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58 Unidade II Unidade II 5 ESTADO, HISTÓRIA E ELEMENTOS ESSENCIAIS Imersos nas formas-Estado, compreenderemos facilmente que as sociedades indígenas recorram a poderosos mecanismos para inibir o pleno desenvolvimento delas – que já estão lá e atuam, presentes na aparente ausência. Da mesma forma e inversamente, as sociedades indígenas nos concederão as grades de inteligibilidade para que compreendamos a atuação das forças antiestado entre nós, inibidas e, contudo, presentes na aparente ausência. Tudo estará em tudo e reciprocamente [...]: Estado entre os indígenas; antiestado entre nós; Clastres nos dilemas da antropologia contemporânea e às avessas (BARBOSA, 2004, p. 533-534). Aproveitamos o diapasão dessa citação e seguimos pelos olhares disciplinares que miram os principais traços e as bases do Estado; traços radicais, como aqueles trazidos por antropólogos (Maurice Godelier e Pierre Clastres) e geógrafos (como Paul Claval), e sofisticados, como o da sociologia de Pierre Bourdieu. Esses homens abrem caminho para os cientistas políticos (politólogos) e para economistas (como Robert Heilbroner, da economia política). É preciso que se diga, alinhando-nos com Atilio A. Boron (1994), que houve expansões e retrações históricas das estruturas estatais, o que é corroborado pelas afirmações que destacamos de Paul Claval. Atilio A. Boron acusa certa negação de sua realidade, principalmente no caso dos britânicos, advertindo que “a realidade social existe independentemente de nossas capacidades intelectuais para apreendê-la” (1994, p. 244). O autor menciona o positivismo reinante (em David Easton, por exemplo), que considera imprestáveis poder e Estado ao desenvolvimento da pesquisa política. Claro, visto que não são tangíveis, a não ser como expressão de relações: são tipos, emergem com as forças sociais. Boron (1994) fala de formações estatais tardias (Alemanha e Itália) em contraposição às anglo-saxãs (Estados Unidos da América e Reino Unido), nas quais a iniciativa burguesa inibiu o aparato estatal... O Estado, que desde os anos 1930 foi um meio ideal de lidar com a crise, foi convertido ideologicamente no “bode expiatório” e concebido como o fator que a originou. Antes, nos fatídicos anos 1930, isso fazia parte da solução. Agora se tornou – nas versões mais ululantes do neoliberalismo – a totalidade do problema (BORON, 1994, p. 187). 59 CIÊNCIA POLÍTICA Quanto à América Latina, sistema tributário pauperizador e não devolutivo, Boron acentua: Números sobre a tendência dos salários reais falam por si sobre o alcance do processo de pauperização sofrido por vastos setores das populares classes latino-americanas. É evidente que esta regressão salarial deve ter um impacto profundo, tanto na economia como na política de nossos países. Mas o que gostaríamos de destacar com esses dados é a magnitude da lacuna que separa as necessidades humanas básicas – de crescentes contingentes da população – da capacidade efetiva de intervenção do Estado suscetível de produzir políticas compensatórias ou corretivas dos desequilíbrios gerados pelo capitalismo selvagem. Isso pode ser expresso graficamente com a metáfora das tesouras: as demandas geradas na sociedade civil, as insatisfações, as privações e os sofrimentos provocados tanto pela crise como pelos testes neoliberais postos em prática na região deram origem a uma verdadeira barragem de reivindicações, facilitada, por outro lado, pelo clima permissivo das sociedades que reiniciam sua longa marcha rumo à democracia. Nestas condições, no entanto, a mesma crise que potencializa as renovadas demandas sociais reduz significativamente as capacidades do Estado para produzir as políticas necessárias para resolver, ou pelo menos aliviar, as dificuldades aludidas. O resultado é um acúmulo alarmante de tensões que poderiam levar a um quadro de ingovernabilidade generalizada do regime democrático, sua deslegitimação acelerada e sua provável desestabilização, com os riscos de uma inesperada reintegração de governos autoritários de diferentes tipos (BORON, 1994, p. 195). Atilio A. Boron (1994, p. 200) faz considerações sobre as dívidas externas insustentáveis “que a América Latina não pode pagar”, promovendo transferências de gigantescas quantias, e acrescenta a mais importante das constatações de seu livro, que “estes dados [o levantamento exaustivo apresentado] demonstram, apesar da gritaria neoliberal, a persistente importância do Estado e do gasto social nos capitalismos metropolitanos”. Numa análise mais pormenorizada, pode-se comprovar que nem o presidente Ronald Reagan nem a primeira-ministra Margaret Thatcher cumpriram suas promessas de efetivar cortes drásticos nos orçamentos fiscais. Se algo foi provado com a sua gestão é que mesmo o discurso mais neoliberal não conseguiu ressuscitar os mortos diligentemente enterrados por Keynes há mais de meio século. Os ideólogos e propagandistas das virtudes do mercado podem falar, mas suas palavras desaparecem no ar antes da verdade efetiva das coisas. Se o Estado continua a pesar na economia, é porque a acumulação capitalista foi “estatificada” e exige cada vez mais o apoio dos poderes públicos para sobreviver. A história do déficit fenomenal do governo dos EUA é demasiado conhecida para se repetir mais uma vez: em 1985, era equivalente a 5,3% do 60 Unidade II PIB, enquanto a do Reino Unido, por outro lado, era de 3,1%. Como os déficits aberrantemente keynesianos se reconciliam com um discurso dogmaticamente neoliberal? (BORON, 1994, p. 201). Para nossa “perplexidade” diante das declarações sobre a agonia e morte do Estado, pesquisadores sustentam o seguinte: “como resultado do declínio das políticas econômicas neoliberais e da crise que atravessam a maioria das economias latino-americanas, o papel econômico do Estado se verá fortalecido” (BORON, 1994, p. 203). Claudia Costin define de modo bem direto Estado, Estado nacional e suas partes principais. Em sua versão moderna, o Estado contém um conjunto de organismos de decisão (Parlamento e governo) e de execução (Administração Pública). Nessa concepção, a organização estatal possui uma dimensão legiferante, associada à produção de normas que regerão a vida social, e uma dimensão administrativa, associada ao cotidiano da gestão das instituições e das relações políticas. Assim, o Estado é mais amplo que o governo ou que a Administração Pública, como veremos um pouco mais adiante. Numa outra classificação, o Estado é integrado por três poderes, a que correspondem três funções básicas: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. O primeiro estabelece as leis a serem seguidas por uma sociedade. O Executivo, por sua vez, tem por responsabilidade impor e fiscalizar a aplicação dessas leis, além de regulamentar, nas bases por elas previstas, a legislação aprovada pelo Legislativo, implementar políticas públicas, coletar impostos para o desempenho das funções do Estado e de seus componentes. O Judiciário, por fim, detém a capacidade de julgar, na maioria dos casos, a correta aplicação da lei e das penas correspondentes a seu desrespeito. Investido desses três poderes, o Estado possui um caráter ambíguo: designa o comando da comunidade, como autoridade soberana que se exerce sobre um povo e um território determinados e, ao mesmo tempo, representa, por meio de uma pessoa que o encarna, a Nação. Essa pessoa é o chefe de Estado, correspondente, num país como o nosso, ao presidente, e, num regime monarquista como o inglês, ao rei ou à rainha. [...] Bresser-Pereira (2004, p. 4) estabelece uma distinção entre Estado-nação e Estado. Para ele, enquanto o Estado-nação é o “ente político soberano no concerto das demais nações, o Estado é a organização que, dentro desse país”, tem o poder de legislar e tributar a sociedade. O autor associa ao Estado tanto uma dimensão de organização com “poder extroverso sobre a sociedade que lhe dá origem e legitimidade” quanto o sistema constitucional-legal,“dotado de coercibilidade sobre todos os membros do Estado nacional” (COSTIN, 2010, p. 8-15). 61 CIÊNCIA POLÍTICA O Estado possui uma administração pública, fixada pelo Decreto-lei nº 200 de 1967: Uma definição operacional de Administração Pública decorre do que vimos anteriormente sobre o Estado. Inclui o conjunto de órgãos, funcionários e procedimentos utilizados pelos três poderes que integram o Estado, para realizar suas funções econômicas e os papéis que a sociedade lhe atribuiu no momento histórico em consideração. Assim, temos dois qualificativos para associar a esta afirmação: a Administração Pública não existe só no Executivo e ela muda constantemente, pois as expectativas da sociedade em relação a ela e às disputas que se fazem na esfera política para fazer valer propostas diferentes de atuação estatal também são cambiantes (COSTIN, 2010, p. 27). Claudia Costin cita Bresser-Pereira para tipificar a Administração Pública em três formas históricas: Segundo Bresser-Pereira (1998, p. 20-22), há três formas de administrar o Estado: a administração patrimonialista, a administração pública burocrática e a administração pública gerencial, que outros autores chamam de pós-burocrática. O autor tira o qualificativo de pública da administração patrimonialista, pois esta não visaria o interesse público (2010, p. 31). A autora também apresenta em seu livro os modos básicos de alimentação do aparelho estatal, via tributos, e de gastos públicos, via orçamento. Depois de definir Estado e de contextualizá-lo juridicamente, vamos situá-lo no tempo com o excerto a seguir. Evolução histórica do Estado Como vimos, o Estado não existiu sempre. Surgiu num determinado momento histórico em razão de uma série de fatores sociais, políticos, econômicos etc., com o objetivo de organizar a sociedade sob uma nova estrutura institucional de poder. Para analisarmos as formas históricas assumidas pelo Estado, retomamos a