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CAPÍTULO VI CONCEITO DE DIREITO - SUA ESTRUTURA TRIDIMENSIONAL SUMÁRIO: A intuição de Dante. Acepções da palavra "Direito". Estrutura tridimensional do Direito. O estudo das diferenças e correlações entre a Moral e o Direito já nos permite dar uma noção do Direito, sem que nos mova a preocupação de definir. Resumindo o já exposto podemos dizer que o Direito é a ordenação bilateral atributiva das relações sociais, na medida do bem comum. Todas as regras sociais ordenam a conduta, tanto as morais como as jurídicas e as convencionais ou de trato social. A maneira, porém, dessa ordenação difere de uma para outra. É próprio do Direito ordenar a conduta de maneira bilateral e atributiva, ou seja, estabelecendo relações de exigibilidade segundo uma proporção objetiva. O Direito, porém, não visa a ordenar as relações dos indivíduos entre si para satisfação apenas dos indivíduos, mas, ao contrário, para realizar uma convivência ordenada, o que se traduz na expressão: "bem comum". O bem comum não é a soma dos bens individuais, nem a média do bem de todos; o bem comum, a rigor, é a ordenação daquilo que cada homem pode realizar sem prejuízo do bem alheio, uma composição harmônica do bem de cada um com o bem de todos. Modernamente, o bem comum tem sido visto, - e este é, no fundo, o ensinamento do jusfilósofo italiano Luigi Bagolini, - como uma estrutura social na qual sejam possíveis formas de participação e de comunicação de todos os indivíduos e grupos. A INTUIÇÃO DE DANTE Essa conceituação ética do Direito, que coloca a coação como elemento externo e não como elemento intrínseco da própria vida jurídica, teve uma formulação bastante feliz, por obra não de um jurista, mas de um poeta. Conhecem os senhores evidentemente a personalidade extraordinária do poeta Dante Alighieri. O "divino poeta", além de ternos legado a Divina Comédia - o poema maravilhoso da Cristandade - deixou obras de Política e Filosofia e, 55 numa delas, referindo-se ao Direito, escreveu estas palavras que devem ficar esculpidas no espírito dos juristas, pela apreensão genial daquilo que no Direito existe de substancial: Jus est realis ac personalis hominis ad hominem proportio, quae servata servat societatem; corrupta, corrumpit. Esta definição de Dante merece nossa análise demorada pois, de maneira límpida, é apresentada a ordem jurídica como fundamento inarredável da sociedade. Vamos traduzir, se é necessário fazê-lo, uma vez que as palavras são transparentes: "O Direito é uma proporção real e pessoal, de homem para homem, que, conservada, conserva a sociedade; corrompida, corrompe-a". Dante esclarece que a relação é uma proporção. A proporção é, sempre, uma expressão de medida. O Direito não é uma relação qualquer entre os homens, mas sim aquela relação que implica uma proporcionalidade, cuja medida é o homem mesmo. Notem como o poeta viu coisas que, antes dele, os juristas não tinham visto, oferecendo-nos uma compreensão do Direito, conjugando os conceitos de proporção e socialidade. Proporção entre quem? De homem para homem. Quando a proporção e respeitada, realiza-se a harmonia " ...quae servata, servat societatem..." e, quando corrompida, corrompe a mesma sociedade. Mas, Dante não diz que há apenas uma proporção de homem para homem. Ele delimita melhor o sentido da palavra proportio esclarecendo, quase com o rigor da técnica moderna: realis ac personalis. É aqui que se nota a atualidade da conceituação jurídica oferecida por Dante, pois, dentre as múltiplas distinções do Direito, nenhuma é tão fundamental como a que distingue os direitos em reais e pessoais. "O Direito é uma proporção real e pessoal, de homem para homem..." parece, à primeira vista, uma expressão redundante: pessoal, de homem para homem. Se é pessoal, por que dizer de homem para homem? É que, para Dante, o Direito tutela as coisas somente em razão dos homens: a relação jurídica conclui-se entre pessoas, não entre homens e coisas, mas é "real" quando tem uma coisa (res) como seu objeto. A sua definição inspirava-se na obra e nos ensinamentos aristotélico- tomistas e, também, nas grandes lições dos jurisconsultos romanos, 56 especialmente nas lições de Cícero, que dizia que devemos conhecer perfeitamente o homem, a natureza humana para, depois, conhecer o Direito. Segundo o grande orador e político romano devemos procurar o segredo do Direito na própria natureza do homem: natura juris ab homine repetenda est natura. Vamos buscar o elemento fundamental do Direito no exame mesmo da natureza humana, pois é ele uma expressão ou dimensão da vida humana, como