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Marc Bloch. Os Reis Taumaturgos: Estudo sobre o caráter sobrenatural atribuído ao poder real, particularmente na França e na Inglaterra. Paris: Armand Colin, 1961, p. 15- 24. Introdução “Esse rei é um grande mágico” – Montesquieu, Lettres Persanes, carta 24. “O único milagre que continua operando na religião dos cristãos e na dinastia francesa” – Pierre Mathieu, Histoire de Louis XI, roi de France, 1610, p. 472. Dia 27 de abril de 1340, Frei François, da ordem dos Dominicanos, bispo de Bisaccia, na província de Nápoles, capelão do rei Roberto de Anjou e, naquele momento, embaixador do rei da Inglaterra Eduardo III, se apresentou ao primeiro magistrado de Veneza1. Uma luta dinástica, que viria a ser a Guerra dos Cem Anos, acabava de se instalar entre a França e a Inglaterra; as hostilidades já tinham começado, mas a campanha diplomática ainda continuava. Os dois reis rivais procuravam alianças em todas as partes da Europa. Frei François tinha sido encarregado por seu mestre de solicitar o apoio dos venezianos e sua intervenção amigável junto aos genovianos. Um resumo de seu discurso foi conservado2. Ele exaltava, como era justo, as disposições pacíficas do soberano inglês. O “muitíssimo sereno” príncipe Eduardo, desejando ardorosamente evitar o massacre de uma multidão de cristãos inocentes, tinha, se 1Um pequena dificuldade surge sobre esse personagem. O documento veneziano, citado abaixo, n.2, o chama de Richard: “fatri Ricardo Dei gratia Bisaciensis episcopus incliti principis domini Regis Roberti capellano ET familiari domestico”. Mas, em 1340, o bisco de Bisaccia, que era um dominicano e, por consequência, um frei, se chamava François: cf. EUBEIL, Hierarchia catholica, 2. Ed., 1913, e UGHELLI, Italia sacra, t. VI, in-4º, Veneza, 1720, col. 841. Não podemos duvidar que não foi o Frei Francisco quem tomou a palavra em face do doge; o escriba veneziano deve ter cometido, em algum momento, um erro de escritura ou de leitura (interpretação errada de uma inicial?); acreditei dever repará-lo. 2 Veneza, Archivio di Stato, Commemoriali, vol. III, p. 171; Calendar of State Papers, Venice, I. n. 35, foi analisado. Eu devo uma cópia dessa peça curiosa à extrema benevolência de M. Cantarelli, professor da Universidade de Roma. Não há menção da embaixada do bispo de Bisaccia em E. DEPREZ, Les préliminaires de La Guerre de Cent Ans, 1902 (Bibl. Athènes et ROme). A anpalise do Calendar não deixa de mostrar erros; ele traduz comitatum de Pontyus in Picardiam (o Ponthie): the counties...of Pontoise. acreditamos nele, escrito a “Felipe de Valois, que se diz rei da França”, para propor-lhe três meios, à sua escolha, de decidir entre eles, sem guerra, a grande querela; primeiro o combate em campo fechado, verdadeiro julgamento de Deus, seja na forma de um duelo entre os dois pretendentes eles mesmos, seja na forma de um combate mais amplo entre dois grupos com de seis a oito fiéis; ou então uma outra das duas provas seguintes (cito aqui textualmente): “Se Felipe de Valois fosse, como ele afirmava, o verdadeiro rei da França, que ele o demonstrasse se expondo a leões famintos; pois os leões nunca ferem um verdadeiro rei; ou que ele realizasse o milagre de curar os doentes, como têm por costume fazer os outros reis verdadeiros” – entendam aqui, sem dúvida, os outros reis verdadeiros da França. “Em caso de insucesso, ele se reconheceria indigno do reino”. Felipe – sempre segundo o testemunho do Frei François – tinha, “em sua soberba”, rejeitado essas sugestões.3 Podemos nos perguntar se Eduardo III tinha, em algum momento, realmente feito tais sugestões. O arquivo das negociações anglo-francesas chegou até nós em bom estado; não encontramos nem um vestígio da tal carta resumida pelo bispo de Bisaccia. Talvez ele, que tentava impressionar os venezianos, tenha a imaginado inteirinha. Mas suponhamos que ela tenha realmente sido enviada; não devemos levar mais a sério a prova dos leões ou a do milagre do que convite ao duelo, desafio