Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Estudos sobre o novo CPC/2015 1 SOBRE O INÍCIO DA VIGÊNCIA DO CPC/2015 Por Fredie Didier Jr., Leonardo Carneiro da Cunha e Ravi Peixoto A Lei n. 13.105, de 2015, que aprovou o novo Código de Processo Civil, tem, em seu art. 1.045, a seguinte disposição: “Este Código entra em vigor após decorrido 1 (um) ano da data de sua publicação oficial”. Isso significa que o referido texto normativo prevê que o seu prazo de vacância será de um ano a partir de sua publicação oficial, que foi realizada no dia 17 de março de 2015. Não parece haver dúvidas: a vacatio legis é de um ano. Já há, porém, quem defenda que o prazo não é de 1 ano, mas de 365 dias. É possível, então, perceber duas correntes interpretativas a respeito desse tema: a) consoante o §1º., do art. 8º., da LC 95/1998 (que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis), “[a] contagem do prazo para entrada em vigor das leis que estabeleçam período de vacância far-se-á com a inclusão da data da publicação e do último dia do prazo, entrando em vigor no dia subsequente à sua consumação integral”. Em outras palavras, a contagem do prazo de vacância leva em conta tanto o dia da publicação como o último dia do prazo, entrando em vigor um dia após o prazo de vacância estabelecido no texto normativo, que, no CPC-2015, foi de 1 ano. É importante destacar: 1 ano, e não 365 dias. O art. 1º. da Lei 810/1949 destaca que “Considera-se ano o período de doze meses contado do dia do início ao dia e mês correspondentes do ano seguinte”. Portanto, a contagem de prazo fixado em 1 ano leva em conta um período de 12 meses e findará no mesmo dia do mesmo mês do ano seguinte. Em razão disso, o prazo de vacância do CPC/2015 teve início no dia 17 de março de 2015, data da publicação, e, contado um ano a partir daquele momento, com a inclusão do último dia do prazo, tem-se o fim do prazo no dia 17 de março de 2016. Como o §1º. do art. 8º. da LC 95/1998 determina que o texto normativo entra em vigor no dia subsequente à consumação integral do prazo de vacância, o CPC/2015 entra em vigor no dia 18 de março de 2016. (Nesse sentido: CRAMER, Ronaldo. Comentários ao art. 1.045. DIDIER JR., Fredie; TALAMINI, Eduardo; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; DANTAS, Bruno. Breves comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015, p. 2357; CARVALHO, Fabiano. Divergência doutrinária sobre a entrada em vigor do Novo CPC e propostas de solução. Acesso às 15h, do dia 08/07/2015; BERALDO, Leonardo de Faria. Comentários às inovações do Código de Processo Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2015, p. 441) b) outra corrente defende que esse prazo anual previsto pelo art. 1.045 do CPC/2015 deve ser transformado em um prazo de 365 dias. Isso teria por base o texto normativo do §2º. do art. 8º. da LC 95/1998, o qual dispõe que “[a]s leis que estabeleçam período de vacância deverão utilizar a cláusula ‘esta lei entra em vigor após decorridos (o número de) dias de sua publicação oficial’.” Esse entendimento parece ter sido adotado como premissa pelo STJ em alguns casos, em que a contagem do prazo de vigência do Código Civil de 2002 seria relevante para o resultado do recurso, muito embora não se conheçam precedentes que examinem essa situação de forma fundamentada. O art. 2.044 do referido texto normativo Estudos sobre o novo CPC/2015 2 indica que “[e]ste Código entrará em vigor 1 (um) ano após a sua publicação”, tendo o Código Civil sido publicado no dia 11 de janeiro de 2002. Utilizada a primeira forma de contagem, ele deveria entrar em vigor no dia 12 de janeiro de 2003. Ocorre que o STJ, em determinado julgado (STJ, 3ª. T., REsp 1.125.276/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 28/02/2012, DJe 07/03/2012), fez referência a 11 de janeiro de 2003 como o dia em que teria iniciado a vigência do atual Código Civil, o que pode levar à suposição de que haveria adotado a forma de contagem em dias. Essa é apenas uma suposição, pois não há, em qualquer julgamento, fundamento ou razão que explique qual o critério a ser adotado. Se o início de vigência foi em 11 de janeiro de 2003, o critério de contagem adotado foi o de 365 dias. Para verificar esse prazo, veja-se a contagem dos 365 dias entre 2002 e 2003: 21 dias em janeiro, 28 dias em fevereiro, 31 dias em março, 30 em abril, 31 em maio, 30 em junho, 31 em julho, 31 em agosto, 30 em setembro, 31 em outubro, 30 em novembro, 31 em dezembro e 10 dias em janeiro de 2003. O termo final da contagem seria o dia 10 de janeiro, seguindo a regra de contagem do §1º. do art. 8º, tem-se o dia 11 como o dia de início de vigência do Código Civil de 2002. Não há, como já acentuado, uma ratio decidendi ou mesmo um obiter dictum do STJ em que ao menos se tenha discutido qual a forma de se interpretar esse prazo de vigência do Código Civil de 2002. Nos casos em que ele foi utilizado, o tribunal simplesmente fez referência ao dia 11 de janeiro de 2002 como a data em que iniciara sua vigência, dando, então, a entender que a contagem seria em dias, mas não há qualquer fundamento a esse respeito. Em outros termos: não há precedente do STJ sobre a forma de contagem do prazo de vigência do Código Civil de 2002. Não há qualquer motivação sobre o ponto. Por isso, não se pode falar na existência de precedentes sobre a matéria. Se adotada a contagem em dias, o CPC/2015, tendo sido publicado no dia 17 de março de 2015, haveria de entrar em vigor no dia 16 de março de 2015, da seguinte forma: 15 dias em março (inclusão do dia da publicação); 30 em abril; 31 em maio; 30 em junho; 31 em julho; 31 em agosto; 30 em setembro; 31 em outubro; 30 em novembro; 31 em dezembro; e 31 em janeiro (2016); 29 em fevereiro (2016, por ser ano bissexto); 15 em março (2016 – inclusão do último dia de prazo). O termo final do prazo de 365 dias seria o dia 15 de março. Como o §1º. do art. 8º. da LC 95/1998 determina que o texto normativo entra em vigor um dia após findo o prazo de vacância, o CPC entraria em vigor no dia 16 de março. Esse parece ser o critério adotado por Luiz Guilherme Marinoni, Daniel Mitidiero e Sérgio Cruz Arenhart que se restringem a indicar 16 de março de 2016 como a data em que o novo CPC deve entrar em vigor (Novo código de processo civil comentado. São Paulo: RT, 2015, p. 991). Afinal, qual a corrente mais adequada? O CPC/2015 deve entrar em vigor no dia 16 ou no dia 18 de março de 2016? A questão pode ser resolvida de forma simples, por meio da observação do §2º. da LC 95/1998, que dispõe que “[a]s leis que estabeleçam período de vacância deverão utilizar a cláusula ‘esta lei entra em vigor após decorridos (o número de) dias de sua publicação oficial”. É preciso perceber que esse texto normativo realiza uma indicação. Na verdade, o texto normativo contém um exemplo de como deve ser redigida a cláusula de vigência. No exemplo dado, valeu-se do prazo em dias, mas não impôs o prazo em dias. Nada veda que o prazo seja anual, até porque o caput do art. 8º. estabelece que a vigência Estudos sobre o novo CPC/2015 3 da lei será “indicada de forma expressa e de modo a contemplar prazo razoável para que dela se tenha amplo conhecimento”. Não há qualquer indicativo de alguma espécie de sanção pela não utilização do prazo em dias, ou mesmo da aptidão de transformar um prazo estabelecido em anos em dias. Isso influencia bastante a análise do CPC/2015. O art. 1.045 determina expressamente que a contagem da vacância do texto normativo é de um ano após sua publicação oficial. E o fez atendendo ao disposto no art. 8º. da LC 95/1998, ou seja, indicou expressamente o prazo, optando pelo período de 1 ano como o mais adequado à realidade das situações ali previstas. Não há qualquer autorização no ordenamento jurídico para que essa contagem de um prazo em ano seja transformada em dias, por maisque se entenda que a lei que trata da redação de textos normativos faça essa recomendação. Ainda que se entenda que a lei recomenda que o prazo de vacância seja estabelecido em dias, há de se reforçar que o art. 18 da LC 95/1998 assim enuncia: “Eventual inexatidão formal de norma elaborada mediante processo legislativo regular não constitui escusa válida para o seu descumprimento”. Assim, mesmo que o legislador do CPC/2015 não tenha seguido a orientação de redação do texto normativo, não há motivos para que haja recusa de cumprir suas previsões. Se um determinado legislador, como o fez o do CPC/2015, optar por fixar o prazo de vacância em anos, assim ele deve ser contado, não se podendo realizar sua transformação em um prazo de 365 dias. Tal modificação é relevante ao ponto de modificar a entrada em vigor de um determinado texto normativo. Não se trata de uma discussão meramente teórica, mas de grande importância prática. Em suma, parece evidente que o prazo da vacância do CPC/2015 deve ser contado em ano, e não em dias. Isso significa que o início de sua vigência ocorrerá no dia 18 de março de 2016, e não no dia 16 de março do mesmo ano. LEI 13.105/2015 - O NCPC DO BRASIL Por Ticiano Alves e Silva e Vitor Fonsêca Depois de 42 anos da sanção do CPC/1973, surge um Novo Código de Processo Civil no Brasil. A Lei Federal n. 13.105/2015 (Novo CPC de 2015), sancionada em 16/03/2015 pela Presidência da República e publicada em 17/03/2015 no Diário Oficial da União, é resultado de uma longa tramitação legislativa. Afinado com a Constituição Federal e especificamente com o devido processo lá desenhado, o texto tem uma seção intitulada “normas fundamentais do