Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
ANOTAÇÕES PARA UMA TEORIA DO ESTADO Guillermo O’Donnell1 Primeira seção: Sociedade e Estado ......................................................................................................... 2 1 Algumas definições preliminares ................................................................................................... 2 2 Bases da dominação ..................................................................................................................... 4 3 Aspectos e sujeitos sociais concretos ........................................................................................... 6 4 Organização................................................................................................................................. 11 5 Exterioridade ................................................................................................................................ 16 6 Racionalidade limitada................................................................................................................. 17 7 Contradição.................................................................................................................................. 23 Segunda Seção: As Mediações entre o Estado e a Sociedade............................................................... 26 8 Introdução .................................................................................................................................... 26 9 A Cidadania, fundamento do Estado capitalista. ......................................................................... 29 10 A nação, referencial do Estado.................................................................................................... 31 11 O povo. fundamento e referencial ambíguo do Estado. .............................................................. 34 12 Ocultamento e Ruptura................................................................................................................ 37 Terceira Seção ......................................................................................................................................... 38 13 Algumas conclusões .................................................................................................................... 38 Convém precisar a intenção e os limites deste trabalho. Em primeiro lugar, são anotações para uma teoria e não uma tentativa de construir tal teoria visto que desenvolvo aqui apenas alguns dos temas necessários a uma visão suficientemente completa da problemática do Estado capitalista. Em segundo lugar, estas reflexões não nascem de um interesse genérico são o resultado de um esforço para entender um tipo de Estado capitalista - a que denominei burocrático autoritário - mediante o estudo do caso argentino contemporâneo, comparado a experiências latino-americanas similares. Essa tentativa bem como diversos comentários recebidos a meus trabalhos anteriores, mostraram a necessidade de repensar a concepção de Estado neles subjacentes. Ficou claro a partir dai que o mais problemático não é nem o Estado nem a Sociedade, mas a sua conjunção que os une de modo ambíguo e como se 1 Muito deve este trabalho a meus companheiros do CEDES. Foram ademais especialmente importantes os comentários e anotações que Marcelo Cavarozzi, Oscar Oszlak e Norbert Lechner prepararam sobre a primeira versão do trabalho. Os trabalhos de Lechner por outro lado, exerceram uma influência especial sobre o presente texto. Quero também registrar a minha divida intelectual para com Anita Marntzas e o falecido Kalman Silvert que muitas vezes trataram de vencer a minha desatenção para com o tema da Nação. admin Realce 2 verá desorientador em vários sentidos fundamentais. Em terceiro lugar, por ser o Estado burocrático autoritário um tipo histórico de Estado capitalista necessitei tratar alguns dos temas mais gerais deste Estado, ao menos aqueles que me permitissem voltar em continuação ao plano mais especifico do burocrático autoritário. Esta é uma das razoes além das de minhas insuficiências para que estas páginas sejam nada mais que as anotações anunciadas no titulo. Estas reflexões são pois um momento na elaboração de instrumentos conceituais para entender melhor não apenas um tipo de Estado mas ainda - e sobretudo - processos históricos penetrados por lutas que assinalam a implantação os impactos e o colapso deste Estado. Mas para chegar a isso pareceu me necessário neste trabalho, começar pelo outro lado, salientando algumas características comuns a todo Estado capitalista para só no final, esboçar as principais características diferentes de um tipo de Estado que tende a corresponder à textura de uma sociedade muito diferente dos casos clássicos e mais puramente capitalistas. Nestas paginas tais diferenças só podem ser assinaladas em suas características mais decisivas, mas também mais gerais. A exploração detalhada de suas conseqüências, bem como o destaque de contrastes mais específicos entre diversos casos latino-americanos não cabe neste trabalho. Isto é matéria do estudo acima mencionado, razão pela qual estas anotações são parciais, também no sentido de que são interrompidas antes de chegar aquele plano de especificidade histórica. Porém, como instrumento elaborado precisamente a partir do estudo colocado nesse plano, e com vistas a seu avanço a esperança é que possam contribuir à junção entre detalhe e teoria de que necessitamos tanto - e não apenas como pura conveniência do progresso intelectual. Primeira seção: Sociedade e Estado 1 Algumas definições preliminares2 Primeiramente, será necessário desenvolver passo a passo uma definição de Estado. Entendo por Estado o componente especificamente político da dominação numa sociedade territorialmente delimitada. Por dominação (ou poder) entendo, a capacidade, atual e potencial, de impor regularmente a vontade sobre outros, inclusive mas não necessariamente contra a sua resistência. Portanto, entendo o político em sentido próprio ou especifico, como uma parte analítica3 do fenômeno mais geral da 2 Utilizarei aqui algumas contribuições - clássicas e contemporâneas - e mencionarei debates surgidos em vários contextos. Sendo um exercício de erudição pedante citar mesmo incompletamente essa enorme bibliografia. Esta razão, e outras mais conjunturais, me levaram a mencionar apenas as contribuições recentes e pouco acessíveis, que influenciaram diretamente na minha argumentação. 3 Um ponto crucial destes e outros argumentos posteriores num conjunto determinado, as partes concretas são aquelas que se podem desagregar do mesmo, sendo ainda captáveis pelos sentidos (por exemplo à perna de uma mesa). Aspectos analíticos são aqueles que podem ser abstraídos intelectualmente mas que não são passíveis da operação acima (por exemplo, a forma dessa mesa). Quando falar de aspectos daqui para frente entenda-se que a referência é analítica. admin Realce admin Realce admin Realce admin Realce 3 dominação, aquela que se encontra apoiada pela supremacia no controle dos meios de coerção física4 em um território excludente delimitado5. Combinando estes critérios, o conceito de Estado resulta equivalente ao plano do especificamente político e este, por sua vez, é um aspecto do fenômeno mais amplo da dominação social. A dominação relacional é uma modalidade de vinculação entre sujeitos sociais. É por definição assimétrica, já que é uma relação de desigualdade6. Esta assimetria surge do controle diferenciado de certos recursos, graças aos quais é habitualmente possível conseguir o ajuste dos comportamentos, e das abstenções do dominado à vontade- expressa, tácita ou presumível - do dominante. Não faz sentido tentar um inventário exaustivo desses recursos, mas é útil distinguir alguns que são muito importantes para sustentar a dominação. O primeiro é o controle dos meios de coerção física, mobilizáveis por si mesmos ou por meio de terceiros. Outro é o controle dos recursos econômicos. Um terceiro é o controle dos recursos de informação no sentido amplo, inclusive de conhecimentos científicos e tecnológicos.O ultimo que interessa assinalar é o controle ideológico, mediante o qual o dominado assume como justa e natural a relação assimétrica de que é parte e, portanto, não a entende nem questiona como dominação. Esta enunciação, serve para sublinhar alguns pontos que nos permitirão desembocar em temas mais interessantes. O primeiro deles é que o controle de qualquer desses recursos permite o exercício da coerção, consistindo em submeter o dominado a severas sanções. O segundo é que o recurso mais eficiente em termos de manutenção da dominação é o controle ideológico, que implica no consentimento do dominado a esta relação7, por outro lado, a coação é o recurso mais custoso, porque desnuda explicitamente a dominação e pressupõe que - pelo menos - fracassou o controle ideológico, a coação é entretanto fundamental, como ultima ratio de suporte à dominação. O terceiro ponto, é que habitualmente existe uma alta correlação entre o controle desses recursos, é altamente provável que quem controla os recursos "A" e "B" controle simultaneamente "C" e "D", ou pelo menos tenha nos 4 A seguir usarei indistintamente os termos coação ou coerção física. 