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1 A GREVE E A AÇÃO POLÍTICA1 Pierre Bourdieu A greve não é um destes objetos pré-construídos que os pesquisadores se deixam impor? Entremos primeiramente num acordo para admitir que a greve só adquire seu sentido quando a re-situamos no campo das lutas do trabalho, estrutura objetiva das relações de força definida pela luta entre trabalhadores, de quem ela constitui a principal arma, e empregadores, juntamente com um terceiro ator − que talvez não seja um − o Estado. Encontramos então o problema (colocado diretamente pela noção de greve geral) do grau da unificação deste campo. Eu gostaria de lhe dar uma formulação mais geral, referindo-me ao artigo do economista americano O. W. Phelps: contra a teoria clássica que concebe o mercado de trabalho como um conjunto unificado de transações livres, Phelps observa que não há um mercado único, mas sim mercados de trabalho, que possuem suas próprias estruturas, compreendendo-se por isto "o conjunto de mecanismos que regem de maneira permanente a questão das diferentes funções do emprego − recrutamento, seleção, alocação, remuneração − e que, podendo ter sua origem na lei, no contrato, no costume ou na política nacional, têm como principal função a determinação dos direitos e dos privilégios dos empregados e a introdução da regularidade e da previsibilidade na gestão do pessoal e em tudo o que concerne ao trabalho". Será que a tendência histórica não leva à passagem progressiva, dos mercados de trabalho (isto é, de campos de luta) locais a um mercado de trabalho mais integrado, onde os conflitos locais têm chances de deflagrar conflitos mais amplos? Quais são os fatores de unificação? Podemos distinguir fatores econômicos e fatores propriamente políticos, a saber, a existência de um aparelho de mobilização (sindicatos). Sobre este ponto, constantemente, se supôs aqui que existe uma relação entre a unificação dos mecanismos, econômicos e a unificação 1 Comunicação apresentada como "conclusão" da segunda mesa redonda sobre a História Social Européia, organizada pela Maison de sciences de I'homme, em Paris, 2 e 3 de maio de 1975. 2 do campo de luta; e também uma relação entre a unificação dos aparelhos de luta e a unificação do campo de luta. De fato, tudo parece sugerir que a "nacionalização" da economia favorece o desenvolvimento de aparelhos nacionais, cada vez mais autônomos em relação a sua base local, que favorece a generalização dos conflitos locais. Em que grau há uma autonomia relativa dos aparelhos políticos de luta e em que grau o efeito de unificação é imputável à ação unificadora destes aparelhos? Será que o fato de toda greve deflagrada poder se generalizar (evidentemente com maiores ou menores chances segundo o setor, mais ou menos estratégico − ou simbólico − do aparelho econômico em que se situa) não nos inclina a superestimar a unificação objetiva deste campo? Poderia ocorrer o fato desta unificação ser muito mais voluntarista, muito mais imputável às organizações do que às solidariedades objetivas. Um dos maiores problemas do futuro poderia ser a defasagem entre o caráter nacional das organizações sindicais e o caráter internacional das empresas e da economia. Mas podemos, a respeito de cada estado do campo, nos interrogar sobre o seu grau de fechamento e nos perguntar por exemplo se o centro real da existência da classe operária está dentro ou fora do campo. O problema se coloca, por exemplo, no caso de um mundo operário ainda fortemente ligado ao mundo camponês, ao qual ele retorna ou no qual ele coloca suas rendas; ou, a fortiori, no caso de um sub-proletariado estrangeiro, como hoje na Europa. Ao contrário, o conjunto da população operária pode ser fortemente separado do mundo exterior e ter todos os seus interesses no campo de luta. E podemos ainda registrar as variações quando este corte se opera na geração ou após várias gerações. A antiguidade da entrada no campo mede a duração daquilo que se pode chamar de processo de obreirização ou de fabricização (se quisermos aceitar este conceito um pouco bárbaro, forjado sobre o modelo da noção de asilisation, elaborada por Goffman para designar o processo através do qual as pessoas, nas prisões, nas casernas, em todas as "instituições 'totais" se adaptam pouco a pouco à instituição e, de uma certa maneira, se acomodam a ela), isto é, o processo através do qual os trabalhadores se apropriam de sua empresa e são apropriados por ela; se apropriam de seu instrumento de