processo” e apresenta novidades em relação ao CPC/1973. Uma Comissão de Juristas foi instituída em 2009 pelo Presidente do Senado para elaborar o Anteprojeto de novo CPC. Em 08/06/2010, o Senado recebeu o Anteprojeto que foi autuado como Projeto de Lei (PLS) n. 166/2010. Depois de curta tramitação, o projeto foi encaminhado à Câmara dos Deputados em 20/12/2010, que o autuou como Projeto de Lei (PLC) n. 8.046/2010. Desde Estudos sobre o novo CPC/2015 4 2011, o Projeto foi longamente debatido na Câmara até que o texto substitutivo voltou ao Senado em 1º./04/2014. De volta ao Senado Federal, o texto-base e os destaques foram votados entre 16-17/12/2014, quando então o texto seguiu para uma polêmica revisão final e, após, foi encaminhado para sanção em 24/02/2015. A Presidente da República finalmente sancionou o Novo CPC em 16/03/2015, com mensagem de veto aos artigos: 35 (carta rogatória), 333 e 1.015, XII (conversão da ação individual em coletiva), 515, X (acórdão do tribunal marítimo como título executivo judicial), 895, §3º. (correção pelo índice oficial das prestações da alienação), 937, VII (sustentação oral em agravo interno) e 1.055 (pagamento de encargos por devedor ou arrendatário). A partir do texto sancionado, a impressão é que o legislador do Novo CPC quis indicar um modelo de “Código das Partes”. As partes do processo, como não poderia deixar de ser, devem ser tratadas igualmente (art. 7º.) e devem ser sempre ouvidas antes de uma decisão contrária a seus interesses (art. 9º.), até mesmo em questões que podem ser conhecidas de ofício pelo juiz (art. 10). Além disso, espera-se das partes, como também de todos os demais sujeitos do processo, inclusive do juiz, que se comportem de acordo com a boa-fé (art. 5º.), cooperando entre si (art. 6º.), para que se obtenha, em prazo razoável (art. 4º.), decisão de mérito justa e efetiva. Em consonância com a Constituição Federal, dispõe o NCPC que os julgamentos devem ser públicos e fundamentados (art. 11), devendo o juiz, por exemplo, enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador (art. 489, §1º.). Sem embargo, o Novo CPC preocupa-se com o aproveitamento máximo do processo. Os atos processuais, mesmo com erro de forma, devem ser aproveitados o máximo possível (art. 283). Por exemplo, a guia de custas do recurso, se preenchida com equívoco, pode ser corrigida (art. 1.007, §7º.). A mesma correção pode ser feita caso o recurso tenha sido apresentado sem a procuração do advogado (art. 76). São muitas as novas regras processuais no texto e entre elas destacam-se: 1. Julgamento por ordem cronológica (art. 12): os juízes e os tribunais deverão obedecer, com algumas exceções, à ordem crescente de data de conclusão dos processos para proferirem sentenças e acórdãos; 2. Honorários recursais (art. 85, §11): os honorários do advogado fixados em primeiro grau de jurisdição podem ser majorados caso o recurso não tenha sucesso; 3. Contagem de prazos processuais em dias úteis (art. 219): na contagem dos prazos processais, passam a ser computados apenas os dias úteis; 4. Extinção dos procedimentos cautelares típicos e atípicos (art. 294 e seguintes): as medidas cautelares passam a ser reguladas na “tutela provisória”, em caráter antecedente ou principal; 5. Incentivo à conciliação e à mediação (arts. 165 e seguintes e 334): o réu não é mais citado para contestar, mas para comparecer a audiência de conciliação ou de mediação. Os tribunais, aliás, deverão criar centros judiciários de solução consensual de conflitos; Estudos sobre o novo CPC/2015 5 6. Distribuição dinâmica do ônus da prova (art. 373, §1º.): nos casos previstos em lei e diante de peculiaridades da causa, relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo do ônus da prova ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso da regra legal, em decisão fundamentada. As partes, porém, devem ser previamente avisadas sobre seu novo ônus de prova; 7. Amicus curiae (art. 138): em todos os processos, o juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá solicitar ou admitir a manifestação no processo de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada; 8. Direito à fundamentação da decisão qualificado (art. 489, §1º.): não se considera fundamentada a decisão que, por exemplo, se limitar à reprodução de texto de lei, sem explicar sua relação com a causa, ou o ato decisório que se limitar a invocar enunciado de súmula sem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos, entre outras hipóteses; 9. Respeito aos precedentes judiciais (art. 926 e seguintes): do mesmo modo que os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente, também os juízes devem seguir os precedentes judiciais, especialmente dos tribunais superiores (STF e STJ). O NCPC incorpora a ideia, tão cara a um Estado Constitucional, independentemente se do civil law ou do common law, segundo a qual casos iguais devem receber idêntico tratamento pelos Poderes da república, inclusive o Judiciário, consagrando o direito à igualdade perante as decisões judiciais; 10. Incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 976 e seguintes): em caso de processos repetitivos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito, material ou processual, os tribunais podem ser chamados a decidir um incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR), para evitar o risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica; 11. Negócio jurídico processual (arts. 190 e 191): avançando em algo já existente no CPC/1973 (convenção sobre ônus da prova e sobre suspensão do processo, por exemplo), o Novo CPC estabelece novo e aberto regramento sobre os negócios jurídicos processuais, permitindo, com limitações, que as partes alterem disposições do procedimento, a fim de adaptá-loaos seus interesses individuais na resolução do mérito. Essa é apenas uma amostra do que está por vir dentro do prazo de um ano correspondente a vacatio legis. Como se vê, este artigo não pretende apresentar exaustivamente as inovações do Novo Código de Processo Civil, mas, sim, ser uma apresentação ao novo sistema processual civil. O Novo Código de Processo Civil é moderno. Pretende ser o Código de muitas próximas décadas. Sendo o texto legal também texto, e portanto sujeito a interpretações várias, à doutrina, à jurisprudência e aos profissionais do direito reserva-se um trabalho árduo pela frente, com muito estudo sério e interpretações/aplicações responsáveis. É preciso levar o Novo Código de Processo Civil a sério. Extrair dele tudo aquilo que ele pode dar, e não encará-lo com antipatia, que pode levar a uma má vontade. Estudos sobre o novo CPC/2015 6 O ano de 2015 é o ano do Novo CPC. Um ano de muito estudo. O que parecia distante, em razão do vai e vem legislativo, agora está aí. O Novo CPC chegou. Afinal, o novo sempre vem… O Neoconstitucionalismo e sua influência sobre a ciência processual: algumas reflexões sobre o neoprocessualismo e o projeto do novo Código de Processo Civil Marcos Meira Publicado em 02/2015. Elaborado em 02/2015. Propõe-se a examinar, criticamente, o fenômeno do neoconstitucionalismo para entender seus principais desdobramentos na cultura jurídica contemporânea, sobretudo, no campo da ciência processual e como inspirou a elaboração do anteprojeto do Novo CPC. Resumo: O trabalho propõe-se a examinar, criticamente, o fenômeno do neoconstitucionalismo para entender seus principais desdobramentos na cultura jurídica contemporânea, sobretudo, no campo da ciência processual. A partir de seus marcos teóricos fundamentais, busca-se explicar alguns fenômenos jurídicos atuais, como a constitucionalização do Direito, a judicialização de políticas públicas, o ativismo judicial, a teoria da coisa julgada inconstitucional e o Neoprocessualismo. Examina-se, ainda, a influência que a teoria neoconstitucional exerceu, e exerce, sobre a ciência processual e como inspirou a comissão de juristas responsável pela elaboração do anteprojeto do Novo Código de Processo Civil. Palavras-chave: Neoconstitucionalismo. Constitucionalização do Direito. Judicialização de políticas públicas. Ativismo judicial. Teoria da coisa julgada inconstitucional. Neoprocessualismo. Formalismo-valorativo. Novo CPC. Sumário: Introdução; 1. Marcos do neoconstitucionalismo; 2. O marco histórico; 3. O marco filosófico. O Positivismo. O pós-positivismo; 4. O marco teórico; 4.1. Normatividade, superioridade e centralidade da Constituição; 4.2. A expansão da jurisdição constitucional. O respeito à dignidade da pessoa humana; 4.3. A nova interpretação constitucional. Conflitos axiológicos (choque entre princípios e valores fundamentais da ordem jurídica); 5. As manifestações do neoconstitucionalismo no ordenamento jurídico brasileiro; 5.1. A constitucionalização do Direito; 5.2. A judicialização de políticas públicas. Os parâmetros de controle; 5.3. O ativismo judicial; 5.4. A teoria da coisa julgada inconstitucional; 6. O Neoprocessualismo; 6.1. Evolução do direito processual. Sincretismo ou praxismo. Processualismo. Instrumentalismo. Neoprocessualismo. O formalismo- valorativo; 6.2. O Neoprocessualismo e as teorias modernas do direito de ação. Direito de ação como direito à tutela jurisdicional efetiva, adequada e tempestiva. Direito de ação como direito à efetiva satisfação do direito material reclamado; 7. O Neoprocessualismo e o novo CPC; 8. Conclusões. 