5 Outras relações de dominação não incluem este suporte. Nem por isso deixam de sê-Io mas não consistem em dominação política, de acordo às definições que estou propondo. É claro que embora sejam relações de dominação parecem estas relações não políticas de dominação. Isto se reflete na linguagem comum e em algumas correntes intelectuais que consideram relações políticas, por exemplo, às estabelecidas em algumas associações como a família ou um clube. Nestas pode se fazer política num sentido que ainda não estudamos (o da competição pela conquista de posições desde as quais seja possível o exercício do poder) mas nelas não se encontra presente o componente especifico da supremacia coercitiva sobre um território excludente delimitado. 6 Alguns esclarecimentos necessários sugeridos por comentários recebidos à primeira versão deste trabalho. Primeiro nem toda relação social é uma relação de dominação - aqui privilegio esta última porque o tema que queremos tratar é o Estado que como veremos é uma esfera especifica da dominação. Segundo uma situação de desigualdade não impede necessariamente que os sujeitos sociais por ela vinculados possam empreender ações cooperativas, das quais (embora provavelmente em graus diferentes determinados por sua desigualdade) devêm benefícios ou vantagens a cada qual. 7 Este é o fundamento da virtualidade de severas sanções, emergente do controle ideológico questionar o que é justo, ou natural numa ordem social dada é pensar o proibido - sofrer a dissonância de sugerir o pecaminoso ou incorrer em ingratidão, para os que ocupam as posições superiores de uma ordem social justa. admin Realce admin Realce admin Realce admin Realce admin Realce admin Realce admin Realce admin Realce admin Realce admin Realce 4 primeiros uma base eficaz para estender o âmbito de sua dominação sobre os restantes. Estes recursos são a base de toda dominação, não apenas política; a característica específica desta é a supremacia dos meios de coerção física em um território delimitado excludente8. 2 Bases da dominação O controle dos recursos de dominação não está distribuído aleatoriamente. Em cada momento são muito variados os fatores que determinam o acesso desigual a tais recursos. Não apenas é inútil tentar um inventário desses fatores, mas além disso tal característica nos faria perder de vista (buscando uma precisão empírica inútil, no plano em que nos colocamos), que existe um grande diferenciador do acesso aos recursos de dominação, tanto diretamente como enquanto gerador de situações, que por sua vez permitem esse acesso. Esse grande diferenciador é a classe social, ou, mais precisamente, a articulação desigual (e contraditória) da sociedade em classes sociais. Por classe social entendo, como primeira aproximação, posições na estrutura social determinada por modalidades comuns de exercício do trabalho, da criação e apropriação do valor. Veremos que a determinação dessas modalidades não e só econômica, mas que há outras dimensões, também constituindo-se intrinsecamente - entre elas a que defini como estatal ou política. O Estado que nos interessa aqui é o Estado capitalista. A modalidade de apropriação do valor criado pelo trabalho, constitui as classes fundamentais do capitalismo, através e mediante a relação social estabelecida por tal criação e apropriação. Os mecanismos e conseqüências mais ostensivos dessa relação são econômicos. A relação de dominação principal - embora não única - numa sociedade capitalista é a relação de produção entre capitalista e trabalhador assalariado, mediante a qual é gerado e apropriado o valor do trabalho. Este é o coração da sociedade civil, seu grande princípio de ordenação contraditória. Essa apropriação não é simplesmente uma relação de desigualdade. É um ato de exploração, que implica também em que seja uma relação inerentemente conflitiva (ou para dizê-lo diferentemente, contraditória), independentemente de que seja, ou não reconhecida como tal pelos sujeitos sociais. Este é um dos pontos notáveis do controle ideológico: sua vigência encobre o conflito inerente a certas relações sociais. Isto sugere que, embora seus planos mais ostensivos sejam econômicos, a relação que nos ocupa também está impregnada de controle ideológico. Este último, do mesmo modo que o econômico, constitui essa relação, não como algo que lhe vêm de fora para reforçá-la eventualmente, 8 Convém enfatizar que tanto o elemento de supremacia da coação como o do territorial são necessários para definir a especificidade do político-estatal. Uma quadrilha de rua e certo tipo de paternidade mantêm e exercem a supremacia dos meios de coação sobre as pessoas sujeitas á sua órbita de interação, mas tal dominação carece do elemento de territorialidade excludente. Por outro lado, a dominação política não é coação mais territorialidade. admin Realce admin Realce 5 mas como componente que já esta aí, originariamente, contribuindo para concretizar sua vigência. Veremos que o mesmo pode argumentar-se acerca do político. Em que sentido as classes sociais são o grande diferenciador do acesso desigual aos recursos de dominação? Em primeiro lugar, diretamente a posição de classe determina em grande medida por si mesma essa desigualdade. Mas, ademais dessa posição surgem probabilidades diferenciadas de alcançar situações (prestígio social, educação, acesso à informação, capacidade para ser "escutado" socialmente e influir ideologicamente, disponibilidade de recursos para dirigi-los no plano propriamente político, entre outros), que por sua vez permitem atingir o controle de outros recursos de dominação. Esta não é, como tampouco as anteriores, uma estipulação definidora. Postula certas causalidades, hierarquizadas na importância e ordem de sua contribuição, a distribuição diferenciada de recursos de dominação, para a qual deveria existir, se é correta, apoio empírico razoável. E tal é o caso9. Mas, voltemos ao político propriamente dito. Há relações sociais ostensivamenterequeridas por ordens apoiadas pela supremacia da coação sobre um território, por exemplo, as disposições que regem a prestação de serviços nas Forças Armadas, ou a sentença de um Juiz. Há outras que aparecem como relações "privadas", que vinculam os sujeitos sociais sem que assumam o Estado, nem seu poder coativo. São relações tipicamente contratuais, entendidas como aquelas em que, mediando ou não um documento escrito, as partes convencionam uma gama de obrigações e direitos. Mas o caráter privado dessa relação é só uma aparência. Na imensa maioria dos casos, as classes podem recorrer a um "algo mais" que subjaz à habitual probabilidade de vigência e execução do contrato. Esse plus é o Estado, cujas instituições podem ser invocadas, com o propósito de que ponham os recursos que possam mobilizar, e não só a coação, a serviço da vigência de certa interpretação do contrato. São poucos os contratos em que é necessário acudir a isto. Mas, em todos, a garantia de sua efetivação resulta da possibilidade de realizar tal invocação, tácita, porém fundamentalmente, já que de outra maneira a relação contratual não se concretizaria e, se o fizesse, não haveria possibilidade de demandar o seu cumprimento. Por outro lado, faltando este componente, a única possibilidade de alcançar a confirmação do contrato seria a coerção que as partes pudessem aplicar diretamente, a "lei das selvas", antagônica ao entrecruzamento previsível de relações, inerente a toda sociedade, mesmo a de menor complexidade. Os contratos costumam pressupor um acordo de vontades livremente adotado por partes que, face à legislação pertinente à relação, aparecem como iguais; A esta igualdade costuma-se dizer "formal", porque não obsta que a relação real que vincula os sujeitos chegue a ser extremamente desigual. O 9 Para uma recapitularão da evidência sobre este ponto ver Frank Parkin Class Inequality and Polilical Order. New York, 1971, também J H Westergard, Sociology the Myth of Classlessness ', em Robin Blackburn (org) Ideology in Social Science Readings in Criticai Social Theory, Fontana Glasgow 1972. 6 caso crucial é o da venda da força de trabalho, ato de igualdade formal que possibilita a apropriação do valor criado pelo trabalho. Subjaz também a esta relação contratual a garantia implícita pela possibilidade de invocação ao Estado, no caso de descumprimento, para a efetivação de uma relação social desigual e contraditória. Esta capacidade de invocação (ou, em outras palavras, essa presença tácita e subjacente do Estado), e constitutiva da relação, ela não poderia existir - "seria outra coisa" - sem este componente. E tal papel, não apenas é desempenhado no caso - trivial - em que a invocação se realiza, mas também, mais permanente e fundamentalmente, em todas as relações dotadas da possibilidade de realizar tal invocação. Esta, ao tornar-se claro que há recursos de poder territorialmente delimitados que sustentam a relação sob a ameaça de sanções severas, marca desde as origens, os limites do que as partes podem decidir (e descumprir), e governa suas expectativas, acerca da vigência efetiva e das modalidades de execução da relação. Isto significa que a fiança prestada pelo Estado a certas relações sociais, inclusive as relações de produção, que são o coração de uma sociedade capitalista e de sua articulação contraditória em classes sociais, não é uma garantia externa nem a posteriori dessas relações. É parte intrínseca e constitutiva das mesmas, tanto como outros elementos - econômicos, de informação e controle ideológico - que são aspectos que só podemos distinguir analiticamente na própria relação. E isto significa, por sua vez, que as dimensões do Estado, ou do especificamente político, não são - como tampouco o é "o econômico" - nem uma coisa, instituição ou "estrutura"; são aspectos de uma relação social. 