trabalho e são apropriados por ele; se apropriam de suas tradições operárias e são apropriados por elas; se apropriam de seu sindicato e são apropriados por ele, etc. Neste processo, podemos 3 distinguir vários aspectos: o primeiro, inteiramente negativo, consiste na renúncia às injunções exteriores. Estas injunções podem ser muito reais: são os trabalhadores emigrados que enviam dinheiro para suas famílias, compram terras, material agrícola ou lojas em seus países. Elas podem ser imaginárias, mas nem por isto menos efetivas: são estes trabalhadores emigrados que, se bem que tenham perdido pouco a pouco toda a esperança de voltar para sua terra, permanecem em trânsito, nunca sendo completamente "obreirizados". Em seguida, os trabalhadores podem, qualquer que seja o estado de seus laços externos, se identificar a sua posição no campo de luta, assumir totalmente os interesses a ele associados, sem modificar suas disposições profundas: assim, como nota Hobsbawn, camponeses recentemente chegados à fábrica podem entrar nas lutas revolucionárias sem perder em nada suas disposições campone- sas. A um outro estado do processo, suas disposições profundas podem ter se modificado pelas leis objetivas do meio industrial, podem aprender as regras de conduta que devem ser respeitadas em matéria de cadências, por exemplo, ou de solidariedade − para serem aceitos, podem aderir aos valores coletivos como o respeito ao instrumento de trabalho − ou ainda assumir a história coletiva do grupo, suas tradições, particularmente as de luta, etc. Enfim, eles podem se integrar ao universo operário organizado, perdendo na ordem da revolta que se pode chamar de "primária", − a que caracteriza os camponeses brutalmente jogados no mundo industrial − freqüentemente violenta e desorganizada, para ganhar na ordem da revolta "secundária", organizada. Será que o sindicalismo abre ou fecha o leque da estrutura de reivindicações? É uma pergunta que pode ser colocada dentro desta lógica. Tilly insistiu na necessidade de considerar, em seu conjunto, o sistema de agentes em luta − patrões, operários, Estado. O problema da relação com as outras classes é um elemento muito importante a que Haimson aludiu ao descrever a ambivalência de certas frações da classe operária em relação à burguesia. É aqui que a oposição local/nacional adquire todo seu sentido. As relações objetivas que descrevemos sob a forma da tríade "patrão-empregado-Estado" assumem formas concretas muito diferentes dependendo do tamanho da empresa, mas também de- pendendo do ambiente social da vida do trabalho: vê-se ou não o patrão, vê-se ou não a filha ir à missa, vê-se ou não sua maneira de viver, etc. As maneiras do 4 habitat são uma das mediações concretas entre a estrutura objetiva do mercado de trabalho e a estrutura mental e ao mesmo tempo a experiência que as pessoas podem adquirir com a luta, etc. As relações objetivas que definem o campo de luta são apreendidas em todas as interações concretas e não apenas no lugar de trabalho (esta é uma das bases do paternalismo). É nesta lógica que é preciso tentar compreender, como sugere Haimson, por que a cidade grande costuma favorecer a tomada de consciência, enquanto na cidade pequena integralmente operária, a tomada de consciênciaé menos rápida, porém mais radical. A estrutura de classes tal corno é apreendida em escala local parece ser uma mediação importante para se compreender as estratégias da classe operária. Agora, ainda temos que nos perguntar como este campo de lutas funciona em cada caso. Há invariantes da estrutura e assim é possível construir um "modelo", muito abstrato, para se analisar as variantes. Uma primeira questão, colocada por Tilly, é saber se há duas ou três posições: o Estado é redundante com o patronato? Tilly tenta mostrar que no caso da França, o Estado é um agente real. É um agente real ou uma expressão eufemizada-legitimida da relação entre empregadores e trabalhadores (que existe pelo menos em aparência de realidade)? É uma questão que se coloca através da comparação entre as lutas operárias na Rússia entre 1905 e 1917 e na França sob a Terceira República (pode-se ainda pensar no caso da Suécia: qual é a forma particular assumida pela luta quando o Estado é fortemente controlado pelos sindicatos?). Teríamos que ter um modelo de todas as formas possíveis das relações entre o Estado e o patronato (sem excluir o modelo soviético), para ver, em cada caso, a forma assumida pela luta operária. Há uma questão de fundo que não foi