intersubjetividade e convivência ordenada. Quer dizer que essas idéias, que hoje nos parecem tão modernas, como a da humanização e da socialização do Direito, já encontram os seus antecedentes através de uma tradição histórica mais que milenar. O Direito, indiscutivelmente, inova, apresenta elementos de renovação permanente, mas conserva, sempre, um fulcro de tradição. ACEPÇÕES DA PALAVRA "DIREITO" Com a palavra "Direito" acontece o que sempre se dá quando um vocábulo, que se liga intimamente às vicissitudes da experiência humana, passa a ser usado séculos a fio, adquirindo muitas acepções, que devem ser cuidadosamente discriminadas. Em primeiro lugar, lembremos que esta é uma Faculdade de Direito, o que quer dizer de Ciência Jurídica. Estudar o Direito é estudar um ramo do conhecimento humano, que ocupa um lugar distinto nos domínios das ciências sociais, ao lado da História, da Sociologia, da Economia, da Antropologia etc. A Ciência do Direito, durante muito tempo teve o nome de Jurisprudência, que era a designação dada pelos jurisconsultos romanos.Atualmente, a palavra possui uma acepção estrita, para indicar a doutrina que se vai firmando através de uma sucessão convergente e coincidente de decisões judiciais ou de resoluções administrativas (jurisprudências judicial e administrativa). Pensamos que tudo deve ser feito para manter-se a acepção clássica dessa palavra, tão densa de significado, que põe em realce uma das virtudes primordiais que deve ter o jurista: a prudência, o cauteloso senso de medida das coisas humanas. 57 Pois bem, esse primeiro sentido da palavra "Direito" está em correlação essencial com o que denominamos "experiência jurídica", cujo conceito implica a efetividade de comportamentos sociais em função de um sistema de regras que também designamos com o vocábulo Direito. Não há nada de estranhável nesse fato, pois é comum vermos uma palavra designar tanto a ciência como o objeto dessa mesma ciência, isto é, a realidade ou tipo de experiência que constitui a razão de ser de suas indagações e esquemas teóricos. "Direito" significa, por conseguinte, tanto o ordenamento jurídico, ou seja, o sistema de normas ou regras jurídicas que traça aos homens determinadas formas de comportamento, conferindo-lhes possibilidades de agir, como o tipo de ciência que o estuda, a Ciência do Direito ou Jurisprudência. Muitas confusões surgem do fato de não se fazer uma distinção clara entre um sentido e outro. Quando dizemos, por exemplo, que o Direito do Brasil contemporâneo é diferente do que existia no Império e na época colonial, embora mantendo uma linha de continuidade, de acordo com a índole da nossa gente e nossas contingências sócio-econômicas, estamos nos referindo, de preferência, a um momento da vida da sociedade, a um fato social. É o Direito como fenômeno histórico-cultural. Não pensem, entretanto, que se deva fazer uma identificação entre o Direito como experiência social e o Direito como ciência. A prova de que essa identificação não se justifica está nestefato, de conseqüências relevantes: não é apenas a Ciência do Direito que estuda a experiência social que chamamos Direito. O fenômeno jurídico pode ser estudado, como já vimos, também pelo sociólogo, dando lugar a um campo de pesquisas que se chama Sociologia Jurídica. A experiência jurídica pode ser igualmente estudada em seu desenvolvimento no tempo, surgindo assim a História do Direito. História do Direito, Sociologia Jurídica e Ciência do Direito são três campos de conhecimento distintos, que se constituem sobre a base de uma única experiência humana, que é o Direito como fato de convivência ordenada. 58 Não param aí, todavia, as acepções da palavra. Às vezes dizemos que Fulano ou Beltrano se bateram ardorosamente "pelo Direito", ou que a "Organização das Nações Unidas propugna pelo Direito". Nesses casos, a palavra indica algo que está acima das duas acepções já examinadas, traduzindo um ideal de Justiça. Direito, em tais casos, significa "Justo". Quando nos referimos à luta, aos embates em favor do Direito, estamos empregando a palavra Direito em sentido axiológico, como sinônimo de "Justiça". Resta ainda focalizar uma outra conotação da palavra Direito, que se identifica facilmente quando dizemos que o proprietário tem o direito de dispor do que é seu: é o sentido subjetivo do Direito, inseparável do objetivo, ao qual já nos referimos. É, por assim dizer, a regra de direito vista por dentro, como ação regulada. Dissemos, numa das aulas anteriores, que as regras representam sempre o traçado dos âmbitos de atividade dos homens e dos grupos. Examinando qualquer norma