3 Aspectos e sujeitos sociais concretos É necessário abordar um ponto que se tem prestado a confusões. É certo que os atores sociais costumam vivenciar a "intervenção do Estado" como algo exterior e a posterior, incorporado a suas relações quando algo nelas "falhou". Isto reflete no plano da consciência comum, o que inúmeros autores sublinharam o capitalismo é o primeiro caso histórico de separação entre a coerção10 econômica e a extra-econômica. Entre outros, o senhor de escravos e o senhor feudal concentravam recursos de poder econômico, de informação, coerção física e ideológica. Ao contrário, na sua relação com o trabalhador, o capitalista não concentra diretamente todos esses recursos. Porém, este contraste tem sido exagerado e não se traçaram algumas distinções necessárias. Em primeiro lugar, é um erro deduzir deste contraste que o capitalista só conserva a coerção econômica. Ele costuma exercer controle ideológico, embora não o monopolize, mesmo quando seu conteúdo e modos de realização sejam diferentes dos de outras situações históricas. Além disso, possivelmente haja aumentado o seu 10 Por exemplo punições econômicas sob a forma de multa. A ultima ratio da superioridade na coação continua operando através da possibilidade de que outras sanções revertam a esta esfera, no caso de terem sido ineficazes e primeiras. 7 controle dos recursos de informação, especialmente devido ao fracionamento da situação de trabalho em que é colocado o trabalhador, com a conseqüente dificuldade para reconstruir o seu significado social desde tal perspectiva. No entanto, o que mais interessa destacar é que a característica do capitalismo não é apenas que o trabalhador esteja destituído dos meios de produção, mas também que o capitalista está destituído dos meios de coação. Surgem disso várias conseqüências importantes. A separação entre o capitalista e os meios de coação, não implica que esta esteja ausente da relação social que o vincula ao trabalhador assalariado. Já vimos que ela é uma presença virtual que costuma entrar em ação quando algo "falhou". Tal ação é a efetivação da garantia de sua vigência, mediante a mobilização de recursos de poder que, por sua vez, têm como sustento de ultima instância a supremacia nos meios de coação sobre um dado território. Este terceiro sujeito social são as instituições estatais. Elas costumam acionar essa fiança das relações de dominação (inclusive das relações capitalistas de produção), quando o que é promessa virtual e subjacente às mesmas e invocado para que se efetive. Entramos aqui num território em que é preciso avançar com cuidado. Devemos distinguir entre a gênese e as condições de vigência das relações capitalistas de produção11. Nos dois casos podemos encontrar a especificidade da sociedade capitalista, mas de diferentes modos. Quanto à sua gênese, o vendedor da força de trabalho é livre, não apenas no sentido de que esta destituída dos meios de produção, mas também no sentido que não é levado a tal relação de forma coercitiva - no que difere da situação do escravo e do servo. O que leva o trabalhador a tal relação é uma coerção econômica, resultante de que, carente dos meios de produção, seu único modo de contar com meios de subsistência é convertendo-se em trabalhador assalariado. Esta coerção econômica é além disso difusa, nem as instituições estatais obrigam a venda da força de trabalho, nem os capitalistas podem, por si próprios ou valendo-se dessas instituições, impor tal obrigação a nenhum sujeito social concreto. A necessidade de fazê-lo, portanto, não aparece imposta por ninguém, "simplesmente", a sociedade está articulada de tal maneira que o trabalhador carente de meios de produção não poderia subsistir se não o fizesse.A ausência de coação paravender a força de trabalho é condição necessária para a aparência (formal) da igualdade entre as partes. Ademais, junto à coerção econômica difusa, é uma das raízes principais do controle ideológico, derivado da capacidade de dominação na sociedade capitalista (novamente em contraste com outras experiências históricas, em que as formas de coerção - econômica e física - são transparentes em si mesmas e no sujeito social que as aplica). Neste sentido genético, o econômico e a coerção econômica, são primários às relações capitalistas de 11 Adoto neste ponto as reflexões de Marcelo Cavarozzi sobre uma versão anterior deste trabalho. 8 produção. Mas, por outro lado, uma vez que se vende e compra a força de trabalho, se está celebrando um contrato que formaliza relações que também estão constitutivamente impregnadas por aspectos extra-econômicos - inclusive os políticos estatais de que nos ocupamos aqui. A fiança coercitiva da relação é constitutiva da mesma, isto, junto à necessária12 destituição do capitalista dos controles diretos da coação, implica na cisão de um terceiro sujeito social que concentra tais recursos e tem capacidade para mobilizá-los. Este sujeito não é "todo" o Estado, mas a sua parte que se cristaliza ou objetiva nas instituições. O ponto fundamental é que, se isto é assim, o Estado - como aspecto dessas relações e complexo objetivo de instituições - é o fiador de tais relações, e não dos sujeitos sociais que mediante as mesmas se constituem. Isto significa que, o Estado não apóia diretamente o capitalista (nem como sujeito concreto nem como classe) mas à relação social que o faz capitalista. Outra implicação e que o Estado é primariamente coercitivo, no sentido de que não apenas a coerção física é a ultima ratio daquela fiança, mas também de que a separação entre o capitalista e os meios de coação é a origem do Estado capitalista e de suas instituições. Esta Primazia (genética) do coercitivo no Estado é - análoga à primazia, também genética, do econômico nas relações capitalistas de produção, o que não significa que tais relações sejam puramente econômicas nem que o Estado seja só coação. Que quer dizer isto? Em primeiro lugar, se a emergência de um terceiro que põe uma fiança em ultima instância coercitiva, esta implícita nas relações capitalistas de produção, o Estado já e por isso mesmo um Estado capitalista, antes de perguntar-se se favorece, ou é instrumentado por esta ou aquela classe ou fração de classe. Segundo, a objetivação dessa cisão nas instituições estatais implica, também necessariamente, que estas não sejam, nem atuem como um capitalista concreto, que ao sê-lo ficasse separado dos recursos coativos controlados por aquelas instituições. As relações capitalistas de produção pressupõem um terceiro sujeito social que aparece e atua como um não-capitalista, embora seja a objetivação de um Estado que é por isso mesmo capitalista. Em terceiro lugar, se o Estado é a garantia das relações de produção, então o é de ambos sujeitos sociais que se constituem como tais mediante estas relações. O Estado é a garantia do trabalhador assalariado enquanto classe, e não apenas da burguesia. Isto implica - lógica e praticamente - que em certas circunstâncias o Estado seja protetor do primeiro frente ao segundo. Mas não como árbitro neutro, e sim para repô-lo como classe subordinada que deve vender força de trabalho, e, portanto reproduzir a relação social que o Estado garante. Na medida em que as instituições estatais são a cristalização dos recursos coercitivos que o capitalista não controla, aparecem como um não-capitalista que, ademais, não garante às classes vinculadas às relações de produção senão indiretamente, através do apoio à contínua reposição de capitalistas e 12 Por definição uma sociedade em que não predomina esta destituição não é capitalista 9 trabalhadores assalariados enquanto classes. Isto supõe que o Estado seja a expressão de um interesse mais geral que o dos sujeitos sociais de cuja relação emana. Mas este interesse não é neutro ou igualitário, é o da reprodução de uma relação social que articula desigual e contraditoriamente a sociedade. Isto equivale a dizer que o Estado em seu conjunto - como aspecto e como objetivações - é uma forma de articulação daqueles sujeitos sociais. Neste sentido, o Estado é uma generalidade (a particularidade daqueles sujeitos e seus interesses), mas é uma generalidade parcializada (devido ao viés estrutural da modalidade de articulação entre aqueles sujeitos). O que, por sua vez, implica que o Estado seja mediação instalada e emanada em uma relação entre sujeitos sociais. Esta é a razão pela qual o Estado é habitualmente, ademais de coação, uma mediação consensualmente articuladora de sujeitos sociais. Porém, do Estado como organização do consenso nos ocuparemos na segunda parte. Recapitulemos. Na gênese das relações capitalistas de produção acha-se uma coerção econômica difusa que não pode ser imputada nem aos capitalistas concretos nem às instituições estatais; só pode ser descrita como uma modalidade de articulação geral da sociedade. Por sua vez, na medida em que se estabelece a relação, nem o capitalista exerce a coação, nem este ou as instituições estatais podem obrigar coercitivamente à contínua venda da força de trabalho; o trabalhador assalariado está sempre livre para concluí-la13. Finalmente, o Estado aparece como uma objetivação institucional que concentra o controle de recursos coercitivos em última instância, e como um não-capitalista que apenas garante as classes através do apoio às relações sociais que as constituem como tais. O caminho percorrido nos permite acrescentar duas precisões. A primeira é que, quando falamos de capitalistas e trabalhadores assalariados, não estamos no plano das relações inter-individuais mas no das classes sociais14. Isto permite entender o significado da primazia genética do econômico nas relações de produção, e do coercitivo no Estado. Este primado é analítico, não histórico nem concreto, porque em cada momento da sociedade capitalista, como totalidade imersa num tempo histórico, confluem os dois planos de gênese e de vigência efetiva daquelas relações e do Estado. De fato, não haveria venda de força de trabalho sem coerção econômica, mas, por outro lado, não haveria as classes fundamentais do capitalismo (nem, portanto, sociedade capitalista) se tal venda não estivesse já se efetuando. E, por sua vez, estas relações vigentes não são apenas econômicas; já vimos que incluem outras dimensões, inclusive a estatal, como seu aspecto co-constitutivo. Quanto ao Estado capitalista, o é porque emana de uma relação social que implica a separação entre os meios de coação e os capitalistas; mas, por outro lado, sua 13 Esta é por certo outra diferença fundamental, em comparação com outras experiências históricas. O capitalista também está livre para finalizar a relação, pois conserva consigo um instrumento fundamental de coação econômica. 