1. Marcos do neoconstitucionalismo. O surgimento do constitucionalismo clássico está ligado não só à promulgação das Constituições escritas e rígidas dos Estados Unidos da América (1787) e da Estudos sobre o novo CPC/2015 7 França (1791), mas também à Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). A partir delas, as constituições começaram a surgir por toda Europa e, posteriormente, por outros continentes. Nessa época, todavia, a constituição era vista muito mais como instrumento político do que jurídico, o que acabava dificultando, e mesmo impedindo, a sua aplicação de fato. Foi na segunda metade do século XX, sobretudo no pós-guerra, como uma reação natural aos regimes totalitários, que as constituições passaram a exercer um poder normativo efetivo, iniciando-se uma nova fase do constitucionalismo, chamado de constitucionalismo contemporâneo ou neoconstitucionalismo. O neoconstitucionalismo consubstancia uma nova visão acerca dos propósitos da Constituição nas estruturas jurídicas contemporâneas. Tal visão tem por pressuposto que a Constituição exerce uma função de supremacia em relação aos demais diplomas legais. Sendo que tal supremacia vai além do controle de constitucionalidade e da tutela da esfera individual de liberdade. Ela exerce a função de norma diretiva fundamental, que se dirige aos poderes públicos e condiciona os particulares de tal maneira que assegura a realização dos valores constitucionais (direitos sociais, direito à educação, à subsistência, à segurança, ao trabalho etc.). O neoconstitucionalismo, em resumo, é a denominação dada por alguns doutrinadores ao novo direito constitucional, a partir da segunda metade do século XX, fruto de mudanças paradigmáticas contidas em estudos doutrinários e jurisprudenciais que enxergam a Constituição como centro do sistema jurídico. Na visão do professor e, hoje, também, Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, o neoconstitucionalismo pode ser examinado a partir de três marcos fundamentais: o histórico, o filosófico e o teórico. A eles, pode-se acrescer, ainda, o marco consequencial, que analisa o constitucionalismo contemporâneo à luz de seus efeitos mais evidentes. Examina-se, na sequência, cada um deles. 2. O marco histórico. Aponta-se como marco histórico do novo direito constitucional, o constitucionalismo do pós-guerra, sobretudo na Alemanha e na Itália. A reestruturação política da Europa, como consequência do repúdio que se impôs aos regimes totalitários de direita (Nazismo e Fascismo), conduziu a uma paralela reestruturação jurídica dos países europeus, que passaram por um processo, mais ou menos gradual, de reconstitucionalização, logo após a Segunda Grande Guerra, pautado na reaproximação do Direito com o ideal democrático. O marco zero desse processo foi a Lei Fundamental de Bonn (Constituição alemã), de 1949, seguida pela instalação do Tribunal Constitucional Federal Alemão, em 1951, que produziu riquíssima jurisprudência e fomentou diversos trabalhos doutrinários que realocaram a Constituição no centro do sistema jurídico, atribuindo a seu texto um conteúdo normativo e axiológico até então jamais imaginado. Segundo Barroso: Estudos sobre o novo CPC/2015 8 “Há razoável consenso de que o marco inicial do processo de constitucionalização do Direito foi estabelecido na Alemanha. Ali, sob o regime da Lei Fundamental de 1949 e consagrando desenvolvimentos doutrinários que já vinham de mais longe, o Tribunal Constitucional Federal assentou que os direitos fundamentais, além de sua dimensão subjetiva de proteção de situações individuais, desempenham uma outra função: a de instituir uma ordem objetiva de valores. O sistema jurídico deve proteger determinados direitos e valores, não apenas pelo eventual proveito que possam trazer a uma ou a algumas pessoas, mas pelo interesse geral da sociedade na sua satisfação. Tais normas constitucionais condicionam a interpretação de todos os ramos do Direito, público ou privado, e vinculam os poderes estatais”[2]. A Constituição da Itália, de 1947, e as Constituições de Portugal e Espanha, já na década de 1970,também são apontadas como dados referenciais do constitucionalismo contemporâneo. No Brasil, o marco histórico foi a Constituição de 1988, símbolo do processo de redemocratização iniciado com o fim da ditadura militar. Seu texto refletiu os anseios de liberdade, o ideal democrático, consolidou os direitos fundamentais como base do novo regime constitucional e estabeleceu uma série de ações programáticas (mas impositivas) a serem executadas pelo Estado na busca do bem-estar social. 3. O marco filosófico. 3.1 O Positivismo. A escola positivista, que surgiu da superação histórica do jusnaturalismo, conduziu, ainda que involuntariamente, a um reducionismo do fenômeno jurídico, ao identificar o Direito com a lei, ao divorciar a ciência jurídica da realidade fática e da percepção axiológica, além dos preceitos de ordem ética. Os positivistas concebiam o Poder Legiferante com o dom da onisciência, já que supunham que as regras legislativas seriam capazes, por si sós, de disciplinar, de maneira uniforme e integral, o pluralismo dinâmico das relações sociais. Defendiam a concepção de que o sistema jurídico é composto tão somente de um subsistema, o normativo, desvinculado dos subsistemas fático e axiológico. Assim, entendiam que a interpretação literal, filológica, gramatical, seria a única capaz de assegurar uma das funções mais significativas do Direito, que é a de realização da Justiça, por reproduzir, de maneira pura e sem intervenções exógenas, o pensamento do legislador. Defendiam, abertamente, que a incidência da norma jurídica sobre os casos concretos dava-se a partir de uma simples subsunção, ou seja, uma operação neutra, desprovida de valoração subjetiva e liberta da influência de qualquer outro subsistema (política, economia, moral, ética). Hans Kelsen, com a Teoria Pura do Direito, foi o maior expoente desta corrente do pensamento jurídico, que imaginava o Direito como um sistema fechado (autopoiético), imune e infenso aos influxos e refluxos de outros sistemas. 3.2 O pós-positivismo. O Pós-positivismo surgiu como síntese do embate dialético entre o Jusnaturalismo e o Positivismo Normativista, vale dizer, como resultado da dicotomia entre os defensores do Direito Natural, imanente à espécie humana, e os adeptos do Positivismo, embasado em concepção estrita, e míope, do Direito. Estudos sobre o novo CPC/2015 9 Essa corrente do pensamento jurídico concebe o Direito como um sistema aberto (alopoiético), plural, em constante interação com o mundo dos fatos e com os valores positivos aceitos pelo meio social e consagrados em regras mater chamadas princípios. O pós-positivismo é, portanto, uma corrente da ciência jurídica que superou o legalismo estrito do Positivismo normativista, notabilizando-se (a) pela ascensão dos valores; (b) pelo reconhecimento da normatividade dos princípios; (c) pela essencialidade dos direitos fundamentais edificados sobre o conceito de dignidade da pessoa humana; e (d) pela reaproximação entre o Direito e a Ética. Ao abordar a reaproximação entre Direito e Ética promovido pelo constitucionalismo contemporâneo, RICARDO LOBO TORRES, ensina que: “De uns trinta anos pra cá assiste-se ao retorno dos valores como caminho para a superação dos positivismos. A partir do que se convencionou chamar de ‘virada kantiana’ (kantische wende), isto é, a volta à influência da filosofia de Kant, deu-se a reaproximação entre ética e direito, com a fundamentação moral dos direitos humanos e com a busca da justiça fundada no imperativo categórico”[3]. Trata-se, pois, de nova vertente do pensamento jurídico que, sob uma perspectiva principiológica, influenciou, decisivamente, a formação de uma moderna hermenêutica constitucional, em substituição ao constitucionalismo clássico. Portanto, o pós-positivismo apresenta-se como o marco filosófico do constitucionalismo contemporâneo, iniciado na Europa no pós-guerra. 4. O marco teórico. No plano teórico, o neoconstitucionalismo caracteriza-se por uma série de transformações que (a) alçaram a Constituição ao epicentro do sistema jurídica, dotando-a de efetiva normatividade e superioridade sobre as demais normas jurídicas; (b) incorporaram às Constituições, de modo expresso, valores e opções políticas, expandindo a jurisdição constitucional; e (c) impuseram um novo paradigma de interpretação e aplicação das normas constitucionais. 