tipologia utilizada por Norberto Bobbio em seu Estado, Governo e Sociedade, que inclui esta sequência: Estado feudal, Estado estamental, Estado absoluto, Estado representativo. O Estado feudal pode parecer a muitos uma contradição em termos, mas trata-se, evidentemente, de uma forma de Estado em que há uma fragmentação do poder em múltiplos agregados sociais e, por outro lado, a concentração de diferentes funções diretivas nas mãos das mesmas pessoas. Ao poder “central” do rei caberia apenas a organização do Exército e a estruturação da defesa do território, ao passo que o protagonismo político pertenceu aos senhores feudais. O Estado estamental – outra categoria nessa tipologia baseada na evolução histórica – caracteriza-se pela constituição de órgãos colegiados que reúnem indivíduos possuidores 62 Unidade II da mesma condição social, os estamentos, que detêm os mesmos direitos e privilégios diante do poder soberano. Essa forma de Estado difere do Estado feudal em virtude da transformação das relações pessoais entre os indivíduos, além da própria relação entre as instituições, pois as assembleias de estamento surgem como contrapoder ao rei e aos seus funcionários. Posteriormente, o absolutismo tenderá a acabar com essa contraposição de poderes a partir da ênfase na ideia de poder soberano e absoluto. O Estado absoluto surge com a concentração e centralização de poderes num determinado território, tendo como referencial a figura do monarca. Com o fim da fragmentação do poder político, pode-se pensar na constituição dos Estados-nação, com o exercício da soberania sobre um território e suas gentes. A soberania se expressa agora no poder de ditar leis sobre uma coletividade, no poder do uso exclusivo da força para proteção contra ameaças externas e imposição da ordem, e no poder de coletar impostos que é assegurado ao rei e elimina poderes autônomos estranhos a ele. Em outros termos, o poder de cidades, sociedades comerciais ou corporações só pode existir mediante autorização do poder central ao qual se subordinam, ganhando relevo termos como “centralização”, “soberania” e “contrato social”. O Estado representativo aparece na Europa na sequência da Revolução Gloriosa de 1688 e da Revolução Francesa de 1789 e, nos Estados Unidos, após a consolidação da independência no século XVIII. O conceito de representação associa-se à ideia de que um corpo escolhido por cidadãos age em nome destes, e tal corpo é escolhido por meio de um procedimento eleitoral racionalmente estabelecido. Trata-se, antes de tudo, do Parlamento, em que um conjunto de representantes é eleito para decidir que leis deverão governar aquela sociedade e, mais especificamente, que políticas públicas serão implementadas. Inclui também o Poder Executivo, em que o presidente ou primeiro-ministro age representando a coletividade que lhe outorgou o poder para tanto, por um período especificado, mas equilibrando seu poder com o do corpo Legislativo. No regime representativo, o poder conferido aos representantes pode ser retirado, seja por uma não renovação do mandato no momento das eleições, seja por decisão dos demais representantes, caso alguma lei que rege a conduta dos parlamentares ou do chefe do Executivo tenha sido burlada, justificando, assim, a cassação do mandato, no caso dos membros do Poder Legislativo, ou o impeachment, no caso do presidente. Eleições parlamentares que mostrem um novo desejo dos eleitores podem levar, no sistema parlamentarista, à nova escolha de primeiro-ministro. A democracia representativa é realizada através de uma representação concentrada que se divide nos poderes Executivo e Legislativo. É importante salientar a análise de Pitkin sobre o tema, que realiza uma reflexão histórica e semântica do conceito de representação. Segundo a autora, “representação” tem sua origem na palavra latina representare, que significa “tornar presente ou manifesto; ou apresentar novamente” (PITKIN, 2006, p. 17). Por outro lado, em virtude da complexidade da representação, 63 CIÊNCIA POLÍTICA surgem desafios sobre como tornar presente o que não está efetivamente presente. Desse modo, a ausência do representado é atenuada por meio de mecanismos em que a atuação do representante seja publicizada e, de certa forma, passível de controle, o que não quer dizer que esse controle seja absoluto e que não haja uma margem de autonomia nas ações do representante. Por essa razão, segundo Manin (1995), é possível identificar três sentidos no âmbito da democracia representativa: • Significa que as decisões devam ser realizadas por representantes cuja legitimidade advém da lei ou do voto, pois, embora o povo não governe, “ele não está confinado ao papel de designar e autorizar os que governam. Como o governo representativo se fundamenta em eleições repetidas, o povo tem condições de exercer uma certa influência sobre as decisões do governo” (p. 8). • Afasta a ideia de poder absoluto, na medida em que o representante deve agir nos limites impostos pelos representados, desfrutando de relativa margem de autonomia. Por outro lado, isso não quer dizer que o representante deva fazer o que o representado determina. O que possibilita essa relação conflituosa é a liberdade de opinião, que atenua a não vinculação do governante às opiniões do governado, já que a “liberdade de opinião surge, assim, como contrapartida à ausência do direito de instrução” (p. 12). • Significa uma alternativa à complexidade moderna, na qual não há mais espaços para modelos democrático-participativos diretos, a exemplo da polis grega. Assim, “a vontade popular se torna um componente reconhecido do ambiente que cerca uma decisão” (p. 12), tendo em vista que a seleção de representantes ocorre por meio de um procedimento eleitoral. Como avanço histórico, o Estado representativo introduziu a ideia de que o indivíduo precede o Estado. Ao contrário do Estado estamental, em que a representação se faz por categorias ou corporações, aqui indivíduos singulares (inicialmente, esclareceBobbio, só os proprietários) detêm direitos naturais e por lei que podem, inclusive, fazer valer contra o Estado. Esse reconhecimento dos direitos do homem e do cidadão representou uma revolução no relacionamento entre governantes e governados. Para Bobbio, a evolução da democracia representativa caminhou lado a lado com o alargamento dos direitos políticos até a introdução do sufrágio universal. Mas tal complexidade trouxe como consequência a necessidade de se formarem partidos e associações, [então], ao organizarem as eleições, levou à perda da noção originária de representação, a qual já não seria mais dos indivíduos singulares, e sim das agremiações que acabam recebendo “uma delegação em branco dos eleitores”. Mesmo com esses problemas, o Estado representativo é hoje ao menos a referência, mesmo em constituições de países com modelos marcadamente autoritários. Procura-se 64 Unidade II manter, no texto do ordenamento jurídico da maior parte dos países, ao menos a referência ao Estado representativo. A partir de outros pressupostos, Bresser-Pereira acrescenta à tipologia o Estado social, marca de uma evolução que, na sequência das manifestações socialistas do fim do século XIX e, mais recentemente, após a crise de 1929 e suas graves implicações na qualidade de vida das populações europeia e americana, tornou o cidadão portador de direitos sociais e o aparelho estatal uma fonte de atendimento das necessidades a ele associadas. Mais precisamente, em decorrência da mudança nas relações sociais causada, em especial, pela industrialização, buscou-se um novo tipo de Estado, que reconhecesse as desigualdades sociais. A falta de condições salubres de trabalho, a ausência de direitos trabalhistas e a exploração foram os problemas que o direito social procurou resolver. Exigiu-se, para tal, uma atuação positiva por parte do Estado no âmbito das relações privadas. Predomina, no Estado social, a preocupação de proteger o homem do próprio homem e, para tal, o Estado deve ser o ator redutor de diferenças sociais, praticando uma verdadeira justiça distributiva. Na concepção de Bresser-Pereira, o Estado social apresentaria três versões: o Estado do bem-estar, o Estado desenvolvimentista e o Estado comunista. As propostas estruturam sistemas bastante distintos entre si, mas com uma preocupação comum: dotar o Estado de competências para promover maior igualdade econômica entre cidadãos que, para a etapa mais recente do Estado representativo, já contariam com igualdade de direitos civis e políticos. Isso envolve um fortalecimento das capacidades de formulação e implementação de políticas sociais e, ao mesmo tempo, uma ênfase na promoção do desenvolvimento e no apoio à indústria local. Além disso, estabelece-se um diálogo firme e constante com sindicatos e associações de trabalhadores. A crise do Estado no início dos anos 1980 e a posterior derrocada da União Soviética e das economias dos regimes do Leste Europeu trouxeram um profundo questionamento do Estado social. Criticava-se sua dependência de uma carga tributária elevada, a inibir a produtividade e a saúde financeira das mesmas empresas locais que se pretendia impulsionar, e sua desvinculação com uma lógica de trabalho como fator de crescimento humano. Acreditava-se que auxílios pecuniários dissociados de esforço pessoal levariam à dependência e à acomodação do ser humano. Outros criticam a insuficiência do Estado social em resolver os problemas a que se propõe, criando atenuantes, como salário-desemprego, em vez de combater o desemprego, ajudas em espécie ou dinheiro em vez de criar reais oportunidades. Mas Peter Lindert (2002, p. 2) demonstra que não há evidências estatísticas de que os Estados com modelos sólidos de bem-estar social financiados por uma carga tributária relativamente elevada tenham experimentado reduções no crescimento do seu PIB e da produtividade. Isso se deve, segundo ele, entre outros fatores, à