14 Cada. trabalhador assalariado pode ter a esperança de deixar de sê-lo. Embora reduzida estatisticamente, a probabilidade de "mobilidade social ascendente" no capitalismo é outro contraste com as demais experiências históricas; que ajuda - como expectativa de fuga individual daquela posição de classe a encobrí-lo enquanto dominação. Por outro lado, fora desse nível individual, o capitalismo pressupõe a existência de uma classe de "livres" compradores e vendedores da força de trabalho. 10 condição de fiador da relação, e não dos sujeitos sociais concretos, faz dele um fenômeno não apenascoercitivo. Portanto, o respectivo primado genético do econômico e do coercitivo é analítico, e não um fator histórica ou ontologicamente anterior às outras dimensões co-constitutivas das relações de produção e do Estado capitalista. A segunda precisão é que o político em sentido estrito, ou estatal, é um aspecto inerente às relações de dominação, especialmente às relações capitalistas de produção. Porém, além disso, a efetivação da sua garantia supõe a emergência de um sujeito concreto, as instituições estatais, que aparecem como forma não-capitalista, mais geral e exterior aos sujeitos diretos daquelas relações. Na medida, então, em que a garantia implícita só pode ser efetivada em certas ocasiões, e que a modalidade de efetivação está originalmente ligada à relação social e só indiretamente ao capitalista como sujeito social, as instituições estatais aparecem como interesse exterior e mais geral que os das partes diretas daquela relação. Podemos agora sistematizar algumas afirmações. Assinalei o propriamente político como um aspecto co-constitutivo de certas relações sociais, entre elas as relações capitalistas de produção. Assinalei também que, na medida em que o propriamente político ou estatal pode ser invocado para assegurar essa relação, mesmo que tal invocação não se realize em cada caso, aquele aspecto contribui uma fiança crucial para a vigência de tal relação. Essa relação constitui, conjuntamente, ao capitalista e ao trabalhador assalariado, como classes sociais. Isto, por sua vez, supõe a articulação de um sistema de dominação social, traduzido no acesso diferenciado a diversos recursos. Além disso, aquela constituição mútua necessária das classes é a relação social que cria o capital e permite a sua reprodução dinâmica enquanto processo de acumulação. Isto significa que os planos que acabo de mencionar são aspectos que se supõem recíproca e necessariamente, das relações sociais que definem a especificidade de uma sociedade capitalista. Isto por sua vez supõe que um desses aspectos, o estatal ou propriamente político, é simultaneamente fiança das relações capitalistas de produção, da articulação de classes de tal sociedade, da diferenciação sistemática do acesso a recursos do poder (ou sistema de dominação) e da geração e reprodução do capital15. Este é o sentido da afirmação de que o estatal ou propriamente político é originariamente constituinte dessas relações sociais e que, portanto, é errado buscá-lo "fora" ou "depois" das mesmas relações. Se assim é, decorre ademais que o Estado não pode senão ser como aquilo que co-constitui: uma relação social inerentemente contraditória16. Voltaremos a este ponto. 15 Quando a seguir referir-me à fiança que o Estado fornece à sociedade qua capitalista, deverá entender-se que aludo a este conjunto de aspectos. 16 Podemos também expressá-lo do modo seguinte: como emanação analítica de uma relação contraditória das classes, garantida e - como veremos - organizada com sua contribuição, o Estado capitalista é um dos âmbitos sociais dessa contradição e, ao mesmo tempo, uma tendência constante para o seu ocultamente. 11 Por outro lado, a mencionada fiança opera num tecido de relações sociais que se desdobra num tempo histórico. Isto nos conduz a outro corolário: ela existe ao redor, e como parte, da reprodução dinâmica do conjunto formado pelas relações capitalistas de produção, a estrutura de classes, o sistema de dominação, e a criação e acumulação de capital. Com o termo "dinâmica" quero indicar dois pontos: que estas relações se reproduzem cambiantemente no decurso do tempo e que, no que refere à reprodução do capital, este é um processo de acumulação. 4 Organização O Estado é um aspecto de certas relações sociais. Esta é sua característica fundamental, de que dependem seus outros atributos. Já que as relações capitalistas de produção pressupõem que a classe dominante não possui os recursos de coação, o Estado tende a objetivar-se em instituições principalmente coercitivas. Nos termos dos sujeitos sociais concretos, a relação entre capitalista e trabalhador implica a cisão de um terceiro, que são as instituições estatais. Mas o plano do Estado como aspecto (da sociedade) é fundamental, porque confundir o Estado com essas instituições seria subsumir um fenômeno mais amplo, naquela parte sua que é concretamente objetivada. A partir desta confusão, a relação capitalista - trabalhador apareceria como apenas "econômica", enquanto que, como outra conseqüência da mesma causa, o estatal apareceria intervindo de fora, e só eventualmente ao interior dessa relação. A cisão que se produz assim entre a sociedade e o Estado, e a externalidade recíproca a que os condena, é o fundamento principal do mascaramento do Estado como fiador da dominação na sociedade, e de sua opacidade. Estes são os temas que começaremos a examinar. Devo agora explicitar algo que permaneceu implícito nas páginas anteriores. Enquanto fiador da sociedade capitalista, o Estado é o articulador e organizador da sociedade, independente de sua condição de suporte co-ator da vigência de certas relações de dominação. Num primeiro sentido, o Estado é, como fiador daquelas relações, o limite negativo das conseqüências socialmente destrutivas de sua reprodução16. Ou seja, a existência do capitalista em competição com outros capitalistas, sujeitos todos às necessidades da acumulação, supõe que individualmente tenderiam a uma exploração excessiva (do ponto de vista do encobrimento de sua dominação e da reprodução da força de trabalho), e além disso, ficariam entregues a uma concorrência também "excessiva", que eliminaria de sua classe - agonizando assim os antagonismos implícitos na reprodução do capital - uma boa parte dos capitalistas. Por outro lado, a competição ao redor da acumulação do capital, determina que o burguês não se ocupe de decisões e investimentos necessários para a conquista das condições sociais que permitem, 16 Sobre este ponto ver E Altvater, "Rémarques sur quelques problèmes theoriques postes par l’interventionisme etatique ', em 1.N. Vincent (org) L’Etat, Maspero Pans, 1975 págs 135-170 12 entre outras coisas, a reprodução do sistema de classes, a acumulação e a resolução de certos problemas "gerais" (tipicamente, as tarefas do Estado liberal na educação, saúde, obras de infra- estrutura física, e ademais, as intervenções diretamente "econômicas" do Estado capitalista moderno). Estas, diferentemente das anteriores, não são limites negativos à atuação dos capitalistas, mas um condicionamento do contexto social, de que "alguém" deve ocupar-se17. Observe-se que tanto as interposições de limites negativos, como as intervenções de ajuste social, aparecem ante os setores como algo externo a suas relações "privadas", o que acontece paralelamente à aparente exterioridade do Estado vis-à-vis as relações de produção. Além disso, como são decisões que, em contraste à do capitalista, não costumam orientar-se à conquista do lucro para o agente, aparecem como expressão de uma racionalidade distinta àquela do capitalista. Em acréscimo, na medida em que se interpõem como limite negativo ou como condicionante do contexto social, encarnam uma racionalidade mais geral e neste sentido "superior" à do capitalista individual. Finalmente, a interposição de limites negativos pode ser vivenciada por certos capitalistas (inclusive por todos eles) como ação não só externa, mas igualmente hostil, da parte desse "alguém" que a impõe. Especialmente, uma boa parte dos limites negativos específicos de cada país são resultado de lutas das classes dominadas, para as quais sãoexperiências de vitória, vivenciadas inversamente pela burguesia. Esse "alguém", que