inteiramente colocada: quando se fala das relações do Estado, do patronato e dos operários, não é totalmente legitimo opor a verdade objetiva desta relação (o Estado e o patronato são dependentes ou não, são aliados ou o Estado exerce uma função de arbítrio?) à verdade subjetiva do ponto de vista da classe operária (consciência de classe ou falsa consciência): o fato de que o Estado seja visto como autônomo ("nosso' Estado", "nossa República") é um fator objetivo. No caso da França − principalmente em certos momentos e em certas circunstâncias − o Estado é visto pela classe operária como independente, como instância de arbitragem. E é quando age para salvar a ordem (freqüentemente contra a classe dirigente que, 5 cega demais para defender seus interesses a curto prazo, serra o galho onde está sentada) que o Estado pode ser ou parecer uma instância de arbitragem. Em outras palavras, quando se fala do Estado, fala-se de sua força material (o exército, a polícia, etc.) ou de sua força simbólica (que pode consistir no reconhecimento do Estado implícito no desconhecimento do seu papel real?) Legitimidade significa desconhecimento, e o que se chama de formas de luta legítimas (a greve é legítima, mas não a sabotagem) é uma definição dominante que não é percebida como tal, que é reconhecida pelos dominados porque se desconhece o interesse que os dominantes têm nesta definição. Numa descrição do campo dos conflitos, seria preciso introduzir instâncias que jamais foram citadas, como a Escola que contribui para a inculcação de, entre outras coisas, uma visão meritocrática da distribuição das posições hierárquicas por intermédio do ajustamento dos títulos (escolares) às funções, ou o exército, cujo papel é capital para preparar a obreirização. Talvez fosse preciso acrescentar o sistema jurídico que a cada momento fixa a situação estabelecida das relações de força, contribuindo assim para sua manutenção, as instituições de assistência social que atualmente têm um papel capital, e todas as outras instituições encarregadas das formas suaves de violência. A idéia, inculcada pela Escola, de que as pessoas têm as funções que merecem em virtude de sua instrução e de seus títulos desempenha um papel determinante na imposição das hierarquias no trabalho e fora dele. Considerar o título escolar como o título de nobreza de nossa sociedade não é uma analogia selvagem; ele tem um papel capital neste processo de inculcação da conveniência nas relações de classe. Além da lei tendencial em direção à unificação das lutas, há uma passagem das formas de violência dura às formas de violência suave; simbólica. Segunda questão: como se define nesta luta os seus objetos de disputas e meios legítimos, isto é, aquilo pelo que é legítimo lutar e os meios legítimos a serem empregados? Há uma luta sobre os objetos de disputas e os meios de luta que opõe os dominantes e os dominados, mas também os dominados entre si: uma das sutilezas da relação de força dominantes/dominados, é que nesta luta, os dominantes podem utilizar a luta que ocorre entre os dominados, a respeito dos meios e fins legítimos (por exemplo, a oposição entre a reivindicação quantitativa e reivindicação qualitativa ou ainda a oposição entre greve econômica e greve polí- tica). Haveria que ser feita uma história social da discussão sobre a luta de classes 6 legítima: o que é legítimo fazer a um patrão? Esta questão foi recolocada na prática pelos seqüestros de patrões após maio de 68: porque estes atos contra a pessoa do patrão foram considerados escandalosos? Pode-se perguntar se todo reconhecimento de limites à luta, todo reconhecimento da ilegitimidade de certos meios ou de certos fins não enfraquece os dominados. O economicismo, por exemplo, é uma estratégia dos dominantes: consiste em dizer que a reivindicação legítima dos dominados é o salário e nada mais. Sobre este ponto, volto a tudo o que Tilly disse sobre o interesse extraordinário do patrão francês por sua autoridade, sobre o fato de que ele pode ceder quanto ao salário mas se recusa a tratar os dominados como interlocutores válidos, comunicando-se com eles através de cartazes nos lugares públicos, etc. Em que consiste a definição da reivindicação legítima? Aqui é fundamental, como notou Michele Perrot, considerar a estrutura do sistema de reivindicações e, como notou Tilly, a estrutura dos instrumentos de luta. Não se pode estudar uma reivindicação como a que concerne o salário independentemente do sistema das outras reivindicações (condições