constituição de uma competência para desenhar desincentivos à evasão do trabalho por parte da juventude, à 65 CIÊNCIA POLÍTICA seleção de um mix de impostos mais favorável ao crescimento e ao efeito positivo do gasto social sobre o crescimento. Não apenas a educação aumenta o PIB per capita, mas outros gastos sociais também o fazem. Em seu modelo predominante hoje em dia, o Estado pode ser diferenciado, no entanto, pelas diferentes tarefas e papéis que assume, o que, por sua vez, resulta também de uma evolução histórica. Há pouco consenso nessa matéria. Mas, nos tempos em que a expressão Estado começou a ser utilizada, com Maquiavel, o papel do Estado era percebido, sobretudo, como o de prover segurança à população para conduzir suas atividades diante de agressões externas ou crimes internos, cabendo às entidades religiosas registrar os nascimentos e óbitos, acudir os necessitados e, para quem quisesse integrar seus quadros, a educação necessária para tanto. Outros recebiam educação de preceptores contratados. O controle de contratos privados surge inicialmente mais relacionado à cobrança de impostos do que à sua garantia. Além disso, a função judiciária já era exercida antes desse período. O soberano, mesmo antes de se pensar em separação de poderes, atuava muitas vezes como árbitro em desavenças entre seus súditos, no perdão de dívidas entre particulares ou para com o Tesouro Real, e estabelecia sentenças para crimes. Progressivamente as instituições religiosas e, em alguns casos, as próprias comunidades (como no caso americano) foram se responsabilizando pela oferta de educação a um número maior de crianças e jovens, independentemente de vocações religiosas. O antigo reino da Prússia foi o primeiro país a introduzir, inspirado por Martinho Lutero, a educação pública gratuita e compulsória, de oito anos de duração, para todas as crianças, ainda no século XVIII. A essas alturas, as primeiras escolas públicas americanas já existiam e conviviam com escolas comunitárias e privadas. Na França, onde já existia um sem-número de escolas religiosas, o sistema público foi introduzido nos anos 1880, por Jules Ferry, junto com um processo vigoroso de laicização do ensino (WEREBE, 2004). No Brasil, o governo provisório de Deodoro da Fonseca institui, em 1890, o “ensino leigo e livre, em todos os níveis e gratuito no primário” (Decreto nº 501/1890). Na ocasião, apenas 12% das crianças em idade escolar tinham acesso à educação. Vamos demorar mais 106 anos para universalizar o ensino fundamental. A saúde surge como preocupação do Poder Público bem antes disso. Os romanos já apresentavam obras de saneamento, afastando os dejetos humanos de áreas de concentração de pessoas. Posteriormente, epidemias mereceram atenção de governos, como foi o caso da peste negra, que levou à infrutífera queima de cadáveres, seguida pela mais eficiente queima de bairros inteiros. Da mesma forma, o Estado passou a estabelecer, especialmente a partir dos séculos XVIII e XIX, condições para o estabelecimento de cemitérios, venda de alimentos e destinação do lixo num introito ao que se chama hoje de Vigilância Sanitária. Nesse sentido, fez construir também esgotos (como o famoso de Londres, cuja obra se 66 Unidade II fez na sequência da epidemia de cólera de 1854) e aterros sanitários. Pouco a pouco, a partir do século XIX, o Estado começou a vacinar para prevenir doenças, ao mesmo tempo que em muitos países se estabelecia um sistema de vigilância epidemiológica. Essas novas atribuições demandaram a constituição de uma rede de novos equipamentos públicos, em adição a hospitais, inicialmente operados por ordens religiosas a partir de contribuições filantrópicas. Aqui no Brasil tivemos as Santas Casas de Misericórdia, a primeira datando de 1540, de criação apoiada pelo imperador, mas efetivamente não públicas. O mesmo movimento seguiu o Québec um século mais tarde, com a criação do Hotel-Dieu du Précieux-Sang, em 1639, e o Hotel-Dieu de Montreal, em 1640. No século XX, o Estadopassou a possuir hospitais, ambulatórios e centros de higiene posteriormente chamados de centros de saúde. Outra atividade assumida pelo Estado desde os seus primórdios, embora não com exclusividade, foi a de construção de estradas. No auge do Império Romano, uma vasta rede de estradas interligava rotas comerciais e permitia o deslocamento de tropas na Europa, no norte da África, na Anatólia, na Índia e na China. O Império Chinês fora responsável pela construção do segmento que interligava a China à Anatólia e à Índia, conhecida como “rota da seda”. Essa porção tinha uma existência de aproximadamente 1.400 anos quando das viagens de Marco Polo (1270 a 1290 da era comum), certamente sua fase mais importante. As companhias comerciais, com seus exércitos privados, as guildas, os senhores feudais, a Igreja (inclusive na coordenação das cruzadas), as empresas e mesmo os proprietários individuais fizeram construir estradas para facilitar o comércio, apoiar movimentação de tropas ou integrar partes distintas de uma mesma propriedade. Mas, essa função foi percebida durante a maior parte do tempo como uma atribuição do Poder Público, mais modernamente concedida a empresas de construção civil, mediante contratos de concessão ou, mais recentemente, parcerias público-privadas (outra modalidade de concessão). As primeiras estradas brasileiras foram construídas no século XIX. Nos anos 1920 temos nossas primeiras rodovias. A primeira rodovia pavimentada foi inaugurada em 1928, a Rio-Petrópolis. Juntam-se às estradas a construção de outras obras de infraestrutura para desenvolvimento, como portos, ferrovias (que curiosamente surgem no Brasil como empreendimento privado, de propriedade do Barão de Mauá), sistema de ruamento urbano, usinas de geração, distribuição e transmissão de energia elétrica e, mais recentemente, aeroportos e empresas de telecomunicações. Mas as atividades do Estado na promoção do desenvolvimento não se restringem a obras de infraestrutura. Incluem a formulação de uma política econômica adequada à atração de investimentos e promoção do comércio, um sistema de arbitragem de disputas comerciais estruturado e confiável, um regime de patentes que favoreça a inovação e dê segurança a quem nela desejar investir. Além disso, pode conter uma política industrial que favoreça e financie empreendimentos nacionais. 67 CIÊNCIA POLÍTICA Cada vez mais o Estado tem sido chamado, nos países em desenvolvimento, a assumir um importante papel no incentivo à competitividade do que neles é produzido. Esse papel, no entanto, deve ser equilibrado com duas outras funções do Poder Público: a redistributiva e a estabilizadora. Em situações de pobreza e desigualdades sociais, políticas compensatórias podem completar os investimentos públicos em saúde e educação. Isso, por outro lado, gera um impacto, em termos de carga tributária, que encarece os produtos nacionais e rouba-lhes a competitividade e a possibilidade de criação de empregos – o que agrava a situação social. Da mesma maneira, a política industrial pode, dependendo de seu desenho, levar a desequilíbrios orçamentários, que, por sua vez, acarretam inflação, endividamento ou ônus a políticas sociais. Recentemente, o Estado vem se retirando da produção direta de bens e serviços para o mercado. Isso se deve a uma combinação de fatores: o surgimento de um conjunto de empresas em condições de assumir a direção de empresas públicas que anteriormente ofereciam esses bens, a crise fiscal que resultou no esgotamento da capacidade de investimento do setor público e uma visão ideológica de defesa da redução do tamanho do Estado (o que se convencionou chamar de neoliberalismo). Mas é interessante observar que, se o Estado se retirou da atividade produtiva em diferentes setores, ele retornou com outras atribuições, geralmente associadas à regulação de serviços públicos concedidos, em mercados que tendem à formação de monopólios. No Brasil, em energia elétrica, área em que muitas empresas de distribuição foram privatizadas, foi criada a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), com funcionários de carreira e independência para atuar no segmento. Da mesma forma, em telecomunicações, a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) se propõe a regular a atuação das empresas que receberam a concessão de serviços de telecomunicações. Primeiramente, tais agências se situam na interface entre Estado e governo e não se submetem à hierarquia funcional, orçamentária e decisória da Administração Pública clássica. Em segundo lugar, o que reforça essa liberdade de decisão das agências é o próprio arcabouço jurídico-normativo presente nas diversas legislações de cada uma delas. Em linhas gerais, algumas características presentes nas agências são centrais para o seu desenvolvimento institucional autônomo, tais como: a) mandatos dos diretores não coincidentes com os mandatos do chefe do poder executivo que os nomeou; b) garantias em relação à demissibilidade ad nutum; c) autonomia funcional e financeira que permita se organizar livremente; d) impossibilidade de reforma de suas decisões pela Administração Pública direta. Em terceiro lugar, as agências reguladoras se distinguem também do ponto de vista do conteúdo da decisão. No contexto regulatório, opera-se uma desconcentração das competências e atribuições, de modo que à Administração Pública caiba proferir decisões políticas, ao passo que às agências caiba proferir as decisões técnicas. 