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CÓDIGO CIVIL

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CODIGO CIVIL
A elaboração da nova codificação foi confiada a Miguel Reale, que convidou outros juristas para auxiliá-lo. Concluído o projeto, sofreram inúmeras criticas, pois abdicou da circunstância de ser um Código moderno em troca do comodismo e soluções passadistas. Após alterações, em 1983 foi aprovado na Câmara dos deputados, mas em razão da redemocratização do país e da elaboração da nova Constituição os trabalhos foram interrompidos e caídos no esquecimento. Abruptamente despertado, o projeto foi aprovado no Senado e na Câmara em 2001, inúmeras emendas foram efetuadas com o objetivo de adequar o projeto à nova realidade constitucional, e finalmente foi sancionado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em 2002. As intensas evoluções das relações sociais exigem respostas que o direito parece não ter, e a situação inversa também é preocupante, a explosão legislativa cria enormes quantidades de normas que disputam a primazia para reger o mesmo caso. A evolução dos vários ramos da ciência e do desenvolvimento tecnológico que permite a circulação de informação com abrangência e rapidez, cria e difunde novas necessidades. O Código é a lei que mais perto convive com o cidadão, então precisa ser plenamente discutido, porém todas as discussões realizadas não foram embasadas na realidade atual, e num país livre e democrático, a não participação de seus destinatários na construção de seu conteúdo é lamentável.
Na época em que ainda era colônia de Portugal, o Brasil adotava o sistema normativo do colonizador. Com a proclamação de sua independência, nada mais natural do que o surgimento da necessidade de leis próprias para o país. É a determinação que se constata na primeira Constituição brasileira: Constituição Imperial de 25 de março de 1824, no título VIII, que tratava “Das Disposições Gerais e Garantias dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Brasileiros”, de que se organizasse um Código Civil baseado na Justiça e na eqüidade (artigo 179, n. 18). 
Após vários estudos e a consolidação das leis civis, somente no ano de 1899 é que o jurista Clóvis Beviláqua apresenta projeto que, após dezesseis anos de debate, transformou-se no Código Civil brasileiro, promulgado em 1º de janeiro de 1916, e vigente a partir de 1º de janeiro de 1917.
Como se observa, durante o século XX ocorreu relevantes mudanças sociais, elevando o desenvolvimento científico e tecnológico, o que certamente provocou gradativo descompasso com o Código Civil de 1916, que teve sua vigência até o início do século XXI (2003), vigorando por quase 100 anos no cotidiano da população brasileira. 
Para ressaltar a importância de um novo Código Civil, desde de 1973 o projeto de novo Código esteve no Congresso Nacional, requerendo muito tempo de avaliação e discussão em codificação legal tão importante para a vida do cidadão, desde o regime de casamento a serem utilizados até os prazos de prescrição para determinados direitos.
O CC é composto, inicialmente pela LICC que a Lei de Introdução ao Código Civil, onde constam as regras gerais de compreensão e de abrangência dos dispositivos do Código, o que traz as bases que devem nortear a leitura e a interpretação em toda extensão dos seus artigos. A LICC é originária no Decreto Lei 4.657 de 4 de setembro de 1942, editado ainda sob a ditadura do Governo de Getúlio Vargas. Entretanto, durante as décadas seguintes, e até o advento do novo Código Civil, a LICC sofreu alterações que a adequou aos novos tempos. Porquanto, permaneceu, com as devidas alterações, como introdução ao Código Civil de 2002/2003.
Também porque o Código foi reconstruído, durante quase 30 anos dentro do Congresso Nacional, ocasião em que também experimentou os novos paradigmas criados pela Constituição de 1988, muitos artigos e conceitos do CC se confundem de forma positiva e recíproca, com àqueles presentes na Constituição mesmo que em palavras distintas. Por exemplo, o conceito de eticidade, boa fé objetiva e probidade nas relações contratuais, ficam bem representadas no capítulo dos Contratos, o que demonstra consonância com os preceitos Constitucionais.
O CC possui 2046 artigos, que tratam de variados temas das relações jurídicas no setor privado. Na composição se distingue em duas partes: Parte Geral e Especial. A Parte Geral reside em 3 Livros, que tratam das Pessoas (Naturais e Jurídicas), Dos Bens (Quanto a Classificação) e dos Fatos Jurídicos (Negócios Jurídicos, Atos Jurídicos Lícitos e Ilícitos e da Prova). No que tange a Parte Especial, é composta por 5 Livros que dispõem sobre: Direito e Obrigações (Modalidades, Transmissão, Quitação e Extinção das Obrigações, Inadimplemento, Contratos em Geral, Espécies de Contratos, Atos Unilaterais, Títulos de Crédito,Responsabilidade Civil e Preferências e Privilégios Creditórios), Direito da Empresa (Do Empresário, Da Sociedade, Do Estabelecimento, dos Institutos das Coisas), Direito das Coisas (Posse, Direitos Reais, Propriedade, Superfície, Servidões,Usufruto, Uso, Habitação, Direito do Promitente Comprador, Penhor, Hipoteca e da Anticrese), Direito da Família (Direito Pessoal, Direito Patrimonial, Da União Estável, Da Tutela e da Curatela), Sucessões (Sucessões em Geral, Sucessão Legitima, Sucessão Testamentária, Inventário e Partilha), e 1 Livro Complementar (Disposições Finais e Transitórias).