4.1. Normatividade, superioridade e centralidade da Constituição. Até meados do século XX, a Constituição era vista como um documento político, dirigido ao Estado e com conteúdo meramente programático. Eram repositórios de promessas vagas, sem aplicabilidade direta e imediata. A efetivação prática de seu programa condicionava-se à liberdade do legislador e à discricionariedade do administrador, não se atribuindo ao Judiciário papel minimamente relevante na realização dos comandos constitucionais. Esse panorama foi modificado no pós-guerra, inicialmente na Alemanha, depois na Itália, e mais tarde, em Portugal e na Espanha. Esse processo de reconstitucionalização, chamado de neoconstitucionalismo, alçou a Constituição ao centro do sistema. Seu texto adquiriu densidade jurídica e suas normas passaram a gozar de normatividade efetiva, imperatividade plena e superioridade hierárquica não apenas formal, mas material e axiológica em relação às demais normas do ordenamento jurídico. Estudos sobre o novo CPC/2015 10 Sobre essa mudança de paradigma, ANDERSON SANT´ANA PEDRA afirma que: “(...) num passado não muito remoto, o estudo do direito constitucional pareceria literatura, ficção ou sociologia. Hoje, o quadro mudou: a Constituição passou a ser considerada como norma e o Direito Constitucional disciplina jurídica efetiva e indispensável. Era incomum verificar em alguma decisão judicial a menção a algum dispositivo constitucional e para fundamentar uma decisão bastava que ela apresentasse os dispositivos infraconstitucionais do direito material ou processual: cotejá-los com a Constituição, nem pensar, afinal o legislador era considerado como a exteriorização da vontade constitucional. Contudo, novos tempos surgem. O direito constitucional passa por um momento virtuoso, em que se destaca o compromisso com a efetividade das normas constitucionais, com o respeito a sua força normativa, superando, assim, a fase em que a Constituição era considerada um mero conjunto de promessas políticas, um documento programático e não pragmático”[4]. Por normatividade da Constituição entende-se que as disposições constitucionais, sejam elas regras ou princípios, são normas jurídicas dotadas de imperatividade, que é a capacidade de impor, pela força, a realização dos efeitos práticos pretendidos pela norma ou, em substituição, de alguma consequência pelo seu descumprimento[5]. Além de sua função normativa, a Constituição assume posição central no sistema (centralidade), condicionando e limitando a interpretação que deve ser empreendida sobre as normas infraconstitucionais que compõe o ordenamento jurídico. Em outras palavras, todo o sistema jurídico deve ser interpretado sob as lentes da Constituição e com observância irrestrita de seus preceitos e valores fundantes. Por fim, a Constituição ocupa posição de supremacia (superioridade) sobre as demais normas do ordenamento, hierarquia não apenas formal, mas material e axiológica. 4.2. A expansão da jurisdição constitucional. O incremento de jurisdição constitucional – que baliza o surgimento do constitucionalismo contemporâneo – explica-se por três razões distintas, embora interligadas: (a) razão de ordem material: houve um acréscimo na jurisdição constitucional pelo fato de terem sido incorporados aos textos das Constituição do pós- guerra, de modo expresso, valores e opções políticasaté então negligenciados pelo Estado, o que tornou as Constituições mais densas, consequentemente, ampliando os limites da jurisdição constitucional; (b) razão de ordem instrumental: os textos constitucionais também ampliaram os mecanismos de controle de constitucionalidade das leis e atos normativos, viabilizando, a par do controle incidental ou difuso, realizado por qualquer juiz ou tribunal, o controle direto ou concentrado, atribuído a uma corte constitucional. Na experiência brasileira, a Constituição de 1988 deu vida não apenas à ação declaratória de constitucionalidade como também à arguição de descumprimento de preceito fundamental; Estudos sobre o novo CPC/2015 11 (c) razão de natureza subjetiva: os textos constitucionais do pós-guerra também ampliaram, quantitativamente, o número de legitimados a exercer o controle de constitucionalidade das leis e atos normativos. Em outras palavras, houve uma ampliação no direito de propositura. No caso brasileiro, a partir da Constituição republicana de 1988, vários órgãos e entidades passaram a deter o direito de propor ações diretas para discutir a constitucionalidade de leis e atos normativos do Poder Público[6], monopólio exercido, até a Constituição de 1969, pelo Procurador-Geral da República. A incorporação expressa de valores e opções políticas aos textos constitucionais (fator material), a ampliação dos mecanismos de controle de constitucionalidade (fator procedimental) e o compartilhamento do “direito de propositura” por diversos órgãos e entidades do Estado e da sociedade civil (fator subjetivo) levaram ao alargamento da jurisdição constitucional, uma das características marcantes do constitucionalismo contemporâneo. Já se afirmou, o neoconstitucionalismo surgiu como uma reação – natural e ampla – aos regimes políticos que, ao longo da primeira metade do século XX, suplantaram os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade de tradição iluminista. Com a derrocada dos regimes totalitários no pós-guerra (Nazismo na Alemanha, Fascismo na Itália, Franquismo na Espanha e o Salazarismo em Portugal), os países europeus, num primeiro momento, no que foram seguidos por países de outros continentes, decidiram introduzir nos textos constitucionais valores e opções políticas fundamentais, que passaram a formar um consenso mínimo a ser observado pela maioria[7], fora do alcance, portanto, da subjetividade do legislador ordinário e da discricionariedade do administrador público. Os valores incorporados expressamente aos textos constitucionais traduzem, em sua maioria, direitos fundamentais, que podem ser encapsulados no princípio mater do respeito à dignidade da pessoa humana. Diz-se que esse princípio é a síntese dos direitos fundamentais porque, todos eles, de maneira mais ou menos imediata, visam resguardar a dignidade da pessoa humana, seu mínimo existencial. Não é exagero afirmar que a dignidade da pessoa humana foi alçada, pelas Constituições contemporâneas, à categoria de princípio maior do sistema jurídico, à vista do qual devem ser interpretadas não apenas as outras normas constitucionais, mas também as demais normas que compõem o sistema jurídico. Pela importância que assume no sistema jurídico, vale a pena dedicar algumas linhas a esse postulado axiológico fundamental, cuja essência está ligada à própria gênese do constitucionalismo contemporâneo. 4.2.1. O respeito à dignidade da pessoa humana. O pós-guerra representou, no plano histórico, a superação dos regimes totalitários, no plano filosófico, o resgate dos ideais iluministas, sobretudo de liberdade e igualdade, e, no plano jurídico, a “reconstitucionalização”, guiada pela afirmação dos direitos fundamentais e da dignidade do homem. A dignidade do homem, como “síntese“ dos direitos fundamentais, foi então alçada ao centro do sistema jurídico na condição de postulado axiológico fundamental, em um processo de reação à política genocida do nazismo e do fascismo. Ao Estudos sobre o novo CPC/2015 12 homem, qualquer que fosse a origem, resguardou-se um mínimo de dignidade existencial, capaz de barrar a barbárie dos regimes totalitários e impor um arsenal mínimo de subsistência. BALERA retratou, com clareza, o contexto histórico em que inserida a ascensão desse postulado, verbis: “A reação à barbárie do nazismo e do fascismo em geral levou, no pós- guerra, à consagração da dignidade da pessoa humana no plano internacional e interno como valor máximo dos ordenamentos jurídicos e princípio orientador da atuação estatal e dos organismos internacionais. Diversos países cuidaram de introduzir em suas Constituições a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado que se criava ou recriava, podendo-se citar exemplificativamente, a Constituição italiana de 1947 e a lei Fundamental alemã de 1949”[8]. O que as Constituições contemporâneas resguardam não é a dignidade humana em si – que existirá mesmo presente a lesão ao bem jurídico tutelado pela norma – , mas o respeito a ela. Um homem negro, por exemplo, não perde a sua dignidade por ter sofrido injúria ou preconceito racial. Ele a conserva, independentemente da lesão. Cabe ao Estado adotar medidas (leis, atos administrativos ou decisões judiciais) que reguardem esse bem jurídico. O Estado não atribui dignidade a ninguém, por que ela é inata, ele apenas a resguarda, a protege, a promove, seja por ação (prestações positivas que garantam o mínimo existencial) ou por omissão (resguardo às liberdades públicas). Para JOSÉ AFONSO DA SILVA, “a dignidade humana não é uma criação constitucional, pois ela é um desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência especulativa, tal como a própria pessoa humana”[9]. A dignidade da pessoa humana, portanto, não é um direito, mas um atributo que todo ser humano adquire ao nascer, independentemente de sua origem, sexo, idade, crença ou condição social. O ordenamento jurídico não confere dignidade a quem quer que seja, mas tem a função de protegê-la contra qualquer tipo de violação. O princípio serve de vetor axiológico a todos os Poderes constituídos do Estado: ao Legislativo, que não pode editar leis que desrespeitem, direta ou indiretamente, a dignidade do homem (ação), ou deixar de elaborar as leis necessárias a sua promoção (omissão); ao Executivo, que deve executar as políticas públicas necessárias a manter o mínimo existencial do homem e abster-se de adotar medidas que ofendam, limitem ou excluam a dignidade do administrado; por fim, ao Judiciário, que jamais poderá interpretar uma norma ou solucionar um caso concreto de modo a por em “xeque” a dignidade do homem. O princípio também se aplica às relações particulares, não diretamente relacionadas ao Estado. Será nula, por exemplo, a cláusula contratual que imponha sacrifício à dignidade de um dos contratantes. No Brasil, a Constituição republicana de 1988 listou o princípio como um dos fundamentos da República no art. 1º, inciso III[10]. A dignidade da pessoa humana compõe o núcleo essencial de cada um dos direitos fundamentais, conferindo-lhes unidade axiológica e inspirando a interpretação e aplicação de todas as outras normas do sistema jurídico. O princípio é o “epicentro Estudos sobre o novo CPC/2015 13 axiológico da ordem constitucional”[11], irradiando seu comando valorativo sobre todos os quadrantes do ordenamento jurídico, de conteúdo publicista ou privatista[12]. O princípio é