Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
ANEXO 3 PRINCIPAIS DELINEAMENTOS APLICADOS EM ESTUDOS EPIDEMIOLÓGICOS ANEXO 3 217 Nas últimas décadas, a epidemiologia tem aperfeiçoado de forma significativa seu arsenal metodológico. Tal fato deve-se, de um lado, à melhor compreensão do processo saúde-doença, que nos permitiu uma visão mais clara dos múltiplos fatores que interagem na sua determinação e, de outro, ao desenvolvimento de novas técnicas estatísticas aplicadas à epidemiologia e também à utilização, cada vez mais ampla, dos computadores pessoais e à criação de novos programas (soft- wares), tornando acessíveis a um número cada vez maior de pesquisadores a apli- cação de análises estatísticas de dados obtidos em investigações epidemiológicas. A epidemiologia pode ser compreendida como um processo contínuo de acúmulo de conhecimentos com o objetivo de prover um acervo de evidências indiretas, cada vez mais consistentes, de associação entre saúde e fatores pro- tetores ou doença e fatores de risco. Com essa finalidade, existe um arsenal de delineamentos específicos para diferentes estudos epidemiológicos, que varia conforme os objetivos estabele- cidos, que pode ser tanto a identificação de uma possível associação do tipo exposição–efeito como a avaliação da efetividade de uma intervenção com o objetivo de prevenir um determinado efeito. De uma maneira geral, podemos identificar três delineamentos na aplicação do método epidemiológico: • epidemiologia descritiva; • epidemiologia analítica; • epidemiologia experimental EPIDEMIOLOGIA DESCRITIVA A epidemiologia descritiva constitui a primeira etapa da aplicação do método epidemiológico com o objetivo de compreender o comportamento de um agravo à saúde numa população. Nessa fase é possível responder a ques- tões como quem? quando? onde?, ou, em outros termos, descrever os caracteres epidemiológicos das doenças relativos à pessoa, ao tempo e ao lugar. Os caracteres epidemiológicos relativos às pessoas se referem especialmente ao gênero, idade, escolaridade, nível sócio-econômico, etnia, ocupação, situa- ção conjugal. Outros agrupamentos podem ser criados segundo características como usuário e não-usuário de serviços de saúde, pessoas que vivem em domi- cílios com ou sem acesso a serviços de abastecimento de água, etc. Qualquer variável relevante pode ser usada, observados os critérios que delimitam per- feitamente uma categoria da outra. Ao descrevermos os caracteres epidemiológicos relativos ao tempo, focaliza- mos o padrão do comportamento das doenças, em amplos períodos, pelo levantamento de séries históricas com o objetivo de caracterizar tendências, variações regulares, como, por exemplo, as variações cíclicas e sazonais e as variações irregulares, que caracterizam as epidemias. VIGILÂNCIA EM SAÚDE PÚBLICA 218 Por sua vez, a descrição dos caracteres epidemiológicos relativos ao lugar preocupa-se com aspectos da distribuição urbano-rural, diferenças do compor- tamento das doenças em distintas regiões do globo ou mesmo diferenciais exis- tentes no interior de uma mesma comunidade. Nos estudos descritivos, os dados são reunidos, organizados e apresentados na forma de gráficos, tabelas com taxas, médias e distribuição segundo atributos da pessoa, do tempo e do espaço, sem o objetivo de se estabelecer associações ou inferências causais. Esse tipo de estudo geralmente visa descrever popula- ções alvo que apresentem certos atributos de interesse. Freqüentemente, pela impossibilidade de se estudar o universo, adota-se como opção o estudo de uma amostra estimada da população alvo. Delineamentos de estudos descritivos Os delineamentos dos estudos epidemiológicos descritivos abrangem: • estudos ecológicos ou de correlação; • relatos de casos ou de série de casos; • estudos seccionais ou de corte transversal. Estudos ecológicos ou de correlação Os estudos ecológicos analisam dados globais de populações inteiras, compa- rando a freqüência de doença entre diferentes grupos populacionais durante o mesmo período ou a mesma população em diferentes momentos. Esses estu- dos são desenvolvidos com o objetivo de elaborar hipóteses, mas o teste de hipóteses com o emprego desse delineamento apresenta inúmeras dificuldades. Entre elas, a mais freqüentemente citada é o que se denomina falácia