68 Unidade II O conjunto das atividades públicas desenvolvidas hoje nos países com Estado estruturado contempla ainda a fiscalização, a diplomacia, a defesa e o policiamento – atividades que, junto com a regulação, são normalmente definidas como exclusivas de Estado. A segurança dos cidadãos diante de agressões externas ou crimes internos, a representação da nação e de seus interesses no exterior, a arrecadação de impostos vitais para a implantação de políticas públicas e a verificação da conduta de empresas e particulares quanto a leis e políticas públicas que protegem o ambiente, a saúde da população e dos rebanhos ou a correta aplicação dos recursos da seguridade social são algumas dessas atividades que o Estado precisa desempenhar para manter uma sociedade organizada e protegida em seus direitos (inclusive os chamados direitos republicanos). Fonte: Costin (2010, p. 8-15). Saiba mais Para se aprofundar no assunto, leia a obra de Claudia Costin: COSTIN, C. Administração pública. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. 6 TEORIA GERAL DO ESTADO Todo esse processo – constituição de um campo; autonomização desse campo em relação a outras necessidades; constituição de uma necessidade específica em relação à necessidade econômica e doméstica; constituição de uma reprodução específica de tipo burocrática, específica em relação à reprodução doméstica, familiar; constituição de uma necessidade específica em relação à necessidade religiosa – é inseparável de um processo de concentração e de constituição de uma nova forma de recursos que são do universal, em todo caso, de um grau de universalização superior àqueles que existiam antes. Passa-se do pequeno mercado local ao mercado nacional, seja no nível econômico, seja no simbólico. A gênese do Estado é, no fundo, inseparável da constituição de um monopólio do universal, sendo a cultura o exemplo por excelência (BOURDIEU, 2012). Tradicionalmente se distinguem dos processos de formação do Estado: um exógeno contra a empresa e o outro endógeno. O processo exógeno remete a fenômenos de conquista de uma empresa por outra e à implantação de uma instituição dominante sobre as populações conquistadas por parte da população conquistadora. O processo endógeno remete à constituição progressiva de formas de dominação exercida por uma parte da sociedade sobre os demais membros (GODELIER, 1980, p. 667). 69 CIÊNCIA POLÍTICA As reflexões de Claval, Bourdieu e Clastres levam-nos a considerar o Estado como alternativa organizacionalde encaminhamento do poder. O que Gustavo Baptista Barbosa (2004) destaca e propõe discutir do trabalho de Pierre Clastres é a variedade histórica, raramente tratada (comumente ignorada) como possibilidade em ciência política e no direito. Na verdade, o tratamento que ele reservará ao “Estado” permite-nos desterritorialização complementar de seu conceito de “sociedade”. O Estado, afirma Clastres, “não é o Eliseu, a Casa Branca, o Kremlin”, mas o “acionamento efetivo da relação de poder”: é o que nos faculta, por exemplo, afiançar que haverá Estado entre os primitivos, presente na aparente ausência (BARBOSA, 2004, p. 537). O autor traz tal possibilidade como uma força organizadora da realidade; isto é, saber, conhecer, o que pode fazer toda a diferença na hora de planejar e intervir na realidade. As façanhas de outros povos devem nos esclarecer tanto sobre o alcance da razão quanto sobre a riqueza de combinações e convenções entre pessoas. É quando fala em revolucionar o conhecimento, evocando o feito de Copérnico, ao mostrar o poder inusitado de um chefe indígena quando comparado a nossas formas de poder estatal, por exemplo: A “revolução copernicana” a que Clastres nos convida, em Copérnico e os Selvagens, exige que pensemos “dívida” e “guerra” em sua positividade, e não como reflexos da falta de fé, leis e reis, que condenariam as sociedades primitivas a um estádio aquém do político. A dívida evidencia o lugar do político nos grupos indígenas, ao produzir, num só movimento, um chefe sem poder e uma sociedade sem Estado, sem corpo político que paire acima dela, portanto. Será o mesmo fito que perseguirão a máquina produtiva e a máquina de guerra dos primitivos, ambas resguardando a totalidade una das sociedades primitivas, isto é, mantendo-as como todo homogêneo e evitando a emergência do Um, do Estado, da distinção entre um “chefe-que-ordena” e um “grupo-que-obedece” (BARBOSA, 2004, p. 549). Raciocínio similar acontece quando o antropólogo brasileiro considera a dimensão econômica das organizações sociais/societais. A máquina produtiva primitiva persegue um ideal de autarquia, porque opera segundo uma lógica do centrífugo, exatamente como a máquina de guerra. Opondo os grupos, os conflitos armados conspiram contra sua unificação e permitem a cada um manter a sua totalidade una contra o princípio unificador do Um, o Estado: as sociedades primitivas exigem uma leitura de Hobbes às avessas (BARBOSA, 2004, p. 549). Borbosa aponta que Pierre Clastres não faz ciência política convencional, 70 Unidade II Clastres jamais fez ciência de Estado. Não exatamente no sentido de que não tenha constituído uma sociologia política. Ainda que não tenha propriamente instituído uma escola, – Clastres “pertence a uma família de espíritos sem espírito de família” [afirma Meunier] –, fundou, sim, uma sociologia política, só que de outro modo e a partir de outra perspectiva. Trata-se aí do sentido mesmo da revolução copernicana por ele proposta, ao proceder ao deslocamento da privação para a oposição e identificar, nas sociedades indígenas, não ausências – de fé, leis e reis –, mas presenças e vontades afirmativas contra a economia e o Estado. A asserção acerca do estatuto plenamente político das sociedades indígenas assenta-se numa aposta: a de que é possível escapar ao guarda-chuva do Estado e pensar fora das fronteiras por ele impostas, o que, no limite, culminará com o questionamento da própria instituição como princípio inescapável de organização social (BARBOSA, 2004, p. 551). Tocando no ponto nodal de nossa questão, a de tomar, contrariamente ao verdadeiro espírito científico, as instituições cristalizadas, como é o caso do Estado, ao modo de dados inamovíveis e eternos, temos que Tanto a chamada antropologia política quanto a filosofia política viciaram-se muito cedo no ponto de vista do Estado e tenderam a conduzir a atenção para a análise da ordem, da coesão e das instâncias de controle. Entretanto, tal privilégio denuncia precisamente certa consagração da perspectiva do Estado, como se se aceitasse como “necessidade antecipadamente dada aquilo que talvez só exista como seu modo próprio de operação”. O círculo, dessa maneira, fecha-se em discutível filosofia da história, à qual Clastres confronta uma etnologia que nos exclui nem tanto como objetos, mas como pontos de vista (BARBOSA, 2004, p. 552). Quanto ao poder associado às classificações, Barbosa cita a ideia de Clastres sobre a inadequação das tipologias transplantadas da realidade conhecida pela ciência europeia para todas as outras partes do mundo: Apesar de a tradição das gerações mortas pesar como pesadelo sobre o espírito das novas, muito cedo os trópicos imporiam suas particularidades aos antropólogos que aqui desembarcaram a partir da década de 1960. O instrumental analítico de inspiração fortesiana que muitos traziam em sua bagagem logo revelaria suas insuficiências. “As tipologias britânicas das sociedades africanas são possivelmente pertinentes para o continente negro; não servem de modelo para a América”, antecipa Clastres. Salvo no caso de raras exceções, a equação tradicional que reduz o poder à coerção e à relação comando-obediência – precisamente nossa concepção do que deva ser a política – não funciona na América, e, por detrás da recusa da etnologia em reconhecer o caráter eminentemente político do poder 71 CIÊNCIA POLÍTICA não potente característico das sociedades ameríndias, esconde-se, em eterna espreita, o “adversário sempre vivaz” da pesquisa antropológica, o etnocentrismo, que, ao fazer de nós mesmos inescapáveis telos de todos os grupamentos humanos, “mediatiza todo olhar sobre as diferenças para identificá-las e finalmente aboli-las”. Se as sociedades indígenas rejeitam o poder político como coerção ou violência, tal negação não necessariamente traduz um vazio. “Algo existe na ausência”, assegura Clastres. Pode-se pensar o político sem a violência, mas não há como pensar o social sem o político (BARBOSA, 2004, p. 552). É muito oportuno que o pensamento ocidental volte-se sobre si mesmo à procura das falhas proporcionadas pelo etnocentrismo, tão colado nas perspectivas ingênuas. Observação Formalistas apegados na lógica elementar são europocêntricos. Étienne de La Boétie promove um deslizamento da história para a lógica e espanta-se que tantos tenham se sujeitado a só um e que o tenham feito de bom grado: “[Q]ue malencontro foi este que tanto desnaturou o homem, o único nascido, de verdade, para viver livremente […]?” (La Boétie, em 1576). O assombro deve-se ao fato de que, ainda que as sociedades a que se refere La Boétie lhe fornecessem apenas exemplos do malencontro, ao menos no terreno da lógica poderia imaginar-se que tudo pudesse processar-se de outro modo. Clastres proporá outro deslizamento, da lógica de volta para a história – o que, por ironia, demonstrará que o Estado não é historicamente inelutável. Seu espanto diferencia-se do de La Boétie. Ele pergunta-se: por que Jyvukugi, o “chefe” dos Guayaki em Arroyo Moroti, obrigava-se a ir de tapy em tapy notificar seu povo daquilo de que todos já tinham conhecimento, porque previamente informados pelo paraguaio que se encontrava à frente do acampamento? (BARBOSA, 2004, p. 556). O autor assevera que nossas concepções de Estado são muito arraigadas e não nos damos conta das possibilidades reais de combinação de sociedades humanas. Presenciamos aí, sob nossos olhos, um “não Estado” em operação, que confere nova inteligibilidade ao Estado, também em operação, e já entre nós (e não apenas). Ensina Clastres: o Estado não é “os ministérios, o Eliseu, a Casa Branca, o Kremlin. […] O Estado é o exercício do poder político”. Diante de um poder que se exerce, a pergunta “como isto funciona?” é mais profícua do que as alternativas, e muito mais ambiciosa: “o que isto significa?” ou “de onde isto vem?”. 