Este último Livro serve para disciplinar as questões genéricas de aplicabilidade do CC e também as questões relativas à fase de transição do antigo para o novo CC.
Apesar de um pouco densa, a descrição acima serve para demonstrar a abrangência dos dispositivos contidos no CC, que no seu conjunto pretende englobar as situações que estejam na esfera das relações de entes privados, mesmo que em algumas situações, seja necessário o socorro de lei especifica, como é o caso do Estatuto do Idoso, da Criança e do Adolescente, Código do Consumidor. Cabe ressaltar que, no eventual conflito de algum comando legal, devem prevalecer às bases previstas na Constituição Brasileira. Portanto, o Código Civil rege as relações privadas, de forma genérica na sua Parte Geral e de maneira específica na Parte Especial, sendo suplementado por legislações especiais, e nos casos de eventuais conflitos devem ser dirimidos pela Constituição.
Para exemplificar as situações que são capituladas no Código Civil, ficam patenteadas as características da personalidade e da capacidade do individuo, inclusive com seus direitos, no título que trata das pessoas naturais. No que se refere às pessoas jurídicas, ficam declarados os conceitos gerais que as identificam, bem como associações e fundações, além de pontificar as conceituações do domicilio com suas características. São relevantes estes conceitos e identificações, contidas em 78 artigos iniciais, porque oferecem a base daqueles que efetivamente celebram ou mantém relações jurídicas entre si, e que serão tratados nos artigos e capítulos seguintes do mesmo Código.
Também são tratados em Livro especifico, o Direito da Empresa, que estabelece parâmetros e definições dos tipos de empresas no país e sua forma de funcionamento, bem como a composição das sociedades empresárias.
Outro item de suma importância é aquele que trata dos Contratos. Isto porque é impossível passar pela vida sem contratar alguma coisa. Até mesmo uma compra no supermercado ou a utilização de transporte coletivo é um contrato, que no caso trata da área de consumo de produtos e serviços. Aliás, ao falar sobre a questão da vida, o CC também disciplina os aspectos da personalidade e dos direitos do nascituro e das pessoas, que se encontra na sua Parte Geral.
Importante ressaltar que, até para segurança jurídica das relações, existem prazos para que as pessoas, tanto físicas como jurídicas, requererem direitos e se obrigarem em determinados assuntos. Para tanto, o Código Civil regula os prazos e define os termos iniciais de contagem, para minimizar a instabilidade social.
Em resumo, o Código Civil é um importante instrumento de pesquisa e utilização pela sociedade nas suas relações jurídicas,que refletem a própria atuação da pessoa humana em todas suas nuances. Nesse particular, deve-se prestigiar a sua compreensão e aplicação no cotidiano, objetivando a obtenção de maior justiça e equidade na convivência social. No mais, cada item inserido no Código Civil, pela sua extensão e importância, deve ser objeto de análise especifica necessária a compreensão, mesmo que parcial e preliminar, da complexidade que possuem. Por exemplo, a questão das Sucessões, dos Títulos de Crédito, da seara da Família, são temas tão vastos na sua amplitude que devem, sem sombra de dúvida, serem estudados e interpretados para a correta e justa aplicabilidade.
Com a Constituição de 1988, exsurge um direito civil renovado e compromissado mais com o homem e menos com o patrimônio, mais com o “ser” e menos com o “ter”, num processo de humanização que refletirá diretamente na propriedade, nos contratos e na família, vigas mestras da codificação privada.
Resumo:
 Ontem os Códigos; hoje as Constituições. Em substituição ao Direito Civil, é a Constituição quem figura hoje no epicentro do sistema jurídico. E esta mudança de paradigma não se faz sem que o modo de enxergar as relações privadas seja drasticamente alterado. Na dianteira desta revolução, o neoconstitucionalismo e todos os desdobramentos teóricos subjacentes à reaproximação recentemente havida entre Direito, Moral e Ética: supremacia da Constituição, revitalização dos princípios e valores, protagonismo judicial, preferência por uma justiça tópica. O reboque do neoconstitucionalismo, a compreensão da Constituição como norma que expande/irradia seus valores por todas as províncias do Direito, condicionando a atuação dos Poderes constituídos e a interpretação do direito ordinário. Já não se pode entender o Direito Civil dissociado da Constituição. Reorientado pelo superprincípio da dignidade da pessoa humana, exsurge um Direito Civil renovado e compromissado mais com o homem e menos com o patrimônio, mais com o ser em detrimento do ter, num processo de humanização que refletirá diretamente na propriedade, nos contratos e na família. Fala-se na personalização das relações privadas, com ênfase em valores existenciais e no reconhecimento de que o Direito Civil, ao exercer sua importante função regulatória do patrimônio, não pode descurar da figura do homem. É este necessário influxo dos valores constitucionais sobre o Direito quem dá a tônica e a importância da concepção civil-constitucional das relações inter privatos.
 Codificação e descodificação
O	 direito civil e o Código Civil de 2002
Faz-se uma análise histórica do processo de codificação do direito civil com intuito de esclarecer as razões que levaram à tendência pós-moderna no sentido de descodificação.