se ocupa de tais planos, são as instituições estatais. A existência dessas instituições e seu peso monótono na sociedade é uma das razões para que o Estado seja experimentado como exterioridade. Já vimos outras razões, mas chegamos a um ponto que vale a pena enfatizar. Essa aparência de exterioridade fundamenta-se no mascaramento da dominação, que subjaz às relações capitalistas de produção, e que determina que o Estado só apareça (como instituição), quando eventualmente invocado para apoiá-las. Mas, ademais, fundamenta-se em que, principalmente na sua interposição de limites negativos, as instituições apareçam como encarnação de uma racionalidade mais geral e não-capitalista. Embora devamos ainda examinar essa modalidade de atuação, isto nos permite entender porque o Estado tende a aparecer face aos próprios capitalistas, como uma força exterior e movida por uma racionalidade diversa. A partir de sua condição primordial de fiador de uma relação, o Estado capitalista não é diretamente o Estado "dos" capitalistas, e nem mesmo pelas razões que acabo de assinalar, costuma ser vivenciado como tal pelos mesmos. Porém, as objetivações não são apenas instituições concretizadas em organizações complexas e burocráticas. Podem ser também formalizações que cristalizam relações sociais típicas. O contrato de compra e 17 Não creio que seja possível estendermo-nos muito mais, ao nível de generalidade em que nos situamos aqui sobre estas modalidades de intervenção. Por certo, as diferenças entre essas modalidades são de muita importância no estudo de casos históricos específicos. 13 venda da força de trabalho supõe a igualdade formal das partes, através de um caráter legalmente tipificado - trabalhador/empregador - que prescinde das condições reais de cada um18. O produto dessa relação é corporificado em mercadorias que circulam pela mediação do dinheiro. A moeda só pode ser meio de circulação como equivalente genérico das mercadorias. Isto supõe que todo sujeito deva ser considerado "igual frente à moeda", cuja posse outorga direito e acesso a mercadorias, “apenas” limitado pela quantidade que dela possua e não por sua posição de classe. Por outro lado, para ser objeto de intercâmbio, a força de trabalho deve aparecer como uma mercadoria entre outras, trocadas por moeda, para a qual acudam sujeitos sociais formalmente iguais e livres (ou seja, não levados coercitivamente ao contrato de trabalho); os quais, por sê-lo, sustentam a validade e o cumprimento do contrato que celebram. A igualdade formal do sujeito social frente à moeda, e na relação contratual (inclusive a de venda da força de trabalho), são exatamente paralelas. O intercâmbio de mercadorias pela mediação do dinheiro é um momento crucial na circulação do capital. O acordo de vontades, entre sujeitos formalmente iguais, é um ponto notável do tecido de organização da sociedade capitalista por parte do Estado. Sua objetivação é o Direito moderno, racional-formal no sentido weberiano, que consagra o sujeito social como sujeito jurídico, no plano da igualdade correspondente ao plano da circulação do capital. Dinheiro e direito racional-formal são abstrações reais, no sentido de que, por um lado, derivam de uma relação social a qual transformam, e de que, por outro lado, são um plano não puramente mítico, que se vincula contraditoriamente com o anterior19. O direito racional-formal nasceu e expandiu-se juntamente com o capitalismo. Isto expressa uma relação profunda esse direito é a codificação formalizada da dominação na sociedade capitalista, mediante a criação do sujeito jurídico, implícito na aparência da vinculação livre e formalmente igual, do intercâmbio da força de trabalho e, em geral, da circulação de mercadorias. Como os aspectos restantes que estamos considerando, o direito racional-formal contém ambigüidades que expressam a sua vinculação contraditória com os níveis profundos da sociedade. Por um lado, esse direito faz do trabalhador assalariado algo diferente do servo e do escravo um sujeito que, em certos planos, tem direito igual aos das outras classes - inclusive o de invocar as instituições estatais 18 Isto não implica no desconhecimento da complexidade introduzida por modalidades tais como a negociação coletiva ou políticas estatais orientadas a proteger os trabalhadores. Essas transferem a esfera da igualdade formal das relações ler individuais entre trabalhador e capitalista para o conjunto dos mesmos sem alterar o pressuposto de igualdade formal que sobejais ao intercâmbio da mercadoria - força de trabalho - que assim se coletiviza parcial e distorcidamente sob a lógica abstraia e formalizante do capital. 19 Ver sobre este ponto a obra de Lúcio Colletti, From Rousseau to Lenin NLB Editions,Londres 1972 págs 231- 236 que desenvolve este argumento acercada mistificação das mercadorias que na esfera, em que se coloca a economia política vulgar aparecem tal como verdadeiramente são na superfície aparente da sociedade. Do mesmo modo que a critica do eco norma política é a teoria que descobre a ligação contraditória dessas aparências com seu substrato a teoria do Estado tem que ser a critica de sua própria superfície aparente.O paralelismo não e casual um e outro são partes - embora o primeiro esteja muito mais desenvolvido - de uma teoria critica da sociedade capitalista. 14 para que esses se efetivem. Mas, por outro lado, o sujeito jurídico criado pelo direito racional-formal é a entidade abstrata - despojada de qualquer atributo que não o de ser tal sujeito formalmente igual - que contrata, livre e, portanto validamente, a venda de sua força de trabalho. Em acréscimo, o direito também codifica a dominação, ao consagrar e tornar apoiada, coercitivamente, a propriedade privada; especialmente a dos meios de produção, apropriados e utilizados em um mercado integrado por tais sujeitos jurídicos abstratamente iguais. Isto, por sua vez, implica formalizar a articulação da sociedade de modo a consagrar a destituição do trabalhador dos meios de produção; o qual fica então, sem necessidade de coação, forçado a vender a sua força de trabalho. Este direito é a cristalização mais formalizada da contribuição do Estado à sociedade capitalista. Isto, não apenas porque cria o sujeito social descarnado, implícito nas relações capitalistas e na apropriação privada dos meios de produção. Mas também porque, como formalização cognoscível, ensina preventivamente às partes os limites de seus direitos e deveres, diminuindo, portanto, a necessidade de intervenção ostensiva para invocar em ultima instância a fiança coercitiva do Estado. Graças a isto, tal intervenção aparece movida não pelos agentes de um sistema de dominação, mas por sujeitos juridicamente iguais, que apenas se limitam a exigir o cumprimento do que contrataram livremente e na base de situações abstratamente tipificadas nas normas legais20 . Por isso, o direito racional-formal é algo mais que ensino preventivo e caminho regularizado para a efetivação da garantia do Estado. Ao cristalizar os planos que correspondem à esfera da circulação, e fazê-los previsíveis como conjuntos de direitos e deveres, o direito é também um tecido organizador da sociedade e da dominação que articula. Esta abstração corresponde à emergência e reprodução de uma relação de poder - a que liga o capitalista ao trabalhador - na qual o pólo dominante desprendeu-se do controle direto dos recursos de coação. A exploração que se realiza através das relações capitalistas de produção fica então oculta por uma aparência dupla: a de igualdade(formal), das partes e da livre vontade com que as mesmas podem ou não entrar em relação. O capitalismo supõe tanto a separação entre o trabalhador e os meios de produção como a separação entre o capitalismo e os meios de coação. Ambas são requeridas para que a relação subjacente se transforme numa relação de intercâmbio entre iguais abstratos, medida pelo equivalente universal que é o dinheiro. É assim que, regulada pelo direito, a relação pode aparecer como relação apenas econômica: um intercâmbio, como o de outras mercadorias, intermediado pelo dinheiro. Já que as relações sociais fundamentais do capitalismo aparecem desligadas de qualquer coação, é 20 Percebe-se ademais, que por isto mesmo o direito aparece como fundamento por um lado, e por outro lado como mecanismo de reposição, quando ameaça ser alterado de urna certa ordem de uma regularidade socialmente valorizada de articulação da sociedade. Ver de Norberto Lechner. Poder y Ordem. La Estratégia de Ia Minoria Consistente , (FLACSO mimeografiado Santiago de Chile, 1977) sobre o peso implícito da ordem garantida pelo Estado. 