clássico trocado, nessa época, no início das guerras pelos soberanos, que sabiam viver, sem que nunca na história humana ninguém tenha-os visto realmente entrar na arena. Não eram mais do que fórmulas diplomáticas, tudo isso; ou melhor, no caso que nos ocupa, palavras ao vento de um diplomata falastrão. Essas propostas vãs merecem, no entanto, a reflexão dos historiadores. Apesar de sua aparente insignificância, elas jogam luzes muito vivas sobre coisas profundas. Comparemo-las, com o pensamento, com aquelas que caberiam hoje a um plenipotenciário em circunstâncias parecidas. A diferença revela o abismo que separa duas mentalidades; porque protestos como esse, que foram destinados à galeria, são forçosamente fruto das tendências da consciência coletiva. Frei François não persuadiu de forma alguma os venezianos: nem as provas, espalhadas à sua frente, de que o espírito pacífico de Eduardo III teria se mostrado até o último momento, nem as promessas mais positivas contidas na continuação do discurso não os fizeram sair de sua 3 [citação em latim]. neutralidade, que estimavam como proveitosa para seu comércio. Mas as ofertas afirmadas, hipoteticamente feitas pelo rei da Inglaterra ao seu rival da França, não lhes pareceriam, talvez, tão inacreditáveis como poderíamos imaginar. Eles sem dúvidas não esperavam ver Felipe de Valois descer para a fossa dos leões; mas a idéia de que “leões não podem comer infantes” lhes era familiar graças a toda a literatura de aventura de seu tempo. Eles sabiam muito bem que Eduardo III não estava disposto a ceder a seu rival o reino da França, mesmo que este último conseguisse realizar curas milagrosas. Mas que todo verdadeiro rei da França – como, aliás, todo rei verdadeiro da Inglaterra – fosse capaz de tais prodígios era, de certa forma, um fato da experiência que os mais céticos, no século XIV, nem pensavam em colocar em dúvida. Acreditava-se na realidade desse poder singular em Veneza, assim como em toda a Itália, e quando necessário lançava-se mão dele: um documento, que escapou por acaso da destruição, conservou para nós a lembrança de quatro bravos venezianos que, em 1307 – trinta e três anos antes da missão de Frei François -, foram à França para obter de Felipe, o Belo, sua cura.4 É assim como o discurso de um diplomata que falava um pouco demais acaba nos lembrando que nossos ancestrais, na idade média e até o coração dos tempos modernos, tinham uma imagem da realeza muito diferente da nossa. Em todos os países, os reis se passavam, então, por personagens sagradas; e ao menos em alguns países eles se passavam por taumaturgos. Durante longos séculos, os reis da França e os reis da Inglaterra “tocaram escrófulas” – para empregar uma expressão clássica de então; entenda-se que eles pretendiam curar, apenas pelo contato com as mãos, os doentes vítimas dessa afecção; em torno deles, acreditava-se comumente em suas virtudes medicinais. Durante um período um pouco mais longo, os reis da Inglaterra distribuíram a seus súditos, e mesmo para além das fronteiras de seus estados, anéis (os Cramp- rings) que, por terem sido consagrados por eles, tinham recebido, pensava-se, o poder de devolver a saúde aos epiléticos e de acalmar dores musculares. Esses fatos, ao menos em suas grandes linhas, são bastante conhecidos dos eruditos e dos curiosos. Devemos admitir, no entanto, que eles podem causar a nossos espíritos certa aversão singular: pois eles passaram, no mais das vezes, em silêncio. Os historiadores escreveram livros enormes sobre as ideias monárquicas sem jamais os mencionar.As páginas que serão lidas aqui têm por principal objetivo cobrir essa lacuna. 