INTRODUÇÃO
                        O direito civil é marcado, sem dúvidas, pela sua evolução histórica e pela sua continuidade. Sendo assim, de modo a acompanhar as transformações e novas demandas da sociedade, moldou-se no decorrer dos tempos, passando, ele próprio por diversas formas de adaptação. Essas atualizações referem-se não somente à matéria, ou seja, ao conteúdo de suas normas, mas também à forma como seus princípios e regras são organizados. Afinal, os métodos de sistematização possuem diversos impactos em relação ao modo de conhecimento, interpretação e aplicação do direito e até mesmo em sua democratização.
                        Processos de condensação de normas jurídicas verificaram-se desde o Império Romano, sempre visando maior estabilidade e segurança. Esses processos intensificaram-se na Idade Média, sob a influência não apenas do direito romano, mas também do direito germânico e canônico, até chegarem ao seu auge na Idade Moderna. Com a queda do Regime Absolutista, surgiu um repúdio à ingerência do Estado na vida privada dos cidadãos, o que deflagrou uma forte influência do jus racionalismo e do individualismo, que primavam pela liberdade, igualdade, autonomia privada e sistematização do direito. Consequentemente, a codificação do direito civil foi um fenômeno verificado em todo o ocidente e foi marcada pela supremacia das leis e valorização do indivíduo. A ideia era de um código civil, cujas regras se destinassem, indistintamente, a todos os cidadãos e abrangesse a solução todas as possibilidades de conflitos, a qualquer tempo.
                        Todavia, a inflexibilidade das normas e a constatação da impossibilidade de generalidade e completude dos diplomas civis, levaram a uma mudança de paradigma. O juiz deixa de ser passivo para tornar-se verdadeiro construtor do direito. Contudo, decisões desuniformes para solução de lacunas legais, bem como embasadas em cláusulas abertas e princípios gerais sem diretrizes materiais, levaram à insegurança e instabilidade jurídica, o que culminou em nova crise do direito.
                        Referida crise intensificou-se a partir de novos fatores da era pós-moderna, como a desconstrução da razão, a hipercomplexidade e a interação. Todos os fatores somados colocaram em cheque os métodos clássicos de codificação do direito, exigindo sua ressistematização e o reconhecimento de novos paradigmas.
I. O DIREITO CIVIL E O DIREITO ROMANO, GERMÂNICO E CANÔNICO
                        O direito civil é a base do ordenamento jurídico, uma vez que se trata de um conjunto de princípios e normas com a finalidade de disciplinar a pessoa, no que se refere a sua existência e atividade, bem como o patrimônio e a família. Isto é, objetiva regular as relações jurídicas de natureza privada, tendo por alicerce a igualdade jurídica entre os indivíduos e o reconhecimento da capacidade de autodeterminação destes. Além disso, é marcado pela sua historicidade, uma vez que se desenvolve em um processo contínuo e gradativo ao longo do tempo. O processo evolutivo do direito civil, até os dias atuais, foi marcado por seis fases distintas: a fase do direito romano, do direito medieval, do direito germânico, do direito canônico, do direito moderno e do direito contemporâneo ou pós-moderno[i]. 
                        O direito romano, em suas origens, era um direito flexível, eminentemente jurisprudencial, elaborado por magistrados. Contudo, pressões populares da plebe, levaram à primeira codificação das leis romanas, na forma da Lei das XII tábuas, que consagrou o ius civile. Tratava-se da positivação de uma série de direitos embasados em costumes antigos que se destinavam a regular as relações privadas entre cidadãos romanos. A aclamação popular visava à codificação como garantia de maior segurança jurídica, pois, dessa maneira, pretendia-se conhecer quais normas eram observadas para a tomada de decisões por parte dos patrícios[ii].
                        Entretanto, ao lado do ius civile, as relações privadas continuavam a serem reguladas, também, pelos magistrados romanos, na forma do ius honorarium, um direito ainda jurisprudencial, voltado para o caso concreto. Em sua fase arcaica, o direito romano era extremamente formal e solene, contudo, as guerras púnicas e a expansão do império exigiram maior celeridade e flexibilidade das normas, o que enfraqueceu o ius civile e fortaleceu o ius honorarium. Nessa época, surgiu, ainda, o ius gentium, direito jurisprudencial destinado também a cidadãos não romanos, com escopo de regular, principalmente, relações comerciais, o que tornou o direito romano um complexo de normas de âmbito universal. Tais normas, em 565 d.C. foram compiladas a mando do imperador Justiniano, responsável pelo governo da esfera ocidental do Império Romano, uma vez que a parte ocidental já havia caído em razão das invasões bárbaras. A aludida compilação levou à formação do Corpus iuris civiles, um conjunto organizado de normas destinado a regular as relações privadas do Império e das províncias sob seu controle.
                        Com a queda do império romano em 476 a.C., multiplicaram-se os reinos bárbaros independentes que regiam-se, cada um, pelas suas próprias normas. Esta ausência de centralização de poder deu origemao regime contratual que vigorou por toda a Idade Média, o regime feudal, que se caracterizava por relações de suserania e vassalagem. Contudo, o direito romano continuou a ser aplicado de maneira subsidiária, ao lado do direito germânico e canônico. Com o passar do tempo, o direito romano passa a ser adotado como direito especial de comerciantes e mercadores, por consagrar normas mais dinâmicas e flexíveis.