tão amplo que se refere tanto às liberdades públicas (direitos de primeira geração ou de resistência) quanto aos direitos sociais e econômicos (direitos de segunda geração ou direitos a uma prestação estatal). Para BARROSO: “O princípio da dignidade humana identifica um espaço de integridade a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existênciano mundo. É um respeito à criação, independente da crença que se professe quanto à sua origem. A dignidade relaciona-se tanto com a liberdade e valores do espírito quanto com as condições materiais de subsistência. O desrespeito a esse princípio terá sido um dos estigmas do século que se encerrou e a luta por sua afirmação, um símbolo do novo tempo. Ele representa a superação da intolerância, da discriminação, da exclusão social, da violência, da incapacidade de aceitar o outro, o diferente, na plenitude de sua liberdade de ser, pensar e criar”[13]. INGO SARLET também relata esse aspecto amplíssimo do postulado, ao exigir do Estado tanto abstenções (direito geral de liberdade) quanto prestações positivas que garantam o mínimo existencial, verbis: “Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa co- responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos”[14]. Esse vetor axiológico é tão potente que perpassa todos os direitos fundamentais, que, em maior ou menor escala, representam a concretização do valor dignidade. Fim e fundamento do Estado Democrático, o princípio baliza integralmente a conduta estatal, que deve não apenas persegui-lo, mas defende-lo de violação. Serve de norte axiológico, também, aos particulares, que se devem pautar sempre pelo respeito a dignidade das pessoas com as quais convivem e interagem. Como síntese dos direitos fundamentais, o respeito à dignidade da pessoa humana centraliza, na sua essência, o mínimo existencial, que se compõe dos bens e valores mínimos indispensáveis à subsistência material e moral do indivíduo. Em qualquer situação aquém do mínimo necessário à subsistência, isto é, abaixo de um patamar mínimo substancial de renda, educação e saúde, não há, nem haverá, dignidade. Como epicentro axiológico na interpretação e aplicação do Direito, o sistema jurídico revela-se incompatível com qualquer lei, ato administrativo ou decisão judicial que prive o indivíduo do mínimo necessário à subsistência. Negar ao homem condições mínimas de existência é atentar contra a sua condição humana. O constitucionalismo contemporâneo, inaugurado no pós-guerra a partir da Constituição Alemã, notabilizou-se pela incorporação expressa, ao texto constitucional, de valores, até então adormecidos ou negligenciados pelo Estado, traduzidos em direitos fundamentais e sintetizados no postulado geral de dignidade do homem. Estudos sobre o novo CPC/2015 14 Esse processo de incorporação de valores e opções políticas, nota típica do constitucionalismo contemporâneo, impõe a convivência, nem sempre harmônica, de diversos princípios igualmente relevantes à ordem jurídica. Esse “adensamento” axiológico conduz, não raras vezes, a tensões horizontais entre princípios, que não podem ser resolvidos no plano da validade, como ordinariamente ocorre com os conflitos entre regras jurídicas. A incorporação expressa de valores ao texto constitucional potencializou os conflitos envolvendo princípios constitucionais de semelhante tessitura e importância. Esses conflitos, por sua vez, passaram a exigir do aplicador do Direito, sobretudo, do Estado- Juiz, a adoção de novos padrões hermenêuticos, sem abandono das regras de interpretação já existentes, que foram revisitadas. Surge, assim, um novo modelo de interpretação constitucional que, ao lado da função normativa da Constituição e do incremento de jurisdição constitucional, compõe o marco teórico do neoconstitucionalismo. A essa nova interpretação constitucional dedica-se o tópico seguinte. 4.3. A nova interpretação constitucional. A expansão da jurisdição constitucional – impulsionada, sobretudo, pela incorporação expressa de valores e opções políticas aos textos constitucionais – promoveu um adensamento axiológico e, consequentemente, potencializou os conflitos entre princípios de mesma hierarquia constitucional. Essa nova realidade – permeada por tensões axiológicas frequentes e pela disputa horizontal entre princípios que convivem, ou deveriam conviver, no ambiente democrático – exigiu dos operadores jurídicos, sobretudo das cortes constitucionais, o trabalho de revisitar as regras clássicas de interpretação, bem como de sistematizar novos padrões hermenêuticos, necessários e suficientes para solucionar essa nova categoria de conflitos. A interpretação jurídica tradicional não foi abandonada; ela continua a resolver boa parte dos conflitos jurídicos. Mas, suas categorias foram revisitadas, em decorrência da centralidade que a Constituição passou a ocupar no novo sistema jurídico, de sua força normativa e do seu espetacular adensamento valorativo. Além dessa releitura, outras categorias hermenêuticas tiveram que ser construídas para dar resposta satisfatória aos conflitos axiológicos que se tornaram cada vez mais frequentes. Deflagrou-se, então, um processo de elaboração doutrinária e jurisprudencial (sobretudo do Tribunal Constitucional Alemão) de novos conceitos e categorias, agrupados sob a denominação de nova interpretação constitucional, que se “utiliza de um arsenal teórico diversificado, em um verdadeiro sincretismo metodológico”[15]. No modelo hermenêutico clássico, derivado do Positivismo jurídico – que prega um sistema fechado, com regras suficientes para disciplinar, de maneira uniforme e integral, o pluralismo dinâmico das relações sociais –, a resposta para os problemas está contida no próprio sistema jurídico e o intérprete desempenha uma função meramente subsuntiva, simples aplicação das normas ao fato social. Para esse modelo, a interpretação é uma operação neutra, desprovida de valoração subjetiva e liberta da influência de qualquer outro subsistema. Prevalecem as interpretações lógica, gramatical e histórica. Estudos sobre o novo CPC/2015 15 No modelo hermenêutico pós-positivista, marco filosófico do neoconstitucionalismo, o intérprete torna-se coparticipe do processo de criação do Direito – complementando o trabalho do legislador –, ao atribuir carga valorativa para as cláusulas abertas e ao realizar escolhas dentre soluções normativas possíveis[16]. Na visão pós-positivista, a norma em abstrato não contém todos os elementos necessários a sua aplicação. Há expressões de tessitura aberta (cláusulas gerais ou conceitos jurídicos indeterminados, como ordem pública, interesse social e boa-fé), que fornecem um mínimo de significação a ser completado pelo intérprete. Essas cláusulas abertas exigem a valoração de fatores presentes na realidade fática para definir o sentido e o alcance da norma. Como a solução não se encontra integralmente no plano normativo, mas também no plano fático e axiológico, a função do intérprete não será de mera subsunção; mas de integração do comando normativo a partir de sua própria experiência[17]. O constitucionalismo contemporâneo notabiliza-se, como já afirmado, pela incorporação expressa de princípios ao texto constitucional, que passam a deter função normativa. Os princípios, diferentemente das regras, não enunciam comandos descritivos de condutas, mas valores que indicam finalidades públicas a serem realizadas por diferentes meios. Como os princípios tem maior densidade axiológica que as regras (mas menor densidade jurídica), transfere-se ao intérprete uma dose mais elástica de discricionariedade. A ele não cabe apenas aplicar o direito numa operação de simples subsunção;compete-lhe uma tarefa muito mais profunda, de integrar o trabalho do legislador, imprimindo, na solução encontrada, muito de seus valores e da sua experiência. O intérprete passa a trabalhar com outros modelos hermenêuticos, como a ponderação e a argumentação. A ponderação está intrinsecamente relacionada à ideia de conflito e se vale do princípio instrumental da razoabilidade. O intérprete será obrigado a (a) conciliar, por meio de concessões recíprocas, princípios em conflito real ou aparente ou, no limite, a (b) eleger o princípio que deverá prevalecer, por fazer atuar mais adequadamente, à luz dos fatos e do caso concreto, a vontade constitucional. Já a argumentação está associada à ideia de soluções possíveis para o mesmo caso, ou interpretações razoáveis para a mesma norma. Através de um juízo argumentativo, o intérprete deve escolher, dentre as opções possíveis derivadas da norma, aquela que, à luz do caso concreto, melhor realiza a vontade constitucional. 