ecológica, que consiste em efetuar inferência causal para um fenômeno individual, com fundamento em associações entre exposição e efeito verificadas em estudos que utilizam dados globais de uma população. Um exemplo de estudo ecológico é a verificação de taxas mais baixas de cárie dentária em população servida por água de abastecimento com níveis mais ele- vados de concentração de flúor, permitindo a elaboração de hipótese de que o flúor diminuiria o risco da cárie dentária. Nesse caso, dispomos de dados relati- vos a um fator de exposição – a concentração de flúor na água de abastecimento – e a um efeito – a taxa de cárie dentária –, ambos referentes a toda a população; desconhecemos, porém, a freqüência individual de exposição e do efeito. Estudos de caso ou de série de casos Os estudos de caso consistem em relatos detalhados de um caso ou de um grupo de casos elaborados por um ou mais investigadores, focalizando características pouco freqüentes de uma doença já conhecida ou buscando descrever uma moléstia possivelmente desconhecida. Freqüentemente, esses estudos visam ANEXO 3 219 chamar a atenção de outros pesquisadores que tenham efetuado observações semelhantes, criando condições para formulações de hipóteses. Um exemplo de estudos de série de casos é a análise rotineira de dados obtidos a partir de sistemas de vigilância. Muitas vezes é utilizada a descrição de uma série de casos para caracterizar a emergência de uma nova doença. Em nosso meio podemos citar o exemplo da descrição de uma série de casos com características muito semelhantes à síndrome de Waterhouse-Friderichsen, atingindo crianças menores de 10 anos, residentes em várias localidades dos Estados de São Paulo e do Paraná, que, posteriormente, delimitaram uma nova entidade nosológica – a febre purpúrica brasileira. Estudos seccionais ou de corte transversal Nos estudos seccionais ou de corte transversal, a situação de um indivíduo em relação a determinada exposição e efeito são medidos em um único ponto no tempo ou no decorrer de um curto intervalo de tempo. Esses estudos, quan- do efetuados em população bem-definida, permitem a obtenção de medidas de prevalência; por isso são também conhecidos por estudos de prevalência. Uma das desvantagens apresentadas por esse tipo de estudo está relacionada ao fato de que a exposição e o efeito são mensurados em um mesmo ponto no tempo, o que torna difícil a identificação do momento da exposição, ou seja, se esta precede o aparecimento da doença ou se a presença da doença altera o grau de exposição a determinado fator. No entanto, para fatores que perma- necem inalterados no tempo, como sexo, raça e grupo sanguíneo, os estudos seccionais podem oferecer evidência válida de uma associação estatística. Quando o objetivo da pesquisa é a identificação de aspectos relativos à etio- logia da doença, os estudos seccionais são particularmente indicados para investigar fatores de risco de doenças de início lento e de evolução longa, nos quais o diagnóstico geralmente é feito num estágio mais avançado da doença. Entre as vantagens dos estudos de corte transversal, temos: • São freqüentemente desenvolvidos com base em amostras representa- tivas da população e não abrangem apenas pacientes que buscam atendimento em serviços de assistência médica, permitindo inferências causais mais fortes. • Seu custo é geralmente mais baixo se comparado a outros tipos de estudo, em virtude de seu desenvolvimento em curto espaço de tempo. Quanto às limitações dos estudos seccionais, temos: • A dificuldade, já citada, de separarmos acausa do efeito. • A maior dificuldade de identificação de doenças de curta duração se comparadas àquelas de longa duração. VIGILÂNCIA EM SAÚDE PÚBLICA 220 Recomenda-se também cuidado na análise de estudos seccionais que incluí- rem doenças que apresentem períodos de remissão e de exacerbação e tam- bém quando abrangem pacientes em tratamento. Nesses casos, a classificação dos casos dependerá dos objetivos da pesquisa, que deverá estabelecer critérios específicos para cada situação com o objetivo de estabelecer definições de caso mais adequadas. Os instrumentos de medida de exposição nos estudos seccionais podem ser, entre outros, registros, preenchimento de questionários, exames físico e clínico, testes de laboratório. EPIDEMIOLOGIA