                        O direito germânico teve como sua principal característica ser um direito social, considerando o indivíduo como participante de uma comunidade. Consagrou, ainda, o princípio da nacionalidade das leis, segundo o qual cada povo deveria reger-se por suas próprias normas. Por outro lado, o direito canônico foi responsável pela inserção de preocupações éticas e idealistas que, antes, não permeavam a matéria. Surgiu para organizar a Igreja Católica e para regular as relações entre os fiéis.
                        O direito romano, o canônico e o germânico conjugaram-se e formaram o ius commune. No Século XII, houve o restabelecimento do Sacro Império Romano por Carlos Magno e o redescobrimento do Corpus iuris civile. A consequência foi a adoção do Corpus iuris civile, na forma de ius commmune, em todo ocidente europeu, como princípios e normas de aplicação subsidiária ao direito local.
II. A IDADE MODERNA E O PROCESSO DE CODIFICAÇÃO
                        Na Idade Moderna, houve o desenvolvimento de uma classe comerciante burguesa interessada na centralização do poder com a finalidade de garantia de estabilidade, paz e segurança jurídica para o bem dos negócios. Com isto, surge o capitalismo e desenvolvem-se as monarquias absolutistas, bem como se fortalece a ideia de Estado- Nação. Além disso, a reforma religiosa e o progresso da ciência e da filosofia levaram a uma valorização do individualismo e do racionalismo. E foi justamente o racionalismo o responsável por uma marcante influência no processo de codificação. Para essa corrente de pensamento, o direito seria um sistema construído a partir de conceitos gerais. Abandona-se, portanto, o direito romano para ser dada ênfase ao direito nacional, principalmente, na forma de códigos.
                        Durante os governos absolutistas, a vontade do rei era a lei. Contudo, com a queda desse tipo de regime, no século XVIII, o Estado Absolutista deu lugar ao Estado Liberal ou Estado de Direito, que tinha como principais características a legalidade (não mais como o desejo do monarca, mas na qualidade de vontade geral), a liberdade e a igualdade entre os indivíduos. Houve, assim, a racionalização do direito, que passou a ser encarado como sistema, o que levou à sua codificação no século XIX. O direito passa, então, a ser tratado como um conjunto coordenado de normas e princípios jurídicos, através da construção de conceitos gerais e utilização do método dedutivo.
                        Evidentemente, já havia existido, outrora, a condensação de normas em um sistema jurídico. Esse processo de condensação, contudo, divide-se em consolidação e codificação. Em uma consolidação, não ocorre nenhum tipo de inovação, sendo as normas, simplesmente, justapostas e organizadas. O mesmo não ocorre em relação à codificação, em que são aproveitadas as leis existentes, mas também ocorre criação jurídica, por meio de adaptações, subtrações e adições. Por isso, é possível dizer que a codificação encontra-se em etapa superior, constituindo verdadeira fase de cristalização dos institutos jurídicos[iv].
                        Conforme salientado anteriormente, os processos de sistematização do direito e condensação ocorreram em outras fases da história, contudo, uma real tendência à codificação intensificou-se por volta do século XIX. Esse tipo de condensação era considerado vantajoso uma vez que era mais didático e permitia, de maneira muito mais prática, um confronto com outros sistemas, como o direito de outros Estados soberanos. Além disso, tornava possível extrair mais facilmente das normas os valores sociais nelas arraigados. Ainda, a codificação possibilitava uma simplificação do direito e sua melhor compreensão. Por fim, era uma forma de garantir maior certeza e estabilidade do direito. Assim, com base em critérios científicos do iluminismo e jus racionalismo, a leis deixaram de ser esparsas e desconexas para comporem um conjunto de normas jurídicas reunidas em um corpo unitário e homogêneo.  Todavia, a codificação também apresentava desvantagens, dentre elas, a inflexibilidade do direito, que impedia o desenvolvimento de suas normas e princípios de acordo com a evolução social. Indubitavelmente, os pontos altos do processo de codificação foram os códigos francês, de 1804, e o alemão, de 1896.
                        Em flagrante repúdio ao regime absolutista, o código francês privilegiou o individualismo, colocando o homem em posição superior a do Estado, bem como ampliou a autonomia do direito privado em face do direito público, tornando o contrato lei entre as partes. Visava-se aniquilar as prerrogativas através de um código que primasse pela impessoalidade, ou seja, que pudesse ser aplicado a qualquer classe a qualquer tempo[vi]. São consagrados, portanto, os princípios da liberdade, da igualdade, da espiritualidade do homem, da liberdade econômica e autonomia de vontade. O paradigma (como modelos de problemas e soluções para uma comunidade de operadores), nesse contexto, passa a ser a lei, que deveria ser clara, precisa em suas hipóteses de incidência, abstrata e universal. O juiz torna-se mera “boca da lei”, devendo, simplesmente, aplicá-la, utilizando-se de meros silogismos
                        Por outro lado, o código civil alemão caracterizou-se por uma forte influência do direito romano, apesar de, em alguns momentos, basear-se em instituições alemãs. Suas normas possuíam elevado nível de abstração e elasticidade, o que permitia aos magistrados uma flexibilidade para adaptar seus dispositivos de acordo com a evolução social bem como a contextos fáticos distintos. Foi marcado por um individualismo menos liberal que o código francês e foi bastante criticado em virtude do excessivo tecnicismo, tanto no que se refere à ordenação sistemática, quanto no que se refere à terminologia, o que dificultou sua compreensão pelo povo.