15 difícil reconhecer nelas o seu aspecto principalmente coercitivo, que é o Estado. Portanto, este, por sua vez, costuma ser captado naquilo que lhe é derivado e secundário em suas objetivações como direito e como conjunto de instituições. Estas tendem então a aparecer como plenitude do Estado e, na medida em que são o momento de objetivação de uma relação social que se perdeu de vista, também como uma força estranha aos sujeitos sociais movida por uma racionalidade exterior. Aquilo que é principalmente um aspecto das relações de dominação, fica reduzido a sua superfície objetivada em instituições. Dito de outro modo, a reificação ou coisificação do Estado capitalista em suas instituições é a modalidade típica de sua aparência - razão pela qual a crítica deste Estado deve começar por descobri-lo como aspecto da dominação na sociedade. Do mesmo modo que o dinheiro e a mercadoria, as instituições estatais são um fetiche. Emanação e ao mesmo tempo ocultação da relação contraditória subjacente, o fetiche não aparece apenas como poder exterior. Também é um determinante da consciência comum e sua modalidade de exteriorização tende a reger uma percepção do mundo social, que é em si mesma uma máscara da realidade subjacente. Não se atinge o capital partindo do dinheiro, mas das relações de produção. Tampouco se chega ao Estado capitalista partindo das instituições, mas das relações capitalistas de dominação. Esta cisão aparente entre sociedade e Estado é outra especificidade do capitalismo que - insistamos - tem fundamento real na diferenciação de um terceiro sujeito social que presta um suporte principalmente coativo. Ela supõe uma cisão paralela entre o "privado" e o "público". Os sujeitos da sociedade civil são as partes "privadas", as instituições estatais são a encarnação do "público". Este é outro campo em que o direito tem importância fundamental. De fato, nele se situam os sujeitos sociais como partes privadas, face às instituições estatais. A sociedade civil e os sujeitos que a constituem ficam assim reduzidos à sua aparência nas relações capitalistas de produção, a agentes que, não condicionados por nenhuma coação, reproduzem relações de intercâmbio, movidos por uma racionalidade limitada ao econômico. Por outro lado, as instituições estatais permanecem como instância superior, mediadora dessas relações. É assim que o sujeito do direito torna-se o mesmo da superfície aparente da sociedade capitalista à parte "privada” , reduzida à reprodução cotidiana do fundamentalmente econômico, contraposta à esfera do publico de um Estado fetichizado. Antes de internar-nos em outros problemas, recapitularemos alguns dos pontos centrais do argumento. Isto pode ser necessário, porque demasiado freqüentemente a teoria do Estado fica aprisionada à aparência fetichizada do Estado capitalista. A partir disso, uma série de falsos problemas e disjuntivas não pode ser superada. A chave central é captar primeiro, o Estado como uma dimensão analítica na sociedade civil, e só depois (como conseqüência da cisão necessária de um terceiro sujeito social, manifesta na especificidade daquele aspecto) como um conjunto de objetivações. 16 5 Exterioridade Que se haja diferenciado o sujeito social que efetiva a fiança coativa (e que, portanto, seja a sua concreção institucional neste plano, mas apenas nele, externa às partes) não impede que a relação social esteja constituída conjunta e originariamente por diversos aspectos, entre os quais encontra-se o estatal ou político em sentido estrito, e a coação física. Estas são questões que devem ser cuidadosamente diferenciadas. Insistamos então que as relações de dominação - inclusive a que vincula capitalistas e trabalhadores - não são simplesmente econômicas. São também políticas e, suposta certa “normalidade”, igualmente ideológica (pelo menos). O plano concreto de objetivação em sujeitos sociais e institucionais é secundário e derivado (embora tenha importantes efeitos próprios) do entrecruzamento daqueles aspectos como conjuntamente constitutivos de uma relação social. Isto tem várias conseqüências. Uma, é que se os sujeitos sociais se constituem mediante e na condição sua de portadores de relações sociais, as classes não são um fenômeno apenas econômico, porque não o são tampouco as relações capitalistas de produção que as plasmam enquanto tais. Outra, é que se o estatal, ou político em sentido estrito, é um aspecto das relações sociais de dominação, a oposição entre o "privado" e o "publico" ou estatal é falsa. E a - terceira conseqüência - no sentido especifico de que não apenas o "privado" está impregnado pelo político-estatal, mas também porque ao ser este constitutivo da sociedade, é parte (analiticamente distinguível) desta ultima. Em outras palavras - e isto, embora re-expresse reflexões anteriores, é fundamental -, o Estado ou o político não está "fora" da sociedade, é sua parte intrínseca. Por outro lado, sabemos que o Estado emana de uma relação social, que supõe a cisão de um terceiro sujeito social. Vimos também que esse sujeito não e apenas a objetivação da vigência efetiva de fiança coercitiva subjacente a tais relações. É também organizador da dominação, através dos limites negativos e do condicionamento do contexto social, deixado aos cuidados das instituições estatais. Também o é mediante a sua objetivação no direito. Mas, além disso, o direito é a consagração da exterioridade aparente do Estado, vis-à-vis os sujeitos sociais. Vimos que as relações capitalistas de produção geram um sujeito (as instituições estatais) que aparece como um não-capitalista, exterior aos sujeitos diretos das relações capitalistas de produção. Vimos também que esse terceiro sujeito não é o fiador direto das classes, mas das relações que as constituem como tais. Esta é a origem da cisão aparente entre o Estado e a sociedade ou, e que é equivalente, entre o político e o econômico. Esta cisão é aparente, porque é uma emergência do entrecruzamento inerente do político e do econômico (bem como de outros planos) como aspectos daquelas relações. Mas também é, a seu modo, real, porque no plano dos sujeitos sociais, concretos, emerge efetivamente um terceiro que não é nem capitalista nem trabalhador, nem atua com a racionalidade de ambos. Isto é, por sua vez, o fundamento de que se produza uma transformação, que 17 é a base da ocultação do Estado capitalista enquanto dominação. Em primeiro lugar, trata-se de subsunção dessas instituições como o "todo" do Estado. Em segundo lugar, trata-se da aparência de que elas apenas intervêmeventualmente, e sem desvios sistemáticos, sobre as relações sociais. Quando se deixa de ver o Estado em sua condição primordial de fiador nas (e das) relações sociais de dominação (especialmente das relações capitalistas de produção), esfuma-se o seu componente co- ator e tudo parece dever-se a uma coerção econômica difusa. Ademais, ao apagar-se aquela condição primordial, os recursos concentrados nas instituições estatais (inclusive a capacidade de coação) podem aparecer vinculados a um interesse geral e abstrato. Em outras palavras, a venda da força de trabalho, a quem não dispõe de recursos de coação, supõe o controle destes últimos por um terceiro sujeito que, como a coação ficou apagada daquela relação, pode então aparecer aplicando-a neutralmente. A soma destes dois movimentos é uma subtração. A dominação e seu suporte coercitivo tendem a esfumar-se, tanto da sociedade quanto do Estado. O que permanece é uma "ordem" juridicamente cristalizada, a que podem apelar todos os sujeitos, livres e iguais, e expostos à coerção apenas quando tentam violá-la 6 Racionalidade limitada O Estado capitalista é um fetiche; quando aparece subsumido em suas objetivações é, portanto, desligado de sua inserção primordial na sociedade. Mas isto não obsta que devamos levar em conta a imensa importância do que suas instituições fazem ou deixam de fazer. No nível de análise em que se situam estas páginas, o problema principal é o de se é correto afirmar que essas instituições, momento de objetivação plena do Estado, expressam desde o seu próprio plano a condição inerentemente capitalista deste e - se assim é - de que modo o fazem. Este tema prestou-se a demasiados simplismos e falsos dilemas, de modo que devemos penetrá-lo com cuidado. De início, devemos partir da critica à pretensão de racionalidade realmente superior, que se costuma postular desde essas instituições. Margareth Wirth levanta a pergunta pertinente "A tese segundo a qual o Estado deve garantir a reprodução do capitalismo coloca, em primeiro lugar, a questão sobre como o Estado - de modo diverso dos capitalistas individuais - poderia conhecer as condições dessa reprodução social. A burocracia do Estado não "sabe" (do mesmo modo que não o sabem os capitalistas individuais) quais são as medidas "objetivamente necessárias para a manutenção do sistema nos casos concretos dados"21. Esta afirmação parte de uma realidade colocada ou não no ápice do sistema institucional do Estado, o ser humano está sujeito a agudas limitações cognitivas, relacionadas com suas próprias carências e com a multidimensionalidade do mundo social. Isto determina que a sua seja uma "racionalidade limitada". Ou seja, que não possa realmente buscar nem encontrar soluções ótimas. Sua capacidade 21 Margareth Wirth “Contribution à la Critique de la théorie monopoliste d’Etat em J M Vicent, L Éiat , p 123. 