72 Unidade II Isso funciona pela concorrência de máquinassociais e figuras subjetivas específicas, que fazem isso funcionar. O mesmo vale para um poder que não se exerce. [No] poder que não se exerce, o “não Estado” opera por meio de máquinas sociais e figuras subjetivas que conjuram diuturnamente a possibilidade da emergência da divisão no seio do grupo. As sociedades contra o Estado recorrem a estratégias próprias e lançam mão de vigorosos mecanismos – como a guerra, a economia, a religião, a linguagem e a própria “subjetivação” de seus “chefes – de forma a evitar que surjam nelas o mau desejo de comandar e, como sua necessária contrapartida, o de obedecer. E vemos, assim, o quanto há de político no desejo (BARBOSA, 2004, p. 556-557). Barbosa destaca mais um pouco da riqueza da vida humana contraposta a soluções de outros períodos e necessidades. Hobbes e os selvagens. Desse embate, surge o “Contra-Hobbes” de Clastres: sói pensar a guerra de outra forma. Não mais como sintoma de estado associal (ou, pior, pré-social, em raciocínio que de novo nos eleva a telos inescapável dos grupos indígenas) e de caos inclemente, mas como mecanismo mesmo de instituição do cosmos social primitivo. A guerra, como máquina antiestado por excelência, preserva a lógica do múltiplo, característica dos grupos indígenas, e conspira contra o Um: há uma socialidade que se institui na e pela guerra, o que nos obriga ao saudável exercício intelectual de, por um lado, evitar os maniqueísmos dialeticamente excludentes e, por outro, pensar guerra e sociedade a um só tempo. Para Clastres, a politeia selvagem, forma original da política, institui-se na e pela guerra, não porque a guerra atraia a troca e clame o nascimento da razão, mas porque, na e pela guerra, passamos de “lobos a homens”. A comunidade primitiva inscreve sua ordem política num território de onde se exclui violentamente o Outro, e isto demarca sua política externa; sua política interna conspirará para sua afirmação como unidade homogênea, impedindo a emergência de qualquer clivagem em seu seio, de qualquer divisão entre dominantes e dominados. “Como se faz um chefe? Com suas palavras – e também com o suor de seu próprio rosto. E o de suas mulheres, que a poliginia estrategicamente lhe concede” (CLASTRES, 1962, p. 33). Os três termos – palavras, bens e mulheres –, cuja troca havia-nos garantido a travessia definitiva da animalidade para a sociedade, servem-se agora a torções –, e não no terreno etéreo das mitologias, mas sob nossos olhos, assegurando-nos a passagem, também ela irrevogável, da sociedade para a socialidade política. Impede-se, desse modo, que se torne predominante um poder que já está lá, presente na aparente ausência (BARBOSA, 2004, p. 556-558). 73 CIÊNCIA POLÍTICA Citando Deleuze e Guattari, Barbosa adverte: Conjurar é preceder e, se as sociedades primitivas rejeitam o Estado, é porque ele já está lá: “sim”, concede Clastres, “o Estado existe nas sociedades primitivas”. De fato, quanto mais os arqueólogos escavam, mais descobrem o Estado (DELEUZE; GUATTARI, 1980, p. 23). A presença diuturnamente conjurada do Estado nas sociedades primitivas, além de emprestar inteligibilidade ao funcionamento da politeia selvagem, aos mecanismos sociais primitivos e às figuras subjetivas específicas, por meio das quais ela opera, permite-nos ver o “não Estado” onde ele aparentemente não está e, ainda assim, atua entre nós. Viabiliza-se, dessa maneira, uma antropologia que se entende como diálogo, como ponte – e de via dupla – lançada entre nossas sociedades e aquelas de “antes da partilha”. Exposta a absoluta vulnerabilidade dos dualismos ontológicos excludentes, que obrigam a que as sociedades ou tenham Estado ou não o tenham, que sua política ou se defina como segmentária ou como centralizada, que sejamos ou homens ou jaguares, e que os Bororo sejam ou Bororo ou araras; descartadas apriorística e prematuramente as férteis possibilidades de misturas e justaposições, novos horizontes descortinam-se para a análise, em indicação de que “fecundantes corrupções” podem – desde que pensemos contra a corrente – revelar potencialidades até então insuspeitas em “idiomas” antes tomados no radical isolamento de seu monadismo (BARBOSA, 2004, p. 559). Citando Meunier, o antropólogo acentua: Há, assim, um certo estado de Estado, constante e presente por toda parte, e um certo estado de guerra, também ele constante e presente por toda parte, um ou outro, inibidos ou potencializados, a depender da forma como se dá a operação dos mecanismos sociais e das figuras subjetivas por meio dos quais atuam. Num e noutro estado, entretanto, algo sempre ficará de fora, reclamando e impondo presença apesar da ausência aparente (BARBOSA, 2004, p. 560). Pierre Bourdieu contribui muito diretamente com o assunto que trazemos, do poder envolvido na própria construção das categorias religiosas/teológicas, filosóficas, científicas e jurídicas, tudo “devidamente” plasmado no mundo da vida, laboratório de aplicação (e legitimação) de produtos da “engenharia social” milenar, de controle das maiorias. 74 Unidade II Lembrete Gustavo Baptista Barbosa (2004) propõe discutirmos o trabalho de Pierre Clastres, acentuando a variedade histórica, raramente tratada (comumente ignorada) como possibilidade em ciência política e no direito. A seguir destacamos um trecho das famosas aulas de Bourdieu nas quais aponta processos e estratégias de redefinição de organizações sociais locais em nome do “nacional” e do “internacional”. As duas faces do Estado Eu mesmo [Pierre Bourdieu], em todos os meus trabalhos anteriores sobre a escola, tinha completamente esquecido que a cultura legítima é a cultura de Estado... Essa concentração é ao mesmo tempo uma unificação e uma forma de universalização. Ali onde havia o diverso, o disperso, o local, há o único. Germaine Tillion e eu tínhamos comparado as unidades de medida nas diferentes aldeias cabilas numa área de 30 quilômetros: encontramos tantas unidades de medida quantas eram as aldeias. A criação de um padrão nacional e estatal de unidades de medida é um progresso no sentido da universalização: o sistema métrico é um padrão universal que supõe consenso, acordo sobre o sentido. Esse processo de concentração, de unificação, de integração é acompanhado por um processo de desapossamento, já que todos esses saberes e competências associados a essas medidas locais são desqualificados. Em outras palavras, o próprio processo pelo qual se ganha em universalidade é acompanhado por uma concentração da universalidade. Há os que querem o sistema métrico (os matemáticos) e os que são remetidos ao local. O próprio processo de constituição de recursos comuns é inseparável da constituição desses recursos comuns em capital monopolizado pelos que têm o monopólio da luta pelo monopólio do universal. Todo esse processo – constituição de um campo; autonomização desse campo em relação a outras necessidades; constituição de uma necessidade específica em relação à necessidade econômica e doméstica; constituição de uma reprodução específica de tipo burocrática, específica em relação à reprodução doméstica, familiar; constituição de uma necessidade específica em relação à necessidade religiosa – é inseparável de um processo de concentração e de constituição de uma nova forma de recursos que são do universal, em todo caso, de um grau de universalização superior àqueles que existiam antes. Passa-se do pequeno mercado local ao mercado nacional, seja no nível econômico, seja no simbólico. A gênese do Estado é, no fundo, inseparável da constituição de um monopólio do universal, sendo a cultura o exemplo por excelência. Todos os trabalhos anteriores que fiz poderiam resumir-se assim: essa cultura é legítima porque se apresenta como universal, oferecida a todos, porque, em nome dessa universalidade, pode-se eliminar sem medo os que não a possuem. Essa cultura, que aparentemente une e na verdade divide, é um dos grandes instrumentos de dominação,75 CIÊNCIA POLÍTICA visto que há os que têm o monopólio dessa cultura, monopólio terrível, já que não se pode reprovar a essa cultura o fato de ser particular. Mesmo a cultura científica apenas leva o paradoxo a seu limite. As condições da constituição desse universal, de sua acumulação, são inseparáveis das condições da constituição de uma casta, de uma nobreza de Estado, de “monopolizadores” do universal. A partir dessa análise, podemos nos dar como projeto universalizar as condições de acesso ao universal. Ainda assim, convém saber como é preciso para isso despossuir os “monopolizadores”? Vê-se bem que não é desse lado que se deve procurar. Termino com uma parábola para ilustrar o que eu disse sobre o método e sobre o conteúdo. Há uns trinta anos, numa noite de Natal, fui, numa pequena aldeia bem no interior do Béarn, ver um modesto baile camponês. Alguns dançavam, outros não; um grupo de pessoas, mais velhas que as outras, de estilo camponês, não dançavam, conversavam entre si, assumiam uma atitude para justificar o fato de estarem ali sem dançar, para justificar sua presença insólita. Deveriam ser casados, já que os casados não dançam mais. O baile é um dos lugares de trocas matrimoniais: é o mercado dos bens simbólicos matrimoniais. Havia uma taxa muito elevada de solteiros: 50% na faixa de idade 25-35 anos. Tentei encontrar um sistema explicativo para esse fenômeno: é que havia um mercado local protegido, não unificado. Quando o que chamamos de Estado se constitui, há uma unificação do mercado econômico para a qual o Estado contribui por sua política e uma unificação do mercado das trocas simbólicas, isto é, o mercado da postura, das maneiras, da roupa, da pessoa, da identidade, da apresentação. Aquelas pessoas tinham um mercado protegido, de base local, sobre o qual tinham um controle, o que permitia uma espécie de endogamia organizada pelas famílias. Os produtos do modo de reprodução camponês tinham suas chances naquele mercado: eles permaneciam vendáveis e encontravam as moças. Na lógica do modelo que evoquei, o que acontecia naquele baile era resultante da unificação do mercado das trocas simbólicas, que fazia com que o paraquedista da pequena cidade vizinha, que ia para lá dando-se ares de importante, fosse um produto desqualificante, que tirava valor desse concorrente que é o camponês. Em outras palavras, a unificação do mercado, que pode se apresentar como um progresso, ao menos para as pessoas que emigram, ou seja, para as mulheres e todos os dominados, pode ter um efeito liberador. A escola transmite uma postura corporal diferente, maneiras de se vestir etc.; e o estudante tem um valor matrimonial nesse novo mercado unificado, ao passo que os camponeses são desclassificados. Aí reside toda a ambiguidade desse processo de universalização. Do ponto de vista das moças do campo que partem para a cidade, que se casam com um carteiro etc., há um acesso ao universal. Mas esse grau de universalização superior é inseparável do efeito de dominação. Publiquei recentemente um artigo, espécie de releitura de minha análise do celibato no Béarn, daquilo que eu tinha dito na época, que intitulei, para me divertir, “Reprodução proibida”. Mostro que essa unificação do mercado tem como efeito proibir de fato a reprodução biológica e social a toda uma categoria de pessoas. Na mesma época, trabalhei sobre um material encontrado por acaso: os registros das deliberações comunais de uma pequena aldeia de duzentos habitantes durante a Revolução Francesa. Nessa região, os homens votavam por unanimidade. Chegam os decretos dizendo que é preciso votar por maioria. Eles deliberam, 76 Unidade II há resistências, há um campo e outro campo. Pouco a pouco, a maioria vence: ela tem atrás de si o universal. Houve grandes discussões em torno desse problema levantado por Tocqueville numa lógica continuidade/descontinuidade da Revolução. Resta um verdadeiro problema histórico: qual é a força específica do universal? Os procedimentos políticos desses camponeses de tradições milenares muito coerentes foram varridos pela força do universal, como se eles estivessem se inclinado diante de alguma coisa mais forte logicamente: vinda da cidade, apresentada em discurso explícito, metódica e não prática. Tornaram-se provincianos, locais. Os relatórios das deliberações passam a ser: “Tendo o prefeito decidido…”, “O conselho municipal se reuniu…”. A universalização tem como reverso um desapossamento e uma monopolização. A gênese do Estado é a gênese de um lugar de gestão do universal, e ao mesmo tempo de um monopólio do universal, e de um conjunto de agentes que participam do monopólio de fato dessa coisa que, por definição, é o universal. [...] Antes de mais nada, farei uma distinção entre o enfoque que chamo genético e o enfoque histórico comum. [...]. Primeiro ponto, portanto, distinguir o enfoque genético do enfoque histórico ordinário; segundo, tentar mostrar em que o enfoque genético é especialmente indispensável. Por que, tratando-se de um fenômeno como o Estado, o sociólogo é obrigado a se fazer historiador, arriscando-se, é claro, a cometer um dos atos mais fortemente tabus no trabalho científico, que é o ato sacrílego que consiste em transgredir uma fronteira sagrada entre disciplinas? O sociólogo se expõe a que todos os especialistas lhe batam nos dedos e, como assinalei, os especialistas são extremamente numerosos. Dito isto, se o enfoque genético se impõe é porque me parece que, nesse caso particular, ele é, digamos, não o único, mas um dos instrumentos maiores de ruptura. Retomando as indicações bem conhecidas de Gaston Bachelard, para quem o fato científico é necessariamente “conquistado” e depois “construído”, penso que a fase de conquista dos fatos contra as ideias recebidas e o sentido comum, no quadro de uma instituição como o Estado, implica necessariamente o recurso à análise histórica. Uma das análises que eu tinha feito bem longamente dizia respeito a essa tradição que vai de Hegel a Durkheim e que consiste em desenvolver uma teoria do Estado que, a meu ver, não passa de uma projeção da representação que o teórico tem de seu papel no mundo social. Durkheim é característico desse paralogismo ao qual os sociólogos são com muita frequência expostos, e que consiste em projetar no objeto, sobre o objeto, seu próprio pensamento do objeto, que é justamente o produto do objeto. Para evitar pensar o Estado com um pensamento de Estado, o sociólogo deve evitar pensar a sociedade com um pensamento produzido pela sociedade. Ora, a menos de se crer em a prioris, em pensamentos transcendentes que escapam à história, é de imaginar que só temos, para pensar o mundo social, um pensamento que é produto do mundo social no sentido muito amplo, isto é, desde 77 CIÊNCIA POLÍTICA o senso comum até o senso comum erudito. No caso do Estado, sente-se particularmente essa antinomia da pesquisa em ciências sociais e talvez da pesquisa em geral, antinomia que vem do fato de que, se nada se sabe, nada se vê, e se se sabe corre-se o risco de se ver apenas o que se sabe. O pesquisador totalmente desprovido de instrumentos de pensamento, que ignora os debates em curso, as discussões científicas, as contribuições, que não sabe quem é Norbert Elias etc., arrrisca-se, seja a ser ingênuo, seja a reinventar o já conhecido, mas, se ele conhece, arrisca-se a ficar prisioneiro de seu conhecimento. Um dos problemas que se apresentam a todo pesquisador, em especial nas ciências sociais, consiste em saber e em saber se livrar dos saberes. É fácil dizer, nos discursos epistemológicos sobre a arte de inventar leem-se coisas assim, mas na prática é formidavelmente difícil. Um dos recursos maiores da profissão de pesquisador consiste em encontrar astúcias – astúcias da razão científica, se posso dizer – que permitam, justamente, contornar, pôr em suspenso todos esses pressupostos que são assumidos pelo fato de que nosso pensamento é o produto do queestudamos e de que nosso pensamento tem aderências de todo tipo. “Aderências” é melhor que “adesão”, pois isso seria fácil demais se se tratasse simplesmente de adesão. Sempre se diz: “É difícil porque as pessoas têm vieses políticos”; ora, está ao alcance do primeiro que aparece saber que, sendo mais de direita ou mais de esquerda, estamos expostos a tal perigo epistemológico. Na verdade, é fácil suspender as adesões; o que é difícil é suspender as aderências, isto é, as implicações tão profundas do pensamento que elas próprias não se reconhecem. Se é verdade que só temos para pensar o mundo social um pensamento, que é produto do mundo social, se é verdade, e podemos retomar a famosa frase de Pascal, mas dando-lhe um sentido totalmente diferente, que “o mundo me compreende mas eu o compreendo”, e acrescentarei que eu o compreendo de maneira imediata porque ele me compreende, se é verdade que somos o produto do mundo em que estamos e que tentamos compreender, é evidente que essa compreensão primeira que devemos a nossa imersão no mundo que tentamos compreender é particularmente perigosa, e precisamos escapar a essa compreensão primeira, imediata, que eu chamo de dóxica (da palavra grega “doxa”, retomada pela tradição fenomenológica). Essa compreensão dóxica é uma possessão possuída ou, poder-se-ia dizer, uma apropriação alienada: possuímos um conhecimento do Estado, e todo pensador que pensou o Estado antes de mim se apropria do Estado com um pensamento que o Estado lhe impôs, e essa apropriação não é tão fácil, tão evidente, tão imediata senão porque é alienada. É uma compreensão que ela mesma não se compreende, que não compreende as condições sociais de sua própria possibilidade. Com efeito, temos um controle imediato das coisas de Estado. Por exemplo, sabemos preencher um formulário; quando preencho um formulário administrativo – nome, sobrenome, data de nascimento –, eu compreendo o Estado; é o Estado que me dá ordens para as quais estou preparado; sei o que é o estado civil, que é uma invenção histórica, progressiva. Sei o que é uma identidade, já que tenho uma carteira de identidade; sei que, numa carteira de identidade, há certas propriedades. Em suma, sei um monte de coisas. Quando preencho um formulário burocrático, que é uma grande invenção do Estado, 78 Unidade II quando preencho um pedido ou quando assino um certificado, e que tenho poder para fazê-lo, seja uma ficha de identidade, seja um certificado médico, seja uma certidão de nascimento etc., quando faço operações como estas, compreendo perfeitamente o Estado; sou, em certo sentido, um homem de Estado, sou o Estado feito homem, e, ainda assim, não entendo nada dele. É por isso que o trabalho do sociólogo, nesse caso particular, consiste em tentar se reapropriar dessas categorias do pensamento de Estado que o Estado produziu e inculcou em cada um de nós, as quais se produziram ao mesmo tempo que o Estado se produzia e que aplicamos a todas as coisas, e em especial ao Estado para pensar o Estado, de sorte que o Estado permanece o impensado, o princípio impensado da maioria de nossos pensamentos, inclusive sobre o Estado. Fonte: Bourdieu (2012, p. 196-208). Atilio A. Boron (1994) expõe a retórica de assimilação da esfera política pela econômica, que promove reducionismo do aparato estatal como mera instituição e árbitro eventual; tais ações de esvaziamento político do poder dão-se no campo de forças neutras: O fato de que existem inúmeros grupos sociais competindo livremente – em união com a natureza “neutra”, meramente “técnica”, das regras do jogo – impede alguém de acumular muito poder e perturbar o equilíbrio geral do sistema. Existem elites, é claro, mas a elas faltam a consciência e a coesão necessárias para se tornarem uma classe dominante. O Estado permanece afastado e indiferente diante da incessante luta de interesses sociais, limitando-se a evitar a concentração de poder nas mãos de alguns grupos particulares e a acomodar