4.3.1 Conflitos axiológicos (choque entre princípios e valores fundamentais da ordem jurídica). Os conflitos, reais ou aparentes, entre princípios de mesma hierarquia – tão comuns no neoconstitucionalismo em razão do caráter normativo da Constituição e de seu adensamento axiológico –, explicam-se, em grande medida, pela necessidade de conciliar diferentes pretensões, que precisam conviver em harmonia em um ambiente democrático. Essa pluralidade torna difícil a convivência entre alguns elementos centrais do sistema constitucional contemporâneo, como, por exemplo, a tensão constante entre a liberdade de informação e a proteção à intimidade e à vida privada, ou o conflito entre a livre iniciativa e os princípios da proteção ao consumidor e ao meio ambiente[18]. Estudos sobre o novo CPC/2015 16 Para solucionar um conflito entre regras ou se introduz, em uma das regras, uma cláusula de exceção que elimine o conflito, ou se declara a invalidade de uma delas. Já a colisão entre princípios é solucionada de maneira diversa. Se dois princípios constitucionais de mesma hierarquia colidem, um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, que um dos princípios deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser inserida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições. Sob outras condicionantes, a questão da precedência pode ser resolvida de forma oposta[19]. Em síntese, o conflito de regras se resolve no plano da validade (se uma cláusula de exceção não puder ser inserida em uma delas). Já “as colisões entre princípios – visto que só princípios válidos podem colidir – ocorrem, para além dessa dimensão, na dimensão do peso”[20] de cada um em relação ao caso concreto. Para ROBERT ALEXY, o “objetivo desse sopesamento é definir qual dos interesses – que abstratamente estão no mesmo nível – tem maior peso no caso concreto”[21]. A lei de colisão formulada pelo autor baseia-se no estabelecimento de uma relação de precedência condicionada entre os princípios, com base nas circunstâncias do caso concreto[22]. A noção de sopesamento a que se refere ALEXY aproxima-se, ou mesmo se confunde, à de ponderação exposta linhas acima. Em ambas é ínsita a ideia de escolha, de eleição, dentre os princípios colidentes, de um que prevalecerá, sob certas circunstâncias. ALEXY relata um caso muito interessante, decidido pelo Tribunal Constitucional Alemão, que pode ser resumido na seguinte situação: uma emissora de televisão planejava exibir um documentário chamado “O assassinato de soldados em Lebach”, por meio do qual se contava a história de quatro soldados da guarda de sentinela de um depósito de munições do Exército Alemão, perto da cidade de Lebach, que foram mortos enquanto dormiam e as armas foram roubadas apara a prática de outros crimes. Um dos condenados, que estava perto de ser libertado da prisão, entendia que a exibição do programa violaria o seu direito de personalidade, já que ameaçaria sua ressocialização. A questão chegou ao Tribunal Alemão que, sopesando os aspectos do fato e suas condicionantes, decidiu que o direito fundamental à personalidade deveria preceder, naquele caso, ao direito também fundamental à liberdade de expressão e de imprensa. A essa conclusão chegou o Tribunal a partir de um dado da realidade: o fato de o crime não ser atual, ou seja, de ter acontecido há muitos anos. Assim, tratando-se de uma notícia repetida, não atual, o direito de personalidade prevalece sobre o direito à informação; sob outras condições, ou seja, se estivesse revestido de interesse atual o crime, a solução seria oposta, devendo prevalecer o direito à informação sobre o direito à personalidade[23]. Esse exemplo ilustra o que até aqui se tem afirmado: a ponderação de princípios e valores constitucionais (ou sopesamento, para utilizar a nomenclatura de Alexy) ocorre à luz do caso concreto e de suas condicionantes. Não existe uma precedência obrigatória entre princípios constitucionais, que ora prevalecem ora cedem a outros princípios, tomando por base o substrato fático que embasa o conflito. A única exceção é o princípio do respeito à dignidade da pessoa humana, que assume posição central de todo sistema constitucional contemporâneo por sintetizar toda a gama de direitos fundamentais. Em suma: Estudos sobre o novo CPC/2015 17 “(...) o neoconstitucionalismo ou novo direito constitucional, na concepção aqui desenvolvida, identifica um conjunto amplo de transformações ocorridas no Estado e no direito constitucional, em meio às quais podem ser assinalados, (i) como marco histórico, a formação do Estado constitucional de direito, cuja consolidação se deu ao longo das décadas finais do século XX; (ii) como marco filosófico, o pós-positivismo, com a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito e Ética; e (iii) como marco teórico, o conjunto de mudanças que incluem a força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional. Desse conjunto de fenômenos resultou um processo extenso e profundo de Constitucionalização do Direito”[24]. Passados em revista os marcos fundamentais do neoconstitucionalismo, faz-se mister examinar, ainda que brevemente, cinco de suas consequências mais visíveis: (a) a constitucionalização do Direito; (b) a judicialização de políticas públicas; (c) o ativismo judicial; (d) a teoria da coisa julgada inconstitucional; e (e) o Neoprocessualismo (o formalismo valorativo). 5. As manifestações do neoconstitucionalismo no ordenamento jurídico brasileiro. 5.1. A constitucionalização do Direito. A constitucionalização do Direito, que é um dos marcos consequenciais do neoconstitucionalismo, deve ser examinada sob a ótica do texto constitucional em si mesmo considerado (plano objetivo) e também sob o prisma do intérprete (plano subjetivo). No plano objetivo, o processo quer significar a constitucionalização de temas até então relegados à legislação infraconstitucional e a incorporação expressa de valores e princípios ao texto constitucional, todos dotados de normatividade efetiva. Esse processo de adensamento axiológico da Constituição, que se espraia pelos mais variados rincões do sistema jurídico, indo do direito civil, passando pelo direito administrativo e processual e chegando ao direito penal, alargou sobremaneira o campo da jurisdição constitucional. No caso brasileiro, essa experiência foi potencializada em último grau, já que o constituinte de 1988 elaborou um texto longo, extremamente analítico, tornando constitucionais temas acessórios e secundários, que poderiam, muito bem, compor o arsenal das leis infraconstitucionais. Esse processo – de transferênciatemática das leis às Constituições – ficou conhecido como a “descodificação do direito civil”[25]. No plano subjetivo, a constitucionalização do Direito significa uma mudança de padrão hermenêutico, uma nova postura do intérprete frente ao sistema jurídico. As velhas categorias hermenêuticas, as regras clássicas de interpretação, já não são suficientes para solucionar os conflitos havidos da própria Constituição (fruto do seu incrível adensamento axiológico). Essa mudança de postura que as Constituições contemporâneas passaram a exigir do intérprete recebeu o nome de filtragem constitucional, pelo qual toda a ordem jurídica precisa ser lida e apreendida sob as lentes da Constituição[26]. Estudos sobre o novo CPC/2015 18 Portanto, a constitucionalização do Direito significa não apenas a transferência de temas infraconstitucionais para a Constituição, mas também a nova postura que se exige do intérprete em face desse adensamento axiológico, vale dizer, a releitura de institutos infraconstitucionais (até então) sob uma nova, e necessária, ótica constitucional. Essa nova postura do intérprete em face da Constituição envolve diferentes técnicas, assim resumidas por BARROSO[27]: (a) a não recepção (Barroso fala em revogação[28]) das normas constitucionais anteriores à Constituição (ou à emenda constitucional), quando com ela incompatíveis; (b) a declaração de inconstitucionalidade de normas infraconstitucionais posteriores à Constituição, quando com ela incompatíveis; (c) a declaração de inconstitucionalidade por omissão, com a consequente convocação à atuação do legislador; (d) a interpretação conforme a Constituição, com ou sem redução de texto, que pode significar: (i) a leitura da norma constitucional da forma que melhor realize o sentido e o alcance dos valores constitucionais a ela subjacentes; (ii) a declaração de inconstitucionalidade parcial, que consiste na exclusão de uma determinada interpretação possível e a afirmação de uma interpretação alternativa, compatível com a Constituição. 5.2. A judicialização de políticas públicas. Em um primeiro contato com a matéria, impõe-se uma distinção necessária entre judicialização de políticas públicas e ativismo judicial: são expressões que veiculam significação aproximada, mas não coincidente. Como diz BARROSO, são conceitos “primos”, pois vêm da mesma família, frequentam os mesmos lugares, mas não têm as mesmas origens[29]. A judicialização – pelo menos no contexto brasileiro – é um fato que deriva do próprio modelo constitucional desenhado pela Carta republicana de 1988, e não um exercício deliberado de vontade política. Já o ativismo judicial é uma atitude, uma opção, uma escolha de um modo específico e proativo de interpretar as normas constitucionais, com a expansão de seu sentido e alcance[30]. A judicialização encontra, na experiência brasileira, três causas igualmente relevantes: (a) a redemocratização, que fortaleceu a cidadania, atribuindo a diversos segmentos sociais antes marginalizados um maior nível de informação e, portanto, consciência sobre seus direitos, que passaram a ser perseguidos, em maior escala, no Poder Judiciário; (b) o processo de constitucionalização do Direito, que incorporou ao texto constitucional inúmeras matérias que até então pertenciam ao campo da legislação ordinária (Legislativo) e das políticas públicas (Executivo); e por fim, (c) o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, que combina aspectos dos sistemas europeu (por ação direta) e americano (incidental), aliado à ampliação do direito de propositura, que antes era restrito ao Procurador-Geral da República. A proteção e promoção dos direitos fundamentais exigem ações e omissões estatais. Relativamente aos direitos de primeira geração (as liberdades públicas), basta uma omissão estatal para