III. A CODIFICAÇÃO NO DIREITO PÓS-MODERNO
                        O valor fundamental dos códigos do século passado era a liberdade do indivíduo em sua esfera privada, que não deveria sofrer qualquer ingerência por parte do Estado. Contudo, com a revolução industrial e o consequente aumento da desigualdade material em detrimento da igualdade formal, o Estado deixa sua posição de garantidor da ordem e segurança para promover reformas sociais. Sendo assim, o poder público passa a interferir na economia e no trabalho e o Estado de Direito transforma-se em Estado Social, justamente com o objetivo de alcançar a justiça social e a distribuição mais equitativa de riquezas. Exemplo emblemático dessa mudança foi a Constituição de Weimer, onde foi enfatizada a relevância dos direitos econômicos, sociais e culturais dos cidadãos. Verifica-se, portanto, a crise dos modelos inspirados nos códigos franceses e alemães em virtude do latente conflito de interesses entre a burguesia e as classes menos favorecidas. Inaugura-se, dessa maneira, uma fase de dirigismo e protecionismo estatal, em que o individualismo radical cede espaço para limitações à autonomia privada pela ordem pública, à liberdade contratual por princípios referentes à justiça contratual e à boa-fé e, por fim, à propriedade pelo interesse social.
                        Profundas modificações sociais ocorridas no pós-guerra, inclusive a revolução tecnológica, a mundialização da economia e o progresso da medicina e da biologia, levam o direito a novas tendências. Entre elas, o aumento da importância do ser humano, no que se refere a sua vida e a sua dignidade, que passa a ser considerado um valor em si mesmo, por, cada um, ser uma pessoa individuale concreta. Outro inegável impacto dessas transformações sociais foi sobre o modo de sistematização da matéria civil.
                        A codificação surgiu como um processo de unificação de regras (normas e princípios), de forma sistemática e racional, com a finalidade de reger a vida privada dos sujeitos de direito de forma plena e duradoura. Visava-se dar solução a todos os tipos de questões que pudessem surgir nas relações entre particulares. Contudo, com a evolução da sociedade, percebeu-se que isto não era possível, sobretudo nos dias atuais, uma vez que faltam aos códigos civis completude e generalidade[x]. Sendo assim, o direito civil enfrenta uma fase de incontestável transformação, chamada de “crise do direito”, uma vez que suas características formais e materiais não mais possuem a clareza e nitidez necessárias, bem como não atendem à realidade e as exigências sociais. Essa constatação levou a críticas ao sistema de codificação a partir da segunda metade do século XX, bem como a um processo de constitucionalização do direito civil ou, para outros, de civilização do direito constitucional, o que gerou um abalo na clássica dicotomia entre direito público e privado.
                        De acordo com o professor Antônio Junqueira de Azevedo, essa crise verifica-se em razão de três fatores característicos dos tempos pós-modernos. O primeiro deles deve-se a uma nova corrente doutrinária que questiona a razão em que se baseou o sistema de normas codificadas, desconstruindo a convicção em sua própria capacidade. Afinal, este sistema foi construído sobre pilares, pretensamente racionais, levando a determinadas conclusões, por exemplo, a de que as sentenças emanadas pelos magistrados são obras “de prudência”, bem como que a lei deve ser obedecida, uma vez que é “de razão”. Contudo, a verdade é que tanto as premissas quanto as conclusões são frágeis, não passando de um jogo jurídico, uma simulação coletiva com a finalidade de garantir a ordem e a segurança. Reconhecer essa fragilidade significa abandonar a antiga diferença entre aparência e realidade para admitir que a distinção de verdadeira relevância é entre o mais útil e o menos útil. Assim, deixa de ter importância a aparência de realidade para prevalecer a solução mais útil para as partes e para a sociedade.
                        O segundo deles seria a hipercomplexididade. Atualmente, ao contrário do que acontecia no passado, quando se pretendia não fazer distinção entre os cidadãos, exaltando-se a igualdade, os indivíduos, hoje, são qualificados e concretos e, assim sendo, buscam uma identificação com determinada categoria que lhe permita proteger-se por meio de estatutos específicos para aquele determinado grupo. O reflexo disto é o surgimento de vários grupos sociais distintos, sem interesses ou valores compartilhados, dentro de uma mesma sociedade e, em vista disto, a multiplicação das fontes formais e materiais de direito para atender às demandas de cada um. Como consequência, ocorre uma inevitável quebra da unidade pretendida com a codificação.
                        É possível que, diante de uma análise superficial, conclua-se que o real cerne do problema relaciona-se com uma simples desatualização do código civil. Todavia, uma verificação mais aprofundada levará a outro veredicto. A verdade é que novas leis especiais, criadas para atender peculiaridades de cada grupo ou para regulamentar de forma mais adequada determinada matéria, estão esvaziando os códigos civis e desvirtuando-os como principal fonte reguladora das relações privadas. Afinal, o fato é que referidas leis não se destinam a um número reduzido de indivíduos ou hipóteses, mas, sim, aprofundam e regulamentam desdobramentos de institutos já codificados pelos códigos civis. Essas leis, especiais somente em sede de nomenclatura, por vezes, formam verdadeiros microssistemas que se distanciam dos códigos civis, uma vez que se regem por sua própria filosofia e princípios, bem como se galgam em seus próprios valores e métodos de interpretação. Como exemplo, tem-se, no Brasil, o estatuto da terra, a lei das sociedades anônimas, a lei do inquilinato, a lei de direitos autorais, o Código de Defesa do Consumidor, entre outros.