ANALÍTICA Os estudos analíticos constituem alternativas do método epidemiológico para testar hipóteses elaboradas geralmente durante estudos descritivos. Temos fundamentalmente dois tipos de estudos analíticos: • coortes; • caso-controle. Em síntese, esses delineamentos têm por objetivo verificar se o risco de desenvolver um evento adverso à saúde é maior entre os expostos do que entre os não-expostos ao fator supostamente associado ao desenvolvimento do agravo em estudo. Os estudos analíticos visam, na maioria das vezes, estabelecer inferências a respeito de associações entre duas ou mais variáveis, especialmente associações de exposição e efeito, portanto associações causais. Esses estudos são também denominados estudos observacionais, uma vez que o pesquisador não intervém – apenas analisa com fundamento no método epidemiológico um experimento natural. As características básicas dos dois tipos de estudos observacionais são os seguintes: • Os estudos de coortes (vide página 184), analisam as associações de exposição e efeito por meio da comparação da ocorrência de doenças entre expostos e não- expostos ao fator de risco. • Nos estudos tipo caso-controle (vide página 191), as exposições passa- das são comparadas entre pessoas atingidas e não atingidas pela doença objeto do estudo. Definição dos grupos expostos e não-expostos Tendo em vista que o objetivo dos estudos observacionais é a quantificação das associações de exposição e efeito, torna-se indispensável definir de forma bem precisa o que se entende por exposição (provável fator de risco) e por efeito (doença). ANEXO 3 221 A definição de exposição deve ser elaborada levando em conta a dose ou duração da exposição ao fator de risco ou diferentes maneiras de associação dessas duas variáveis. Pode também ser entendida por características do hos- pedeiro, como, por exemplo, sexo, idade, tipo sanguíneo, etc. Por sua vez, a definição do efeito, ou seja, a definição de caso, é igualmente indispensável e pode ser entendida como um conjunto de critérios padroniza- dos que nos permitem estabelecer quem apresenta as condições de interesse para a investigação. A definição de caso inclui critérios clínicos, laboratoriais e epidemiológicos, podendo delimitar também características epidemiológicas relativas ao tempo, espaço e pessoa. EPIDEMIOLOGIA EXPERIMENTAL A epidemiologia experimental abrange os chamados estudos de inter- venção, que apresentam como característica principal o fato de o pesquisador controlar as condições do experimento. O estudo de intervenção é um estudo prospectivo que objetiva avaliar a efi- cácia de um instrumento de intervenção e, para tanto, seleciona dois grupos: um deles é submetido à intervenção objeto do estudo e o outro, não; em seguida, compara-se a ocorrência do evento de interesse nos dois grupos. Nesse delineamento, os grupos devem ser homogêneos sob aspectos como sexo, idade, nível sócio-econômico. Se a escolha do fator que se supõe protetor não apresentar vieses e se o grupo de indivíduos estudados for suficientemente grande para permitir a identificação de diferenças na ocorrência da doença no grupo exposto e não exposto, teremos uma relação de causa–efeito consistente. Aceita-se que os estudos de intervenção sejam, geralmente, considerados como aqueles que permitem evidências mais confiáveis em estudos epidemioló- gicos. Essa característica deve-se ao fato de os participantes serem selecionados aleatoriamente para serem expostos a determinado fator considerado protetor. Essa técnica de seleção controlaria inclusive fatores não conhecidos que podem afetar o risco de apresentarem a doença, controle que não é possível ser aplica- do nos estudos observacionais. Essa característica dos estudos de intervenção é mais importante quando estudamos efeitos de pequena e média intensidade. Esse delineamento, evidentemente, deve pressupor uma análise prévia dos aspectos éticos envolvidos no projeto de pesquisa, devendo ser aplicado somen- te quando exista para o fator em estudo forte evidência de um efeito protetor. VIGILÂNCIA EM SAÚDE PÚBLICA 222 Tipos de delineamentos epidemiológicos observacionais: vantagens e desvantagens TIPO DE ESTUDO Nome alternativo Características Vantagens Desvantagens RETROSPECTIVO Tipo caso-controle • estudo no tempo para