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admirador fervoroso de Cousin, Magalhães toma a posição soberba de um artista alheio e superior a escolas, emancipado. “O poeta independente, diz ele no seu magro Discurso sobre a história da literatura do Brasil, citando Schiller,96 não reconhece por lei senão as inspirações de sua alma, e por soberano o seu gênio.” Gênio é uma palavra de que Magalhães abusava, metendo-a até um passo onde forçosamente se referia a si próprio. Infelizmente, gênio não tinha nenhuma, e a postura de poeta independente que alardeava não lhe calhava ao modesto engenho. Era a formação pseudoclássica do seu espírito, consoante com a sua índole literária, e o seu ecletismo filosófico que lhe impunham essa atitude. O próprio título de tragédia que deu às suas peças de teatro contrastava o parecer do Romantismo, que em nome da liberdade da arte, e da verdade humana, refugava a velha fórmula clássica. 96Opúsculos históricos e literários, 2.ª edição. Rio de Janeiro, Garnier, 1865,270. O renovador do teatro, e simultaneamente principal fautor do Romantismo português, Garrett, não por simples imitação, mas com razões excelentes, chamou ao seu admirável Frei Luís de Sousa de “drama”, não obedeceu à regra dos cinco atos e escreveu-o em prosa, porventura a mais bela que jamais se fez em nossa língua. Magalhães, que tem sobre Garrett o mérito da prioridade na introdução do teatro moderno em português,97 ao invés deliberadamente chamava à sua de tragédia, punha- lhe os cinco atos clássicos, embora para isso tivesse de derramar a composição, e fazia-a em verso, segundo a fórmula consagrada. Distinguem-na, porém, do mesmo passo revendo a influência do Romantismo, o assunto moderno e nacional, a familiaridade da expressão apesar do verso clássico, e o pensamento liberal que a inspira, não obstante o catolicismo do autor. Não será o Antônio José, sob o puro aspecto literário e estético, uma perfeita ou sequer notável obra d’arte, mas é sem dúvida um documento muito apreciável da capacidade do poeta, e não de todo sem força dramática ou beleza de expressão. E, o que muito importa, no conjunto da nossa literatura dramática, sobre a iniciar, não é despecienda. Sente-se ainda que é uma obra feita de inspiração. Põe-no de manifesto o contraste com o Olgíato, obra prolixa, difusa e declamatória. O Otelo é apenas a tradução em verso da incolor tragédia do pseudoclássico francês Ducis, a qual nesta dinamização já nada conserva da fortíssima emoção shakespeariana. Como quer que seja, o impulso da literatura dramática estava dado. Em outubro do mesmo ano de 1838, Martins Pena, engenho teatral mais nativo que Magalhães, fazia representar a sua primeira comédia, O juiz de paz na roça, lidimamente brasileira, por figurar com toda a verdade um aspecto cômico da nossa vida. Seguindo o exemplo de Magalhães, todos os românticos escreverão teatro. Nenhum, porém, antes da segunda geração, com o talento, a arte e o sucesso dele. Da impressão feita na mente portuguesa pela epopéia de Camões, resultou não só em Portugal mas no Brasil a criação épica, que é um dos mais curiosos aspectos da literatura da nossa língua. Desvaneceram-se dela por tal forma os portugueses, que é de ver o filaucioso entono com que presumiram amesquinhar a literatura francesa, reprochando-lhe a carência de uma epopéia. Ao contrário, eles as tinham em demasia. Desta opinião resultou mais o parvoinho pressuposto de que um poeta, para merecer inteira estimação, cumpria-lhe escrever um poema épico. Aos brasileiros herdaram o seu preconceito. Os nossos românticos encontravam-no sancionado pelos exemplos de Bento Teixeira, de Santa Rita Durão, de Basílio da Gama, de Cláudio da Costa e de outros poetas autores de poemas épicos mais ou menos consideráveis. No propósito deliberado de fomentar a literatura da nação estreante, Magalhães fizera poesia, fizera teatro, fizera novela, escrevera ensaios filosóficos, históricos