                        Além disso, em razão do desenvolvimento científico e tecnológico, bem como do reconhecimento da pessoa como valor fundamental e o surgimento de novas espécies de danos, houve inquestionável ampliação do âmbito temático no direito civil. Estes fenômenos tornam cada vez mais impossíveis um código que preveja todas as possibilidades de conflitos, fadando-o a estarem permanentemente incompleto e desatualizado[xiv].
                        Com isto surgiram diversas doutrinas que advogaram pelo fim dos códigos civis como estatutos orgânicos da vida privada para passarem a constituir diploma normativo subsidiário e darem lugar a códigos setoriais, divididos por matérias específicas, especiais ou não. Entretanto, nem mesmo essas correntes impediram o surgimento de novos códigos, entre eles, o Código Civil de 2012. Ainda assim, diante desse processo de ressistematização da matéria civil, vem-se verificando um abandono daquele sistema fechado que primava pela completude, com finalidade de segurança e estabilidade jurídica, em favor de um sistema mais aberto e flexível, que conta com princípios, cláusulas gerais e conceitos indeterminados, o que aufere aos intérpretes e aplicadores do direito maior poder de criação e adequação ao caso concreto, mas, por outro lado, pode gerar incertezas e insegurança jurídica. Referido aumento de poder coloca em cheque, ainda, o sentido e a utilidade de se lutar por garantias de direitos previstos em um incontável número de textos legais quando, ao final, os magistrados são cada vez mais compelidos a decidirem de acordo com o caso concreto e não mais com base em textos expressos de normas jurídicas. Afinal, houve, incontestavelmente, uma alteração no modelo de exegese jurídica. Pelo método clássico, partia-se da lei e aplicava-se um raciocínio lógico-dedutivo para a sua aplicação. O paradigma, indubitavelmente, era a lei. Na atualidade, a interpretação não é mais concebida como mera forma de declaração do direito, mas, sim, uma forma constitutiva. O raciocínio passa, assim, a ser dialético, partindo-se do caso concreto para o problema, o que vem a caracterizar o pensamento problemático[xv] [xvi] [xvii].                     
                        O terceiro fator, ainda segundo o Professor Antônio Carlos Junqueira, seria a interação, o que conceitua como a atual tendência à possibilidade de negociação de matérias de direito fora do âmbito do Poder Judiciário, o que contrariaria a concepção hierárquica da justiça. Afinal, atualmente, não é raro que as partes resolvam conflitos por conta própria ou que outros Poderes os solucionem. O exemplo disso é possível citar uma flagrante tendência à adoção de procedimentos arbitrais, que visam, justamente, evitar a morosidade do Poder Judiciário e a falta de uniformidade das decisões judiciais. Questiona-se, em vista disto, se o Poder Judiciário, na qualidade de órgão de output, teria tornado-se dispensável, o que condenaria o sistema ao seu fim[xviii].
                        Com base nesses fatores, não exige grande esforço concluir que a vocação deste século não é para a codificação. Afinal, em um mundo instável, inseguro e volúvel, não é razoável ou útil que o direito se prenda a ideias concernentes à imutabilidade da legislação e perenidade dos institutos jurídicos. Esse tipo de concepção foi eficaz outrora, quando a preocupação era salvaguardar os indivíduos de ingerências indevidas por parte do Estado. Todavia, não é possível insistir em uma sistemática elaborada para uma realidade já, há muito, extinta. Nem mesmo na Itália ou na Alemanha, onde este sistema é tradicional, cogita-se em uma nova codificação[xix].
IV. A CRISE DO DIREITO E AS NOVAS TENDÊNCIAS
                        Conforme salientado anteriormente, o paradigma, como consistindoem modelos de problema e soluções para uma comunidade de operadores, até a Primeira Guerra Mundial era a lei. E essa lei deveria ter claras hipóteses de incidência, ser abstrata e universal, ao passo que os magistrados deveriam ser passivos e limitar-se a simples silogismos. Contudo, com o passar dos tempos surgiram questões que não podiam ser resolvidas por mera subsunção do caso concreto à lei. Por exemplo, situações envolvendo lacunas legais ou costumes. Com isto, a lei, que, anteriormente, apresentou-se como garantidora de estabilidade e segurança jurídica passou a ser vista como obstáculo, dada a sua inflexibilidade. Consequentemente, os juízes tomaram posição de destaque, desenvolvendo suas próprias soluções para preencher lacunas e antinomias. Conceitos jurídicos indeterminados, cláusulas gerais e noções vagas pulverizaram-se nos textos legais e foram fundamentais para o desenvolvimento deste novo papel dos juízes, que deixaram de ser meros declaradores da lei e tornaram-se verdadeiros órgãos criadores de direito. O direito, portanto, atravessou, na verdade, um processo de modificação de paradigma da lei para o juiz.
                        Entretanto, esse processo não restou estático e, como era de se esperar, teve a sua continuidade histórica. Afinal, o direito é um sistema de segunda ordem, ou seja, tem a finalidade de atender a um sistema de primeira ordem, isto é, a sociedade. E, na medida em que o direito passa a não atender mais os escopos para os quais foi criado, é obrigado a acompanhar a evolução social e adotar novos paradigmas.