de trabalho, etc.). Da mesma maneira, não se pode estudar um instrumento de luta como a greve, independentemente do sistema dos outros instrumentos de luta, mesmo que apenas para constatar, quando for o caso, que eles não são utilizados. O fato de pensar estruturalmente mostra a importância das ausências. Parece que a cada momento das lutas operárias, pode-se distinguir três níveis: em primeiro lugar, há um impensado da luta (taken for granted, isto é óbvio, doxa) e um dos efeitos da obreirização, é fazer com que haja coisas que não se pense discutir nem reivindicar, ou porque isto não vem à mente ou porque não é "razoável". Em segundo lugar, há aquilo que é impensável, isto é, que é explicitamente condenado ("aquilo que os patrões não podem ceder", expulsar um contramestre, falar com um delegado operário, etc.). Enfim, a um terceiro nível, há o reivindicável, o objeto legítimo de reivindicações. As mesmas análises valem para a definição dos meios legítimos (greve, sabotagem, seqüestro dos executivos, etc.). Os sindicatos são encarregados de definir a estratégia "justa", "correta". Isto significa a estratégia mais eficaz em termos absolutos − sendo permitidos todos os meios − ou a mais eficaz, porque a mais "conveniente" num contexto social que implica numa certa definição do legítimo e do ilegítimo? Na produção coletiva desta definição dos fins e dos meios 7 legítimos, daquilo que por exemplo, é uma greve "justa", "razoável" ou é uma greve selvagem, os jornalistas e todos os analistas profissionais (politicólogos) − freqüentemente são os mesmos − desempenham atualmente um papel capital; neste contexto, a distinção entre greves políticas e greves não políticas (isto é, puramente econômicas) é uma estratégia interessada que a ciência não pode retomar para si sem perigo. Há uma manipulação política da definição do político. O objeto da luta é um objeto de luta: a todo momento há luta para dizer se é "conveniente" ou não lutar sobre tal ou qual ponto. É um dos viéses através dos quais a violência simbólicase exerce como violência suave e mascarada. Seria preciso analisar as conveniências coletivas, isto é, o conjunto de normas, evidentemente muito variáveis segundo as épocas e as sociedades, que se impõem aos dominados a um dado momento do tempo e que obrigam os trabalhadores a se impor limites por uma espécie de preocupação com a respeitabilidade, que leva à aceitação da definição dominante da luta conveniente (por exemplo, a preocupação em não atrapalhar o público com a greve). Seria interessante recolher de forma sistemática os apelos às conveniências. E também ver todos os mecanismos, como por exemplo as censuras lingüísticas, que funcionam neste sentido. Terceira questão: quais são os fatores da força dos antagonistas quando se defrontam? Coloca-se que suas estratégias dependerão a cada momento, pelo menos em parte, da força que eles disp6em objetivamente nas relações de força (estrutura), isto é, da força que adquiriram e acumularam através das lutas anteriores (história). Isto na medida em que estas relações de força são percebidas e julgadas exatamente em função dos instrumentos de percepção (teóricos ou fundados na "experiência" das lutas anteriores) de que dispõem os agentes. No caso dos trabalhadores, a greve é o instrumento principal de luta porque uma das únicas armas de que dispõem é justamente a paralisação do trabalho, paralisação total (secessão ou greve) ou paralisação parcial (operação- tartaruga, etc.): seria interessante determinar os custos e os benefícios para as duas partes destas diferentes formas de paralisação, conseguindo-se assim um meio de analisar como, em função deste sistema de custos e benefícios, se organizará o sistema de estratégias de que fala Tilly. Uma ilustração da proposição segundo a qual as estratégias dependem do estado da relação de forças pode ser 8 encontrada na dialética descrita por Montgomery sobre o início do taylorismo nos Estados Unidos: a sindicalização, que aumenta a força dos trabalhadores, acarreta um rebaixamento da produtividade − à qual os empregadores respondem através da taylorização e de todo um conjunto de novas técnicas de enquadramento (origem da sociologia do trabalho americana). Outra arma de que dispõem os trabalhadores, a força física (que constitui um dos componentes, juntamente com as armas, da força de combate): nesta lógica, seria preciso analisar os valores de virilidade e os valores de combate (um dos vieses através dos quais o exército pode ser uma