e literários. Em 1856 coroou, segundo seria a sua mesma persuasão, a sua obra de renascença com um poema épico, em dez cantos, em endecassílabos soltos, de assunto e de inspiração nacional, a Confederação dos Tamoios. O aparecimento desta obra foi um acontecimento literário. Contra ela escreveu José de Alencar, então estreante, uma crítica acerba, e o que é pior, freqüentemente desarrazoada. Saíram-lhe em defesa ninguém menos que Monte Alverne e o próprio Imperador D. Pedro II, que fora, às ocultas, o editor do poema. Tinha razão Magalhães quando do seu citado estudo sobre a história da nossa literatura notava que no começo daquele século “uma só idéia absorve todos os pensamentos, uma idéia até então quase desconhecida; é a idéia da pátria; ela domina tudo, e tudo se faz por ela e em seu nome. Independência, liberdade, instituições sociais, reformas políticas, todas as criações necessárias em uma nova nação, tais são os objetos que ocupam as inteligências, que atraem a atenção de todos, e os únicos que ao povo interessam”. Continuava verdadeira a sua observação, e desse sentimento menos de são patriotismo que de vaidade patriótica aproveitou ele largamente, e aproveitava agora no sucesso da Confederação dos Tamoios. O que principalmente disseram do poema os seus defensores é que era uma obra de inspiração patriótica. Este errado critério de juízo de uma obra literária ou artística permaneceria nos nossos costumes, como um vício de crítica irradicável, e ainda não desapareceu de todo. O próprio Alencar, três lustros depois, defendendo obras suas dos ataques da crítica ou da opinião pública, apelava para o sentimento patriótico que lhas inspirava. Este indiscreto sentimento, principalmente, ajudou a nomeada que no seu tempo teve a Confederação dos Tamoios, como em geral favoreceu a obra dos nossos primeiros românticos, dele inspirada. O poema de Magalhães apareceu um ano antes dos quatro cantos dos Timbiras, de Gonçalves Dias. Parece, entretanto, que os contemporâneos não repararam que a Confederação dos Tamoios, voltando ao índio estreado na poesia brasileira por Basílio da Gama e Durão, nada criava, mas apenas seguia a sua retauração nela, desde 1846 feita por Gonçalves dias nos seus Primeiros cantos. Apenas à feição que se chamou indianismo, e que foi de princípio a mais singular do nosso Romantismo, trouxe o poema de Magalhães o concurso precioso de uma obra considerável e de um homem socialmente mais considerado que Gonçalves Dias, com altas e prestigiosas amizades e relações, poeta então muito mais estimado que o seu jovem êmulo. Era ainda o momento em que um falso critério sociológico e um desvairado sentimentalismo queriam fazer do índio um elemento demasiado interessante da nossa nacionalidade. Portanto, lisonjeava o sentimento público, e lhe aproveitava da simpatia. A Confederação dos Tamoios não criou na nossa literatura o que se viria chamar “indianismo”, e que se não foi todo o nosso Romantismo, foi a sua feição mais peculiar. Mas, com a autoridade literária de que então gozava o seu autor, trouxe à iniciativa de Gonçalves Dias uma cooperação apenas inferior à ação deste, se é que no momento não foi havida por superior. Em 1859, três anos depois da Confederação, apresentava Magalhães ao Instituto histórico uma extensa memória sobre Os indígenas do Brasil perante a história, que poderia ser como o comentário perpétuo de seu poema. O fim declarado desse trabalho é reabilitar o elemento indígena. Não era outro o íntimo pensamento do indianismo.98 Magalhães foi principalmente e sobretudo poeta. Por sua obra de poeta influiu poderosamente na implantação do Romantismo aqui, e, portanto, na fundação da literatura que desde então se começa a distinguir da portuguesa. Mas escreveu também prosa, ensaios diversos e tratados filosóficos. Como prosador é seguramente, não obstante alguns defeitos nativos (como o já ridiculamente famoso da colocação dos pronomes), um dos mais