria materia psicol6gica tendem a privilegiar a tecnica de narrar em primeira pessoa. Ha, naturalmente, faixas diversas nesse reino amplo da fic~ao moderna: 0 romance escrito a luz meridiana da analise, coma Abdias, de Cyro dos Anjos, ou 0 Lado Direito, de Otto Lara Resende, niio e o romance noturno e subterraneo de Lucio Cardoso da Cronica da Casa Assassinada, nem o romance feito de sombra e indefini~iio de Cornelio Pena e de Adonias Filho. Enfim, tecnicas diferentes de composi~ao e de estilo matizam a prosa psicologizante, que pode apresentar-se partida e montada em flashes, coma nas paginas urbanas de Jose Geraldo Vieira; empostada nos ritmos da observa~iio e da mem6ria (cantos de Lfgia Fagundes Telles, romances de Josue Montello, de Antonio Olavo Pereira ... ) ; ou ainda pode tocar experiencias novas de 442 ( 318) Aqui, coma nas exern . ·"' - e~austivo; apenas indiquei autore phflc~oes seguinres, nao pretendi ser eras propostas. 5 ou 0 ras capazes de ilustrar as tenden to: as personagens nao se destacamvis I da paisagem que as condicionam E cela mente_ d~ ~strutura e ras de Jorge Amado os r . xemp os, as h1storias populis- ,.. . ' omances OU cro . d J rsrrco Verissimo. e Marques R b 1 nic_as a c asse media de d e e o, e mmto do n · 1· mo ~cumental mais recente ( s1s); eo-reg1ona is- . ) romances de tensao critica 0 h ,. - ·-- agonicamente as pressoes d . eror opoe-se e resiste - a natureza e do · . I f ou nao em ideologias expllcitas me10 socra ' ormule Exemplos, obras maduras de J ', ~.seu mal-estar permanente. Morta) e todo Graciliano Ramo~:e ins do Rego (Usina, Fogo - c) romances de tensao interiori ad 0 h , . poe a enfrentar a antinom1'a e / d z a. eroi nao se dis- . u mun o - . tivando o conflito. Exem 1 pela a\a.o: evade-se, subje- varias modalidades ( ~emp ?si- os roi:ia~c~s ps1col6gicos em suas de Otavio de Faria Lucio ~~~~smo, 2ntu;i.smo, auto-analise ... ) jos, Ligia Fagundes' Telles Osmoso,L. orne 10 Pena, Cyro dos An- ' an ms . d) romances de tensao transfi . d. ' , . trapassar o conflito que o . . gura a. 0 her01 procura ul- - consnnn existe · 1 n_i;ita!ao mftica ou metafisica da realidad ncra mente pela trans- nencias radicais de Gu1'mar- R e. Exemplos, as expe- fl · . aes osa e Cl · ' L' ito, assim "resolvido" f 1· . arrce tspector. 0 con- . , orp os 1mites d , toca a poesra e a tragedia. o genera romance e Existem areas fronteiri as den d m? escritor: Jose Lins do Fie o tro a produ\ao de um mes- ps1co-social ao plasmar os g soube faz:r obra de alta tensiio sera tipico exemplo do crocna1.rsatctere~ centrars de Fogo Morta, mas G .1. . a regional em M · d E raCJ iano mtrojetou o se - ' . , . enmo e ngenho. gustia depois de ter escri~o nao a m1hena do cotidiano em An- sao critica. Enfim a pass o qdue c amamos romance de ten. 1 , ' agem o puro p . 1 , . menta e not6ria em Clari L' srco ogico ao experi- . ce tspector e m di I cont1stas e romancistas cuja obra . d ' e~os ra tea mente, em tran Dourado, Osman Lins M . aAml' a esta em progresso; Au- ' aria ice Barroso ... ,.o esquema foi construfdo em torn d , . beroi, ou, mais precisamente o ti h , ? e um a so var1avel: o um dos tipos de romance ed "' ;- eroi romanesco. Mas a cada dos diversos de captar o ambu.ncrta osdcorrespondem tambem mo- ten e e e proper a acdo, Prl tv-·.e.cLo , lt\ ~'hi 6 ~- c-:.:> Yi 4 s a cl a. Ltt .JZ. -\cit ,,11r a.. b rx c ,'l e-i ra, 3 - t1...eA-. $ ~ P 0- v to ; (ult.,,~ XI \ 1 o? . bruta, pre-artistica, mas dos niveis ja literarios ( mon6logo, dialo- go, narracao ... ) e, ainda mais radicalmente, das unidades lin- giiisticas ( sintagma, monema, fonema ... ) . Essa direcao, que tende a compor o fenorneno literario a partir dos materiais da linguagem, e apenas da linguagem, tern o mesmo significado his- t6rico do abstracionismo, que constroi o quadro com