e reconciliar as aspirações em conflito. Seu papel é o de um árbitro imparcial que supervisiona a competição entre diferentes coalizões ou, como afirma Miliband em uma metáfora engenhosa, o de “um espelho que a sociedade coloca diante de seus olhos”. Em síntese: a abordagem liberal “resolve” o problema do Estado mediante a admissão – sem prévia análise ou discussão – de uma série de pressupostos que afirmam a neutralidade de classe do Estado e a ausência de concentrações significativas de poder político nas mãos de alguns grupos privilegiados (BORON, 1994, p. 248-249). Assim, Atilio A. Boron traz-nos análise minuciosa do papel e da natureza do Estado: A interpretação predominante nas ciências sociais que surgiu dentro da grande tradição teórico-política liberal – que percebe o Estado como o “espelho da sociedade”, como a expressão de uma ordem social eminentemente consensual e representante de toda a nação, e como o mercado neutro em que indivíduos e grupos trocam poder e influência – foi radicalmente criticada por Marx, a partir de seus escritos juvenis, para argumentar que o Estado é a expressão midiatizada da dominação 79 CIÊNCIA POLÍTICA política nas sociedades de classes. É, na verdade, o “resumo oficial” de uma sociedade de classes e, consequentemente, não é neutro diante das lutas e antagonismos sociais produzidos por suas desigualdades e desigualdades estruturais. Da mesma forma que o mercado “realmente existente”, e não o imaginado pelos teóricos liberais, o Estado é o lugar onde os sujeitos formalmente livres e iguais, mas profundamente desiguais, estabelecem relações políticas de superordenação e subordinação. Essa assimetria está arraigada, em primeira instância, na posição e nas funções que os diferentes sujeitos desempenham no processo produtivo. No entanto, a realização do predomínio político da classe dominante no capitalismo requer algo mais: a intervenção de uma densa rede de mediações – estruturas estatais, tradições políticas e ideologias, organizações e práticas sociais de vários tipos – sem a qual a supremacia econômica da burguesia não pode se projetar no âmbito mais global da sociedade civil em seu conjunto (BORON, 1994, p. 248-249). O sociólogo argentino também expõe os equívocos da teoria marxista quanto às concepções e implantações do Estado: Apesar disso, deve-se dizer que a teoria marxista não tem estado imune a deformações flagrantes produzidas por uma concepção instrumentalista do Estado, que o reduz a uma simples ferramenta perpetuamente controlada, direta e imediatamente, pela classe dominante. A metáfora inerte do espelho reaparece, só que agora vê a imagem quebrada de uma sociedade de classes. Dessa forma, um economicismo vulgar veio substituir toda a riqueza analítica do marxismo, com resultados análogos aos que caracterizam a interpretação liberal-pluralista: o Estado perdeu completamente sua especificidade, sua eficácia prática e seu grau variável de autonomia – sempre relativo, é claro – em relação à sociedade civil. Se antes o espelho liberal projetava a imagem cândida de um mercado de homens livres e iguais, na vulgata economicista reflete apenas – de maneira imediata e mecânica – a predominância monolítica da classe dominante (BORON, 1994, p. 250). Sobre a relação entre Estado e sociedade civil, o autor acentua: Uma das consequências dessa infeliz coincidência tem sido a impossibilidade de pensar teoricamente sobre a relação entre o Estado e a sociedade civil e, sobretudo, de conceber o problema dos limites – certamente elásticos, mas não por isso menos resistentes – da autonomia do primeiro. Como vimos, na ciência política de inspiração liberal, os laços entre Estado e sociedade foram dissolvidos, postulando em consequência a ficção de um cidadão isolado e independente que adere ou pertence a múltiplos grupos de interesse, eventualmente caracterizado pela defesa de interesses “mutuamente cruzados”, com o que evita a superposição de clivagens sociais,80 Unidade II e que eles “fazem” a política em um campo tão neutro quanto o mercado que é chamado de “arena política” ou sistema político. Aprioristicamente assume-se que o poder político encontra-se disperso entre uma multiplicidade de grupos, associações e instituições, e que estes competem – pública e incessantemente – pela apropriação de algumas parcelas de um fantasmagórico aparato estatal, ou pela imposição de certas políticas públicas do governo. Na realidade, toda a complexidade do Estado moderno é reduzida ao governo, e ambos se tornam sinônimos, quando na realidade não o são. Por outro lado, o mesmo governo é rebaixado para a condição de simples constelação de agências, escritórios e organismos completamente carentes de coerência e unidade. Estes funcionam como se fossem barcos a vela mudando de orientação e de referências com base nas correlações flutuantes de forças produzidas pelas iniciativas e reações da miríade de grupos de interesse que constituem a sociedade civil. É mediante essa linha de argumentação que o pensamento liberal desemboca em um economicismo grosseiro, no qual a anarquia – ou, eventualmente, a poliarquia – reinante no mercado é linearmente transferida para o campo da política, fechando assim as portas que permitem um repensar teórico de uma reflexão sobre a questão da especificidade, efetividade e autonomia do Estado e dos processos políticos. No marxismo “instrumentalista” o resultado é análogo: o Estado e a vida política, como a ideologia, são concebidos como meros reflexos do desenvolvimento das forças produtivas, fechando a possibilidade de recuperar a dialética complexidade das ligações entre economia e política. A diferença entre as teorias liberais e as do chamado “marxismo vulgar” reside [no seguinte:] nas primeiras a sociedade civil não é concebida como estruturalmente fraturada pela existência de classes sociais, enquanto nas segundas a relevância da diferenciação de classes ocupa um lugar fundamental e exclusivo. No entanto, o economicismo arraigado de ambas as perspectivas termina na anulação do Estado, completamente privado de iniciativa autônoma: reflexão especular do mercado, ou simples “paralelogramo de forças” construído a partir de uma competição desencadeada entre interesses individuais e grupais, no discurso liberal. Instrumento dócil da classe dominante, no caso do marxismo vulgar, o problema da independência relativa do Estado não pode sequer ser levantado, a menos que se rompa com os pressupostos compartilhados por essas duas perspectivas teóricas. Parece claro que nenhuma dessas duas alternativas tem condições para abrir caminhos promissores para o estudante de política; pelo contrário, constituem sérios obstáculos ao desenvolvimento da pesquisa científica. Como superar, portanto, o impasse teórico que envolve a questão do Estado? (BORON, 1994, p. 250-251). 81 CIÊNCIA POLÍTICA O pesquisador segue com a reflexão sobre o papel do marxismo: No campo marxista, o problema é colocado em termos completamente diferentes. O Estado é uma instituição de classe, uma afirmação que desde o início coloca toda essa teorização nos antípodas da concepção liberal. Essa oposição é ainda mais evidente para um autor como Nordlinger, que atomisticamente fragmenta o Estado no grupo de burocratas que administram o aparelho do governo. É por isso que, ao defini-lo, ele argumenta que o Estado é “constituído por – e limitado a – aqueles indivíduos dotados de autoridade decisória de alcance social”. Na tradição marxista, ao contrário, o Estado é, simultaneamente: (a) um “pacto de dominação” por meio do qual uma certa aliança de classes constrói um sistema hegemônico capaz de gerar um bloco histórico; (b) uma instituição dotada dos correspondentes aparatos burocráticos e suscetível de ser transformada, sob certas circunstâncias, em “ator corporativo”; (c) um cenário de luta pelo poder social, um terreno em que os conflitos entre diferentes projetos sociais que definem um padrão de organização econômica e social são resolvidos; e (d) o representante dos “interesses universais” da sociedade e, como tal, a expressão orgânica da comunidade nacional. É impossível, portanto, recuperar totalmente o significado do fenômeno do Estado, se essas quatro dimensões não forem levadas em conta. Pensar nisso apenas como um pacto de dominação, como faz o marxismo vulgar, ou como um poderoso ator corporativo, como defensores de abordagens “estatocêntricas”, ou como uma simples “arena” de grupos em conflito, como quer a tradição liberal, ou finalmente como representante dos interesses gerais da sociedade, como os burocratas e discípulos distantes de Hegel proclamam, só pode terminar numa visão deformada e caricaturada do Estado. A superioridade teórica do marxismo nessa questão reside justamente em sua capacidade de pensar o Estado na riqueza e multiplicidade de suas determinações, nenhuma das quais pode sozinha explicar o fenômeno em sua plenitude. O que queremos dizer, resumidamente, é o seguinte: o problema da autonomia do Estado não pode ser adequadamente colocado no quadro teórico oferecido pela tradição liberal, e isto é assim dada a ausência de premissas fundamentais que permitem estabelecer algum tipo de relação estrutural entre economia e política. Em outras palavras, falar de autonomia – embora “relativa” – logicamente se refere a um pressuposto sobre o sistema de relações sociais que articula em um todo orgânico e significativo todos os diferentes aspectos e níveis que tornam a vida social. O materialismo histórico sustenta que as leis do movimento de um modo de produção devem ser encontradas nas contradições estruturais entre as forças produtivas e as relações sociais de produção. Dentro dessa formulação, a 82 Unidade II questão sobre os limites desse condicionamento estrutural, que em nenhum caso pode ser absoluto, torna-se significativa. Entretanto, no pensamento liberal – e nem mesmo Max Weber escapou disso – a sociedade é concebida