                        Atualmente, como já ressaltado, é possível verificar a proliferação de grupos sociais que tendem a buscar a solução de seus conflitos com base em seus próprios códigos de ontológicos. Cada grupo acaba por criar, inclusive, seus próprios órgãos deliberativos, a exemplo de conselhos de ética profissional e instituições como a Justiça Desportiva e a Bolsa de Valores. A consequência disto é que a lei e o juiz passam a entrar em cena somente nas hipóteses em que, realmente, faz-se necessária a presença do Estado na qualidade de julgador.
                        Portanto, com uma análise mais apurada, é possível verificar que a chamada “crise do direito” na pós-modernidade pode não passar de uma mudança de paradigma. Esse paradigma jurídico, que foi da lei ao juiz, nos dias de hoje, vai do juiz para o caso concreto. Isto é, o Poder Judiciário apenas deve atuar em casos específicos, o que não diminuiu a sua relevância. Todavia, na atualidade, há um repúdio às formulas vazias dos conceitos abertos e cláusulas gerais, uma vez que se busca, novamente, a segurança jurídica, debilitada pela arbitrariedade das autoridades judicantes em preenchê-las de acordo com suas próprias convicções. A consequência disto é a multiplicidade de decisões judiciais díspares e desuniformes, que geram uma ampla sensação de instabilidade, enfraquecem o Poder Judiciário e acabam por levar os indivíduos, cada vez mais, a desejarem enquadrar-se em determinadas categorias com a finalidade de, efetivamente, alcançarem uma fuga dos provimentos jurisdicionais.
                        Nesse sentido, é certa que a solução de conflitos dentro de grupos é uma tendência inevitável, fruto de uma evolução social. O Poder Judiciário passa a ocupar uma posição que, apesar de ainda relevante, é residual. Entretanto, a falta de segurança jurídica gerada por um sistema já desatualizado e incompatível com a realidade faz com que haja uma verdadeira fuga e repúdio em relação às decisões judiciais e, isto sim, é indesejável para a instituição, uma vez que pode, no futuro, levá-la a obsolescência[xx].
V. A CODIFICAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO
                        O código civil brasileiro de 1916 foi, inegavelmente, influenciado pelo código civil alemão. Já em 1845, havia aclamações, na Ordem dos Advogados Brasileiros, no sentido de remodelação do código civil nacional, que era formado por leis esparsas e numerosas. Em 1855, Teixeira de Freitas foi encarregado de consolidar a legislação civil e, então, redigir um código de normas sobre a matéria. Contudo, foi substituído por outros ilustres juristas (inclusive, Antonio Coelho Rodrigues dos Santos, que redigiu parte do projeto em Genebra, determinando a influência alemã em seu trabalho), até que foi finalizado por Clóvis Beviláqua e aprovado em 1915, entrando em vigor em primeiro de janeiro de 1916. Caracterizou-se por um forte liberalismo, de interesse das classes dominantes, garantindo o direito de propriedade e assegurando a ampla liberdade contratual. De acordo com o doutrinador Francisco Amaral, traduziu o sistema normativo de um regime capitalista colonial[xxi].
                        Contudo, no decorrer do tempo, também o Brasil foi alvo das transformações sociais que levaram à proliferação de leis especiais em torno das principais instituições de direito privado. Além disso, houve deslocamento de matérias para o âmbito constitucional, o que determinou a redução do código civil a complexo normativo supletivo e residual. É aprovado, assim, o Código Civil de 2002, como tentativa de restaurar o código civil como fonte principal de normas e princípios reguladores das relações de âmbito privado. Para isso foram adotadas algumas medidas, entre elas, a atualização de institutos e a redistribuição da matéria conforme sistemática mais moderna, a manutenção do código civil como lei básica, mas não exclusiva, o aproveitamento de projetos e trabalhos anteriores, a revisão de matérias previstas em leis especiais após 1916, a adoção de contribuições da jurisprudência e, por fim, a exclusão de matérias de ordem processual[xxii].
                        Apesar dessa tentativa, não se pode negar que o Código Civil de 2002 é um exemplo de paradigma ultrapassado. Sua elaboração verificou-se, essencialmente, entre 1969 e 1972, época em que o Estado era forte, e, por isso, exige, inutilmente, que determinados tipos de conflitos, que poderiam, tranquilamente, ser resolvidos fora do âmbito do Poder Judiciário, sejam decididos por juízes togados ou, ao menos, que haja sua intervenção. Além disso, o Código Civil de 2002 prestigia diversos tipos de cláusulas gerais e conceitos vagos, sem que aja qualquer tipo de diretriz material para identificação ou esclarecimento desses conceitos, que acabam sendo preenchidos de acordo com concepções pessoais de cada julgador. Adicionalmente, buscou-se, com o Código Civil de 2002, de todas as formas, garantir a unidade da disciplina civil em um mesmo diploma legal, o que já se demonstrou ser inviável. Por fim, todo esse esforço pela unidade resultou em uma ausência de qualquer tipo de participação popular na elaboração da lei que regularia, substancialmente, a vida dos cidadãos em seu âmbito privado. Com mais de 2.000 artigos sobre temas variados e complexos, é de se imaginar que pouquíssimos cidadãos leram inteiramente o projeto. Aliás, muito provavelmente, nem mesmo os senadores o fizeram, uma vez que, no Senado, o projeto foi aprovado por voto de liderança.