trás; • investiga-se para trás a pre- sença ou ausência do fator suspeito; • são freqüentemente utilizados. • simples; • relativamente fáceis; • mais baratos; • geram novas hipóteses de trabalho; • é freqüentemente usado. • a determinação do risco relativo é só aproximada; • não se pode determinar a incidência; • não se pode calcular risco atribuível; • pouco úteis quando a fre- qüência de exposição ao agente causal estudado é muito baixa ou este é pou- co identificável; • a representatividade é rela- tiva, segundo a enfermida- de, limitando a inferência dos resultados; • dificuldades para identifi- car os grupos controles; • risco de vieses ou distor- ções por parte do investi- gador ao questionar retros- pectivamente (erro do observador); • baseiam-se na memória do caso e do controle, sendo maior a desvantagem nos processos crônicos (erro de recordação). PROSPECTIVO Coortes (expostos e não-expostos) • estudo no tempo para a frente; • o ponto de partida para o futuro é a exposição ao fator em estudo. • informam a incidência; • permitem calcular o risco relativo; • os indivíduos são observa- dos com critérios diagnós- ticos uniformes; • permitem calcular o risco atribuível; • conhecem-se com precisão as populações expostas e não-expostas; • mais fáceis de evitar vieses; • permitem descobrir outras associações. • resultado a longo prazo; • de desenvolvimento com- plexo; • alto custo; • só servem para enfermida- des relativamente freqüen- tes, não servem para inves- tigar doenças de baixa fre- qüência; • risco de viés ou distorção premeditada do observador; • eventuais mudanças na equipe de investigadores; • perda ou deserção dos membros das coortes. TRANSVERSAL Estudos de prevalência • estuda a situação de exposição e efeito de uma população em um único momento. • simples; • rápidos; • relativamente econômicos; • permitem conhecer a prevalência associada aos agentes suspeitos; • permitem a descrição da população. • não quantificam o risco de desenvolver a doença; • a seqüência temporal do fenômeno em estudo não aparece; • são limitados epide- miologicamente ao não poder estabele- cer associações cau- sa-efeito; • podem induzir facil- mente a associações ou interpretações fal- sas ou fortuitas. ANEXO 3 223 BIBLIOGRAFIA ALMEIDA FILHO, N. e M. Z. Rouquayrol. Introdução à Epidemiologia Moderna. Salvador, Apce Produtos do Conhecimento e ABRASCO, 1990. BUEHLER, J. W. e R. C. Dicker. “Designing Studies in the Field”. In: GREEG, M. B. Field Epi- demiology. New York, Oxford University Press, pp. 81-91, 1996. CASTELO FILHO, A. e F. A. Alves. “Epidemiologia Clínica Aplicada a Doenças Infecciosas”.In: VERONESI, R. e R. Foccacia. Tratado de Infectologia. São Paulo, Atheneu, pp. 22-29, 1996. CENTERS FOR DISEASE CONTROL AND PREVENTION. Principles of Epidemiology. An Intro- duction to Applied Epidemiology and Biostatistics (self-study programme). 2ª ed., 1992. DETELS, R. “Epidemiolgy: The Foundation of Public Health”. In: HOLLAND, W. W., R. Detels e G. Knox. Oxford Textbook of Public Health. New York, Oxford University Press, 2ª ed., pp. 285-291, 1991. FLETCHER, R. H., S. W. Fletcher e E. H. Wagner. Epidemiologia Clínica: Elementos Essen- ciais. Porto Alegre, Artes Médicas, 3ª ed., 1996. GREEG, M. B. Field Epidemiology. New York, Oxford University Press, 1996. HENNEKENS, C. H. e J. E. Buring. Epidemiology in Medicine. Boston, Little, Brown and Com- pany, 1987. KELSEY, J. L., A. S. Whittemore, A. Evans e W. D. Thompson. Methods in Observational Epi- demiology. New York, Oxford University Press, 2ª ed., 1996. KRAMER, M. S. Clinical Epidemiology and Biostatistic. A Primer for Clinical Investigators and Decision-Maker. Berlin, Springer-Verlag, 1988. LAST, J. A Dictionary of Epidemiology. New York, Oxford University Press, 2ª ed., 1998. LILIENFELD, D. E. e P. D. Stolley. Foundations of Epidemiology. New York, Oxford Univer- sity Press, 1994. MAUSNER, J. S. e S. Kramer. Epidemiology - An Introduction Text. Philadelphia, W. B. Saun- ders Company, 1985. MORGENSTERN, H. Uses of Ecologic Analysis in Epidemiology Research. American Journal of Public Health, 72: 1334- 1336, 1982. ROTHMAN, K. J. Modern Epidemiology. Boston, Little, Brown and Company, 1986. TIMMRECK, T. C. Introduction to Epidemiology. Boston, Jones and Bartlett Publishers, 1994.
Compartilhar