armadilha para as classes populares, ao exaltar os valores viris, a força física). Mas há também a violência simbólica e, a este respeito, a greve é um instrumento particularmente interessante: é um instrumento de violência real que tem efeitos simbólicos através da manifestação, da afirmação da coesão do grupo, da ruptura coletiva é com a ordem comum que ela produz, etc. O específico das estratégias dos trabalhadores é que elas só são eficazes se são coletivas, portanto conscientes e metódicas, isto é, mediatizadas por uma organização encarregada de definir os objetivos e organizar a luta. Isto bastaria para explicar que a condição operária tende a favorecer disposições coletivistas (por oposição às individualistas), se todo um conjunto de fatores constitutivos das condições de existência não agisse no mesmo sentido: os riscos do trabalho e os problemas da vida inteira, que impõem a solidariedade, a experiência da permutabilidade dos trabalhadores (reforçada pelas estratégias de desqualificação) e da submissão ao veredicto do mercado de trabalho, que tende a excluir a idéia do "justo preço" do trabalho (tão forte entre os artesãos e os membros das profissões liberais). (Outra diferença em relação ao artesão é que o operário tem menos chances de se mistificar a si próprio e encontrar gratificações simbólicas na idéia de que seu trabalho vale mais do que seu preço, fazendo com que ele estabeleça uma relação de troca não-monetária com sua clientela). A inexistência de qualquer idéia de "carreira" (a antigüidade às vezes tendo um papel negativo) também introduz uma diferença fundamental entre os operários e os empregados que podem investir na competição individual para a promoção aquilo que os operários (apesar das hierarquias internas dentro da classe operária) só podem investir na luta coletiva. O fato de que estes só possam afirmar sua força e seu valor coletivamente, estrutura toda a sua visão do mundo, marcando uma 9 ruptura importante em relação a pequena burguesia. Seria preciso, nesta lógica, analisar, como fez Thompson para a época pré-industrial, a "moral econômica" da classe operária, determinar os princípios da avaliação do preço do trabalho (relação do tempo de trabalho com o salário; comparação de salários pagos a trabalhos equivalentes; relação das necessidades − família − com o salário, etc.). Segue-se que a força dos vendedores de força de trabalho depende fundamentalmente da mobilização e da organização do grupo mobilizado, portanto pelo menos em parte da existência de um aparelho (sindical) capaz de desempenhar as funções de expressão, de mobilização, de organização e de representação. Mas isto coloca um problema que nunca foi verdadeiramente pensado pelos sociólogos, o da natureza dos grupos e dos seus modos de constituição. Há um primeiro modo de constituição que é o grupo aditivo ou recorrente (1 + 1 + 1...): as estratégias dominantes tendem sempre a fazer com que não haja grupo mas sim adição de indivíduos (no século XIX, os patrões discutiam com os operários individualmente, um a um); invoca-se sempre a pesquisa de opinião ou o voto em cédulas secretas contra o voto pela mão levantada ou a delegação; assim como o tema de prêmios ou vários modos de remuneração constituem estratégias de divisão, isto é, de despolitização (aí está um dos fundamentos do horror burguês ao coletivo e a exaltação à pessoa). Segundo modo, a mobilização coletiva. É o grupo que se reúne fisicamente num mesmo espaço e que manifesta sua força através de seu número (de onde a importância da disputa a respeito do número − a polícia diz sempre que havia 10.000 manifestantes e os sindicatos 20.000). Enfim, há a delegação, a palavra do representante sindical que vale, por exemplo, 500.000 pessoas (o segundo e o terceiro modo não sendo exclusivos). Seria preciso fazer uma sociologia e uma história comparadas dos modos e dos procedimentos da delegação (por exemplo, insiste-se sobre o fato da tradição francesa privilegiar a assembléia geral), dos modos de designação dos delegados e das características dos delegados (assim, por exemplo, o delegado da CGT é quase sempre um pai de família, de ombros largos e bigode, sério e respeitável, antigo na empresa, etc.) Em seguida, seria preciso analisar a natureza da delegação: o que é delegar um poder de expressão, de representação, de mobilização e de organização a alguém? Qual é a natureza da opinião produzida por procuração? Em que consiste a delegação do poder de produzir opiniões, que tanto choca