assegurar a proteção ao bem da vida tutelado. Assim, por exemplo, a liberdade de expressão estará protegida desde que o Estado não lhe imponha Estudos sobre o novo CPC/2015 19 restrições e censura abusivas. Já os direitos de segunda geração (direitos sociais) demandam uma atuação proativa do Estado, que deverá pensar e executar políticas públicas para atender as necessidades sociais básicas nas áreas de saúde, educação, transporte público, etc. Estas ações estatais envolvem decisões acerca do uso de recursos públicos. As escolhas que o Estado faz em matéria de gastos públicos, todavia, não se restringem ao campo da política majoritária. Embora caiba ao Legislativo aprovar a lei orçamentária e ao Executivo elaborar e executar políticas públicas concretas para as mais variadas necessidades sociais, coube ao Judiciário, por força da constitucionalização abrangente impressa pela Carta republicana de 1988, a missão de fazer cumprir as finalidades e os propósitos constitucionais, sobretudo, quanto ao tema dos direitos fundamentais. Não há dúvida que a Constituição, ao estabelecer direitos fundamentais com força normativa, fixou deveres ao Estado, cabendo ao Judiciário fazer valer esta vontade constitucional. Para tanto, em determinadas situações, deverá o Estado-Juiz interferir, com caráter imperativo, sobre a definição dos gastos públicos. Nas palavras da professora Ana Paula de Barcellos: “Se a Constituição contém normas nas quais estabeleceu fins públicos prioritários e, e se tais disposições são normas jurídicas, dotadas de superioridade hierárquica e de centralidade no sistema, não haveria sentido em concluir que a atividade de definição de políticas públicas – que irá, ou não, realizar esses fins – deve estar totalmente infensa ao controle jurídico. Em suma: não se trata da absorção do político pelo jurídico, mas apenas da limitação do primeiro pelo segundo”[31]. Portanto, não há dúvida de que a definição das políticas públicas, embora reservado em grande parte ao campo da política majoritária, sofre limitação jurídica geral decorrente do próprio Estado republicano e das opções políticas incorporadas expressamente ao texto constitucional por meio de valores, princípios e direitos fundamentais. Assim, o controle judicial das políticas públicas faz partes das regras próprias do Estado de Direito. O limite que separa o dever constitucional imposto ao Judiciário e o abuso de poder é, todavia, muito tênue. Em outras palavras, delimitar com precisão até onde pode atuar o Judiciário sem violação à regra de separação dos Poderes é tarefa das mais difíceis. Para superar estas dificuldades, a doutrina e a jurisprudência dos tribunais superiores, sobretudo do Supremo[32], têm um papel relevantíssimo na construção de uma dogmática jurídica aplicável à atuação judicial nessa área tão instável. É preciso estabelecer parâmetros minimamente objetivos capazes de delimitar o território dentro do qual estará o Judiciário agindo no estrito cumprimento de sua missão institucional. 5.2.1 Os parâmetros de controle. Há, basicamente, três categoriais de controle que legitimam e autorizam a interferência do Judiciário na realização das políticas públicas: Estudos sobre o novo CPC/2015 20 (a) parâmetro puramente objetivo (controle quantitativo), quando a própria Constituição fixa a quantidade de recursos mínimos a serem aplicados em uma determinada modalidade de política pública. O art. 212 da CF/88[33], por exemplo, impõe a União aplicar, anualmente, não menos que 18% da receita resultante de impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino. Este mesmo artigo impõe a Estados e Municípios participação ainda maior, da ordem de 25%, incluindo as receitas de transferência. Descumprida a previsão constitucional, ou seja, investido recursos aquém do mínimo indicado, caberá ao Judiciário, se provocado, impor sanções as mais diversas, a começar pela intervenção federal ouestadual, conforme o caso. Trata-se de interferência judicial legítima, para fazer cumprir a vontade constitucional. (b) parâmetro finalístico (controle de fins), que se ocupa do resultado último da atuação estatal e trabalha com a ideia de prioridade, de preferência, ou seja, gastos públicos secundários não podem ser efetivados antes do atendimento integral das políticas públicas prioritárias. No caso da educação, por exemplo, o ensino fundamental prefere ao ensino médio (o artigo 208 da CF/88[34] fala em progressiva universalização do ensino médio gratuito). Assim, não poderá o Estado investir no ensino médio antes de atingir a meta no fundamental, do contrário estará invertendo, ou alterando, a finalidade buscada pela Constituição, o que ensejará intervenção judicial legítima, não ofensiva à separação de Poderes. (c) parâmetro da própria definição da política pública (controle de meios), que cuida de examinar se os meios eleitos pelo gestor público são eficientes para atingir a finalidade constitucional. Haverá violação de meios se o Estado-Administrador, por exemplo, realizar despesas para a compra de carteiras escolares antes de realizar os gastos para a construção da própria escola. Ainda que o ordenador de despesas tenha observado o parâmetro quantitativo (atingiu o mínimo de recursos) e o finalístico (cumpriu a meta constitucional em relação ao ensino fundamental), se realizar despesas desnecessárias ou ineficientes poderá responder perante o Judiciário, a quem caberá anular o ato e determinar o cumprimento da vontade constitucional. Como adverte a professora BARCELLOS, “não se trata (...) de julgar entre eficiências maiores ou menores, nem de substituir a avaliação política da autoridade democraticamente eleita pela do juiz, mas apenas de eliminar as hipóteses de ineficiência comprovada”[35]. No estágio atual do constitucionalismo contemporâneo, é perfeitamente legítimo, e viável, o controle judicial da execução de políticas públicas como maneira de conformá-las à realização da vontade constitucional, vale dizer, como meio de “recolocar nos trilhos” a atividade administrativa que por ventura dela se tenha desgarrado, desde que respeitados certos limites, certos parâmetros, embrionariamente descritos em linhas passadas. Estudos sobre o novo CPC/2015 21 Também é possível afirmar a possibilidade de controle judicial na formulação de políticas públicas, este mitigado, restrito a casos excepcionais em que presente violação inequívoca do mínimo existencial. Ao controlar a execução de políticas públicas, quase sempre, atua o Judiciário anulando um ato administrativo que tenha desrespeitado uma vontade constitucional. Já no controle da formulação de políticas públicas, o Estado-Juiz atua de maneira criativa, impondo ao Estado-Administrador a realização de uma despesa necessária à afirmação do mínimo existencial, respeitado, sempre, o princípio da reserva do possível[36]. 5.3. O ativismo judicial. A ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. Segundo BARROSO[37], a postura ativista manifesta-se por meio de diferentes condutas que incluem: (a) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente previstas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário. Como exemplo, o professor cita o julgamento sobre fidelidade partidária: o STF, em nome do princípio democrático, decidiu que a vaga no Congresso pertence ao partido político, criando, assim, uma nova hipótese de perda de mandato parlamentar, além das que se encontram expressas no texto constitucional. (b) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição. Cita-se o exemplo da decisão que julgou a verticalização das eleições: o STF decidiu pela inconstitucionalidade das novas regras sobre coligações eleitorais à eleição que se realizaria em menos de um ano. Para tanto declarou a inconstitucionalidade de uma emenda constitucional ao atribuir à regra da anterioridade da lei eleitoral o status de cláusula pétrea que ela não possui. (c) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas. Aqui, vale citar o caso da distribuição de medicamentos não constantes das listas e rotinas do SUS por meio de decisão judicial. Embora o ativismo revele um aspecto positivo relevantíssimo – o de impor a realização da vontade constitucional, a efetivação dos direitos fundamentais e a afirmação do mínimo existencial –, há uma face negativa também inquestionável. Ele escancara a crise de representatividade da política majoritária, revelando uma grave “patologia” democrática. O deslocamento da agenda decisória do Legislativo ao Judiciário tem muito a ver com o descrédito que, ano após ano, vem corroendo as bases de sustentação da política majoritária em nosso país. Essa crise de representatividade, aliada à ineficiência do Legislativo (que não realiza as reformas necessárias, que trava pautas importantes para a nação por simples barganha política, etc.) acaba por criar uma atmosfera amplamente favorável – e até mesmo necessária ao cumprimento da Constituição – para o avanço da jurisdição constitucional em um ritmo nunca visto na história republicana do país. Estudos sobre o novo CPC/2015 22 O juiz tornou-se o principal garantidor dos direitos e também o responsável pela recuperação da identidade democrática, o último guardião de promessas tanto para o sujeito como para a comunidade política[38]. Essa crise institucional acaba por “justificar“, ainda que em bases embrionárias, o ativismo judicial em nosso país. Mas se esse fenômeno é uma patologia do sistema democrático, faz-se urgente a busca por um “remédio” capaz de curá-lo. 5.4. A teoria da