4 Para a crença relativa aos leões, ver abaixo, p. 256. Para a viagem dos quatro venezianos, ver p. 109. A idéia de estudar os rituais de cura e, de forma mais geral, a concepção de realeza que se exprime neles, me veio há alguns anos, enquanto eu lia no Ceremonial dos Godefroy os documentos relativos à sacralidade dos reis da França. Eu estava longe de ter uma idéia, nesse momento, da verdadeira extensão da tarefa à qual eu me lançava; a amplidão e a complexidade das pesquisas para as quais eu fui empurrado ultrapassaram muito as minhas expectativas. Tive razão, ao menos, de perseverar? Temo que as pessoas às quais eu confiei minhas intenções tenham me considerado mais de uma vez como a vítima de uma curiosidade bizarra e, no final das contas, bastante fútil. Em que caminho atravessado eu tinha ido me jogar? “This curious by-path of yours”, me disse em termos próprios um inglês amável. Eu pensei, no entanto, que esse caminho obliquo merecia ser seguido e acreditei ter percebido, com a experiência, que ele ainda ia bastante longe. Com aquilo que até o presente não era mais do que uma anedota, eu julguei poder fazer história. Seria fora de propósito, nessa Introdução, tentar justificar em detalhes o me plano. Um livro deve portar sua apologia nele mesmo. Eu gostaria simplesmente de indicar aqui, muito brevemente, como eu concebi meu trabalho e quais são as ideias diretrizes que me guiaram. *** Não haveria possibilidade de ter por objeto os rituais de cura de forma isolada, fora de todo o grupo de superstições e lendas que forma a “maravilha” monárquica: isso seria se condenar, desde o princípio, a não ver neles mais do que uma anomalia ridícula, sem ligação com as tendências gerais da consciência coletiva. Eu me servi deles como um fio condutor para estudar, particularmente na França e na Inglaterra, o caráter sobrenatural atribuído por um longo tempo ao poder real, isso que poderíamos chamar, utilizando um termo que os sociólogos desviaram ligeiramente de seu significado original, a realeza “mística”. A realeza! Sua história domina toda a evolução das instituições européias. Quase todos os povos da Europa Ocidental foram governados até nossos dias por reis. O desenvolvimento político das sociedades humanas, em nosso país, se limitou quase unicamente, durante um longo período, às vicissitudes do poder das grandes dinastias. Ora, para compreender o que foram as monarquias de outrora, para dar conta sobretudo de sua longa empresa sobre o espírito dos homens, não basta apenas esclarecer, até os últimos detalhes, o mecanismo da organização administrativa, judiciária e financeira que elas impunham a seus súditos; também não basta analisar abstratamente ou tentar depurar de alguns grandes teóricos os conceitos de absolutismo ou direito divino. Também é preciso penetrar nas crenças e nas fábulas que floriram em torno dos principados. Em muitos pontos, todo esse folclore nos diz mais do que não importa qual tratado doutrinal. Como o escreveu justamente, em 1575, Claude d’Albon, “jurisconsulto e poeto do delfim”, em seu tratado Da majestade real, “o que legou aos reis tal veneração, foram principalmente as virtudes e os poderes divinos que vieram apenas para eles, e não para os outros homens”5. Claro que Claude d’Albon não acreditava que as “virtudes e os poderes divinos” fossem a única razão do poder real. É necessário afirmar que eu também não penso assim? Sob o pretexto de que os reis do passado, inclusive os maiores entre eles – um São Luis, Eduardo I ou Luís XIV – tentaram, exatamente como os curandeiros secretos de nossas comunidades rurais, fingir curar doenças pelo simples toque, nada seria mais ridículo do que tentar vê-los apenas como feiticeiros. Eles eram chefes de Estados, juízes, chefes guerreiros. Através da instituição monárquica, as sociedades antigas satisfaziam um certo número de necessidades eternas, perfeitamente concretas e de essência perfeitamente humana, que as sociedades atuais também têm, mas estão dispostas a solucionar, normalmente, de uma outra forma. Mas um rei, depois de tudo, era, aos olhos das pessoas fiéis, uma coisa bem diferente de um alto funcionário. Uma “veneração” o rodeava, e ela não tinha por fonte apenas os serviços realizados. Como poderíamos compreender esse sentimento leal que, em certas épocas da história, teve uma força tal e uma marca tão particular, se, desde o princípio, nos recusarmos a ver em torno das