a consciência burguesa, tão presa àquilo que 10 ela chama de "opinião pessoal", autêntica, etc., e que sabemos que não passa do produto ignorado dos mesmos mecanismos? Que fazem os delegados? Fecham ou abrem o leque das reivindicações? Em que consiste a ação de expressão do porta-voz? O mal-estar existe e depois vem a palavra para nomeá-lo (pensamos nas relações entre os doentes e os médicos). A linguagem dá os meios de exprimir o mal-estar, mas, ao mesmo tempo, fecha o leque das reivindicações possíveis a partir de um mal-estar global; ela faz o mal-estar existir, permite sua apropriação constituindo-o objetivamente, mas ao mesmo tempo, o destitui ("estou mal do fígado, mas antes estava mal do corpo todo", "estou mal do salário, ao invés de estar mal de tudo, das condições de trabalho, etc.") A noção datomada de consciência pode receber uma definição máxima ou mínima: trata-se de consciência suficiente para pensar e exprimir a situação (o problema da despossessão e da reapropriação dos instrumentos de expressão) e para organizar e dirigir a luta, ou somente de consciência suficiente para delegar estar funções a aparelhos capazes de desempenhá-las o melhor possível no interesse dos delegantes (fides implícita)? De fato, esta posição do problema é tipicamente intelectualista: é a posição do problema que mais naturalmente se impõe aos intelectuais e também é a que mais se conforma aos interesses dos intelectuais, pois os transforma na mediação indispensável entre o proletariado e sua verdade revolucionária. De fato, como freqüentemente mostrou Thompson, a tomada de consciência e a revolta podem surgir de processos que não têm nada a ver com esta espécie de cogito revolucionário imaginada pelos intelectuais (por exemplo, a indignação e a revolta suscitadas pelo sangue derramado). Permanece o fato de que a mobilização da classe operária se liga à existência de um aparelho simbólico da produção de instrumentos de percepção e de expressão do mundo social e das lutas do trabalho. Enquanto a classe dominante tende sem cessar a produzir e a impor modelos de percepção desmobilizadores (por exemplo, atualmente os adversários na luta do trabalho são descritos como "parceiros sociais"). Se admitimos − como sugerem certos textos de Marx − que é possível identificar a linguagem e a consciência, colocar a questão da consciência de classe é se perguntar qual é o aparelho de percepção e de expressão que a classe operária dispõe para pensar e falar sua condição. Uma história comparada dos vocabulários da luta seria muito importante nesta lógica: 11 quais são as palavras utilizadas ("patrão", "quadros"), os eufemismos (por exem- plo, "os parceiros sociais")? Como são produzidos e difundidos estes eufemismos (sabe-se por exemplo o papel das comissões do Ministério do Planejamento na produção destes eufemismos e de todo um discurso coletivo que os dominados retomam em maior ou menor grau por sua própria conta)? No que concerne aos empregadores, seria preciso analisar, entre ou,tras coisas, a representação que têm da luta do trabalho e de seus objetivos (que não são estritamente econômicos, mas podem colocar em questão a representação que o patrão ou os dirigentes se fazem de sua autoridade e de seu papel); as relações que eles mantêm com o Estado, capaz em certos casos de defender seus interesses contra eles mesmos (ou pelo menos os da classe em seu conjunto, em detrimento da retaguarda desta classe), etc. Tendo estabelecido o sistema dos fatores determinantes da estrutura da relação de forças, seria preciso enfim estabelecer os fatores próprios para reforçar ou enfraquecer a ação destes fatores. Seja, por exemplo, a conjuntura econômica e em particular o grau de tensão do mercado de trabalho; a situação política e a intensidade da repressão; a experiência das lutas anteriores que, entre os dominantes, favorece o desenvolvimento dos métodos de manipulação e da arte das concessões e, entre os dominados, o domínio dos métodos proletários de luta (com uma tendência correlativa à ritualização das estratégias); o grau de homogeneidade ou de heterogeneidade da classe operária; as condições de trabalho, etc. Em cada conjuntura histórica, é o conjunto destes fatores (que por sinal não são independentes) que varia, definindo o estado da relação de forças e através disto, as estratégias que visam transformá-lo. In: BOURDIEU, Pierre. 1983. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero. p. 195-204.
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