de direito que discipline o comportamento humano, percebemos que nela coexistem dois aspectos bem distintos: se, por um lado, ela ordena a conduta, de outro, assegura uma possibilidade ou poder de agir. Temos, assim, um módulo de comportamento, com dois efeitos concomitantes: ao mesmo tempo que delimita a ação, garante-a dentro do espaço social delimitado. Quando o Estado edita uma norma de direito, fixando limites ao comportamento dos homens, não visa ao valor negativo da limitação em si, mas sins ao valor positivo da possibilidade de se pretender algo na esfera previamente circunscrita. Não pensem que há na ordem jurídica a preocupação de levantar paredes em torno da atividade individual. O ideal é que cada homem possa realizar os seus fins da maneira mais ampla, mas é intuitivo que não poderia coexistir o arbítrio de cada um como o dos demais sem uma delimitação harmônica das liberdades, consoante clássico ensinamento de Kant. Desse modo, o Direito delimita para libertar: quando limita, liberta. 59 Pois bem, esse é o problema do Direito Subjetivo, que será melhor analisado uma de nossas próximas aulas, após mais precisa determinação do Direito Objetivo, do qual é inseparável. Como vêem, a palavra Direito tem diferentes acepções, o que pode parecer estranho, mas já advertimos que é impossível nas ciências humanas ter-se sempre uma só palavra para indicar determinada idéia e apenas ela. O químico tem a vantagem de empregar símbolos distintos: o símbolo CO2, por exemplo, se refere a um único e determinado ser. Isso dá segurança no campo da pesquisa e põe o problema da comunicação sobre bases mais sólidas, o que tem induzido alguns juristas a tentar axiomatizar o Direito, mas tais formalizações de tipo matemático sacrificam o conteúdo axiológico, essencial à compreensão da experiência jurídica. No campo das ciências sociais, não podemos alimentar ilusões no sentido de extremado rigor terminológico, mas nem por isso nos faltam estruturas conceituais ajustáveis à complexa e matizada conduta humana. ESTRUTURA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO O simples fato de existirem várias acepções da palavra Direito já devia ter suscitado uma pergunta, que, todavia, só recentemente veio a ser formulada, isto é: esses significados fundamentais que, através do tempo, têm sido atribuídos a uma mesma palavra, já não revelam que há aspectos ou elementos complementares na experiência jurídica? Uma análise em profundidade dos diversos sentidos da palavra Direito veio demonstrar que eles correspondem a três aspectos básicos, discerníveis em todo e qualquer momento da vida jurídica: um aspecto normativo (o Direito como ordenamento e sua respectiva ciência); um aspecto fático (o Direito como fato, ou em sua efetividade social e histórica) e um aspecto axiológico (o Direito como valor de Justiça). Nas últimas quatro décadas o problema da tridimensionalidade do Direito tem sido objeto de estudos sistemáticos, até culminar numa teoria, à qual penso ter dado uma feição nova, sobretudo pela demonstração de que: a) onde quer que haja um fenômeno jurídico, há, sempre e necessariamente, um fato subjacente (fato econômico, geográfico, 60 demográfico, de ordem técnica etc.); um valor, que confere determinada significação a esse fato, inclinando ou determinando a ação dos homens no sentido de atingir ou preservar certa finalidade ou objetivo; e, finalmente, uma regra ou norma, que representa a relação ou medida que integra um daqueles elementos ao outro, o fato ao valor; b) tais elementos ou fatores (fato, valor e norma) não existem separados um dos outros, mas coexistem numa unidade concreta; c) mais ainda, esses elementos ou fatores não só se exigem reciprocamente, mas atuam como elos de um processo (já vimos que o Direito é uma realidade histórico-cultural) de tal modo que a vida do Direito resulta da interação dinâmica e dialética dos três elementos que a integram1. Isto posto, analisemos o esquema ou estrutura de uma norma ou regra jurídica de conduta: a) Se F é, deve ser P; b) Se não for P, deverá ser SP2. Há, por exemplo, norma legal que prevê o pagamento de uma letra de câmbio na data de seu vencimento, sob pena do protesto do título e de sua cobrança, gozando o credor, desde logo, do privilégio de promover a execução do crédito. Logo, diríamos: a) se há um débito cambiário (F), deve ser pago (P); b) se não for quitada a dívida (não P), deverá haver uma sanção penal (SP). Mais tarde, estudaremos melhor essa questão. O que por ora desejamos demonstrar é que, nesse exemplo, a norma de direito cambial representa uma disposição legal que se baseia num fato de ordem econômica (o fato de, na época moderna, as necessidades do comércio terem exigido formas adequadas de 1 Sobre esses e outros aspectos da minha teoria tridimensional, vide nossas Filosofia do Direito, 13.a ed., São Paulo, 1990; Teoria Tridimensional do Direito, 4.a ed., São Paulo, 1986, e O Direito como Experiência, São Paulo, 1968, 2.a ed., 1992. Cf., também, Recaséns Siches, Tratado General de Filosofia del Derecho, México, 1959, págs. 158 a 164, e Introducción al Estudio del Derecho, México, 1970, págs. 40 e segs. 2 F = fato; P = prestação; SP = sanção penal. Vide págs. 101 e segs. deste livro. 