cabeças coroadas sua auréola sobrenatural? Nós não examinaremos aqui essa concepção de realeza “mística” em seus germes e princípios primeiros. Suas origens escapam ao historiador da Europa medieval e moderna; elas escapam, na realidade, à história como um todo; apenas a etnografia comparada parece ser capaz de jogar luzes sobre ela. As civilizações das quais a nossa saiu diretamente receberam essa herança de civilizações ainda mais antigas, perdidas nas sombras da pré-história. Seria o que encontramos aqui como objeto de nosso estudo aquilo que chamamos, por vezes um pouco desdenhosamente, de uma “sobrevivência”? Nós teremos, mais tarde, a oportunidade de observar que essa palavra, em todas as suas formas, não poderia se aplicar legitimamente aos rituais de cura considerados 5 Cl. D’ALBON, De La maiesté royalle, instituition et preminence et dês faveurs Divines particuliers envers icelle, Lyon, 1575, p. 29. por eles mesmos; o toque das escrófulas aparecerá para nós, com efeito, como uma criação da França dos primeiros Capetíngios e da Inglaterra normanda; já a bendição dos anéis pelos soberanos ingleses só será vista entrando em cena no ciclo da realeza miraculosa bem mais tarde. Resta então apenas a noção mesma do caráter sagrado e maravilhoso dos reis, dado psicológico essencial do qual os ritos em questão não foram mais do que uma manifestação dentre muitas. Muito mais velha do que as mais antigas dinastias históricas da França ou da Inglaterra, podemos dizer, se quisermos, que ela sobreviveu um longo tempo no meio social, quase ignorado por nós, que condicionou primeiramente seu nascimento. Mas se entendermos por “sobrevivência”, como fazemos normalmente, uma instituição ou uma crença na qual toda vida verdadeira deixou de existir e que não tem outra razão de ser além do fato de ter respondido, algum dia, a alguma coisa, uma espécie de fóssil, testemunho atrasado de tempos passados, nesse sentido, a idéia que nos ocupa, da idade média até ao menos o século XVII, não teve nada que nos autorize a caracterizá-la com esse termo; sua longevidade não foi uma degenerescência. Ela conservou uma vitalidade profunda; ela continuou dotada de uma força sentimental que agia sem cessar; ela se adaptou às novas condições políticas e, sobretudo, às religiosas; ela revestiu formas até então desconhecidas, entre as quais estavam, precisamente, os próprios rituais de cura. Nós não a explicaremos por suas origens, pois deveríamos, para fazê-lo, sair do campo próprio de nosso estudo; mas nós a explicaremos em sua duração e em sua evolução: o que também é uma parte muito importante da explicação total. Na biologia, dar conta da existência de um organismo não se resume apenas a pesquisar seu pai e mãe, como também determinar as características do meio que tanto permite que ele viva como o obriga a se modificar. O mesmo se aplica – mutatis mutandis – aos fatos sociais. Em suma, o que eu gostaria de fazer aqui é, essencialmente, contribuir para a história política da Europa no sentido amplo everdadeiro da palavra. Pela própria força das coisas, este ensaio de história política teve de tomar a forma de um ensaio de história comparada: pois a França e a Inglaterra possuíram reis médicos e a idéia da realeza maravilhosa e sagrada foi comum a toda a Europa ocidental: necessidade feliz, se for verdade, como eu penso que é, que a evolução das civilizações das quais nós somos herdeiros só se tornará clara para nós no dia em que nós saberemos a considerar fora dos limites excessivamente estreitos das tradições nacionais6. Tem mais. Se eu não temesse tornar ainda mais pesado um título que já é longo demais, eu teria dado a este livro um segundo subtítulo: História de um Milagre. A cura das escrófulas ou da epilepsia pelas mãos reais foram, em efeito, como o lembrava aos venezianos o bispo de Bisaccia, um “milagre”: um grande milagre, na verdade, que deve estar sem dúvidas entre os mais ilustres, em todo caso entre os mais contínuos que se deram no passado; inúmeros testemunhos o atestaram; seu