                        Portanto, para que, na atualidade, seja possível conceber algum tipo de codificação, é necessária a observância de, pelo menos, algumas diretrizes. Primeiramente, não se pode mais visar uma unificação radical de toda a matéria civil, tendo em vista a hipercomplexibilidade. Nesse sentido, não deve haver um único código, mas vários, regulando cada qual uma matéria específica. Haveria, dessa maneira, um fracionamento que permitiria a participação popular na elaboração da lei, o que promoveria uma “interatividade” na produção da norma. Isto é, em havendo um código específico para determinada matéria, torna-se mais viável o conhecimento da opinião dos interessados sobre o assunto, o que possibilita uma codificação de modo “interativo”, participativo e democrático. Por fim, é preciso aceitar a desconstrução da razão como fator positivo. Afinal, o abandono de dogmas jurídicos pautados na lógica, supostamente racionais, não significauma consagração da irracionalidade, mas, sim, prestigiar, ao lado da razão, a intuição de justiça, uma vez que o objetivo do julgamento é justamente resolver questões existenciais da pessoa humana e contendas que envolvem suas relações recíprocas[xxiii].
CONCLUSÃO
                        As transformações sociais ocorridas após a Primeira Grande Guerra tiveram forte impacto sobre a clássica forma de codificação do direito civil, adotada na Idade Moderna com a finalidade de evitar ingerências indevidas do Estado na vida privada dos indivíduos. Novos fatores, como a desconstrução da razão, a hipercomplexidade e a inter-ação, evidenciaram, de maneira contundente, que este modelo de sistematização tornou-se obsoleto e inadequado para atender interesses e necessidades da sociedade. Mais que isso, tornou-se antidemocrática e atentatória à própria dignidade da pessoa humana, valor máximo, atualmente, consagrado em praticamente todos os ordenamentos jurídicos do hemisfério ocidental.
                        Pelo princípio da dignidade da pessoa humana, cada ser humano é único, possui suas próprias particularidades e tem valor em si mesmo. Essa perspectiva distancia-se da igualdade clássica, em que todos os indivíduos são considerados iguais perante lei, sem distinção. Essa nova concepção levou os cidadãos a inserirem-se em determinadas categorias com interesses próprios, visando estatutos jurídicos específicos para resguardá-los. Consequentemente houve o surgimento de diversas leis especiais, paralelas ao diploma civil, para proteger e regular determinado assunto e grupos. Leis estas com princípios e características próprias.
                        Além disso, os cidadãos, repelindo a insegurança e a instabilidade de decisões judiciais baseadas em conceitos vagos, cláusulas abertas e princípios gerais, passaram a buscar soluções fora do Poder Judiciário, criando seus próprios órgãos deliberativos. Agravou esse repúdio, ainda, a falta de participação popular e democrática na elaboração das leis, que se torna impossível diante de códigos civis que abordam um incontável número de matérias de alta complexidade.
                        Adicionalmente, a revolução da tecnologia, da medicina, da biologia e dos meios de comunicação ampliou, de forma estrondosa, o âmbito temático do direito civil. Este fenômeno fez com que a unificação das leis civis em um diploma fundamental, norteador de toda a matéria, fosse cada vez mais inviável. Afinal, diante da rapidez das transformações sociais, é impossível a atualização de todo um código de leis na mesma velocidade, o que faz com que esteja sempre um passo atrás das demandas da população.
                        Por fim, a desconstrução da razão afasta os pilares, em tese, lógicos, sobre os quais foram construídas as codificações clássicas. As normas, assim como as decisões dos magistrados, deviam ser observadas em virtude de uma suposta lógica do sistema, que garantia segurança e estabilidade. Contudo, a constatação de que tais premissas constituem pilares frágeis faz emergir não uma irracionalidade, mas, a necessidade de colocar-se ao lado da razão, a intuição pelo justo.
                        Sendo assim, é preciso que o direito, mais uma vez, readapte-se para dar um próximo passo rumo a sua continuidade e evolução histórica. Para isso, os códigos extensos e complexos deveriam ser substituídos por códigos específicos quanto à matéria e quanto ao sujeito. Dessa forma, seria possível uma efetiva participação popular na elaboração de normas de seu interesse, havendo, nesse sentido, uma redemocratização do direito através da interatividade. Assim, haveria, ainda, uma acomodação em relação à hipercomplexidade, uma vez que seria mais simples e eficaz regulamentar a amplíssima esfera temática civil. O código civil seria, dessa maneira, reduzido a uma legislação supletiva e secundária em face da Constituição da República e de códigos específicos. Além disso, apenas aqueles casos em que se faz indispensável a presença do Estado-juiz seriam encaminhados ao Poder Judiciário. Tal mudança não retira do Poder Judiciário a sua hierarquia ou o seu valor. Trata-se, apenas, de uma alteração de paradigma, que vem migrando da lei e do juiz para o caso concreto.
                        Enfim, mudanças podem causar estranheza, perplexidade e até mesmo resistência. Contudo, todo processo de evolução exige adaptações e, consequentemente, mudanças. Evitá-las ou postergá-las significa atravancar o desenvolvimento natural da sociedade e, ao lado desta, do próprio direito. Por isso, é preciso abandonar posturas arraigadas à tradição clássica para permitir o desabrochar de uma sistemática mais útil, eficaz, moderna e justa.

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