como a justaposição de uma série de “partes” diferentes – ordens ou fatores institucionais, de acordo com o léxico usado por vários autores –, que, em sua existência histórica concreta, podem ser combinadas de várias maneiras. Isso impede que uma hierarquia de determinantes e condicionamentos seja estabelecida, mesmo no nível mais abstrato: aqui e agora o econômico pode ser a causa, mas amanhã pode ser simplesmente o efeito de qualquer variável (BORON, 1994, p. 254-255). Saiba mais Para entender melhor o que acentuamos no excerto, leia: BORON, A. Estado, capitalismo e democracia na América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. Paul Claval (1979, p. 150) aborda a questão do Estado em sociedades arcaicas, intermediárias ou históricas (com escrita) e modernas. As estruturas políticas do mundo tradicional ordenam-se em torno do Estado, do regime feudal e da cidade-Estado, tratando-se esse Estado de “uma engrenagem bastante secundária da arquitetura das sociedades”, com controle efetivo bastante reduzido por parte do soberano. Os dois primeiros (Estado e sistema feudal) são capazes de ordenar vastos espaços, mas de maneira imperfeita e, no segundo caso, criando um mosaico de unidades independentes. A cidade-Estado está mais apta a assegurar um enquadramento eficaz, mas tem dificuldade em se estender sem se desfigurar. Por vezes o conseguiu – na Grécia e em Roma –, mas tornando-se uma engrenagem de um Estado mais amplo. O Estado começa a existir antes que se inicie a história. Ele realiza a síntese da autoridade e do poder puro, indispensável quando se quer controlar um grande conjunto (CLAVAL, 1979, p. 104-105). A análise de Paul Claval, aqui, limita-se a tomar o Estado como configuração histórica, sem tomá-lo como alternativa de exercício de poder social, entretanto, indicando suas limitações quando comparado ao Estado moderno (CLAVAL, 1979). Mesmo quando o príncipe é soberano absoluto, tem direito de vida e de morte sobreseus súditos, dispõe de um exército numeroso e se cerca de uma pompa impressionante, aquilo que ele controla efetivamente se reduz a pouca coisa: 1) dispõe de uma arrecadação que, pela modéstia, faria sorrir os dirigentes 83 CIÊNCIA POLÍTICA das mais democráticas nações do mundo moderno; 2) assegura a defesa do território e a organização da polícia e da justiça – para as causas em que as instâncias normais não resolvem; 3) tem um direito de fiscalizar as relações comerciais com o mundo exterior (CLAVAL, 1979, p. 150). No que diz respeito ao intervencionismo estatal, pode haver divergências sobre intensidade e intenções, contudo, não sobre o caráter normativo expansivo de seu aparato contemporâneo; pois: [...] com o Estado hegeliano, parece chegada a hora da intervenção do governo e da administração em todas as esferas da vida social. Mas as correntes ideológicas igualitaristas que triunfam então modificam a ação do poder: em lugar de dominar a sociedade e dobrá-la à sua livre vontade, ele só conserva sua autonomia servindo ao interesse geral. Isso dá à sociedade civil, ao conjunto das relações societais que se tecem sob as questões públicas, um lugar e primeira escolha: ela domina, de direito, a estrutura das sociedades liberais que procuram eliminar todas as manifestações inúteis do poder. Na verdade, ela desempenha assim um grande papel nas sociedades totalitárias que lhe negam toda a autonomia, mas que são obrigadas a contar com as forças e as tensões que a interação social produz espontaneamente (CLAVAL, 1979, p. 151). Paul Claval (1979) segue caracterizando esse Estado nos seguintes termos: • concentração e economias de escala; • economias externas, poluições e inconvenientes; • controle social; • opinião pública e especialistas. Para ele, “as sociedades liberais favorecem o nascimento, sob o Estado, de uma sociedade civil à qual ele transfere muitas responsabilidades”. Ocorrem muitas transformações dos antigos sistemas de organização social “sem desaparecerem no mundo moderno”, com atuações reduzidas; e pior, “o controle coletivo diminui pouco a pouco. A família, em quase todos os ramos, se vê privada de suas funções produtivas, participando de modo reduzido na socialização com o incremento da escolarização, havendo participação plena na lógica do consumo (CLAVAL, 1979, p. 158). A vida social vai sendo estruturada pelas burocracias, mais do que no passado. Segundo ele, os processos sociais envolvem: a. As burocracias. b. As coletividades e as classes. c. As formas econômicas de regulação social. 84 Unidade II d. As formas sociais de regulação. e. A diferenciação social e a segregação espacial. f. Os traços geográficos da sociedade civil (CLAVAL, 1979, p. 169). A seguir o autor acentua o papel do sistema político nas sociedades liberais: g. As missões do sistema político. h. Os problemas de representação. i. A soberania nacional e a autonomia local. j. O balanço do Estado liberal (CLAVAL, 1979, p. 169). Para Norberto Bobbio (1994), sociedade civil e Estado são conceitos e realidades inseparáveis, portanto, devem ser considerados como relacionados em qualquer reflexão sobre as sociedades ocidentais convencionais. Como vimos, tudo isso é muito diferente se estivermos estudando grupos indígenas ou comunitários de outras referências culturais. E o autor continua: Na linguagem política de hoje, a expressão “sociedade civil” é geralmente empregada como um dos termos da grande dicotomia sociedade civil/Estado. O que quer dizer que não se pode determinar seu significado e delimitar sua extensão senão redefinindo simultaneamente o termo “Estado” e delimitando a sua extensão. Negativamente, por “sociedade civil” entende-se a esfera das relações sociais não reguladas pelo Estado, entendido restritivamente e quase sempre também polemicamente como o conjunto dos aparatos que num sistema social organizado exercem o poder coativo. Remonta a August Ludwig von Schlozer (1794) – tendo sido continuamente retomada pela literatura alemã dedicada ao assunto – a distinção entre societas civilis sine império e societas civilis cum império, na qual a segunda expressão indica aquilo que na grande dicotomia é designado com o termo “Estado”, num contexto em que, como se verá depois, ainda não nasceu a contraposição entre sociedade e Estado e basta um único termo para designar um e outra, embora com uma distinção interna em espécies (BOBBIO, 1994, p. 33). Norberto Bobbio segue tecendo comentários sobre o político e o não político (distinção entre societas civilis sine império e societas civilis cum império), discorrendo acerca do espectro político, que vai do Estado superposto à sociedade civil, dominando-a no pano de fundo jusnaturalista (numa forma próxima da hobbesiana); passa pelo Estado como representação da sociedade civil; e chega ao Estado com hora para acabar. 85 CIÊNCIA POLÍTICA Mas mesmo numa noção assim vaga (Estado: sociedade civil como conjunto de relações não reguladas pelo Estado, portanto, como tudo aquilo que sobra uma vez bem delimitado o âmbito no qual se exerce o poder estatal) podem-se distinguir diversas acepções conforme prevaleça a identificação do não estatal com o pré-estatal, com o antiestatal ou inclusive com o pós-estatal. Quando se fala de sociedade civil na primeira dessas acepções, quer-se dizer, em correspondência consciente ou não consciente com a doutrina jusnaturalista, que antes do Estado existem várias formas de associação que os indivíduos formam entre si para a satisfação dos seus mais diversos interesses, associações às quais o Estado se superpõe para regulá-las, mas sem jamais vetar-lhes o ulterior desenvolvimento e sem jamais impedir-lhes a contínua renovação: embora num sentido não estritamente marxiano, pode-se neste caso falar da sociedade civil como uma infraestrutura e do Estado como uma superestrutura. Na segunda acepção, a sociedade civil adquire uma conotação axiologicamente positiva e passa a indicar o lugar onde se manifestam todas as instâncias de modificação das relações de dominação, formam-se os grupos que lutam pela emancipação do poder político, adquirem força os assim chamados contrapoderes. Desta acepção, porém, pode-se também dar uma conotação axiologicamente negativa, desde que nos coloquemos do ponto de vista do Estado e consideremos os fermentos de renovação de que é portadora a sociedade civil como germes de desagregação. Na terceira acepção, “sociedade civil” tem um significado ao mesmo tempo cronológico, como na primeira, e axiológico, como na segunda: representa o ideal de uma sociedade sem Estado, destinada a surgir da dissolução do poder político. Esta acepção está presente no pensamento de Gramscí nas passagens em que o ideal característico de todo o pensamento marxista sobre a extinção do Estado é descrito como “reabsorção da sociedade política pela sociedade civil”, como a sociedade civil na qual se exerce a hegemonia distinta da dominação, livre da sociedade política. Nas três diversas acepções, o não estatal assume três diversas figuras: a figura da pré-condição do Estado, ou melhor, daquilo que ainda não é estatal, na primeira, da antítese do Estado, ou melhor, daquilo que se põe como alternativa ao Estado, na segunda, da dissolução e do fim do Estado na terceira (BOBBIO, 1994, p. 34-35). Lembrete Atilio A. Boron (1994) expõe a retórica de assimilação da esfera política pela econômica, promovendo reducionismo do aparato estatal como mera instituição e árbitro eventual. 86 Unidade II 6.1 População e demografia Definida como um todo, a população é uma coleção de seres humanos. Ela é um conjunto finito e, portanto, num dado momento, “recenseável”. Esse ponto é bastante significativo porque, se a população pode ser contada, implica que dela podemos ter uma imagem relativamente precisa. Ainda que essa imagem, um número, não possa ser (como não é) estável, pois se modifica o tempo todo. Contudo, é por esse número que
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