18 de atenção é restrita, a agenda de problemas que pode considerar é estreita, a busca de informação sofre custos crescentes, os critérios que orientam essa busca são desviados por fatores inconscientes e por rotinas operacionais, é a informação está longe de fluir livremente22. Como conseqüência, o método típico de tomada de decisões é através do ensaio e erro, baseado no encontro de soluções sub-ótimas (simplesmente "satisfatórias"), que supõem uma teoria rudimentar das conexões causais que regem os problemas que se trata de resolver. Estes dados não são congruentes com a auto-imagem hegeliana do burocrata, coincidente com a de alguns de seus críticos equivocados. Tampouco indicam alguma fração da burguesia, que "controlaria" o Estado como instrumento sagazmente colocado a serviço dos seus interesses. Como é possível, no entanto, responder afirmativamente à pergunta com que iniciamos este capítulo? O Estado afiança e organiza a reprodução da sociedade capitalista, porque se encontra para isso numa relação de "cumplicidade estrutural"23. O Estado é parte da sociedade, como aspecto seu, inclusive, e primordialmente, das relações capitalistas de produção. O Estado já é por isso capitalista sem que sejam necessárias decisões e volições de seus agentes para que chegue a sê-lo. A sociedade capitalista tende sistemática e habitualmente à sua reprodução enquanto tal. O mesmo acontece com o Estado; aspecto da mesma sociedade. De que modo o faz? Primeiro, como direito, enquanto cristalização codificada da igualdade formal e da propriedade privada. Segundo, como presença tácita de recursos de poder, prontos para entrar em ação caso a relação de dominação que suportam "falhe" por alguma razão. Terceiro, como um dos ancoradouros para a ideologia da sociedade capitalista, que se apaga da consciência comum enquanto dominação é exploração. Quarto, porque a cisão verossímil do Estado como instituição face à sociedade capitalista é, em si mesma, um plano de sua cumplicidade estrutural, já que reborda a superfície aparente da sociedade capitalista enquanto abstrato socialmente real - e ao fazê-lo a oculta e se oculta a si mesmo como dominação. Estas razões fazem do Estado cúmplice estrutural da vigência e reprodução da sociedade capitalista, da qual é, repitamos, aspecto co- constitutivo24. Até onde chegamos com estas reflexões? A que o Estado ou o especificamente político é o mesmo enfoque com que a sociedade tende a reproduzir-se como capitalista. Este é um problema diferente do 22 As referencias a limitações cognitivas que farei nesta secção baseiam-se principalmente nas investigações de Herbert Simon e seus colaboradores, conforme, especialmente, James March y Herbert Simon, Organizations N York, 1958 e Richard Cyert y James March, A Behavioral Theory of the Firm, Prentice Hall Englewood Chffs, 1963. Também são relevantes embora seja difícil concordar com seus modelos normativos, as conceituações macromentalistas' (p ex , os trabalhos de Charles Lmdblom The Science of Muddlmg TYhrough' Public Administration Rewew, 19, N ' 2, 1959 e Aaron Wildavsky, The Politics of Budgetary Proceis, Little, Brown & Co Boston, 1964) e da ' política burocrática" (p ex Grahan Allison, Essence of Decisions: Explaining the Cuban Missile Crisis Little, Brown & Co , Boston. 23 O conceito é de Claus Offe 'Structural Problems of the capitalist State" em Klaus von Beyme (org), German Political Studies, Vol l, Sage Publications, Londres, 1974. 24 Este ponto é enfatizado por Margareth Wirth, ' Contribution", op cit 19 que as instituições estatais fazem ou não fazem (mais precisamente, do que fazem ou deixam de fazer as pessoas com papeis institucionais que lhes permitam "falar" em nome do Estado e mobilizar seus recursos). Este plano deriva-se do que acabamos de referir, já que só pode ser propriamente entendido da perspectiva do Estado, como aspecto co-constitutivo da sociedade. No entanto, este é o terreno em que se costuma situar a discussão da questão que nos propusemos abordar. Portanto, se as nossas reflexões acerca da fetichização do Estado não estão erradas, não é surpreendente que exista, nesse plano, descolado de sua realidade subjacente, resposta possível a tal pergunta. Essas instituições acionam concretamente um viés sistemático para o afiançamento e a reprodução de sua sociedade capitalista, que já está impresso no Estado de que são as objetivações. Quando e como atuam? Fundamentalmente, em duas ocasiões uma, enquanto administração burocrática que cumpre tarefas reutilizadas de organização geral da sociedade, outra, como resposta a situações percebidas como "crises". O que fazem essas instituições e como atuam? Comecemos pela administração rotinizada. Esta, junto com o Direito (com o qual sesuperpõe em grande parte, na medida em que este participa dessa rotinização, e por outro lado, porque a maioria de tal administração ocorre através da aplicação de normas jurídicas), é o tecido habitual e pouco visível das múltiplas decisões diárias de suporte e organização da sociedade. Esse funcionamento, apesar de eficiências e incongruências, supõe sistematicamente, em seu conteúdo real e na agregação diária dos impactos daquelas decisões, essa sociedade em sua articulação de classes e em sua composição por sujeitos jurídicos abstratamente iguais, capazes de apropriar-se privadamente dos meios de produção, ou seja, enquanto sociedade capitalista. E, ao pressupô-la, a ratificam tácita porém decisivamente, mediante a miríade de decisões pelas quais a "Penélope" burocrática re-empreende diariamente um tecido que é a imagem e semelhança do de ontem (em que cada ontem foi também capitalista). Esta repetição "natural” , como prolongação óbvia do passado, é, como a rotina do trabalho (da qual nada participa por acaso), uma das contribuições fundamentais do Estado objetivado na burocracia à reprodução da sociedade capitalista. A trama de sustentação e organização estatal da sociedade é tecida também por suas instituições, em rotinas diárias que pressupõem a sociedade enquanto capitalista. Se a compreensão do aspecto estatal requereu um esforço analítico, a reiteração dessas rotinas é como que um rumor surdo, de difícil identificação. Outro plano em que atuam as instituições estatais é enquanto reação (e, ocasionalmente, como tentativa de prevenção) de "crises" ou "problemas"25 . Porém, o que é uma crise? Algo que, por alguma razão, percebe-se que "anda mal", e que alguma instituição estatal encarrega-se de "solucionar" uma 25 Sobre a emergência desenvolvimento e resolução de problemas ou questões sociais ver Oscar Oszlak e Guillermo O'Donnell, "Estado y Políticas Publicas en América Latina Sugerencias para su Estudio", CEDES/GE CLACSO, N • 20 greve, um índice "excessivo" de inflação, uma queda da taxa de investimento, ou demandas para que certos recursos econômicos do Estado sejam alocados ao programa A e não ao B. Mais geralmente, crises e problemas aparecem politicamente como rupturas da "ordem" e, economicamente, como obstáculos interpostos à acumulação do capital. Em outras palavras, a determinação do que seja uma crise não é feita de modo neutro porque as crises são crises da sociedade capitalista. Crises e problemas definem-se como tais em função de certas concepções básicas acerca do que é, em contraste, a "normalidade". Assim, por exemplo, a exploração da força de trabalho se oculta como normalidade, a menos que uma taxa excessiva ameace a reprodução da força de trabalho, ou que, por qualquer razão, ocasione "desordem". Só então se apresenta à atenção dos sujeitos, e tende a gerar ações corretivas e/ou coercitivas. Do mesmo modo, a dinâmica da acumulação do capital implica em que a burguesia continuamente se devore e se recomponha internamente. Mas isto só aparece como problema quando algum grupo reclama, em condições que lhe permite ser escutado, que se reduzam tais efeitos e que se apóie esse grupo para que sobreviva como capitalista (ou quando alguns funcionários tomam a iniciativa de tutelar este ou outro grupo). Não vale a pena insistir em outros exemplos. O importante é que a própria definição de crise ou problema pressupõe uma "ordem" (que já identificamos como relação de dominação) é uma "normalidade" de reprodução do capital (que é uma realidade de exploração sustentada por essa ordem). Em outras palavras, está implícita uma neutralidade da sociedade enquanto capitalista, que seria restaurada dinamicamente mediante a "solução" a cada problema. Este é outro plano de cumplicidade estrutural traduzido, primeiro na rotina de Penélope e, segundo, na recomposição de uma "normalidade" cujas rupturas surgem das contradições subjacentes, que ajuda a ocultar. Assinalei que, ao contrário das ilusões dos tecnocratas, o ser humano atende a problemas que se lhe impõem como tais dentro de um campo de atenção, de disponibilidade de tempo, e de capacidade de processamento da informação sumamente limitado. A expansão e diferenciação das instituições estatais, bem como a crescente complexidade do direito, são tentativas de atribuir esses, e outros recursos escassos, à grande quantidade de problemas colocados pelo desenvolvimento contraditório da sociedade. Assim como o indivíduo "fatora" os problemas, atendendo-os "um de cada vez", isolando-os mediante a cláusula do "ceteris paribus", de dimensões alheias ao esquema causal rudimentar que utiliza26, o crescimento e a diferenciação das instituições estatais são o "ceteris paribus" coletivo dos problemas e das crises. Do mesmo modo, a criação de instâncias de coordenação e comando são tentativas sempre sub-ótimas de superação de algumas das conseqüências negativas da dispersão institucional resultante. Este fracionamento é afim ao fracionamento da sociedade. Neste 26 Estas são outras razões levantadas pelos autores já citados na sua demonstração de que a tomada de decisões corresponde a uma racionalidade limitada e não a ótimos. 