61 relação) e que visa a assegurar um valor, o valor do crédito, a vantagem de um pronto pagamento com base no que é formalmente declarado na letra de câmbio. Como se vê, um fato econômico liga-se a um valor de garantia para se expressar através de uma norma legal que atende às relações que devem existir entre aqueles dois elementos. Pois bem, se estudarmos a história da letra de câmbio, que, numa explicação elementar e sumária, surgiu como um documento mediante o qual Fulano ordenava a Beltrano que pagasse a Sicrano determinada importância, à vista da apresentação do título; se estudarmos a evolução dessa notável criação do Direito mercantil, verificamos que ela veio sofrendo alterações através dos tempos, quer em virtude de mudanças operadas no plano dos fatos (alterações nos meiosde comunicação e informação, do sistema de crédito ou organização bancária), quer devido à alteração nos valores ou fins econômico-utilitários do crédito e da circulação garantida da riqueza, até se converter num título de crédito de natureza autônoma, literal, abstrata e exeqüível. Desse modo, fatos, valores e normas se implicam e se exigem reciprocamente, o que, como veremos, se reflete também no momento em que o jurisperito (advogado, juiz ou administrador) interpreta uma norma ou regra de direito (são expressões sinônimas) para dar-lhe aplicação. Desde a sua origem, isto é, desde o aparecimento da norma jurídica, - que é síntese integrante de fatos ordenados segundo distintos valores, - até ao momento final de sua aplicação, o Direito se caracteriza por sua estrutura tridimensional, na qual fatos e valores se dialetizam, isto é, obedecem a um processo dinâmico que aos poucos iremos desvendando. Nós dizemos que esse processo do Direito obedece a uma forma especial de dialética que denominamos "dialética de implicação-polaridade", que não se confunde com a dialética hegeliana ou marxista dos opostos. Esta é, porém, uma questão que só poderá ser melhor esclarecida no âmbito da Filosofia do Direito. Segundo a dialética de implicação-polaridade, aplicada à experiência jurídica, o fato e o valor nesta se correlacionam de tal modo que cada um deles se mantém irredutível ao outro (polaridade) mas se exigindo mutuamente (implicação) o que dá origem à 62 estrutura normativa como momento de realização do Direito. Por isso é denominada também "dialética de complementaridade". Isto posto, podemos completar a nossa noção inicial de Direito, conjugando a estrutura tridimensional com a nota específica da bilateralidade atributiva, neste enunciado: Direito é a realização ordenada e garantida do bem comum numa estrutura tridimensional bilateral atributiva, ou, de uma forma analítica: Direito é a ordenação heterônoma, coercível e bilateral atributiva das relações de convivência, segundo uma integração normativa de fatos segundo valores. Ultimamente, pondo em realce a idéia de justiça, temos apresentado, em complemento às duas noções supra da natureza lógico-descritiva, esta outra de caráter mais ético: Direito é a concretização da idéia de justiça na pluridiversidade de seu dever ser histórico, tendo a pessoa como fonte de todos os valores. Se analisarmos essas três noções do Direito veremos que cada uma delas obedece, respectivamente, a uma perspectiva do fato ("realização ordenada do bem comum"), da norma ("ordenação bilateral-atributiva de fatos segundo valores") ou do valor ("concretização da idéia de justiça"). Donde devemos concluir que a compreensão integral do Direito somente pode ser atingida graças à correlação unitária e dinâmica das três apontadas dimensões da experiência jurídica, que se confunde com a história mesma do homem na sua perene faina de harmonizar o que é com o que deve ser. Se, como bem adverte Jackson de Figueiredo, a vida vale sobretudo como oportunidade de aperfeiçoar-nos, o Direito, em razão de sua própria estrutura e destinação, representa uma das dimensões essenciais da vida humana. 63
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