brilho se apagou apenas ao final de sete séculos de popularidade elevada e de uma glória quase sem nuvens. Poderia a história crítica de uma tal manifestação sobrenatural ser indiferente à psicologia religiosa, ou, melhor dizendo, ao nosso conhecimento do espírito humano? *** A maior dificuldade que eu encontrei durante minhas pesquisas veio do estado das fontes. Não que os testemunhos relativos ao poder taumatúrgirco dos reis não fossem, no conjunto delas, e com exceção dos princípios, bastante abundantes; mas eles estavam extremamente dispersos e, sobretudo, tinham naturezas prodigiosamente diversas. Julguem apenas através de um único exemplo: nossa informação mais antiga sobre o toque das escrófulas pelos reis da França se encontra em uma pequena obra de polêmica religiosa chamada “Tratado sobre as relíquias”; o mesmo ritual na Inglaterra é atestado pela primeira fez, de uma certa forma, por uma carta privada, que talvez não seja mais do que um exercício de estilo; a primeira menção que possuímos dos anéis 6 Aliás, eu não dissimulo de forma alguma que, em minha pesquisa, eu nem sempre consegui manter um equilíbrio entre os dois países cujos destinos semelhantes eu queria seguir. Nós encontraremos, talvez, a Inglaterra um pouco sacrificada algumas vezes. Eu pude estudar a história dos rituais de cura, com a diferença de uns poucos detalhes, tão completamente, creio, do que para o caso francês, mas não a história da realeza sagrada. O estado atual da Europa, pouco favorável às viagens e às compras de livros estrangeiros pelas bibliotecas públicas ou público privado, causa mais dificuldades do que nunca às pesquisas de história comparada. O remédio seria, sem dúvidas, uma boa organização de empréstimos internacionais para livros impressos e manuscritos; sabemos que a Grã-Bretanha, notadamente, não tomou ainda esse caminho. Meu trabalho, aliás, só se tornou possível, como já indiquei, pela generosidade de um doador – M. de Rotschild – a quem o Institut de France deve a sua Maison em Londres. Infelizmente, só pude passar na Inglaterra um dia, no começo, quando pouco se faz necessário, de minhas pesquisas, quer dizer, em um momento onde os problemas não parecem jamais com toda a amplidão e complexidade que descobrimos mais tarde; daí certas lacunas que, malgrado a boa vontade meus amigos londrinos, não consegui preencher. curativos, consagrados pelos reis ingleses, deve ser buscada em uma ordenança real. Para a continuidade do relato, foi necessária a contribuição de um monte de documentos de espécies diferentes: livros de contas, escritos políticos ou teológicos, tratados médicos, textos litúrgicos, monumentos figurados, - nem vou continuar falando; o leitor verá desfilar sob seus olhos até mesmo um baralho. As contas reais, tanto as francesas como as ingleses, não puderam ser exploradas sem um exame crítico; eu dediquei a eles um estudo especial, mas ele tinha enchido demais a Introdução; o joguei para o final do volume. O dossier iconográfico, muito pobre, foi relativamente fácil de inventariar; eu procurei criar um estado da arte exato, que pode ser encontrado no apêndice. As outras fontes me pareceram pouco numerosas e díspares de mais para tentar realizar um recenseamento; contentarei-me de citá-las e de comentá-las conforme as utilizo. De resto, em um material tal, o que poderia ser a nomeação das fontes? – alguma coisa, na verdade, como uma lista de golpes secos. Há bem poucos os documentos dos quais pode-se dizer adiantadamente, com alguma certeza, se ele fornecerá, ou não fornecerá, uma indicação útil ao milagre real. É preciso ir tateando, confiar na sorte ou no instinto e perder muito tempo, tudo em troca de uma colheita magra. Se todas as coletâneas de textos estivessem munidas de um índice – e aqui penso em um índice de assuntos-! Mas é necessário lembrar quantas não os possuem? Esses instrumentos indispensáveis de trabalho parecem tornar-se mais raros à medida que lidamos com documentos mais recentes. Sua ausência, freqüente demais, constitui um dos vícios