21 sentido, o mapa - a distribuição e densidade - das instituições estatais em cada caso histórico é o mapa das suturas das áreas que as contradições subjacentes romperam em sua superfície. Estas instituições nem estão aí nem atuam, em função de um grande desígnio de racionalidade, que conheceria melhor que os capitalistas as condições de sua reprodução. A arquitetura institucional do Estado e de suas decisões (e não-decisões), é, por um lado, expressão de sua cumplicidade estrutural e, por outro lado, o resultado contraditório e substantivamente irracional da modalidade também contraditória e substantivamente irracional, de existência e reprodução de sua sociedade. As limitações de atenção e de processamento da informação determinam que, para que as instituições do Estado se dêem conta de um problema, alguém deve colocá-lo "de fora", ou que, de "dentro" das últimas, alguém o defina como tal. Está muito distante das consciências dos sujeitos sociais e, mais ainda, da agenda de problemas das instituições estatais, abranger "tudo o que interessa". A capacidade de colocar um problema ou de definir uma situação como crise, significa poder. Mais precisamente, supõe contar com recursos consideráveis de dominação. O trabalhador pode exercer coletivamente o seu poder, por exemplo, para impor severas sanções mediante uma greve - embora isto possa mobilizar recursos reativos - que canalizem em resposta sanções ainda mais severas. É certo que, sobre a base do diferenciador de acesso aos recursos, implícito em uma classe dominante, os capitalistas costumam deter uma capacidade ainda maior de colocar os "seus" problemas, com menor probabilidade de ocasionar sanções reativas. Da mesma maneira, o controle dos recursos e canais de informação, bem como a "autoridade" que resulta de um discurso congruente com a normalidade da sociedade capitalista, permitem levantar privilegiadamente questões e definições das crises. Igualmente, apenas uma visão grosseiramente instrumentalista do Estado poderia surpreender-se de que, desde essas mesmas instituições, possa surgir a iniciativa da sua colocação. Mas, quais são os problemas que entram na agenda da atenção das instituições estatais, em que sentido são definidos como tais, quem são as partes "autorizadas" para o seu debate, e quais as modalidades de sua resolução? Isto é o resultado de lutas em que se recolocam contínua e completamente a importância das bases de dominaçãoque se encontram em jogo. São também resultado silencioso de outras lutas, suprimidas antes de chegar à consciência dos sujeitos pela capacidade da dominação social e pela complexidade estrutural do Estado. Por isso, o Estado, como toda relação social, é uma relação de forças. É por isso também, seu direito e suas instituições, apesar da aparência de neutralidade que recompõem continuamente, estão entrecruzados pelas lutas e contradições da sociedade. Se o Estado - ademais do que assinalei nas seções anteriores - inclui estes planos de cumplicidade estrutural, e se as crises e problemas que chegam à agenda de suas instituições foram filtradas (não apenas em números, mas também em caracterização), estes problemas tenderão a aparecer sob a 22 feição de seus efeitos e causas mais imediatas. Por exemplo, esta ou aquela associação de classe reclama o seu subsidio, sem o qual suas empresas serão deficitárias, há uma greve fabril, uma localidade exige que uma estrada futura seja projetada nas proximidades. O problema aparece levantado pelo lado de seus efeitos imediatos, e as causas que o provocam costumam ser entendidas nas suas conexões mais próximas27. Também os conflitos, com suas derrotas e trunfos das classes dominantes, costumam tecer-se ao redor de um raio limitado e distorcinador de suas causas e conseqüências. Quase tudo ocorre na superfície da sociedade, a partir da qual -já sabemos - é difícil chegar às causas subjacentes que, com o ruído de suas manifestações como "crises", impõem-se à capacidade de atenção dos sujeitos, e não aparecem no que são verdadeiramente os modos contraditórios de reprodução da sociedade capitalista. As medidas adotadas podem ou não ser "correias"; podem atenuar ou alimentar o conflito especifico que se quis resolver ou prevenir; podem ou não ser implementadas, e serem mais ou menos ostensivamente incongruentes com as que foram adotadas antes, ou com as que adotem outra instituição estatal. O fracionamento do sistema institucional do Estado e a racionalidade limitada de seus agentes supõem que estas disjuntivas costumam ocorrer simultaneamente, também, na agregação do que o conjunto dessas instituições faça ou deixe de fazer. A cumplicidade estrutural do Estado e a base desigual dos recursos com que cada um consegue fazer- se escutado pelas instituições estatais supõem que muitas decisões estejam orientadas pela intenção de favorecer esta ou aquela fração ou grupo da burguesia. Porém, como é evidente, esta é uma ponta do iceberg o determinante é que o tratamento habitual dos problemas (já tratados, por outro lado) em seu contorno mais superficial e imediato, implica em ratificar a textura da sociedade capitalista Isto, além da tarefa de Penélope, é o que permite entender porque em meio à cacofonia de incongruências, erros e acertos sempre parciais e precários, as instituições estatais costumam contribuir à garantia e organização da reprodução da sociedade enquanto capitalista28. A resposta à pergunta inicial e, pois, que o Estado objetivado nas instituições apóia e organiza a 27 Segundo Margareth Wirth”Cotribution " op cit p 124, ' as deficiências não aparecem como deficiências sociais' mas particulares não é fácil ver a causa - longínqua ou imediata - desta crise (A) construção linear do encadeamento de causas e efeitos não permite entender a estrutura contraditória das causas da crise" .Estas observações são confirmadas pelos estudos empíricos das organizações visa as citações anteriores, às quais devemos acrescentar que tanto a identificação das causas dos "problemas", como a atribuição das possíveis conseqüências das decisões destinadas a solucioná-los costumam ser "simplistas" e baseadas em informação 'que é de difícil obtenção e contabilidade duvidosa" (Richard Cyert e James March A behavioral op cit págs 80-81) Isto reforça a tendência a funcionar num esquema causal rudimentar' inclusive no que respeita a limitar-se a conexões causais muito próximas ao problema detectado .Para organizações que não costumam escolher' os seus problemas mas saltar de crise em crise (ibid pág 102, numa coincidência significativa com a colocação de Margareth Wirth, 'Contribution " op CU) o que supõe que habitualmente apenas se consegue uma aproximação à superfície dessas crises. 28 Nada mais errado, portanto que o conceito do Estado como entidade monolítica que impede o reconhecimento por um lado de que suas instituições costumam interiorizar o peso relativo das classes subordinadas mas que por outro lado isto não apenas não obstaculiza mas e condição de possibilidade para o mosaico de instituições decisões e não decisões em que se concretiza a cumplicidade estrutural do Estado. 23 reprodução da sociedade capitalista, através do caos aparente de decisões e abstrações, as quais, enquadradas por uma racionalidade restrita, pressupõem tacitamente, e ratificam praticamente, a textura profunda dessa sociedade. Nenhuma magia unge os seus agentes com uma nacionalidade superior. Simplesmente porque o iceberg participa da realidade profunda do mar, tende a navegar - quase em linha reta e senír o mapa nem sextante - na direção de suas correntes. Podemos agora conectar o que dissemos recém com o já assinalado acerca da racionalidade não- capitalista, que parece orientar as intervenções estatais. É claro que a pretensão de ter uma racionalidade "superior" é falsa. Mas continua sendo certo que, embora a racionalidade do funcionário seja tão limitada como a do capitalista, a sua motivação não é imediatamente capitalista, já que não se orienta continuamente ao lucro per se. Por outro lado, as decisões em que se renova o voto tácito de fidelidade à sociedade capitalista costumam ocorrer em meio a choques de interesses "particulares". Estes são os termos concretos em que se colocam, e resolvem, as condições de reprodução da sociedade. Frente a eles o funcionamento estatal costuma expressar em sua decisão um interesse "mais geral". Por certo, este interesse não e um interesse verdadeiramente geral. Mas, a verossimílitude dessa crença (e da que dela decorre, de um Estado acima da sociedade à qual arbitra imparcial e soberanamente) tem amarração real na maior generalidade da motivação, que ademais não é imediatamente capitalista, através da qual o funcionário processa o fracionamento da sociedade. Por outro lado, num plano ainda mais abstrato, a imagem do funcionário como agente do interesse geral é ratificada pelo nível tácito mais básico que discutimos há pouco apesar de sua racionalidade limitada, a agregação das decisões e abstenções estatais costuma realmente contribuir ao interesse geral da reprodução da sociedade capitalista. As instituições estatais completam, assim, sua imposição face à sociedade. Não apenas são os fetiches da cisão aparente (mas fundamento de características reais da sociedade) entre Estado e sociedade, ademais, apesar da racionalidade restrita, aparecem por cima da sociedade. Dela são, agora sim, a organização publica e coercitivamente suportada de uma superfície que encobre, parcialmente costurada pelas instituições estatais, as rupturas que a constituem no que é. É assim que o Estado, coisifícado em suas instituições, torna-se máscara da sociedade, aparência de força externa movida por uma racionalidade superior, a qual se mostra (e se acredita) encarnação de uma ordem justa, a que serve como árbitro neutro. 7 Contradição O Estado é inerentemente contraditório. O é porque é primordialmente parte analítica de uma relação contraditória. Mas isto não é suficiente. O Estado ou o político tem sua própria especificidade, que permite distinguí-lo como aspecto constitutivo da sociedade global, porque devolve àquela relação uma
Compartilhar