entes geo- metricos, OU da musica concreta, que trabalha a partir dos rui- dos e dos sons tais como a Fisica os reconhece. Afim a essas opcoes e 0 estruturalismo enquanto metodo de pensar forma- lizante. E afins lhes sao todas as correntes de cultura e de moda que pref erem deter-se nos codigos e nos sinais em si mesmos a aprofundar os motivos e o sentido ideol6gico da mensagem. Na digressao acima deve-se, porem, levar em conta o des- compasso que subsiste entre os textos de um Guimaraes Rosa, por exemplo, nos quais se discerne um forte empenho lfrico-me- tafisico, e a leitura redutora que deles faz a critica estrutural. A consciencia desse descompasso entre poesia e poetica nao invali- da, em verdade, nem as abordagens descritivas daquela critica nem as motivac;oes transparentes do escritor; apenas evita injus- ticas a umas e as outras. Finalmente: o quadro pressupoe que a literatura escrita de 1930 para ca forme um todo cultural vivo e interligado, nao obstante as fraturas de poetics ocorridas depois da II Guerra. Dai ser precoce dar como passados e ultrapassados o romance social e o intimista dos anos de 30 e de 40; de resto, ambos tern sabido refazer-se paralelamente as experiencias de vanguarda. '1 444 mo?ologo interior, da "escola de olhar", como se da nas paginas mats ou~adas .de Geraldo Ferraz, Samuel Rawett, Autran Doura- do, Mana Alice Barroso, Lousada Filho, Osman Lins ... . Uma abordagem que extraisse os seus parametros de um sistema fechado como a Psicanalise poderia falar ainda em ro- mances do ego ( memorialistas, analfticos) e romances do id ( ba- s~ad_os em sondagens oniricas, regressoes, simbolizacoes ... ) , dis- tmcao que se aproxima da de Carl Jung que, em O Homem Mo- derno em Busca de uma Alma, estrema um tipo de literatura sim- plesmente psicol6gica de outro, o da literatura oisionaria. Em ambos o~ ~asos, porem, trata-se de um plano ficcional que confi- gu_r~ a cisao homem/mundo em termos de retorno a esfera do sujeito, _Enfi'?, pe~a. quarta possibilidade entra-se no drculo da in- v~nc;ao rnrtopoetica, que tende a romper com a entidade tipolo _ " " d g1ca. ron;ance superan o-a no tecido da linguagem e da escritu- ra, 1s~~ e.' no ?~vel da propria materia da criacao literaria. A e~penencia estenca de Guimaraes Rosa e, em parte, a de Clarice L1_spector, entendem renovar por dentro o ato de escrever ficcao. Diferem d_as :r~s tendencies anteriores enquanto estas situam 0 pr~cesso Iiterario antes na transposicao da realidade social e psi- quica do que na construcdo de uma outra realidade. :E claro que esta s1:1p~a:realidad7 nao se compreende senao como a alquimia dos. mmerios extraidos das mesmas fontes que serviram aos de- mars narradores: as da historia coletiva, no caso de Guimaraes ~osa; as da historia in_dividual, no caso de Clarice Lispector. S_1mplesmen_te, nestes criadores ha uma fortissima vontade-de-es- tilo que OS lmp.ele a produc;~o de objetos de linguagem a que bus- cam. d~r _a rnaior autonomia possivel; nos mestres regionalistas ou . mtrrmstas, a independencia do fato estetico sera antes um e~elto de_ ~ma feliz disposicao inventiva do que uma escolha cons- ciente, vigilante. . . . No continuum i~~entario-invenr;ao, que cobre as varias pos- s1b1~1dade_s do ato estetico, pode-se dizer com seguranca que a di- retriz m~1s. m~derna e a que se inclina para o segundo momento; a que p~1v1~e!Sia o asp~cto construtivo da linguagem como 0 mais a?to. a s_1gm£1~ar o uruverso de combinacoes em que a ciencia e a tecmca irnergrrarn o homem conternporaneo. Desde Joyce tem-se renova~o a e~trutura do r~mance.' £:-indindo-se a triade persona- gern-acao-ambiente na escntura ficcional cujos fatores cornbina- veis passam a ser abstrafdos nae mais diretamente da materia image_001.pdf (p.1) image_002.pdf (p.2) image_003.pdf (p.3)
Compartilhar