coisa julgada inconstitucional. Outro importante marco consequencial do neoconstitucionalismo na experiência brasileira revela-se na teoria da coisa julgada inconstitucional. As características próprias do neoconstitucionalismo – sobretudo a centralidade que a Constituição ocupa no sistema jurídico, aliada a sua força normativa – imprimiram uma nova feição ao Direito Constitucional, promovendo um novo olhar do intérprete sobre velhos institutos, agora sob as lentes da Constituição, de seus valores e princípios fundamentais. Essa nova hermenêutica jurídica, esse novo olhar sobre o papel e a função das normas constitucionais, explica, até certo ponto, a ascensão da teoria da coisa julgada inconstitucional no seio do constitucionalismo contemporâneo. A teoria baseia-se no critério da ponderação de valores, entendendo que a coisa julgada, que revela um postulado de segurança jurídica, não prevalece, sempre e sob qualquer circunstância, sobre outros valores de mesma estatura constitucional. Quando a decisão judicial transitada em julgado revelar-se violadora, por exemplo, da dignidade da pessoa humana ou do mínimo existencial – que assumem posição de destaque e centralidade no ordenamento jurídico, por enfeixarem em si o núcleo básico dos direitos fundamentais, fim e fundamento imediato da Constituição – a segurança jurídica que dela emana deve ceder, num juízo de ponderação, em homenagem a esses valores, constitucionalmente mais relevantes. Da mesma forma que o ato administrativo e a lei, a decisão judicial, ainda que sob o amparo da coisa julgada, poderá ser declarada nula se ofensiva a algum valor jurídico fundamental, mesmo que ultrapassado o prazo da ação rescisória. A teoria tem acertos e desacertos. Tomando carona na mesma crítica dirigida ao ativismo e àjudicialização de políticas públicas, é preciso amadurecer o debate e fixar parâmetros seguros de atuação judicial. Em outras palavras, é necessário desenvolver a dogmática jurídica que lhe dará fundamento de validade e dotará o interprete de um mínimo de segurança na sua aplicação, sem o que se estará diante de aplicação casuísta, incompatível com a ciência jurídica. 6. O Neoprocessualismo. 6.1. Evolução do direito processual A exata noção sobre o neoprocessualismo passa, sobretudo, pela compreensão não menos exata das diversas fases por que passou a ciência processual. Cada uma dessas fases expressa ideias mais ou menos consensuais, à época, mas que se tornaram anacrônicas à medida em que progrediram os estudos doutrinários e enriqueceu- se a experiência humana sobre o processo como instrumento muitas vezes necessário à consecução do direito material lesado. Estudos sobre o novo CPC/2015 23 O neoprocessualismo, já se pode adiantar, emerge da influência que o constitucionalismo contemporâneo – calcado na força normativa da Constituição e na ascensão de valores fundamentais que passam a ocupar o centro de todo o sistema normativo – exerceu e exerce sobre o processo civil. Trata-se de verdadeira constitucionalização da ciência processual, cuja instrumentalidade passa a ser interpretada à luz da axiologia constitucional. A ciência processual pode ser subdividida em quatro fases, assim resumidas. 6.1.1 Sincretismo ou praxismo Fase que se caracteriza pela ausência de autonomia entre o direito material e o direito processual. O processo era examinado apenas em seus aspectos práticos, sem maiores preocupações científicas. Existiam formas – não sistematizadas, que derivavam da experiência humana – para o exercício do direito, sob a condução pouco definida do juiz. Para ADA GRINOVER: “Até meados do século passado, o processo era considerado simples meio de exercício dos direitos (daí, direito adjetivo, expressão incompatível com a hoje reconhecida independência do direito processual). A ação era entendida como sendo o próprio direito subjetivo material que, uma vez lesado, adquiria forças para obter em juízo a reparação da lesão sofrida. Não se tinha consciência da autonomia da relação jurídica processual em face da relação jurídica de natureza substancial eventualmente ligando os sujeitos do processo. Nem se tinha noção do próprio direito processual como ramo autônomo do direito e, muito menos, elementos para a sua autonomia científica. Foi o longo período de sincretismo, que prevaleceu das origens até quando os alemães começaram a especular a natureza jurídica da ação no tempo moderno e acerca da própria natureza jurídica do processo”[39]. Nessa fase não havia uma verdadeira ciência do processo civil. Os conhecimentos eram puramente empíricos, sem qualquer referência a princípios, conceitos próprios ou método. O processo era vista apenas em sua realidade física exterior e perceptível aos sentidos, confundido com o mero procedimento. Tinha-se uma visão linear do ordenamento jurídico caracteriza pela confusão entre os planos material e processual. A ação era o próprio direito material em movimento. Não se atentava para a existência da relação jurídica processual, distinta da relação de direito material. A jurisdição era vista como um sistema de tutela de direitos exercida com reduzida participação do juiz. A defesa baseava-se na concepção de simples acesso do réu ao processo, sem a noção de contraditório efetivo a cada ato processual. A fase sincretista prevaleceu até meados do século XIX, quando foram desenvolvidos trabalhos a retratar a natureza jurídica da ação e do próprio processo. 6.1.2 Processualismo Na segunda fase, chamada de processualismo, inicia-se o estudo do processo como direito autônomo, desvinculado do direito material. Por essa razão, alguns autores chamam esse período de fase autonomista. O processo passou por uma fase de formulação de institutos, categorias e conceitos, que lhe conferiram organicidade, convertendo o que antes era apenas Estudos sobre o novo CPC/2015 24 “procedimento” em “sistema”. A sistematização dessas ideias conduziu à primeira afirmação do direito processual como ciência, que passou a dedicar-se a categorias jurídicas específicas: jurisdição, ação, defesa e processo. Destacaram-se, nesta etapa, grandes juristas como Giuseppe Chiovenda, Francesco Carnelutti, Piero Calamandrei e Enrico Tullio Liebman, na Itália; Adolf Wach, James Goldschmidt e Oskar Von Büllow, na Alemanha; e Alfredo Buzaid e Lopes da Costa, no Brasil, todos defensores da autonomia científica do processo. Sobre esta fase autonomista, defende a professora ADA GRINOVER: “A segunda fase foi autonomista, ou conceitual, marcada pelas grandes construções científicas do direito processual. Foi durante esse período de praticamente um século que tiveram lugar as grandes teorias processuais, especialmente sobre a natureza jurídica da ação e do processo, as condições daquela e os pressupostos processuais, erigindo-se definitivamente uma ciência processual. A afirmação da autonomia científica do direito processual foi uma grande preocupação desse período, em que as grandes estruturas do sistema foram traçadas e os conceitos largamente discutidos e amadurecidos”[40]. 6.1.3 Instrumentalismo A terceira fase, também conhecida como de teleologia do processo, coincide com a tentativa de aproximação entre o direito material e o processual. Os processualistas, desta fase, entendem necessário direcionar o processo para resultados substancialmente justos, superando o exagerado tecnicismo reinante até então. O instrumentalismo processual instaura uma fase eminentemente crítica, capaz de olhar o processo a partir de uma perspectiva externa e prática e, com isso, identificar seus gargalos de eficiência, que impedem ou dificultam a prestação jurisdicional. “O processualista moderno sabe que, pelo aspecto técnico-dogmático, a sua ciência já atingiu níveis muito expressivos de desenvolvimento, mas o sistema continua falho na sua missão de produzir justiça entre os membros da sociedade. É preciso agora deslocar o ponto-de-vista e passar a ver o processo a partir de um ângulo externo, isto é, examiná-lo nos seus resultados práticos. Como tem sido dito, já não basta encarar o sistema do ponto- de-vista dos produtores do serviço processual (juízes, advogados, promotores de justiça): é preciso levar em conta o modo como os seus resultados chegam aos consumidores desse serviço, ou seja, à população destinatária”[41]. É uma fase em que se busca afirmar a efetividade do processo e a eficiência da prestação jurisdicional. No Brasil, algumas reformas processuais assentaram-se, em grande medida, nesta visão instrumentalista do processo, que busca a efetividade e eficiência da prestação jurisdicional. Nesse contexto é que foram introduzidas em nosso ordenamento jurídico a antecipação de tutela (art. 273), a tutela inibitória (art. 461 e 84 do CDC), a execução específica das obrigações de fazer e de não fazer, a simplificação do processo de execução, a audiência prévia de conciliação e saneamento, as alterações na sistemática recursal (Leis 9.139/96 e 9.756/98), dentre tantas outras, tudo com o objetivo de tornar mais célere e eficiente a prestação jurisdicional na concretização do ideal de justiça. 6.1.4 Neoprocessualismo Estudos sobre o novo CPC/2015 25 O Neoprocessualismo nada mais é do que o reflexo do constitucionalismo contemporâneo sobre a ciência processual. O ideário neoconstitucional inspirou, ainda que com certo atraso, os processualistas, que passaram a defender a releitura da ciência processual (em sua trilogia jurisdição/ação/processo) sob a ótica da Constituição, a fim de implementar um “modelo constitucional de
Compartilhar