mais chocantes de nossos métodos atuais de publicação. Eu o digo, talvez, com algum rancor, pois essa lacuna deplorável me atrapalhou muito. Aliás, mesmo quando o índice existe, acontece de seu autor ter negligenciado sistematicamente a compreensão das menções relativas aos rituais de cura, sem dúvida porque essas práticas vãs são julgadas como abaixo da dignidade da história. Muitas vezes eu tive a impressão de ser um homem no meio de um grande número de baús fechados, dos quais alguns guardavam ouro e outros guardavam cascalho, sem que nenhuma inscrição ajudasse a distinguir entre os tesouros e os pedregulhos. Isso quer dizer que estou longe de pensar ser completo. Que esse livro possa incitar pesquisadores a novas descobertas! Felizmente eu não exploro um terreno inteiramente novo. Não existia, que eu saiba, uma obra histórica que tratasse do assunto que eu quis tratar e tivesse a amplidão e o caráter crítico que eu me esforcei em dar a minha. No entanto, a bibliografia das curas reais é bastante rica. Na verdade, ela é dupla: há duas bibliografias de origens diferentes que estão lado a lado e que, normalmente, se ignoram: uma compreende os trabalhos de eruditos da profissão; a outra – mais abundante – é formada pela obra dos médicos. Eu me esforcei para conhecer e utilizar ambas. Abaixo, pode-se encontrar uma lista bibliográfica que vai parecer, sem dúvidas, longa demais. Eu não queria que algumas obras distintas, as quais eu utilizei sem cessar, ficasse perdidas na multidão. Por isso vou nomear aqui meus principais guias. Os estudos já antigos de Law Hussey e de Waterton me foram de grande ajuda. Entre os autores ainda vivos, eu devo mais do que poderia explicar à M. François-Delaborde, a Dr. Crawfurd e à Miss Helen Farquhar. Eu também contraí uma grande dívida de reconhecimento em relação a predecessores de outra época. Do século XVI ao XVIII, escreveu-se muito sobre os rituais de cura; nessa literatura do Antigo Regime mesmo os registros mais bobos são interessantes, pois deles podemos tirar informações curiosas sobre o estado de espírito da época; mas ela não contém apenas coisas bobas. O século XVII, em particular, viu nascer, junto de obras ou panfletos de uma inépcia rara, alguns trabalhos notáveis, como as páginas dedicadas às escrófulas pelo Peyrat em sua História Eclesiástica da Corte; sobretudo, eu devo destacar como excepcionais duas teses acadêmicas: as de Daniel Georges Morhof e a de Jean Joachim Zentgraff; eu não encontrei em parte alguma uma abundância semelhante de informações úteis. Eu sinto umgrande prazer, particularmente, de lembrar aqui de tudo que eu devo à segunda dessas dissertações: pois eu pude encontrar em seu autor um colega. Jean Joachim Zentgraff era de Estrasburgo; nascido na cidade livre, ele se tornou súdito de Luis XIV, pronunciou o elogio de Henrique, o Grande7 e fez, em sua cidade natal, agora francesa, uma carreira universitária brilhante. O livro que aparece aqui entre as Publicações de nossa Facudade de Letras ressuscitou: é muito agradável, para mim, continuar, de certa forma, com um espírito que sofre a diferença dos tempos, a obra começada então por um Reitor da antiga Universidade de Estrasburgo. 7 Dia 17 de maio de 1691; o discurso foi impresso: Speculum boni principis in Henrico Magno Franciae et Navarrae rege exhibitum exercitatione política Deo annuente, in inclyla Argentoratensium Academia...Argentorari, Literis Joh. Friederici Spoor, placa pétrea in-4º, 54 p. Essa pequena obra deve ser muito rara; não conheço muitos exemplares além dos da Biblioteca Nacional e da Biblioteca Wilhelmiana em Estrasburgo. Nele lemos, p. 12, um elogio do Edito de Nantes que, apesar de sua brevidade,parece significativo quando colocado em seu tempo. Sobre a carreira de Zentgradd (além dos árticos da Allgemeine Deutsche Biographie e da France Protestante), pode-se consultar O. BERGER- LEVRAULT, Annales dês professeurs dês Académies et Universités alsaciennes, Nancy, 1892, p. 262.
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